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SUMÁRIO:
1, O artigo 616.º, n. 2, do CPC, nas suas alíneas a) e b), dispõe que, nos casos em que não caiba recurso da decisão, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida. O artigo 617.º, n.º 6, do CPC, dispõe que, se for deduzido pedido de reforma da sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada.
2. Não está em causa a existência de manifesto lapso na determinação da norma aplicável ou na qualificação dos factos, mas apenas uma divergência relativamente à interpretação do direito.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1RELATÓRIO
1. A..., titular do NIF..., B..., titular do NIF..., e C..., titular do NIF..., “Requerentes” no processo arbitral identificado supra, tendo sido notificados a 20 de janeiro de 2025, da Decisão Arbitral proferida vêm, nos termos dos artigos 616.º, n.2, alíneas a) e b), do Código do Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.1, alínea e), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a reforma da decisão arbitral, relativa ao presente processo, em que se considerou que:
I – Do artigo 11.º da LGT decorre que a interpretação, no direito fiscal, de termos próprios de outros ramos de direito deve, em princípio, conservar o sentido que eles aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei, devendo atender-se, em caso de dúvida, à substância económica dos factos tributários.
II – O artigo 9.º, n.º 4, do CIS, ao determinar a aplicação à tributação da transmissão gratuitas de imóveis, em IS, da mesma lógica da tributação das transmissões onerosas, em IMT, expressa que o legislador quis alargar o sentido dos termos “doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis” de forma a abarcar as doações de quinhões hereditários a elas economicamente equivalentes.
2. Com base essencialmente nesses fundamentos, o Tribunal Arbitral decidiu julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral por não provado e absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.
1.1Questões de facto e de direito po processo N.º 1042/2024-T
3. No dia 24.02.2024, o senhor D..., titular do NIF..., Pai dos Requerentes, outorgou, na qualidade de doador, um contrato de doação de quinhões hereditários a favor daqueles, na qualidade de donatários, ficando cada um investido na proporção de 1/3 dos mesmos, a saber (i) quinhão representativo de metade da herança indivisa de E...– NIF ... – falecido a 25.05.2017; (ii) quinhão representativo de metade da herança indivisa de F...– NIF ... – falecida a 24.12.2014, sendo que os de cujus eram Pais do doador e Avós Paternos dos Requerentes, não tendo ocorrido nenhuma partilha quando da doação, nem posteriormente, pelo que as respetivas heranças permaneceram indivisas.
4. Os Requerentes, enquanto beneficiários das doações dos quinhões hereditários, procederam ao cumprimento das suas obrigações fiscais, mormente através da apresentação da Declaração Modelo 1 de IS., tendo a AT considerado que as doações aqui em causa estavam sujeitas a tributação em sede de IS, mediante sujeição à verba 1.1 da TGIS, à taxa de 0,8%, e emitido as três liquidações de IS referidas, cada uma delas no valor de € 198,43.
5. Através do Portal das Finanças, os Requerentes apresentaram, no dia 06.03.2024, os respetivos procedimentos tributários de reclamação graciosa, dirigidos à Senhora Diretora de Finanças do Porto, não tendo sido tomada, até ao momento da petição inicial, nenhuma decisão final no que tange àquelas reclamações graciosas, presumindo-se indeferimento tácito nos termos do artigo 57.º da LGT, sendo que, no caso do Requerente C..., a AT enviou a 23.05.2024, um projeto de decisão de indeferimento da sua respetiva reclamação graciosa, sobre o qual não foi exercido qualquer direito de audição, alegadamente em face da total surpresa pela sustentação apresentada pela AT da legalidade da liquidação reclamada.
6. A questão decidenda no caso concreto prendia-se com saber se o IS, que, nos termos do artigo 1.º, n.º1, do CIS, incide sobre “todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens” recai sobre a doação de quinhões hereditários contendo bens imóveis, de acordo com a verba 1.1. da Tabela Geral do IS, respeitante, além do mais, à aquisição por doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis.
7. Com os fundamentos acima enunciados, o Tribunal Arbitral decidiu julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral por não provado e absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências, tendo os Requerentes pedido a reforma da sentença nos termos adiante explicitados.
1.2Argumentos das partes
8. Os Requerentes sustentam o pedido de reforma da sentença acima mencionadas com os argumentos que a seguir se sintetizam:
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A Decisão Arbitral proferida nos presentes autos arbitrais padece de manifestos e elementares lapsos na determinação das normas aplicáveis e na qualificação jurídica dos factos, além da prova documental junta implicar a adoção de uma decisão diversa;
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O artigo 9.º, n.4, do CIS remete para o CIMT mas apenas, e só, para as regras de determinação da matéria tributável, ou seja, para as regras dos artigos 12.º a 16.º do Código do IMT, e não para as regras de incidência.
