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Sumário:
I – O pedido de reporte de benefícios fiscais constitui um pedido de reconhecimento de um direito perante a administração tributária que fica fora das atribuições, estritamente anulatórias, dos Tribunais Arbitrais do CAAD.
II – Configurando Requerente e Requerida determinadas questões jurídicas materiais que interferem em abstracto com a liquidação impugnada, cabe ao Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre elas mesmo que haja um fundamento formal para a decisão, de modo a assegurar a “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” (artigo 124.º, n.º 2, do CPPT).
III – O STA já firmou jurisprudência sobre a natureza das prestações de contratos de fretamento de navios e de cedência de pessoal técnico conexo como royalties e sobre a incompatibilidade do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, com o disposto numa Convenção de Dupla Tributação (entre Portugal e os Estados Unidos da América) cujas disposições são materialmente (e quase literalmente) iguais à celebrada com Moçambique.
IV – Tratando-se de autoliquidação, a fundamentação específica do acto tributário tem de se reportar à primeira tomada de posição autorizada da AT, sendo essa a razão da exigência de que a impugnação judicial seja precedida de reclamação graciosa (n.º 1 do artigo 131.º e n.º 3 do artigo 132.º do CPPT).
V – Se, ao invés do único fundamento invocado no indeferimento da reclamação graciosa, a resposta da AT assume que os rendimentos auferidos em virtude de um contrato de afretamento e de um protocolo de acordo de cedência de pessoal técnico conexo são qualificáveis como royalties, fica o acto tributário destituído de fundamentação.
VI – O concurso entre as normas do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 43.º da LGT é meramente aparente, uma vez que as deste último número são expressamente supletivas.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
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No dia 27 de Março de 2024 – na sequência da notificação, em 10 de Janeiro de 2024, da decisão que indeferira a reclamação graciosa que tinha interposto –, a A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ...-... ..., ..., ... (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
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Pretendia que fosse declarada “a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que antecede e, bem assim, do ato de autoliquidação do IRC de 2020 (…) com o reembolso do montante de 123.729,98, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios (…) procedendo-se ao reporte de benefícios fiscais no montante de € 20.962,14”.
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Nomeado os árbitros que constituem o presente Tribunal – que aceitaram a designação no prazo aplicável –, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14 de Junho de 2024.
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Seguindo-se os normais trâmites, em 5 de Setembro a AT apresentou resposta e juntou o processo administrativo (PA).
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Em 17 de Setembro, foi proferido despacho a, entre o mais, dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações.
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PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de anulação da autoliquidação, tendo sido precedido de reclamação graciosa, contém-se no âmbito das suas atribuições.
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Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
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O Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) da Requerente foi tempestivo.
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A Requerente pretende, a mais da anulação da autoliquidação de IRC referente ao ano de 2020, o reporte de benefícios fiscais no montante de € 20.962,14. Tratando-se de pedido de reconhecimento de um direito perante a administração tributária, fica fora das atribuições, estritamente anulatórias, dos Tribunais Arbitrais do CAAD (artigo 2.º, n.º 1, do RJAT). Consequentemente, o Tribunal não tem competência para se pronunciar sobre tal pedido.
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Não foram suscitadas outras excepções, nem o Tribunal as divisou.
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MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
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A Requerente é sujeito passivo de IRC, enquadrado no regime geral de tributação, exercendo a título principal a actividade de pesca marítima a que corresponde o Código de Atividade Económica (CAE) 03111, e dedicando-se, em Portugal e no estrangeiro, à exploração da indústria de pesca e produtos alimentares derivados, bem como à sua conservação, comercialização e actividades conexas - (acordo entre Requerente e Requerida);
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Durante o ano de 2020 a Requerente prestou serviços de fretamento de três navios às sociedades de direito moçambicano B..., Lda., com sede em Maputo e com o número único de identificação tributária moçambicano ... (dois) e C..., Lda., com sede em Maputo e com o número único de identificação tributária moçambicano ... (um), tendo recebido das referidas sociedades e registado na contabilidade montantes globais brutos de € 1.063.306,47 (referente às facturas emitidas à B...- Docs. 30 a 46) e de € 384.024,79 (referente às facturas emitidas à C... - Docs. 47 a 66) - (acordo entre Requerente e Requerida);
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Sobre os referidos montantes brutos — no valor total de € 1.447.331,26, incidiu Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas moçambicano («IRPC»), o qual foi liquidado e cobrado, a título definitivo, através do mecanismo de retenção na fonte, à taxa liberatória de 10% prevista no artigo 12.º, n.º 2, da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT Portugal-Moçambique, ou CDT/PT/MCB) - (Documentos 4 a 29 e 47 a 59 juntos com o PPA, e acordo entre Requerente e Requerida);
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O pagamento dos serviços à Requerente foi feito em dólares americanos e convertido em euros para efeitos de registos contabilísticos - (acordo entre Requerente e Requerida) - e o IRPC foi pago em meticais, por referência a esses valores em dólares americanos - (Documentos 4 a 29 e 47 a 59 juntos com o PPA);
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As sociedades moçambicanas referidas em b) efectuaram, na qualidade de substitutos tributários, retenções na fonte de IRPC no montante global equivalente a € 144.692,12, correspondente às retenções na fonte de IRPC efectuadas em meticais pela B... (€ 106.286,04) e pela C... (€ 38.406,08) - (acordo entre Requerente e Requerida);
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Em Julho de 2021 a Requerente apresentou a Declaração Mod. 22 de IRC relativa ao período de tributação de 2020, reconhecendo como proveitos “os rendimentos ilíquidos, no valor de € 1.447.331,26, decorrentes dos serviços de fretamento de navios prestados às mencionadas sociedades moçambicanas durante esse ano” - (Documento 67 junto com o PPA);
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Nessa declaração a Requerente apurou lucro tributável de € 696.647,76, colecta de IRC de € 146.296,03 e derrama municipal de € 10.449,72 - (Documento 67 junto com o PPA);
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Nessa declaração a Requerente não procedeu à dedução do crédito de imposto referente ao IRPC suportado em Moçambique, no montante de € 144.692,12 - (Documento 67 junto com o PPA);
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Em 30 de Junho de 2023, a Requerente apresentou, junto da Direção de Finanças de Aveiro, uma reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC de 2020 (a que foi atribuído o n.º ...2023...), tendo aí defendido que o artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, a que a sua declaração se submeteu, viola os artigos 12.º e 23.º, n.º 1, da CDT Portugal-Moçambique, sendo assim ilegal a referida autoliquidação - (Documento 68 junto com o PPA);
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Por despacho de 9 de Janeiro de 2024 do Chefe de Divisão de Justiça Tributária-Contencioso da Direção Finanças de Aveiro, notificado à Requerente através de ofício datado de 14 desse mês, a AT indeferiu a referida reclamação graciosa com base na informação constante do projeto de indeferimento, onde havia concluído que os rendimentos de origem moçambicana correspondem a lucros que devem ser tributados exclusivamente em Portugal − e já não, portanto, em Moçambique - (Documentos 69 e 70 juntos com o PPA);
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Em 27 de Março de 2024 a Requerente apresentou ao CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral.
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Tendo em conta as posições de Requerente e Requerida e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, não há factos não provados.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo entre Requerente e Requerida, como indicado em cada facto dado como provado.
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DIREITO
IV.1. Questões a decidir
Seguindo as pretensões da Requerente e a Resposta da AT, a primeira questão a ponderar é a da natureza (lucros ou royalties) dos rendimentos por ela obtidos em Moçambique.
Seguindo essa mesma sequência, a segunda questão é a da interpretação da al. a) do n.º 1 do artigo 23.º da Convenção entre a República Portuguesa e a República de Moçambique para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e Prevenir a Evasão Fiscal, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1992 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36/92 e posteriormente redesignada por protocolo como “Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento” (aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 36/2009, e publicado no Diário da República, 1.ª série, de 8 de Maio de 2009) e da sua conjugação com o disposto no artigo 91.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas.
