SUMÁRIO:
1) A Directiva Vouchers cuida do tratamento em sede de IVA dos Vales; 2) Para o efeito, cria regras específicas clarificando o tratamento em IVA dos Vales no que respeita a certas matérias (v. Considerandos 1 a 3 da mesma); 3) Neste desiderato, esta Directiva (depois integrada na Directiva IVA) não trata da matéria da incidência em IVA mas, tão só, do momento da exigibilidade do imposto; 4) O Vale é, nos termos da Directiva, um instrumento que reúne duas condições cumulativas e pode, reunidas estas, ser de dois tipos, e nos Vales do tipo Vale de Finalidade Múltipla (VFM) a Directiva veio diferir o momento da exigibilidade do imposto para o da troca do mesmo pelos bens/serviços propostos pelo Vale; 5) Ao fazê-lo na Directiva Vouchers o legislador Comunitário não tratou - por entender que tal excederia o necessário (v. Considerandos 12 e 13) - as situações em que o VFM não é resgatado e o sujeito passivo emitente mantém a contraprestação que recebe pelo Vale; 6) Conclui-se que a exigibilidade do imposto em tais situações recai nas regras gerais conforme já contidas na DIVA e em conformidade também com os Princípios e regras estruturantes do Sistema Comum do IVA, e em coerência com, e aplicação, também, da interpretação que do mesmo o TJUE veio já reiteradamente fazendo, afigurando-se estarmos perante Act Clair; 7) O instrumento Vale é uma Prestação de Serviços sujeita e não isenta para efeitos de IVA e quando não resgatado o Vale o momento da exigibilidade do imposto ocorre no momento em que deixa de ser possível vir a ser emitida a factura referente a bens/serviços propostos pelo Vale, ou seja, na caducidade do Vale; 8) Ao assim expressamente determinar no art.º 7.º, n.º 15, al. b), o legislador nacional deu cumprimento aos objectivos prosseguidos na Directiva Vouchers e assim também à Directiva, não deixando de, ao fazê-lo, dar também cumprimento às regras gerais em IVA.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Regina de Almeida Monteiro (Árbitro-presidente), Sofia Ricardo Borges (Árbitro-vogal relatora, por vencimento) e Francisco Nicolau Domingos (Árbitro-vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 2 de Janeiro de 2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede no ..., ..., ... (“Requerente”, “Req.te”, “Sujeito Passivo” ou “SP”), vem, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
Peticiona, assim, a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação de IVA, reportados aos períodos mensais de Março a Dezembro, inclusive, de 2021.
Às autoliquidações, na parte que coloca em crise[1], corresponde um valor total de € 263.049,04.
Deduziu, a seu tempo, reclamação graciosa (“RG”) contra os referidos actos, e foi notificada de decisão de indeferimento da mesma, com ela não se conformando. Vem, assim, apresentar Pedido de Pronúncia Arbitral com vista à declaração de ilegalidade dessa decisão e, mediatamente, dos actos tributários antecedentes que dela foram objecto.
As autoliquidações são ilegais por, segundo sustenta, o legislador português não ter procedido a uma correcta transposição da Diretiva (UE) 2016/1065 do Conselho, de 27.06.2016 (“Diretiva Vouchers”). Em seu entender, assim sucedeu no que se reporta à sujeição a IVA das situações em que um vale de finalidade múltipla (“VFM”) não é resgatado pelo consumidor final no seu período de validade (“Vales não redimidos”).
Em defesa do entendimento por que pugna, alega que o Direito da União Europeia (“Direito da UE” ou “DUE”) em matéria de IVA não qualifica os Vales não redimidos como entregas de bens/prestações de serviços tributáveis.