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O tribunal incorreu numa aparente confusão conceitual, algo que é completamente incompreensível para um Tribunal especializado, quando “mistura” uma norma de remissão para a determinação do valor tributável com uma norma de remissão para as regras da incidência objetiva;
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Nada decorre diretamente da lei, i.e. do CIS, que permita afastar o conceito civilístico do direito de propriedade, nem nada no CIS permite sustentar que a sua interpretação, em matérias de incidência, seja feita à base das regras ínsitas no Código do IMT;
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A incidência do imposto do selo nas transmissões referidas neste número é coincidente com o âmbito de incidência objetiva do imposto municipal sobras a transmissões onerosas de imóveis estabelecida no n.1 doa artigo 2.º do respetivo Código. Não é, porém, extensiva a todas as situações abrangidas pela incidência do IMT, constantes dos artigos 2.º e 3.º do respetivo Código, em que se ficcionam determinadas transmissões para efeitos destes imposto. A norma do imposto do selo reporta-se ao conceito jurídico de transmissão;
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O imposto previsto na verba 1.1 incide sobre os contratos de compra e venda previstos no artigo 875.º CC, sujeitos a IMT, ainda que dele isentos, assim como sobre todas as aquisições onerosas de bens imóveis tais como, partilhas, divisão de coisa comum, arrematação judicial e a dação em cumprimento, ou seja, incide sobre todas as aquisições jurídicas do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis relativamente às quais se verifique a transferência do direito de propriedade, bem como a resolução, invalidade ou extinção, por mútuo consenso, dos respetivos contratos, não ficando sujeitas ao imposto previsto nesta verba as assimiladas a transmissões onerosas de bens imóveis previstas no CIMT, relativamente às quais não se verifique a transferência do direito de propriedade;
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O Tribunal Arbitral confunde o artigo 2.º, n.1, do Código do IMT que refere expressamente as “transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade”, com as situações do n.5 que são sujeitas a IMT, mas que não são consideradas “transmissões de bens imóveis”, havendo lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos;
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A reforma da Decisão Arbitral impõe-se por constar do processo prova documental que, só por si, implicaria decisão diversa da proferida, visto que as doações ocorridas referem-se a quinhões hereditários, e não a bens concretos, incorrendo o Tribunal em erro ostensivo quando refere que cabem verbas concretas aos Requerentes.
9. Tendo sido chamada a pronunciar-se, a AT sustenta a manutenção do da decisão proferida impugnado com base nos seguintes fundamentos:
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Os Requerentes invocando, pese embora, erro na determinação da norma, está na verdade a sustentar que o tribunal errou na apreciação que fez na norma, sendo que o erro na interpretação do direito não constitui fundamento para reforma da decisão;
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Quanto ao alegado lapso na qualificação jurídica dos factos e à alegada existência de prova que determine decisão diversa, trata-se, mais uma vez, de uma interpretação dos documentos invocados, pugnando naturalmente o requerente pela interpretação que melhor acode aos seus interesses, mas que não logrou provar nos autos;
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Não lhe assiste a razão, pois que não se verifica qualquer lapso do juiz - a decisão arbitral encontra-se totalmente acertada, corretamente subsumindo o direito aos factos, e não merece qualquer censura;
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O que os Requerentes pretende é uma reapreciação do julgado, e não a reforma da decisão – efeito que, atenta a regra geral de irrecorribilidade das decisões arbitrais, se encontra à partida vedado;
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Uma decisão arbitral que seja desfavorável a qualquer das partes não pode, nem poderá ter nunca, como consequência a desconfiança no recurso à justiça tutelada pelo Estado, sendo que a utilização do meio arbitral não constitui garantia de uma decisão arbitral favorável;
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Verificando-se a prévia existência de jurisprudência favorável à posição dos Requerentes em situação idêntica, a mesma dispõe de meios processuais adequados à defesa da sua tese.
2FUNDAMENTAÇÃO
10. O artigo 23.º do RJAT, sob a epígrafe, Dissolução do tribunal arbitral, dispõe que “[a]pós a notificação da decisão arbitral, o Centro de Arbitragem Administrativa notifica as partes do arquivamento do processo, considerando-se o tribunal arbitral dissolvido nessa data.” Por seu lado, os n.ºs 1 e 2.º do artigo 613.º, do CPC, dispõem que, uma vez proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
11. O artigo 616.º do CPC estabelece o regime de reforma da sentença, sendo a questão em apreço saber se se encontram verificados os pressupostos para a reforma da decisão arbitral proferida no presente processo, nos termos previstos no seu n.º 2, alíneas a) e b), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.1, alínea e), do RJAT.