Não seguindo o guião fornecido pela Requerente e pela Requerida, haverá também que ponderar qual foi a fundamentação que a AT produziu para indeferir a reclamação graciosa que a Requerente lhe apresentou, e em que medida é que tal fundamentação teve acolhimento na Resposta da AT.
Subsequentemente, e em caso de procedência da pretensão da Requerente, haverá que apurar as respectivas consequências.
IV.2. Posição da Requerente sobre a natureza dos rendimentos auferidos em Moçambique
A Requerente entendeu, essencialmente, que[1]:
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“A conclusão alcançada pela Administração tributária de que os rendimentos obtidos pela Requerente em Moçambique correspondem a lucros que são exclusivamente tributados em Portugal (e já não em Moçambique) assenta na premissa de que a Requerente estabeleceu «uma exploração em comum com as sociedades de direito moçambicano».”, que seria “«uma parceria com enquadramento no art.º 9.º da CDT/PT/MCB»”;
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Ora, a ser assim, então “os rendimentos obtidos pela Requerente em Moçambique ficariam necessariamente sujeitos ao regime vertido no artigo 9.º (caso se admitisse que Requerente e as sociedades moçambicanas são empresas associadas)[2] ou no artigo 7.º, n.os 1, 2.ª parte, 2 a 5 da CDT Portugal- Moçambique (caso se admitisse que a Requerente tem um estabelecimento estável em Moçambique) [3], devendo por isso, em qualquer uma das hipóteses prefiguradas pela Administração tributária, ser tributados em Moçambique/Portugal de acordo com as regras estabelecidas naquelas normas convencionais.”;
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Porém, acrescentava, não era disso que se tratava: “os rendimentos obtidos pela Requerente em Moçambique devem ser qualificados como royalties, na aceção do artigo 12.º, n.º 3, da CDT Portugal-Moçambique, tendo a Requerente o direito, à luz das normas convencionais, a deduzir à coleta de IRC uma importância igual ao imposto incidente sobre o rendimento ilíquido obtido em Moçambique.”;
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Em abono, invocou:
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“A posição adotada pela Direção de Serviços de Relações Internacionais da Administração Tributária e Aduaneira (com o despacho concordante do respetivo Diretor) no âmbito de dois procedimentos de reclamação graciosa onde se discutiu exatamente o tema aqui em questão (Doc. 71);”;
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“As decisões proferidas pelos tribunais arbitrais constituídos nos processos CAAD n.os 389/2019-T, 97/2021-T e 351/2022-T, através dos quais a Requerente contestou, à semelhança do presente, a legalidade de liquidações de IRC, na parte em que não refletiam a dedução à coleta do IRCP moçambicano (acessíveis em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/);”;
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“O Acórdão Supremo Tribunal Administrativo de 28 de setembro de 2023 proferido no processo de recurso de uniformização de jurisprudência n.º 71/22.9BALSB interposto pela Requerente contra a decisão arbitral proferida no processo CAAD n.º 781/2021-T (acessível em https://www.dgsi.pt/).”.
IV.3. Posição da Requerida sobre a natureza dos rendimentos auferidos em Moçambique
Em contrapartida a Requerida reconheceu, em resposta:
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Que “em sede de reclamação graciosa não foram apresentadas provas inequívocas quanto à eventual existência de uma exploração comum entre as sociedades envolvidas ou de um estabelecimento estável da Requerente em território moçambicano.”;
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Que “Pode, pois, concluir-se que os rendimentos de fonte moçambicana auferidos pela recorrente em resultado dos contratos de afretamento de navio e dos protocolos de acordo de cedência de pessoal técnico celebrados com sociedades moçambicanas são efetivamente subsumíveis ao conceito de “royalties” tal como definidos no artigo 13.º n.º 2 da CDT Moçambique.”;
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Que “Essa qualificação foi, aliás, assumida pelo núcleo de relações internacionais da AT em informação prestada a pedido da Direção de Finanças de Aveiro (…)”.
IV.4. Apreciando:
Dada a posição assumida pela AT na sua Resposta, fica claro que deixou de haver dissídio entre Requerente e Requerida nesta matéria, nada havendo, portanto, para o Tribunal decidir.
Como se verá depois, também deixou de haver qualquer fundamentação para a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que, a ter sido validada – e provada – poderia eventualmente justificar a exclusão da situação dos autos do âmbito de aplicação da posição que o STA firmou na já mencionada decisão uniformizadora de 28 de Setembro de 2023. É que o argumento da Divisão de Justiça Tributária - Contencioso da Direcção de Finanças de Aveiro não era de Direito, ie, não tinha a ver com a qualificação jurídica das prestações emergentes do contrato de fretamento entre a Requerente e as afretadoras (à luz da norma do n.º 3 do artigo 23.º da CDT Portugal-Moçambique tal como resultante do artigo 7.º do Protocolo de 2008 que a modificou[4]); o argumento era antes de facto, ie, o de que se não tratava de contrato algum de fretamento.
IV.5. Posição da Requerente sobre a importância a deduzir por crédito de imposto
A Requerente começou por invocar
- a redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º da CDT Portugal-Moçambique (“«Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados na República de Moçambique, Portugal deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago na República de Moçambique. [...]”) e
- a doutrina (“«Nenhuma dúvida parece, pois, existir, que pelo menos no caso das royalties, o imposto pago no país da fonte, incidente sobre rendimentos brutos, é dedutível à coleta do IRC, calculada com base no rendimento mundial do sujeito passivo, no apuramento do qual são considerados todos os gastos fiscalmente relevantes, incluindo os originados pela produção dos rendimentos obtidos no estrangeiro» ou seja, «pelo menos relativamente às royalties, a parte final do art.º 23º da CDT Portugal – [Moçambique] (a importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fração do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados nesse outro Estado) apenas terá aplicação no caso, improvável, de a taxa do IRC aplicável a um determinado contribuinte ser inferior à taxa a que os rendimentos foram sujeitos no estado da fonte: “a dedução máxima é equivalente à taxa do imposto do estado de residência aplicada sobre o rendimento obtido no outro estado” (Maria Margarida Cordeiro de Mesquita, cit., pág. 290)»”), ainda que neste caso a partir da sua transcrição na “Decisão arbitral proferida em 25 de janeiro de 2016, no âmbito do processo n.º 369/2015-T”.
Invocou também outra jurisprudência arbitral (decisões proferidas em 1 de Junho de 2017, processo n.o 565/2016-T, e em 5 de Março de 2020, processo n.o 389/2019-T) e do Tribunal Constitucional (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 106/2023, de 10 de outubro de 2023), e outra doutrina (sobre a superioridade do Direito Internacional Convencional sobre a lei interna).
IV.6. Posição da Requerida sobre a importância a deduzir por crédito de imposto
Em resposta, a Requerida entendeu que:
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“a expressão constante na al. a) do n.º1 do art.º 23.º da Convenção “a importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fração do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados nesse outro Estado”, é igual e tem os mesmos princípios orientadores que a al. b) do n.º1 do art.º 91.º do CIRC.”;
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Assim, a importância a deduzir por crédito de imposto nunca poderá exceder a fracção de IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados no outro Estado líquidos dos gastos suportados para a sua obtenção;
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“as instruções sobre a matéria em questão mencionadas no manual de instruções do quadro 07 da Declaração Modelo 22 estão corretas e são as seguintes:
Quadro 07 - Campo 749 – Correções nos casos de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional (art.º 68.º, n.º 1)
“ Este campo é utilizado nas situações em que haja rendimentos obtidos no estrangeiro que dão direito a crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional nos termos do artigo 91.º.
Nele é inscrito o imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro, de modo a que os rendimentos aí obtidos sejam considerados pelo seu valor ilíquido.
a)Por outro lado, é considerada no campo 353 do Quadro 10, para efeitos de dedução à coleta e até à sua concorrência, a menor das seguintes importâncias:
•Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
•Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, acrescidos da correção deste campo 749, líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.
b)Assim, ainda que a taxa do imposto pago no estrangeiro seja superior à do IRC, o valor a mencionar no campo 749 é o imposto pago no estrangeiro, mas o crédito de imposto a inscrever no campo 353 do Quadro 10 fica limitado à fração do IRC correspondente ao rendimento ilíquido do imposto pago no estrangeiro líquido dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.