Assevera que os Vales não redimidos não estão sujeitos a IVA, na medida em que: (i) uma vez expirados, o direito de obter os bens/serviços subjacentes já não pode ser exercido e, como tal, não se pode presumir que exista uma entrega de bens ou prestação de serviços sujeita a IVA, (ii) segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) para um serviço estar abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva IVA (“Directiva IVA” ou “DIVA”) deve ser prestado mediante uma contrapartida, (iii) para que esta exista é necessário que se estabeleça um acordo mínimo entre as partes, que haja uma relação jurídica entre as mesmas, e que dela resultem prestações recíprocas, (iv) o carregamento do saldo dos Cartões pelos consumidores finais apenas se relaciona com a aquisição de bens/serviços a cujo pagamento se destina, e não tem qualquer relação de contrapartida com uma prestação de serviços de disponibilização do saldo carregado, (v) a lei interna, ao presumir ou ficcionar a prestação de serviços para efeitos de IVA, relativa a um direito de obter bens ou serviços não determinados, e tributados à taxa normal de IVA, não tem adesão à DIVA nem à Diretiva Vouchers.
Mais assevera que a qualificação dos Vales não redimidos como uma prestação de serviços, para efeitos de IVA, afronta aquelas Directivas. Segundo refere, no Relatório n.º 983 do Comité do IVA, reportado à implementação da Diretiva Vouchers, as cedências dos VFM são consideradas não sujeitas a IVA nos termos do Artigo n.º 30.º-B da DIVA; a norma interna determina a aplicação da taxa normal à alegada prestação de serviços mas o VFM poderia ser usado para bens e/ou serviços sujeitos a diversas taxas ou, até, não sujeitos a IVA.
Defende, sem prescindir, que, ao não estar em causa uma operação que possa ser qualificada como prestação de serviços, não há fundamento para a liquidação de IVA, à taxa normal; o legislador nacional não procedeu a uma correcta transposição para o Ordenamento Jurídico interno das alterações operadas pela Diretiva Vouchers. Não havendo remissão expressa que permita aos Estados-Membros (“EM”) determinar o seu sentido e alcance, não é legítimo ao legislador português ultrapassar o alcance dado pela Directiva às operações em causa e presumir ou ficcionar transmissões de bens e prestações de serviços aquando da caducidade de VFM. A lei interna viola o DUE e é foco de desigualdade na tributação do consumo, assevera.
Sustenta, por fim, ter direito ao reembolso das quantias pagas, segundo entende, indevidamente. E a juros indemnizatórios, pois que, defende, as autoliquidações tiveram um erróneo enquadramento, do legislador e da Autoridade Tributária, havendo assim erro imputável aos Serviços.
Requer, por último, reenvio prejudicial ao TJUE, por estar em causa a aplicação de normas Comunitárias, a saber, as da Directiva 2006/112/CE, de 28.11, relativas à qualificação de operações como “prestações de serviços”, bem como a interpretação e aplicação de normas da Directiva Vouchers, “que visou estabelecer regras específicas para o tratamento dos Vales/vouchers em sede de IVA, a fim de garantir um tratamento seguro e uniforme na União Europeia”, o que, segundo defende, não sucede com o art.º 7.º, n.º 15, al. b), do CIVA.
Peticiona, assim, (i) a anulação da decisão de indeferimento da RG, (ii) a anulação (parcial, como também refere) das autoliquidações em crise, (iii) a restituição da quantia de € 263.049,04, (iv) juros indemnizatórios, (v) a condenação da Requerida em custas, e, por fim, (vi) reenvio prejudicial ao TJUE.
As posições das Partes são divergentes, no essencial, quanto à alegada - alegada pela Requerente, e refutada pela Requerida - ilegalidade do regime jurídico constante do referido art.º 7.º, n.º 15, al. b), do CIVA. Que a Requerente entende ser desconforme com o Direito da UE, e por essa via padecerem os actos em crise de ilegalidade.
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, por comunicação de 18.10.2023.
Ao abrigo do disposto nos art.ºs 6.º, n.º 2, al. a), e 11.º, n.º 1, al.s a) e b) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes foram notificadas dessa designação, por comunicação de 11.12.2023, não tendo manifestado vontade de a recusar, cfr. art.ºs 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 02.01.2024.
Notificada para o efeito, a AT juntou o processo administrativo (“PA”) e apresentou Resposta, pugnando pela total improcedência do PPA, e pela manutenção dos actos em crise na Ordem Jurídica.