12. O artigo 616.º, n. 2, do CPC, nas suas alíneas a) e b), dispõe que, nos casos em que não caiba recurso da decisão, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida. O artigo 617.º, n.º 6, do CPC, dispõe que, se for deduzido pedido de reforma da sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada.
13. Salvo o devido respeito (que é o máximo), pela posição dos Requerentes, não está em causa a existência de manifesto lapso na determinação da norma aplicável ou na qualificação dos factos, como reconhece a Requerida, mas apenas uma divergência relativamente à interpretação do direito. Também não se ignora a posição da doutrina sobre a questão de direito. Para o presente tribunal, as questões de facto e de direito são suficientemente claras nos seus contornos e na sua relevância jurídica, económica e fiscais.
14. O que está em causa é a interpretação feita na decisão ao âmbito normativo e programa normativo dos artigos 11.º da LGT, 9.º, 1403 ss., 2031.º ss, e 2050.º ss. do Código Civil e o 9.º, n.º 4, do CIS, e 2.º, n.º 1, do CIMT, em que se considerou a letra da lei como ponto de partida e o seu espírito como ponto de chegada, sem deixar de se vislumbrar uma provável intenção, por parte do contribuinte, de conformar o negócio jurídico em causa de uma certa forma, com o principal propósito de reduzir a sua responsabilidade tributária.
15. O Tribunal reconhece o carácter controvertido da interpretação realizada, sendo que a controvérsia acompanha normalmente as decisões de todos os tribunais, sejam eles o Tribunal Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal Constitucional, ou mesmo o Supremo Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Administrativo e toda jurisdição cível e penal e administrativa e fiscal, incluindo a jurisdição arbitral.
16. Mesmo as decisões superiores que uniformizam jurisprudência não se eximem à discordância e à crítica, podendo conduzir a alterações legislativas, num quadro sequencial de diálogo hermenêutico e institucional. Ainda assim, a AT considerou a decisão arbitral do presente processo totalmente acertada, corretamente subsumindo o direito aos factos e não merecendo qualquer censura, sendo que os princípios da boa-fé e da cooperação processual lhe recomendariam ter sustentado o contrário se disso estivesse absolutamente convencida.
17. No entanto, importa sublinhar que a interpretação efetuada na decisão cuja reforma se requer tem subjacente a questão de saber qual deve ser a posição dos tribunais tributários diante da visível tensão que frequentemente se estabelece, na interpretação e aplicação das normas fiscais – perante um determinado negócio jurídico –, entre formas jurídicas e substância económica, questão indissociável da tensão entre uma hermenêutica jurídica mais literal e formalista ou mais teleológica e sistemática daquelas mesmas normas.
18. Casos há, em que o literalismo formalista conduz a resultados manifestamente irrazoáveis, que se afiguram contrários à vontade do legislador, devendo aí o interesse público constitucional na justa e equitativa interpretação e aplicação da lei fiscal sobrepor-se ao interesse privado do contribuinte em minimizar a sua responsabilidade tributária[1].
19. Se alguns doutrinadores sustentam – explícita ou implicitamente – que os tribunais tributários devem adotar uma posição textualista mais próxima da tipicidade tributária – e deixar as cláusulas gerais e especiais antibuso para o legislador –, outros entendem, em sentido contrário, que os tribunais tributários devem sempre, na análise contextual das transações que cheguem aos autos, privilegiar a substância sobre a forma (substance over form), desde que isso seja permitido por uma interpretação teleológica e sistemática das disposições fiscais relevantes, posição que entendem compatível com o princípios da legalidade tributária, da separação de poderes, do combate à elisão fiscal e da preservação da base tributável.
20. De acordo com este entendimento, os juízes tributários que adotem posições mais literalistas e textualistas ficarão sempre impotentes diante de negócios jurídicos que aparentem tirar partido de certas formas jurídicas para, adequando-se ao sentido literal da lei, contornarem os princípios da Constituição e os fins legislador tributário.