Existindo convenção para eliminar a dupla tributação (CDT) celebrada por Portugal:
•A dedução no campo 353 do Quadro 10 não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos na convenção;
•Se a coleta total (campo 378 do Quadro 10) for insuficiente, o excesso do crédito de imposto pode, ainda, ser deduzido no campo 379 do Quadro 10, até à concorrência da derrama municipal.
A este propósito, veja-se as instruções de preenchimento do Quadro 10 da declaração modelo 22.””;
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Em abono, invocava
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o “acórdão do STA, de 08 de junho de 2022 prolatado no âmbito do processo 03162/16.1BEPRT - 2.ª secção”, cujo Sumário reproduzia:
“I - O texto das convenções não impõe que nesse cálculo sejam considerados os rendimentos brutos obtidos no Estado da fonte, mas tão só que os rendimentos obtidos no “Estado da fonte” sejam acrescidos aos restantes rendimentos obtidos no “Estado da residência” a fim de se apurar o imposto devido neste último Estado e calcular a “fração” correspondente aos rendimentos obtidos no “Estado da fonte” e que serve de limite de dedução comparativo com o imposto cobrado neste último Estado.
II - A não ser assim, a atender-se aos rendimentos brutos (Questão diversa é a distinção entre rendimentos antes e após imposto, ou seja, para cálculo da referida “fração” há que acrescer aos rendimentos obtidos no Estado da residência a totalidade dos rendimentos obtidos no Estado da fonte e não apenas os rendimentos líquidos obtidos após a dedução do imposto pelo Estado da fonte) para cálculo da “fração do imposto” apurado pelo Estado de residência, este veria diminuir a arrecadação da receita em relação à parte dos rendimentos obtidos no seu território, por a dedução do valor cobrado pelo Estado da fonte poder ser em regra superior ao valor que seria cobrado em relação à parte correspondente dos rendimentos, caso todos os rendimentos fossem obtidos no Estado da residência.””; e
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o “Acórdão n.º 603/2020, proferido no Recurso n.º 172/20, 2ª Seção, do Tribunal Constitucional, de Lisboa, 11 de novembro de 2020”, de que transcrevia passagens, designadamente a seguinte:
“o objetivo prosseguido pelo artigo 91.º, n.º 1, do Código do IRC é igualizar, segundo a lógica do princípio da neutralidade na exportação, e por via da atribuição de um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, o imposto a pagar pelos sujeitos passivos de IRC cujos rendimentos têm a sua fonte localizada apenas em Portugal e aqueles contribuintes de IRC que também percebem rendimentos com origem num país terceiro (cfr. supra o n.º 5). Nessa perspetiva, a existência de uma CDT entre Portugal e o outro Estado onde se localiza a fonte dos rendimentos é irrelevante, pois em face do único tertium comparationis a considerar atenta a mencionada ratio – isto é: a qualidade ou característica que é comum às situações a comparar e que, no caso, corresponde à perceção de rendimentos com fonte no estrangeiro – as situações do grupo alvo e do par comparativo não se distinguem. Por isso mesmo, têm de ser tratadas de modo igual. De resto, é o que resulta da aludida eliminação da referência a que a dedução relativa à dupla tributação fosse «apenas aplicável quando resultar de convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal», conforme inicialmente previsto no antigo artigo 73.º do Código do IRC, na sua redação originária. Com efeito, neste domínio da dupla tributação o direito interno português em matéria de IRC adotou regras de harmonização fiscal que devem ser aplicadas independentemente do direito convencional”.
IV.7. Apreciando:
Começando pelo fim, faz-se notar que também nesta matéria o STA já uniformizou jurisprudência, embora o Acórdão proferido em 21 de Fevereiro de 2024 no recurso n.º 163/23.7BALSB, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 12 de Junho de 2024, se referisse a uma outra convenção de dupla tributação:
“A norma contida no artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, contraria o disposto nos artigos 13.º, n.os 1 e 2, e 25.º, n.º 3, alínea a), da Convenção entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 39/95, pelo que a sua aplicação é afastada nos casos que se inscrevam no âmbito de previsão e aplicação das referidas normas da CDT.”.
Porém, a mera comparação da redacção das normas de tal convenção com as aqui em causa (negritos aditados) já demonstraria claramente que a questão era substancialmente a mesma:
Artigo 13.º da CDT
Portugal-EUA:
“1. As royalties provenientes de um Estado Contratante e pagar a um residente do outro Estado Contratante podem ser tributadas nesse outro Estado.
2 - Todavia, essas royalties podem ser igualmente tributadas no Estado Contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado, mas se o beneficiário efectivo das royalties for residente do outro Estado Contratante, o imposto assim estabelecido não poderá exceder 10 % do montante bruto das royalties.
As autoridades competentes dos Estados Contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar esse limite.
[...]”.
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Artigo 12.º da CDT
Portugal-Moçambique:
“1 - As royalties provenientes de um Estado Contratante e pagas a um residente do outro Estado Contratante podem ser tributadas nesse outro Estado.
2 - Todavia, essas royalties podem ser igualmente tributadas no Estado Contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado, mas se a pessoa que receber as royalties for o seu beneficiário efectivo, o imposto assim estabelecido não excederá 10% do montante bruto das royalties.
As autoridades competentes dos Estados Contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar este limite.
[...]”
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Artigo 25.º, n.º 3, al. a), da CDT
Portugal-EUA:
“Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados nos Estados Unidos (com base noutro critério que não seja o da cidadania), Portugal permitirá a dedução do imposto sobre o rendimento desse residente de uma importância igual ao imposto de rendimento pago nos Estados Unidos. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fracção do imposto sobre o rendimento calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados nos Estados Unidos”.
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Artigo 23.º, n.º 1, alínea a), da CDT Portugal-Moçambique:
“Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados na República de Moçambique, Portugal deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago na República de Moçambique. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fracção do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na República de Moçambique.”
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Como se explicou nessa decisão do STA, a AT
“Sustenta que as normas da CDT Portugal-EUA permitem calcular o montante do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, mas não conferem o direito à dedução daquele montante. Para a AT, aplica-se neste caso o regime do artigo 91.º do CIRC”[5] e “da conjugação dos regimes da CDT e do CIRC resulta que o direito à dedução pressupõe a aplicação das regras do direito interno, pois deste regime convencional não resulta um direito à dedução da totalidade do valor pago no estrangeiro a título de imposto, mas sim o direito à eliminação da dupla tributação jurídica à luz das regras do direito nacional, tal como resulta das regras interpretativas da Convenção Modelo da OCDE.”.
O STA considerou, porém, que “a solução consagrada na CDT é, efectivamente, incompatível com o disposto no artigo 91.º, n.º 1, do CIRC”, invocando uma decisão do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 653/2023) que tivera por base a Convenção de Dupla Tributação (CDT)… com Moçambique:
“A regra de dedução de imposto prevista no artigo 23.º, n.º 1, alínea a), da CDT não coincide com a regra prevista no artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, na redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, conduzindo a resultados diferentes. Neste caso, permite-se a dedução de importância equivalente ao imposto pago no estrangeiro, impondo, porém, um limite a esse valor. Todavia, nos termos da CDT há lugar a dedução integral do imposto pago em Moçambique, determinado a partir dos rendimentos brutos ali obtidos, desde que a importância desse modo deduzida não ultrapasse os limites previstos naquela norma convencional.