Expõe, entre o mais, que a Requerente procede à emissão e transmissão de Vales - VFM - no âmbito da sua actividade comercial. Mais que a Directiva Vouchers alterou o articulado da DIVA “tendo em vista clarificar as regras do imposto que permitem assegurar, em todos os Estados-Membros da União Europeia, um idêntico tratamento das operações tributáveis associadas a certo tipo de vales.”
Reportando-se aos dispositivos introduzidos na DIVA na sequência da Directiva Vouchers, dá nota do que se entende por Vale, por Vale de finalidade única (“VFU”), e por Vale de finalidade múltipla (“VFM”), cfr. Art.º 30.º-A da DIVA. E refere que, quanto aos VFM, a entrega material dos bens, ou a prestação efectiva dos serviços, em sua troca, está sujeita a IVA, cfr. Art.º 30.º-B, n.º 2, da DIVA. Mais que se considera que cada cessão anterior, do VFM, o não está.
Sustenta que o Art.º 30.º-A da DIVA deve ser interpretado no sentido de que “um instrumento que confere ao seu titular o direito de beneficiar de diversos serviços num dado local, durante um período limitado e até um certo montante, pode constituir um «vale», mesmo que, devido ao período de validade limitado desse instrumento, um consumidor médio não possa beneficiar da totalidade dos serviços propostos”, e constitui um VFM na acepção daquele artigo, já que o IVA devido sobre tais serviços não é conhecido no momento da sua emissão; faz referência ao Acórdão do TJUE de 28.04.2022 (proc. C-637/20, DSAB Destination Stockholm).
Faz também referência, ainda na DIVA, ao valor tributável da entrega de bens/prestação de serviços, no caso dos VFM, ser igual à contraprestação paga pelo Vale deduzido o montante de IVA relativo àqueles bens/serviços, reportando-se ao Art.º 73.º-A (DIVA).
Percorrendo, por sua vez, o estatuído no CIVA, na redacção introduzida pela Lei n.º 71/2018, de 31.12 (“LOE 2019”), reporta-se aos conceitos de Vale, VFU e VFM e, bem assim, ao momento da exigibilidade do imposto em relação aos VFM - cfr., respectivamente, art.º 1.º, al.s l), m) e n), e art.º 7.º, n.º 14.º, do CIVA. Neste ponto, faz notar existir, a par da regra do art.º 7.º, n.º 14, também a regra do mesmo art.º 7.º, n.º 15, al. b) - “norma especial de exigibilidade para os casos em que ocorra a caducidade” dos VFM.
Segundo expõe, ocorrendo a caducidade do direito do titular do VFM de obter os bens/serviços a que aquele respeita “sem que lhe seja restituída a correspondente contraprestação paga ao sujeito passivo que procedeu à cessão”, “o imposto relativo à prestação de serviços que consiste na colocação à disposição do titular do direito aos bens ou serviços constantes do vale é devido e exigível no momento da respetiva caducidade”. Mais, sendo uma prestação de serviços relativa a um direito de obter bens/serviços não determinados, a taxa a aplicar é a prevista no art.º 18.º, n.º 1, al. c), do CIVA. Remete para Ofício-Circulado.[2]
Expõe, por referência ao CIVA, que o valor tributável da transmissão de bens ou prestação de serviços a que o VFM diz respeito corresponde à contraprestação paga pelo mesmo, deduzida do imposto nela incluído, cfr. art.º 16.º, n.º 13, do CIVA.
Mais que a tributação dos VFM ocorre, por regra, apenas com o resgate, pois que apenas nesse momento é possível conhecer todos os elementos necessários para a determinação do imposto devido. E que “na ausência dessa circunstância [o resgate do vale], a tributação ocorre no momento da caducidade do vale, por força do art.º 7.º, n.º 15, al. b)”.
“Neste caso, a operação tributável corresponde a uma prestação de serviços de colocação à disposição a título oneroso, do direito de o titular do vale obter a transmissão de bens ou a prestação de serviços a que o VFM diz respeito.