21. No entender do presente Tribunal, as cláusulas gerais e especiais antiabuso não resolvem todos os problemas, porque é impossível ao legislador antecipar e prevenir novos e criativos esquemas elisivos. Daí que os juízes tributários não possam deixar de utilizar as várias doutrinas antielisivas (v.g. substance-over-form; business purpose; step transaction, sham transaction; economic substance) e os diversos princípios hermenêuticos e metódicos ao seu dispor, para além do elemento estritamente literal[2].
22. Importa ter presente que, em vários quadrantes temporais e geográficos, uma boa parte das situações que entre nós o n.º 2, do artigo 2.º, do CIMT, equipara hoje ao conceito de transmissões de bens imóveis viram essa equiparação primeiramente reconhecida através de decisões judiciais que, recorrendo a uma interpretação teleológica e sistemática – antielisiva –, procuraram encontrar soluções que melhor refletissem a substância económica das transações em causa, desvalorizando a respetiva forma jurídica. Casos tem havido em que o legislador fiscal só atua depois de os tribunais tributários terem primeiro detetado e derrubado o esquema elisivo.
23. O que não quer dizer que orientação jurisprudencial aqui preconizada tenha conduzido sempre a decisões consistentes e inatacáveis, sendo necessária – e da maior utilidade, considerando a inescapável falibilidade das decisões judiciais – a comparticipação interpretativa das várias instâncias de recurso, nomeadamente em sede de uniformização de jurisprudência.
DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
Julgar improcedente o pedido de reforma da decisão arbitral.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de março de 2025
O Árbitro
Jónatas Machado
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º: 1042/2024-T
Tema: IS; doação; quinhão hereditário; herança indivisa
*Reformada pela decisão arbitral de 03 de março de 2025
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SUMÁRIO:
I – Do artigo 11.º da LGT decorre que a interpretação, no direito fiscal, de termos próprios de outros ramos de direito deve, em princípio, conservar o sentido que eles aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei, devendo atender-se, em caso de dúvida, à substância económica dos factos tributários.
II – O artigo 9.º, n.º 4, do CIS, ao determinar a aplicação à tributação da transmissão gratuitas de imóveis, em IS, da mesma lógica da tributação das transmissões onerosas, em IMT, expressa que o legislador quis alargar o sentido dos termos “doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis” de forma a abarcar as doações de quinhões hereditários a elas economicamente equivalentes.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
3RELATÓRIO
1. A..., titular do NIF ..., com morada na Rua ..., n..., ... união das freguesias de ..., ..., ...-... Matosinhos, inscrita no âmbito territorial do Serviço de Finanças de Matosinhos ... (C.R. ...), B..., titular do NIF..., com morada na Rua ..., ..., ..., ...-... Porto, inscrita no âmbito territorial do Serviço de Finanças de Porto ... (C.R. ...), C..., titular do NIF ..., com morada na Rua ..., n.º ..., ..., união das freguesias de..., ..., ..., ..., ... e ... ...-... Porto, inscrito no âmbito territorial do Serviço de Finanças de Porto ... (C.R. ...), coligados e doravante “Requerentes”, e considerando os indeferimentos tácitos dos procedimentos tributários de reclamação graciosa que seguem termos junto da Direção de Finanças do Porto - Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), sob os n.ºs, respetivamente, ...2024..., ...2024..., ...2024..., todos apresentados a 6 de março de 2024 e que visaram as liquidações de Imposto do Selo, verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), com os n.ºs, respetivamente, 2024..., 2024..., 2024..., todas datadas de 28.02.2024, cada uma delas no valor de € 198,43, vieram, a 12.09.2024, nos termos do disposto na alínea a) do n.º1, do artigo 2.º, na alínea a), do n.º 2 do artigo 5.º, no n.º1 do artigo 6.º, e nos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com o artigo 95.º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigos 99.º e 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributária (CPPT), bem como com o artigo 49.º do Código do Imposto do Selo, apresentar pedido de constituição de tributal arbitral singular com vista à obtenção da declaração de ilegalidade dos indeferimentos tácitos dos procedimentos tributários de reclamação graciosa supra identificados, bem como, e em termos mediatos, à declaração de ilegalidade dos sobreditos atos de liquidação de Imposto do Selo (IS), com a consequente anulação dos mesmos e inerente restituição dos montantes em causa, acrescidos dos juros indemnizatórios que venham ser devidos à taxa legal aplicável.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 16.09.2024.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 06.11.2024.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 26.11.2024.
6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 10.01.2025, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.
7. Por não ter sido requerida e não ter sido considerada necessária, a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada por despacho proferido em 15.01.2025, que prescindiu também da produção de alegações por se entender que a matéria de direito se encontra suficientemente tratada no pedido de pronúncia arbitral e na resposta.