Como se pode ler na decisão recorrida, a aplicação da regra prevista no Código do IRC, conduzindo a menor dedução, “[...] frustraria parcialmente o objetivo de total eliminação da dupla tributação em situações envolvendo Portugal e Moçambique, objetivo principal prosseguido pela convenção subscrita pelos dois países”. Daí a contradição, manifestada em diferentes resultados da liquidação realizada em função de uma ou outra regra, conforme reconhecido no acórdão sob recurso, com a consequente anulação do ato de liquidação. Contradição que, face ao superior lugar do direito convencional sobre a lei ordinária na hierarquia normativa, só poderia resolver-se pelo afastamento da norma do Código do IRC, em favor da norma da CDT".”
Ou seja: para lá da prática coincidência literal das normas convencionais que, naquele caso e no presente, tinham sido cotejadas com a norma do artigo 91.º, n.º 1, do Código do IRC, a argumentação do acórdão uniformizador (sobre o entendimento da CDT entre Portugal e os EUA) fez apelo a uma decisão da jurisdição constitucional que tratara da CDT entre Portugal e Moçambique.
Dito isto, que é suficiente para dar provimento à pretensão da Requerente, voltemos ao princípio. E o princípio é que a informação que sustentou o indeferimento da reclamação graciosa é completamente omissa em relação a todos e cada um dos argumentos usados pela AT na sua Resposta – excepção feita aos que a própria AT recusou (ie, os da recusa da atribuição da natureza de royalties aos montantes auferidos pela Requerente em razão do fretamento dos seus três navios à B..., Lda., e à C..., Lda.).
Ora, como é pacífico e ainda agora o STA voltou a sublinhar em Acórdão de 2 de Outubro de 2024 (Proc. 1210/12.9BEBJA 01224/16), “Não pode o tribunal apreciar a validade da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos que não os que constam da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.”[6]. É certo que, tratando-se de autoliquidação, a fundamentação é necessariamente posterior, mas tem de se reportar à primeira tomada de posição autorizada da AT, sendo que esta foi a da decisão da reclamação graciosa. A re-fundamentação operada na resposta tem de ser considerada “fundamentação a posteriori”.
IV.8. Posição da Requerida aquando do indeferimento da reclamação graciosa
Nos termos do n.º 1 do artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.”. A razão de ser dessa norma (como da equivalente para os casos de retenção na fonte, no n.º 3 do artigo 132.º do CPPT) é evidente: como se escreveu recentemente na decisão do processo n.º 391/2024-T,
“A necessidade da reclamação impõe-se como oportunidade de a administração, pela primeira vez se pronunciar. Dando razão ao particular, não haverá necessidade de o processo judicial ter lugar. Se a AT não der razão ao particular (o que deverá fundamentar) teremos então duas partes sufragando entendimentos diferentes, ou seja, um litígio que caberá ao tribunal dirimir.”[7].
Não fora o facto de assim se não assegurar uma plena tutela dos direitos da Requerente (uma vez que, como se verá, esta linha de apreciação levaria apenas à conclusão de que o acto de liquidação era formalmente inválido, por falta de fundamentação), podia entender-se que o litígio que caberia a este Tribunal dirimir não era o que a AT configurou na sua Resposta, mas o que ficou delimitado quando a AT tomou posição sobre a reclamação n.º 0108202304001109 apresentada pela Requerente. Ora, na Informação que sustentou o seu indeferimento – e que passou a ser a única fundamentação do acto tributário – o que se entendeu foi, em suma, o seguinte:
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“o SP, é composto por um grupo de empresas ligadas ao setor piscatório”;
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“a Sociedade aqui em crise, é proprietária de diversos navios, sendo que por contrato (…) cedeu a exploração 3 destes navios, a duas empresas distintas.”;
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“conforme decorre dos documentos n.º 1, 2 e 3 juntos ao procedimento com a petição entregue pelo SP, que tais versam sobre contratos de fretamento”;
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“O que nos remete para o art.º 22.º do Decreto-lei n.º 191/87 de 29 de abril, que determina que o contrato de fretamento a tempo é aquele em que o FRETADOR se obriga a pôr à disposição do AFRETADOR um navio, para que este o utilize durante certo período de tempo.”;
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“O que nos remete desde já para duas linhas de pensamento,
29) Ou não existe frete, e o contrato apenas regula uma mera participação associada, ou, existe frete, e este tem, e deverá ser, o valor inscrito pelos contratos.”;
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“Logo, e como resultado desta primeira linha em análise, os valores do frete a observar, serão os inscritos nos contratos, a saber:
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Doc. 1, contrato de fretamento do Navio ..., entre o fretador “D..., SA.” e “B... LDA” válido por um período de 12 meses (…) no montante de USD 2.000.000,00 (dois milhões de dólares americanos).
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Doc. 2, contrato de fretamento do Polo Sul, entre o fretador “D..., SA.” e “B... LDA” válido por um período de 12 meses (…) no montante de USD 2.000.000,00 (dois milhões de dólares americanos).
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Doc. 3, contrato de fretamento do..., entre o fretador “D..., SA.” e “B... LDA” válido por um período de 12 meses (…) no montante de USD 1.000.000,00 (um milhões de dólares americanos).
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“Assim, e como resultado desta primeira linha em análise (…) não foram liquidados os proveitos que obteve, ou deveria obter (…), atento que os valores que deveria inscrever na sua declaração modelo 22, corresponderia a USD 5.000.000,00 (cinco milhões de dólares americanos)”;
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“Já numa segunda linha de análise (…) somos a considerar uma exploração comum, em associação entre as empresas visadas”, pois “É inegável, que entre as empresas em crise, se verifica uma associação, seja esta pela conclusão de negócios e contratos sucessivos, seja, porque destas é possível apreciar discrepâncias entre os contratos, período de execução, bens dispostos e verbas recebidas,”;
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Dando exemplos de facturas juntas pela Requerente que são emitidas, em relação a navios sujeitos a contratos com uma empresa, por outras empresas, a Informação acrescenta que dos contratos resulta “que cabe ao FRETADOR, todas as despesas relativas à exploração, sendo, portanto, esta entidade, a exploradora da quota de pesca” – embora reconheça a seguir que “não podemos concluir, que é o AFRETADOR o titular da exploração, sendo que, porém, também não é conclusivo que o titular desta será o FRETADOR, pois este só poderá capturar com os direitos do AFRETADOR.”;
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“Logo, o que está em causa no procedimento, e não obstante o título com que se arrogam, parece-nos isto sim uma parceria, com enquadramento no art.º 9 da CDT/PT/MCB”;
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Invoca de seguida “a petição remetida aos serviços pelo SP (…) em referência ao exercício de 2016, em que o SP reclama do mesmo ato (autoliquidação), com os mesmos fundamentos dos que ora se aprecia,”, mas em que algumas das sociedades afretadoras, em termos de “contratos nos mesmos moldes (ou idênticos)” eram empresas participadas da Requerente;
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“Assim, a conclusão de que os proveitos obtidos pelo SP, deverão obedecer ao enquadramento de “ROYALTIES”, é notoriamente afastada pela CDT/PT/MCB, quando, no seu art.º 12.º, regula que tais proveitos, recaem na exclusão prevista do n.º 4 da citada norma,”;
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“De acordo com tal disposição normativa, o enquadramento previsto pelo n.º 1, e 2 da mesma, não é aplicável se o beneficiário efetivo das “ROYALTIES”, residente de um Estado Contratante, exercer atividade no outro Estado Contratante de que tais proveitos advêm, por meio de estabelecimento estável aí situado, e o direito, ou o bem relativamente ao qual são pagos tais “ROYALTIES”, estiver efetivamente ligado a esse estabelecimento estável, ou instalação fixa.”;
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“Logo, o enquadramento justificado, que a sociedade em crise presta serviços de fretamento, justificados tributariamente sob a esteira do art.º 12, n.º 2 da CDT/PT/MCB, não acolhem o nosso entendimento, pois, na verdade não existe a propriedade dos navios, nem um frete propriamente dito (…) bem como concluímos que tais empresas operam associadas”;
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“os proveitos que o SP declara na Mod. 22, o são devido a uma exploração em comum com as sociedades de direito moçambicano, que devem observância no disposto do art.º 7.º, da CDT/PT/MCB, porquanto os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, o que, no caso em apreço, é em Portugal, termos nos quais, só a este compete tributar tais verbas, razão pela qual, não podendo as Autoridades Moçambicanas proceder a tal tributação, não são devidas deduções em sede de IRC.”.
Uma vez que a actual posição da AT – assumida na Resposta ao PPA – é a de que os contratos em causa nos autos são contratos de fretamento geradores de pagamentos de “royalties”[8], ficou o acto de (auto)liquidação totalmente destituído de fundamentação. Esta conclusão, porém, não impediria a AT de renovar o acto com base na fundamentação por si usada na Resposta, sendo que já se apurou que, como decidido no processo n.º 351/2022-T, esta padece de vício de violação de lei.
IV.9. Pedido de reembolso e juros indemnizatórios
Tendo-se concluído que a autoliquidação de IRC referente ao ano de 2020 padecia de desconformidade com a Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, tal como renovada em 2008 entre Portugal e Moçambique, é devida a devolução do imposto pago.
Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT e do n.º 1 do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), são devidos juros indemnizatórios em relação aos montantes indevidamente pagos “nos termos e condições previstos na lei.”. Diferentes condições estão, desde logo, estipuladas nas várias alíneas do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, sendo que a Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, veio introduzir uma obrigação adicional de pagamento de juros indemnizatórios – a cargo da AT, no que diz respeito a tributos cuja administração lhe caiba – por liquidações que tenham tido por base normas aprovadas pela Assembleia da República ou pelo Governo e subsequentemente julgadas (ou declaradas) desconformes com a Constituição ou a lei: “Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”. Foi essa norma que foi invocada para fundamentar a imposição de pagamento de juros indemnizatórios na decisão proferida no processo n.º 351/2022-T, que dizia respeito à mesma Requerente e em que se discutiu um conjunto de questões que, a terem sido configuradas de outra forma na expressa fundamentação do indeferimento da reclamação graciosa (indeferimento que foi meramente presumido nesse caso) também teriam lugar no presente processo.
Em todo o caso, e não obstante o disposto no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil[9], entende-se que no caso dos presentes autos não deve ser essa a norma a enquadrar a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, não obstante estar preenchido o requisito que o STA, em duas decisões recentes (Acórdãos de 10 de Abril de 2024, Processo n.º 0845/17.2BELRS, e de 11 de Julho de 2024, Processo n.º 0697/14.4BELRS) – com base em anteriores pronúncias suas – estabeleceu: “a norma em apreço exige que exista uma decisão do Tribunal Constitucional que julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária”[10] / [11]. O que determina que a presente decisão ordene, ao invés, o pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo da previsão de “erro dos serviços” decorre de a fundamentação do indeferimento da reclamação graciosa ter sido, segundo a própria versão actualizada da posição da AT (a da sua Resposta nos autos), baseada em erro e estar preenchida, portanto, a previsão do n.º 1 do artigo 43.º da LGT (ao contrário do que acontecia no processo n.º 351/2022-T). Se bem se entende, o concurso entre as normas do n.º 1 do artigo 43.º e da alínea d) do n.º 3 desse mesmo artigo é meramente aparente, uma vez que as diferentes previsões deste dispositivo são expressamente supletivas (“São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:”).
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DECISÃO
Termos em que decide o presente Tribunal Arbitral:
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Revogar a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, consequentemente, anular a autoliquidação de IRC da Requerente referente ao ano de 2020, no que diz respeito aos montantes impugnados;
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Condenar a Requerida a restituir à Requerente a quantia paga (€ 123.729,98), acrescida dos respetivos juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido;
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Condenar Requerente e Requerida nas custas do processo, nos termos a seguir indicados;
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Determinar a notificação do Digno Representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT.
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VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele corresponder à utilidade económica do pedido, fixa-se o valor do processo em € 144.692,12 (cento e quarenta e quatro mil, seiscentos e noventa e dois euros e doze cêntimos), que foi o que lhe foi atribuído pela Requerente (resultante da soma da importância paga e de que se pretendia a devolução: € 123.729,98, e do montante de que se pretendia o reporte para anos subsequentes: € 20.962,14), montantes que a AT não contestou.
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CUSTAS
Fixam-se as custas no montante de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros) nos termos da Tabela I do RCPAT, que ficam a cargo da Requerente em 14,5% (por ter formulado um pedido que ficava fora da competência do Tribunal) e em 85,5% a cargo da Requerida (por o remanescente do pedido ter sido julgado inteiramente procedente).
Lisboa, 24 de Janeiro de 2024
O árbitro-presidente e relator
Victor Calvete
O árbitro adjunto, com declaração de voto em anexo
António Lima Guerreiro
O árbitro adjunto
Jónatas Machado
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 execepto em transcrições que o sigam.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não subscrevo em parte a presente Decisão Arbitral por discordar da sua concreta fundamentação de fato e de direito. Divirjo em particular da identificação que nela é feita do ato impugnado, da pertinência da invocação como inovador do acórdão uniformizador proferido pelo Pleno do STA no recurso n.º 163/23.7BALSB e da justificação apresentada do direito da Requerente a juros indemnizatórios, que não tem enquadramento na alínea d) do nº 3 do art. 43º da LGT , devendo eventualmente ser apreciado à luz do nº 1 deste art., divergências que procuro ressalvar nesta declaração de voto.
Recordo que a fundamentação do ato de indeferimento de reclamação graciosa , o ato impugnado no presente processo arbitral , é necessariamente contextual, não sendo passível de substituição por outra , posteriormente à instauração do processo arbitral, ainda que da lavra do representante processual da Requerida, que carece, aliás , de poderes para o fazer, já que, nos termos do art. 10º do CPPT, os seus poderes não passam de um mero mandatário, que não pode transigir sobre o objeto da ação.
Outra solução violaria o princípio da estabilidade da instância regulado no art. 260º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” da alínea e) do art. 2º do CPPT , por remissão do nº 1 do art. 29º do RJAT . Notificada a Requerida , a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Também poria em causa, na parte em que admite, ainda que implicitamente , o mandatário processual transigir sobre o objeto da ação, o princípio da indisponibilidade do crédito tributário, consagrado, entre outras normas, no nº 1 do art. 36º da LGT.. Essa indisponibilidade, segundo o acórdão do TCA Sul de 30/10/2014, proc. 0786/14, abrange todos os elementos essenciais da relação tributária definidos no ato impugnado, incluindo a fundamentação do ato impugnado
Nesse sentido, nos termos dos nºs 7 e 8 do art. 110º do CPPT , ao contrário do que é regra no processo civil, a falta de contestação especificada aos factos não implica confissão dos mesmos, sendo apreciada livremente pelo juiz.
A fundamentação do ato impugnado que importa considerar não pode, assim, deixar de ser a constante da informação da Divisão de Justiça Tributária - Contencioso da Direção de Finanças de Aveiro (projeto de decisão de 9 de Janeiro de 2024, tornado definitivo após audição das partes), na qual , por simples remissão ,se baseou o indeferimento da reclamação graciosa e não a sustentada a “ posteriori” na Resposta da Requerida assinada pelo seu mandatário , que não foi homologada pelo dirigente máximo do serviço, ao contrário do entendimento expresso nesta Decisão Arbitral .
Essa posição do representante processual da Requerida, ainda que por mera hipótese se considerasse estar total ou parcialmente de acordo com a posição da Requerente, não vincula o tribunal e é livremente apreciada por este.
Constitui. , por isso, omissão de pronúncia a fundamentação da decisão arbitral por mera remissão para a posição do representante processual da Requerida, sem qualquer referência à justificação do ato efetivamente impugnado, o indeferimento da reclamação graciosa, que não foi substituído ou alterado por qualquer outro de mesma natureza.
Uma coisa é atender ao acordo entre as partes na fixação dos factos provados e não provados, outra é vincular o tribunal à qualificação dos factos tributários efetuada pelas partes , como se o processo tributário decalcasse integralmente o princípio do dispositivo em que o processo civil se baseia.