3.1Dos factos alegados pelo Requerente
8. No dia 24.02.2024, o senhor D..., titular do NIF ..., Pai dos Requerentes, outorgou, na qualidade de doador, um contrato de doação de quinhões hereditários a favor daqueles, na qualidade de donatários, ficando cada um investido na proporção de 1/3 dos mesmos, a saber (i) quinhão representativo de metade da herança indivisa de E...– NIF ... – falecido a 25.05.2017; (ii) quinhão representativo de metade da herança indivisa de F...– NIF ... – falecida a 24.12.2014, sendo que os de cujus eram Pais do doador e Avós Paternos dos Requerentes, não tendo ocorrido nenhuma partilha quando da doação, nem posteriormente, pelo que as respetivas heranças permaneceram indivisas.
9. Os Requerentes, enquanto beneficiários das doações dos quinhões hereditários, procederam ao cumprimento das suas obrigações fiscais, mormente através da apresentação da Declaração Modelo 1 de IS., tendo a AT considerado que as doações aqui em causa estavam sujeitas a tributação em sede de IS, mediante sujeição à verba 1.1 da TGIS, à taxa de 0,8%, e emitido as três liquidações de IS referidas, cada uma delas no valor de € 198,43.
10. Através do Portal das Finanças, os Requerentes apresentaram, no dia 06.03.2024, os respetivos procedimentos tributários de reclamação graciosa, dirigidos à Senhora Diretora de Finanças do Porto, não tendo sido tomada, até ao momento da petição inicial, nenhuma decisão final no que tange àquelas reclamações graciosas, presumindo-se indeferimento tácito nos termos do artigo 57.º da LGT, sendo que, no caso do Requerente C..., a AT enviou a 23.05.2024, um projeto de decisão de indeferimento da sua respetiva reclamação graciosa, sobre o qual não foi exercido qualquer direito de audição, alegadamente em face da total surpresa pela sustentação apresentada pela AT da legalidade da liquidação reclamada.
3.2Argumentos das partes
11. Os Requerentes sustentam a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:
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A verba 1.1 da TGIS abrange apenas a doação do “direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis”, tendo a doação como objetos “quinhões hereditários” e não a transmissão de qualquer direito de propriedade ou figura parcelar desse direito sobre imóveis;
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Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram;
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Ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha se passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes;
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A alienação (no caso dos autos, permuta com outros bens de terceiro) de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não pode considerar-se “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”;
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A comunhão hereditária constitui coisa diversa da compropriedade, com a qual não se pode confundir, já que os herdeiros não são titulares simultâneos de uma mesma coisa, mas antes titulares de um direito à herança, como universalidade, não se sabendo, contudo, sobre qual dos bens em concreto o respetivo direito ficará a pertencer, não comportando assim uma declaração de propriedade sobre uma realidade não determinada;
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Os Requerentes não são titulares de qualquer direito sobre os imóveis integrados naquelas heranças indivisas, pelo que, no caso sub judice, nunca a verba 1.1 da TGIS foi preenchida;
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Ao ter lançado as liquidações de IS aqui mediatamente visadas, a AT cometeu um vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, dado o erro de qualificação jurídica por si cometido;
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A AT está subordinada à Constituição e ao princípio da legalidade tributária e deve atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé;
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As normas de incidência dos tributos, bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação, devem ser interpretadas nos seus exatos termos, sem o recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação;
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Além da devolução destes impostos pagos pelos Requerentes, há lugar ao ressarcimento destes através dos exigíveis juros indemnizatórios, conforme plasmado nos artigos 43.º e 100.º da LGT, bem como no artigo 61.º do CPPT.
12. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:
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Os donatários participaram as liberalidades efetuadas a seu favor apresentando as declarações Modelo 1 de Imposto do Selo que se mostravam devidas – e constantes dos respetivos processos administrativos;
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Os quinhões doados são compostos por quotas partes de bens imóveis, quotas partes de figuras parcelares e outros direitos sobre imóveis, entre outros, cabendo verbas concretas aos donatários, a saber, A..., Verbas 1, 2, 7, 10, 11, 12 e 13, B..., Verbas 3, 4, 8, 14, 15, 16, e 17 e C..., Verbas 5, 6, 9, 18, 19, 20 e 21, na sequência das quais foram emitidas as liquidações em causa;
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De acordo com o artigo 1.º do CIS, que faz incidir o IS sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens, e nos termos da Verba 1.1 da TGIS, que sujeita a IS a aquisição onerosa ou por doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis, as aquisições em apreço estão sujeitas a tributação pela verba 1.1 da TGIS;
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Até 2008, a verba 1.1 da TGIS era liquidada pelos notários, situação que compreendia a alienação/doação de quinhão hereditário em herança com bens imóveis, passando o IS, a partir de 2009, na sequência da privatização da função notarial, a ser liquidado pela AT;
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Para efeitos de transmissão onerosa do direito de propriedade sobre bens imóveis e ou figuras parcelares do direito de propriedade, é perfeita a coincidência entre o disposto no n.º 1 do artigo 2.º do CIMT e o previsto na 1ª parte da verba 1.1 da TGIS;
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Nos termos do n.º 5, alínea c), do CIMT, o conceito de “transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional”, objetivamente relevante para a incidência do IMT, abrange a alienação de quinhão hereditário;
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Trata-se aí de uma regra de transparência fiscal pois não se tributa a transmissão do quinhão hereditário, enquanto tal, mas sim a transmissão (da proporção) dos imóveis contidos na herança indivisa, caso existam;
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Isto é determinante na determinação da matéria tributável nos termos do art.º 12.º e 13.º do CIMT, regras que também se aplicam em sede de IS, ex vi art.º 9.º, n.º4 do CIS, sendo que o legislador sujeita à verba 1.1 da TGIS (verba muitas vezes denominada de Selo do IMT) os atos ou negócios enquadráveis no n.º 1 do artigo 2.º do IMT;
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O mesmo se passa quando aquelas transmissões se efetivam através de doação, isto é, para efeitos da verba 1.1 da TGIS a transmissão gratuita operada por doação é tratada de forma idêntica à transmissão onerosa, pelo que, sempre que determinada transmissão, sendo onerosa, implique a liquidação da verba 1.1 da TGIS, idêntica transmissão, se operada por via de doação, determina igualmente a liquidação de Imposto do Selo pela verba 1.1 da Tabela Geral;
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Quando a herança contenha imóveis (e circunscrita apenas a estes), a doação de quinhão hereditário absorve a regra da transparência fiscal prevista na alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º do CIMT, para as transmissões onerosas;
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Além disso, tratando-se de herança indivisa, os herdeiros são titulares do direito a uma fração ideal correspondente ao seu quinhão, do conjunto dos bens que a preenchem, até que seja realizada a partilha, o que não impossibilita a alienação de determinados bens componentes da herança indivisa pelos quinhoeiros, com a intervenção de todos os herdeiros, pois que, nos termos do artigo 1404.º do Código Civil, as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos;
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Estando sujeita ao princípio da legalidade, a Administração Tributária não pode recusar a aplicação de uma norma legal vigente no ordenamento jurídico com o argumento de que a considera inconstitucional;
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Sendo manifesta a legalidade da liquidação e a inexistência de erro imputável aos serviços, não procede o pedido de juros indemnizatórios.
1.3. Saneamento
13. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
14. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).
15. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
4FUNDAMENTAÇÃO
4.1Factos dados como provados
16. Com base nos documentos constantes do Processo Administrativo (PA) e trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
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No dia 24.02.2024, D..., titular do NIF ..., Pai dos Requerentes, outorgou, na qualidade de doador, um contrato de doação de quinhões hereditários a favor daqueles, na qualidade de donatários, ficando cada um investido na proporção de 1/3 dos mesmos, a saber:
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quinhão representativo de metade da herança indivisa de E...– NIF...– falecido a 25.05.2017;
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quinhão representativo de metade da herança indivisa de F... – NIF ...– falecida a 24.12.2014;
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Os quinhões doados são compostos por quotas partes de bens imóveis, quotas partes de figuras parcelares e outros direitos sobre imóveis, entre outros, cabendo verbas concretas aos donatários, a saber:
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A..., Verbas 1, 2, 7, 10, 11, 12 e 13,
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B..., Verbas 3, 4, 8, 14, 15, 16, e 17
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C..., Verbas 5, 6, 9, 18, 19, 20 e 21;
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Os de cujus eram Pais do doador e Avós Paternos dos Requerentes, não tendo ocorrido nenhuma partilha quando da doação, nem posteriormente, pelo que as respetivas heranças permanecem indivisas;
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Os donatários participaram as liberalidades efetuadas a seu favor apresentando as declarações Modelo 1 de Imposto do Selo, tendo sido emitidas as liquidações em causa.