De acordo com essa fundamentação homologada pelo diretor de finanças do distrito de Aveiro, o contrato de afretamento é incompatível com a remuneração do afretador ser fixada numa percentagem do valor da produção vendida, tanto no mercado moçambicano como no mercado internacional, segundo proporções por produtos previamente definida. Tal facto , que a contraprestação do fretador ser apurada em função da receita da venda do pescado pelo afretante, ficou provado por acordo entre Requerente e Requerida, incidindo a divergência apenas sobre a qualificação do contrato- fretamento ou exercício em comum de uma atividade lucrativa., ou seja, sobre uma questão de direito, ao contrário do que sustenta a presente Decisão Arbitral.
Segundo a fundamentação em que se baseou o ato impugnado, apenas a que importa atender, “Não só não existe frete, como os proveitos declarados pela Requerente na Declaração . Mod 22 são devidos a uma exploração em comum com as sociedades de direito moçambicano, sendo-lhes aplicável o disposto do art.º 7.º da Convenção com Moçambique, acrescentado que “porquanto os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse estado, o que no casem apreço é em Portugal, termos nos quais só a este compete tributar tais verbas, razão pela qual, não podendo as Autoridades Moçambicanas proceder a tal tributação, não são devidas deduções em sede de IRC”
Segundo ainda essa fundamentação, “O ressarcimento do imposto retido em Moçambique apenas poderia ser obtido pela Requerente junto das autoridades moçambicanas e não junto das autoridades fiscais nacionais através do mecanismo de eliminação da dupla tributação jurídica internacional nos termos da Convenção com Moçambique”.
Na Resposta, a Requerida admitiria, contrariando a interpretação do direito positivo em que assentou o indeferimento impugnado, o contrato em causa se revestir da natureza de um fretamento.
O contrato de fretamento é abrangido pela alínea a) do nº 1 do art. 23º da Convenção com Moçambique , em que a dupla tributação internacional é eliminada, de acordo com a Convenção Modelo das Nações Unidas, com a única limitação de a importância deduzida não poder exceder a fração do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na República de Moçambique.
Nessa norma de direito internacional não se faz qualquer menção a que , no apuramento dessa fração, estes hajam de ser considerados líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção, ao contrário do que aconteceria se ,em vez dessa norma , fosse aplicável a alínea b) do nº 1 do art. 91º do CIRC, plasmada de acordo com a Convenção Modelo da OCDE, em que a dupla tributação internacional é apenas atenuada, já que o montante a deduzir é líquido dos gastos direta ou indiretamente suportados para a obtenção dos rendimentos.
A presente Decisão Arbitral é omissa sobre o contexto histórico dessa mudança de posição, que é, no entanto, relevante.
Para explicá-la, deve referir-se que a 13 de Março de 2019, a sub-diretora- geral da AT, apoiando-se na posição da Direção de Serviços do IRC, chamada a pronunciar-se pela mesma Direção de Finanças do distrito de Aveiro sobre o procedimento a adaptar após a Decisão Arbitral desfavorável nº 70/2019- T , a propósito de contratos de cedência de embarcações idênticos aos que estão em causa nos presentes autos, ato, afirmaria o entendimento de , por a contraprestação desses contratos ser fixada em função das quotas de pescado vendidas. os rendimentos em causa serem de natureza industrial abrangidos pelo art. 7º da Convenção e não “royalties”, abrangidas pelo art. 12º, pelo que a dupla tributação jurídica internacional apenas poderia ser parcialmente eliminada nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 91º do CIRC, , ao contrário que aconteceria caso fosse aplicável essa norma de direito internacional, em que a eliminação seria total.
No entanto, esse entendimento seria logo a seguir substituído pelo constante de novo despacho da subdiretora-geral da AT de 29 de Março de 2019 , sobre parecer da Direção de Serviços de Relações Internacionais de 23 de Março de 2019 , a respeito das reclamações graciosas nºs ...2018... e ...2018... do IRC de 2016 e 2017, baseando-se, além das decisões arbitrais já proferidas sobre o assunto , no acórdão do TCA Sul de 18/8/2013, proc. 04075(Anexo IV do PA e Doc. nº 71, Anexo à PI).
O nº 8 desse Parecer qualificaria como “royalties” os rendimentos provenientes da cedência de embarcações, com a consequente aplicação do mecanismo de eliminação completa da dupla tributação internacional do nº 1 do art. 23º da Convenção com Moçambique, e os restantes serviços prestados pelo fretador conexos e acessórios do afretamento pelo beneficiariam também desse mecanismo, que, nesta parte, prevaleceria sobre a alínea b) do nº 1 do art. 91º do CIRC..
A esse enquadramento não obstaria ,para essa orientação administrativa, , a retribuição do fretador ser determinada em função da produção vendida pelo afretante.
O referido Parecer manifestaria , nos nºs 1 e 2, a sua total concordância com a tributação efetuada em Moçambique, que seria posta em causa na fundamentação do indeferimento impugnado..
O nº 12 desse Parecer reconhece que a dupla tributação internacional é eliminada no país da sede, seja, pelo Estado da Requerente, até à concorrência do imposto pagável e não necessariamente pago- no estrangeiro, sendo para o efeito, de acordo com o nº 3 art. 12º da Convenção com Moçambique, consideradas, entre outras importâncias suportadas a esse título, as isenções e reduções de taxa, consagradas em legislação visando o desenvolvimento económico e social de Moçambique. O montante a deduzir é, assim, ilíquido dos gastos direta ou indiretamente suportados para a obtenção dos rendimentos aos quais o imposto suportado no estrangeiro acresce, refere tal Parecer.
Consultada posteriormente a 15 de Março de 2022, sobre o procedimento a seguir nos processos arbitrais em curso da mesma natureza , a AT, por despacho da diretora-geral de 21 de Julho de 2022, emitido por solicitação da Direção de Finanças de Aveiro , homologaria o entendimento de a revogação do ato impugnado em processos arbitrais de objeto idêntico ao discutido nos presentes autos, deveria aguardar a decisão pelo Pleno do STA do recurso jurisdicional da Decisão Arbitral de 5/4/202(proc. 71/22 9BALSB, também sobre a aplicação do acordo de dupla tributação com Moçambique ).
Tal processo seria resolvido desfavoravelmente à Requerida pelo Acórdão do Pleno do STA de 28/9/2023, mas a AT não revogou o ato impugnado, com a consequente declaração de inutilidade superveniente da lide.
Tal não revogação seria justificada pelo representante processual da AT com fundamentos claramente incompatíveis com o nº 12 do Parecer de 23 de Março de 2019, sancionados pela diretora- geral da AT.
Na verdade, na Resposta , o representante processual da Requerida discordaria da posição da Requerente, quando esta refere que tem “o direito, à luz das normas convencionais, a deduzir à coleta de IRC uma importância igual ao imposto incidente sobre o rendimento ilíquido obtido em Moçambique”(nºs 14 e 15 desse documento), invocando a alínea b) do nº 1 do art. 91º do CIRC, ou seja, uma norma de direito interno , que obstaria à revogação do ato impugnado.
Em sua opinião, no apuramento da fração do imposto dedutível, deve ser tido em conta o rendimento líquido dos encargos necessários à sua obtenção e não o rendimento ilíquido.
Esse argumento , no entanto, não só não integrou a fundamentação do acto impugnado , o mencionado indeferimento da reclamação graciosa, como foi expressamente rejeitado em contratos idênticos pelo topo da cadeia hierárquica da AT.
Assim, na Requerida reporta-se a uma justificação do ato impugnado distinta da contextual , já que a incompatibilidade com tal preceito não foi invocada a quando do indeferimento expresso da reclamação graciosa., nem à luz do direito positivo em vigor se mostra aceitável
No contencioso de legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial regulado nos art. 99º e sgs. , do CPPT, aplicável ex vi” da alínea a) do nº 1 do art. 29º do RJAT ,o tribunal tem de quedar -se pela formulação de um juízo sobre a legalidade do ato sindicado em função da fundamentação contextual emergente do próprio ato, estando impedido de valor razões de fato ou de direito que não constem dessa fundamentação , quer sejam invocadas à partir, quer “a posteriori”.
Assim, em sede de recurso jurisdicional ,de acordo com a feliz expressão do Acórdão do STA de 18/10/2020, proc. 02.8BEPRT887/13, não se pode pretender que o Tribunal aprecie a legalidade da correção que esteve na base da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos senão aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou”. Posteriormente. o STA voltou a sublinhar em Acórdão de 2 de Outubro de 2024 (Proc. 1210/12.9BEBJA 01224/16), “Não pode o tribunal apreciar a validade da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos que não os que constam da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.”.
É certo que, tratando-se de autoliquidação, a fundamentação é necessariamente posterior, mas tem de se reportar à decisão da reclamação graciosa. A “re-fundamentação” operada na Resposta, ainda que pudesse ser considerada como tal. tem de ser considerada “fundamentação a posteriori”, que não é admissível.
Ora, o ato impugnado louvou-se apenas na ausência de enquadramento da pretensão da reclamante no art. 12º da Convenção por não haver qualquer frete e não em qualquer erro na aplicação dos mecanismos de dupla tributação internacional previstos na Convenção-.
Ainda que assim não fosse, ou seja, se fosse possível uma fundamentação “a posteriori”, esta não poderia , nas presentes circunstâncias, ser considerada válida.
A alteração dos elementos essenciais do ato está, em efeito, sujeita a um formalismo próprio estabelecido no nº 1 do art. 13º do RJAT, que adapta ao processo arbitral o regime do art. 112º do CPPT, de acordo com o qual o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º, acrescentando o nº 2 que, quando o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do nº anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último ato se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse. Tal regime
Os poderes do representante da Requerida são os que resultam do seu estatuto, não incluindo a revogação, substituição ou retificação do ato impugnado, que, a ocorrerem nessas circunstâncias, são nulas
Não pode transigir sobre o objeto da causa: o Estado, tanto no processo tributário como no processo administrativo e não atua como mero particular, mas ainda nas suas vestes de pessoa coletiva de direito público.
Como resulta do anexo IV do PA, a AT optou por não revogar / substituir o ato antes da constituição do tribunal arbitral.
Optou por esperar a decisão de recurso para uniformização de jurisprudência então pendente , , no mencionado proc. 71/22.9BALSB.que viria, aliás , a ser decidido no mesmo sentido da posição da Direção de Serviços de Relações Internacionais da AT para depois invocar argumentação nova que o Tribunal Arbitral estava legalmente impedido de apreciar.
Nessa medida, a presente Decisão Arbitral parte de um erro manifesto sobre os pressupostos da atuação da AT no processo tributário, pelo que nesta parte não acompanho … O ato que a Decisão Arbitral “anula” não passa, assim, de uma mera peça processual da autoria do mandatário do Fisco, quando o que deveria ter feito era anular o indeferimento da reclamação graciosa.
A invocação do acórdão uniformizador proferido pelo Pleno do STA no recurso n.º 163/23.7BALSB é, por outro lado, impertinente.
Sobre a aplicação do nº 3 do art. 12º da Convenção com Moçambique à cedência de navios e serviços conexos, a jurisprudência do STA já tinha sido uniformizada por esse Acórdão de 28/9/2023, que se pronunciaria sobre contratos essencialmente idênticos aos discutidos no presente processo arbitral e analisaria específica e detalhadamente a questão de saber se exclui a aplicação do mecanismo de eliminação integral da dupla tributação previsto nessa norma a remuneração do fretador não ser fixa, como na mera locação, mas em função da produção vendida.
Essa questão não é objeto do acórdão uniformizador referido na presente Decisão Arbitral, que se refere a uma mera locação de equipamento ( não a contratos de fretamento) e à Convenção com os Estados Unidos ( e não à Convenção com Moçambique).
Para esse efeito, como explica essa jurisprudência, contrato de afretamento , nos termos do art. 1º do DL nº 191/87, de 29/4, é todo aquele em que uma das partes (fretador) se obriga em relação à outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete. Essa definição seria retomada, ainda que com diferenças, pela alínea h) do art. 1º do Regulamento do Transporte Comercial Marítimo de Moçambique(Decreto nº 18/2002, de 27/6), aplicável ao presente contrato por escolha das partes.
Essa noção de fretamento corresponde à adotada no comércio internacional e nas normas internacionais aplicáveis. Em regra os contratos de fretamento são celebrados através de um corretor (“broker”), que atuando em nome dos armadores e afretadores, conhecem a tonelagem disponível no mercado internacional e as mercadorias a transportar.
O fretamento, na medida em que integra elementos do contrato de transporte., distingue-se, assim, , do contrato de locação de equipamento sobre os quais se pronunciou o dito Acórdão Uniformizador, que apenas por analogia podia ter sido invocado.
O nº 3 do art. 12º da Convenção com Moçambique , ao qualificar “royalties” os rendimentos “de qualquer natureza“ provenientes da cedência de equipamento , abrange, assim ,os casos em que a contraprestação recebida do afretador seja determinada em função do pescado vendido, questão sobre a qual esta Decisão Arbitral , pelos motivos expostos, se deveria ter pronunciado, ao contrário do que, mais rigorosamente, faria o Acórdão do STA de 28/9/2023
Também no que concerne à eliminação da dupla tributação internacional pelo método da dedução integral do imposto suportado no estrangeiro, previsto no nº 1 do art. 23º da Convenção com Moçambique, o Acórdão Uniformizador citado nesta Decisão Arbitral, não contém qualquer novidade, ao contrário do que aí declarado
Interessa repetir que a questão a apreciar prende-se com a interpretação do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 91º do CIRC, e a sua compatibilização com a norma da Convenção entre Portugal e Moçambique aplicável, que pretende eliminar totalmente -e não apenas atenuar- a dupla tributação internacional.
O método de imputação ordinário de eliminação da dupla tributação internacional recomendado no art. 23º-B do Modelo da Convenção OCDE e plasmado na alínea b) do nº 1 do art. 91º do CIRC apenas prevê que a importância deduzida não pode exceder a fração do imposto sobre o rendimento ou do imposto sobre o património, calculado antes da dedução, correspondente ao rendimento ou património que, consoante o caso, pode ser tributado nesse outro Estado, nada dizendo se esse rendimento é o líquido ou o ilíquido.
Assim as Convenções que desenharam a tributação das “royalties” de acordo com o modelo da OCDE não impõem geralmente a dedução total do imposto suportado no estrangeiro,
Já a Convenção com Moçambique, elaborada de acordo com o art.12º, 12º-A e 12ºN Convenção modelo da ONU de 1980, impõe a total eliminação da dupla tributaçã e não a eliminação parcial, já que os rendimentos a considerar no apuramento da fração do imposto dedutível são sempre os ilíquidos. Assegura, assim, uma maior fatia das receitas fiscais ao Estado da fonte, em detrimento das receitas fiscais do Estado da residência, frequentemente o mais desenvolvido.
Ainda antes do Acórdão de 28/9/2023 e do Acórdão no proc. 163/23.7BALSB , o Pleno do STA se tinha pronunciado sobre o tema, não a propósito da Convenção com Moçambique, mas a propósito da Convenção com Marrocos(Acórdão de 7/9/2022, proc, 01951/17. 7 BEBRG), que, no que concerne à tributação das royalties” , segue, como a Convenção com os Estados Unidos, a convenção modelo das Nações Unidas.
Discordo, assim, da qualificação como inovador do Acórdão uniformizador referido na presente Decisão Arbitral, já que é o terceiro que se pronuncia
Finalmente, o nº 1 do art. 91º do CIRC não é nem foi considerado inconstitucional por qualquer acórdão do Tribunal Constitucional , pelo que o direito a juros indemnizatórios não pode ter por fundamento a alínea d) do nº 1 do art. 43º da LGT, como sustenta, a meu ver, também erradamente , esta Decisão Arbitral.