4.2Factos não provados
17. Com relevo para a decisão sobre o mérito não há factos que devam ser dados como não provados.
4.3Motivação
18. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
19. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
4.4Questão decidenda
20. Importa considerar, antes de mais, as regras de interpretação e integração das lacunas da lei fiscal consagradas no artigo 11.º da LGT. O n.º 1 deste artigo impõe a observância das regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, excluindo, como regra a existência de regras específicas de interpretação jurídica para o direito fiscal. Assim sendo, o artigo 9.º do Código Civil, respeitante à interpretação da lei, constitui a base da hermenêutica jurídico-fiscal. O mesmo obriga a que se tenha em conta, para além da “letra da lei” que assegure “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” – ponto de partida e limite da interpretação –, também os elementos sistemático – “unidade do sistema jurídico” –, histórico – “circunstâncias em que a lei foi elaborada” – , e contextual – “condições específicas do tempo em que é aplicada”, presumindo sempre que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
21. Não obstante, o direito fiscal apresenta algumas especificidades que justificam a existência de algumas regras próprias para a sua interpretação. Nos termos do n.º 2, do artigo 11.º, da LGT, a interpretação, no direito fiscal, de termos próprios de outros ramos de direito (v.g. direito civil) deve, em princípio, conservar o sentido que eles aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei. Ou seja, não está excluída a possibilidade de o legislador tributário alterar o sentido de um determinado conceito, em ordem a atender às finalidades próprias do direito fiscal. O n.º 3, do artigo 11.º, da LGT, vai um pouco mais longe, impondo que se atenda à substância económica dos factos tributários sempre que persistam dúvidas sobre o sentido das normas de incidência a aplicar. O n.º 4 do mesmo artigo exclui a analogia para a integração das lacunas – método geralmente aplicável por força do artigo 10.º do Código Civil –, em virtude do valor reforçado que as exigências de segurança jurídica, legalidade e tipicidade adquirem no direito fiscal.
22. Estamos agora em condições de nos debruçarmos sobre questão decidenda no presente caso concreto. A mesma prende-se com saber se o IS, que, nos termos do artigo 1.º, n.º1, do CIS, incide sobre “todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens” recai sobre a doação de quinhões hereditários contendo bens imóveis, de acordo com a verba 1.1. da Tabela Geral do IS, respeitante, além do mais, à aquisição por doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis.
23. Se considerássemos apenas o n.º 1 e a primeira parte do n.º 2 do artigo 11.º da LGT, e operássemos unicamente dentro do campo semântico estritamente jurídico-civilístico, teríamos que dar uma resposta negativa à questão a decidir. O silogismo seria simples. A verba 1.1 da TGIS abrange apenas a “doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis”. A transmissão de quinhões hereditários não configura uma transmissão de direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito. Logo, tendo a doação em causa por objeto quinhões hereditários e não a transmissão de qualquer direito de propriedade ou figura parcelar desse direito sobre imóveis, a mesma não se subsume ao âmbito normativo da verba 1.1. da TGIS.
24. Na verdade, do ponto de vista do direito civil, enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. Ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha se passa a ser titular do direito de propriedade (singular ou em compropriedade) sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes. Dessa perspetiva também não se pode confundir a comunhão hereditária (2031.º ss e 2050.º ss. do Código Civil) com a compropriedade (1403.º. ss. do Código Civil). Um domínio em que a jurisprudência e a doutrina têm entendido a conjugação dos elementos de interpretação determinam que os termos empregues na lei fiscal devem conservar o seu sentido jurídico-civilístico diz respeito à questão da tributação das mais valias resultantes da alienação onerosa do quinhão hereditário composto por bens imóveis em sede de IRS[3].
25. No entanto, nos termos do n.º 2, do artigo 11.º, da LGT, o sentido propriamente civilístico dos termos empregues só vale no direito fiscal nos casos em que outro não decorra diretamente da lei. Ou seja, o raciocínio anteriormente exposto pode assentar numa falsa premissa. Assim é, porque o direito fiscal não pretende responder às questões de saber em que consiste o direito de propriedade, quem o adquire, quando, como e em que condições, visando antes, nos termos do artigo 103.º, n.º1, da CRP, a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. Importa, por isso, questionar se da lei fiscal respeitante ao IS decorre diretamente que os termos “doação do direito de propriedade ou figura parcelar desse direito sobre imóveis” devem ser interpretados num outro sentido, que não o estritamente civilístico, que abranja a doação de quinhões de herança respeitantes a imóveis.