Dispõe essa norma serem devidos juros indemnizatórios em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
Invalidade da norma por inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma não se confunde com a sua inaplicabilidade , que acontece quando deva prevalecer uma disposição d convenção sobre dupla tributação internacional.
Na convenções sobre dupla tributação internacional, os Estados partilham o poder de tributar, o que implica a renúncia à aplicação de uma parte das normas que compõem o seu direito interno.
Segundo esse nº 1 do art. 91º do CIRC a dedução a que se refere a alínea a) do n.º 2 do art. 90.º é apenas aplicável quando na matéria coletável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro e corresponde à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b*) Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, acrescidos da correção prevista no n.º 1 do art. 68.º, líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.
Acrescenta o nº 2 que, quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efetuar nos termos do nº anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção,
Resulta dessa norma a dedução a efetuar poder ser inferior ao imposto pago no estrangeiro em caso de eliminação unilateral de dupla tributação económicas ou quando o direito convencional o permita,
Nos termos do nº 2 do art. 8º da CRP , as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas e aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem o Estado português.
Segundo a melhor e quase unânime doutrina (Jorge Miranda, Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra, 1007, I, pg. 88), essa norma consagra o princípio da receção automática e plena das normas das convenções internacionais , sem necessidade da sua transformação em normas de direito interno.
Esse princípio afasta, pois, à partida qualquer juízo de inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma em causa, que não existem. Do mesmo modo, o nº 2 do art. 91º do CIRC , como o nº 1 do art. 13º da LGT, não são normas excepcionais, mas o afloramento do princípio geral da prevalência das convenções sobre o direito interno
O direito a juros indemnizatórios não resulta, assim, de qualquer erro do legislador, mas de uma deficiente interpretação do direito positivo, pelo que apenas poderia ser apreciado à luz do nº 1 do art. 43º da LGT..
Lisboa, Janeiro de 2025
(António Lima Guerreiro)
[1] As notas apensas ao texto original que se transcreve de seguida são igualmente reproduzidas.
[2] “Artigo 9.º CDT Portugal-Moçambique
«1 - Quando:
a) Uma empresa de um Estado Contratante participar, direta ou indiretamente, na direção, no controlo ou no capital de uma empresa do outro Estado Contratante; ou
b) As mesmas pessoas participarem, direta ou indiretamente, na direção, no controlo ou no capital de uma empresa de um Estado Contratante e de uma empresa do outro Estado Contratante; e em ambos os casos, as duas empresas, nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições aceites ou impostas que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes, os lucros que, se não existissem essas condições, teriam sido obtidos por uma das empresas, mas não foram por causa dessas condições, podem ser incluídos nos lucros dessa empresa e, consequentemente, tributados.
2 - Quando um Estado Contratante incluir nos lucros de uma empresa desse Estado - e tributar nessa conformidade - os lucros pelos quais uma empresa do outro Estado Contratante foi tributada neste outro Estado, e os lucros incluídos deste modo constituírem lucros que teriam sido obtidos pela empresa do primeiro Estado, se as condições acordadas entre as duas empresas tivessem sido as condições que teriam sido estabelecidas entre empresas independentes, o outro Estado procederá ao ajustamento adequado do montante do imposto aí cobrado sobre os lucros referidos, se este outro Estado considera o ajustamento justificado. Na determinação deste ajustamento, serão tomadas em consideração as outras disposições desta Convenção e as autoridades competentes dos Estados Contratantes consultar-se-ão, se necessário.»”.
[3] “Artigo 7.º da CDT Portugal-Moçambique
«1 - Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que a empresa exerça a sua actividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento estável aí situado. Se a empresa exercer a sua actividade deste modo, os seus lucros podem ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento estável.
2 - Com ressalva do disposto no n.º 3, quando uma empresa de um Estado Contratante exercer a sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento estável aí situado, serão imputados, em cada Estado Contratante, a esse estabelecimento estável os lucros que este obteria se fosse uma empresa distinta e separada que exercesse as mesmas atividades ou atividades similares, nas mesmas condições ou em condições similares, e tratasse com absoluta independência com a empresa de que é estabelecimento estável.
3 - Na determinação do lucro de um estabelecimento estável é permitido deduzir as despesas que tiverem sido feitas para realização dos fins prosseguidos por esse estabelecimento estável, incluindo as despesas de direção e as despesas gerais de administração, efetuadas com o fim referido, quer no Estado em que esse estabelecimento estável estiver situado quer fora dele.
4 - Nenhum lucro será imputado a um estabelecimento estável pelo facto da simples compra de mercadorias, por esse estabelecimento estável, para a empresa.
5 - Para efeitos dos números precedentes, os lucros a imputar ao estabelecimento estável serão calculados, em cada ano, segundo o mesmo método, a não ser que existam motivos válidos e suficientes para proceder de forma diferente.
6 - Quando os lucros compreendam elementos do rendimento especialmente tratados noutros artigos desta Convenção, as respetivas disposições não serão afetadas pelas deste artigo».”.
[4] Passando a ter a seguinte redacção:
“3 — O termo ‘royalties’, usado neste artigo, significa as retribuições de qualquer natureza atribuídas pelo uso ou pela concessão do uso de um direito de autor sobre uma obra literária, artística ou científica, incluindo os filmes cinematográficos, bem como os filmes ou gravações para transmissão pela rádio ou pela televisão, de uma patente, de uma marca de fabrico ou de comércio, de um desenho ou de um modelo, de um programa de computador, de um plano, de uma fórmula ou de um processo secreto, bem como pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico ou por informações respeitantes a uma experiência adquirida no sector industrial, comercial ou científico. O termo ‘royalties’ inclui também os pagamentos efectuados a título de remuneração por assistência técnica prestada em conexão com o uso ou a concessão do uso dos direitos, bens ou informações anteriormente referidos.”.
[5] A redacção do artigo 91.º do Código do IRC já era, em 2020, a seguinte:
“1 — A dedução a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 90.º é apenas aplicável quando na matéria colectável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro e corresponde à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, acrescidos da correção prevista no n.º 1 do artigo 68.º, líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.”.
Por sua vez, a redacção do artigo 68.º, n.º 1, do Código do IRC já era, em 2020, a seguinte:
“1— Na determinação da matéria coletável sujeita a imposto, quando houver rendimentos obtidos no estrangeiro que deem lugar a crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, nos termos do artigo 91.º, esses rendimentos devem ser considerados, para efeitos de tributação, pelas respetivas importâncias ilíquidas dos impostos sobre o rendimento pagos no estrangeiro.”.
[6] No mesmo sentido, v., por ex., os Acórdãos do STA de 28 de Outubro de 2020 no Proc. 12887/13.8BEPRT e de 22 de Março de 2018 no Proc. 0208/17.
[7] E daí que o n.º 3 do artigo 131.º do CPPT (também mandado aplicar pelo n.º 6 do artigo 132.º) preveja uma excepção a esta regra: “Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no n.º 1.”. É que aí será conhecida a posição da AT.
[8] Nessa Resposta, a AT entendeu que “será de considerar assente no probatório” o seguinte: “Durante o ano de 2020 a Requerente prestou serviços de fretamento de navios às sociedades de direito moçambicano B..., Lda e C..., Lda”. E adiante escreveu (como já anteriormente referido):
“Pode, pois, concluir-se que os rendimentos de fonte moçambicana auferidos pela recorrente em resultado dos contratos de afretamento de navio e dos protocolos de acordo de cedência de pessoal técnico celebrados com sociedades moçambicanas são efetivamente subsumíveis ao conceito de “royalties” tal como definidos no artigo 13.º n.º 2 da CDT Moçambique.”.
[9] “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.
[11] Acórdão n.º 653/2023 do Tribunal Constitucional. O recurso (obrigatório para o Ministério Público nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, por referência à alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º do mesmo diploma) foi interposto na sequência da comunicação que lhe foi feita por determinação do Tribunal Arbitral Colectivo que decidiu o processo n.º 351/2022-T, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 17.º do RJAT.