26. O artigo 9.º, n.º 4, do CIS, dispõe que “[à] tributação dos negócios jurídicos sobre bens imóveis, prevista na tabela geral, aplicam-se as regras de determinação da matéria tributável do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT)”, fazendo aplicar à tributação das transmissões gratuitas de imóveis, em IS, a lógica que preside à solução escolhida pelo legislador para a tributação das transmissões onerosas, em IMT. Para determinar se um negócio jurídico diz respeito a bens imóveis deve atender-se a todos os factos e circunstâncias relevantes, descartando uma resposta abstrata e meramente conceitual. No caso concreto, resulta dos autos que os quinhões doados eram compostos por quotas partes de bens imóveis, cabendo verbas concretas aos donatários, a saber, A..., Verbas 1, 2, 7, 10, 11, 12 e 13, B..., Verbas 3, 4, 8, 14, 15, 16, e 17 e C..., Verbas 5, 6, 9, 18, 19, 20 e 21.
27. O artigo 2.º, n.º 1, do CIMT dispõe que o IMT incide sobre as transmissões “do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis” numa formulação literalmente idêntica à da verba 1.1 da TGIS. Por sua vez, o n.º 5, alínea c), do mesmo artigo estabelece expressamente que, em virtude do n.º 1, estão sujeitas ao IMT, além do mais, as alienações de quinhão hereditário[4]. Ou seja, da aplicação à tributação da transmissão gratuitas de imóveis, em IS, da mesma lógica da tributação das transmissões onerosas, em IMT, resulta direta e expressamente que o legislador quis alargar o sentido dos termos “doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis” de forma a abarcar as doações de quinhões hereditários a elas economicamente equivalentes.
28. Se dúvidas persistentes houvesse – o que não se crê ser o caso –, elas seriam dissipadas pelo n.º 3, do artigo 11.º, da LGT, que obriga o intérprete a atender à substância económica dos factos tributários sempre que persistam dúvidas sobre o sentido das normas de incidência a aplicar. E a verdade é que os n.ºs 2 a 5, do artigo 2.º, do CIMT, aplicável por remissão do artigo 9.º, n.º 4, do CIS, contêm um número considerável de normas especiais antiabuso, traduzindo uma clara preferência pela substância económica sobre a forma jurídica, de maneira a travar o recurso criativo às mais variadas formalidades jurídicas com o intuito de frustrar as finalidades do legislador fiscal no sentido de tributar, por IMT ou IS, transferências de valor económico equivalente levadas a cabo de maneira onerosa ou gratuita.
29. Trata-se de uma solução dotada de coerência sistemática, inteiramente consentânea com os princípios constitucionais da legalidade, da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da justiça material, e orientada para a preservação da base tributável, que absolve de críticas as liquidações in casu.
5DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
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Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral por não provado;
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Absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.
6VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 595,29 €, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.
7CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 306.00 €, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo
Notifique-se
Lisboa, 20 de janeiro de 2025
O Árbitro
Jónatas Machado
[1] Cfr., a este propósito, Boris I. Bittker & James S. Eustice, “Corporate Reorganizations”, Federal Income Taxation of Corporations and Shareholders, Westlaw, Nov. 2020), dizendo, sabiamente, que “[a]s elsewhere in the law of taxation, the lawyer’s passion for technical analysis of the statutory language should always be diluted by distrust of a result that is too good to be true”.
[2] Exemplos de escola, nesta matéria, são as clássicas decisões nos casos Knetsch v. United States, 364 U.S. 361 (1960); Goldstein v. Commissioner, 364 F.2d 734 (2d Cir. 1966); Estate of Franklin v. Commissioner, 544 F.2d 1045 (9th Cir. 1976); Helvering v. Gregory, 69 F.2d 809 (2d Cir. 1934).
[3] Cfr. Alice Melo Simão, O tratamento fiscal da alienação onerosa do quinhão hereditário, UCP, Porto, 2024, 7 ss. e 11 ss. 3 17, dizendo, sobre a tributação das mais-valias em IRS, que “por existirem inúmeras realidades que podem constituir mais-valias, e dada a impossibilidade de prever todas, a opção legislativa no âmbito desta categoria foi a tipicidade fechada”; V. ainda, Acórdão STA, Sec. II, Processo n.º 0975/09, de 25.11.2009, sobre tributação de mais-valias em IRS, dizendo: “I – Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. II – Assim, porque a alienação (no caso dos autos, permuta com outros bens de terceiro) de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não pode considerar-se “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, não estão sujeitos a IRS os eventuais ganhos resultantes dessa alienação.”
[4] Alice Melo Simão, O tratamento fiscal da alienação onerosa do quinhão hereditário… op. cit., 18 ss.
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