Face ao regime jurídico em vigor, e às orientações genéricas a que está obrigada, há que concluir, defende, que o imposto autoliquidado é “devido pela prestação de serviços de colocação à disposição do cliente, consumidor final”. Mais existe nexo directo entre o serviço prestado ao beneficiário e a efectiva contraprestação recebida, defende ainda.
As regras do CIVA não contrariam o DUE, na medida em que as alterações introduzidas pela Diretiva Vouchers não clarificaram o enquadramento em IVA na situação da caducidade dos Vales; aquela não introduziu um regime especial distinto das regras gerais de tributação das transmissões de bens e prestações de serviços previstas na DIVA, visou apenas clarificar o regime do IVA em matéria de Vales; a sua transposição é congruente com os princípios estruturantes do Sistema Comum do IVA e harmonizada com o âmbito de incidência objetiva do imposto, alicerçado na DIVA.
O imposto foi devidamente (auto)liquidado, cfr. art.º 7.º, n.º 15, al. b), está devidamente identificada a base legal para a sua exigência, e não é invocável a ilegalidade da transposição da Directiva Vouchers. Os fundamentos invocados pela Req.te improcedem, e os actos em crise são de manter. Conclui.
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O Tribunal decidiu dispensar, por desnecessária e não tendo sido solicitada produção de prova adicional, a reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, e determinou, por despacho de 15.02.2024, a notificação das Partes para alegações finais escritas facultativas.
Nenhuma das Partes apresentou alegações.
Por despacho de 11.03.2024, face à renúncia justificadamente apresentada por um dos árbitros, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou o árbitro Francisco Nicolau Domingos.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente, e as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, cfr. art.ºs 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.
O PPA é tempestivo, apresentado dentro do prazo legal de 90 dias - cfr. art.º 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT. O processo não enferma de nulidades, e não há excepções ou questões prévias a conhecer.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os factos que seguem:
a) A Requerente é uma sociedade comercial, sujeito passivo de IVA, enquadrada ao tempo dos factos no regime normal, com periodicidade mensal; (cfr. PA)
b) No âmbito da sua atividade comercial, a Requerente procede à emissão e transmissão de Cartões, que comercializa sob a designação “Cartão-...”; (cfr. PA, e por acordo)
c) Os Cartões são activados com o primeiro carregamento, aquando da sua aquisição, e depois de adquiridos são ainda recarregáveis com valores entre € 5,00 e € 1.000,00, não podendo o seu saldo exceder este último montante; (cfr. PA)
d) O “Cartão ...” permite ao portador, sem qualquer procedimento de identificação, a utilização em mais de 1.100 lojas, a saber: ..., ..., ..., ..., ..., ..., “...”,...”, ..., e...; (cfr. PA)
e) Os Cartões conferem aos seus portadores o direito de os apresentar na rede de lojas onde são aceites (v. al. anterior) como meio de pagamento na aquisição de bens e/ou serviços; (cfr. PA)
f) Aquando da emissão dos Cartões, os bens/serviços (v. al. anterior) não se encontram determinados nem são determináveis; (cfr. PA, e por acordo)
g) O saldo em Cartão pode ser utilizado total ou apenas parcialmente; (cfr. PA, e por acordo)
h) O saldo disponível em Cartão é utilizável por 12 meses desde o último carregamento, período findo o qual o portador perde o direito à utilização do Cartão e o valor reverte para a Requerente; (cfr. PA, e por acordo)
f) O sistema informático da Requerente apura, no dia 25 de cada mês, os Cartões que deixaram de poder ser utilizados (cfr. al. anterior) e o respetivo saldo, e determina o IVA a liquidar; (cfr. PA, e por acordo)
g) Relativamente ao ano de 2021, e com referência aos meses de Março a Dezembro, a Requerente liquidou IVA, à taxa de 23%, a título de saldos de “Cartão-...” não utilizados dentro do respectivo prazo de validade (v. al.s anteriores), no valor total de € 263.049,04; (cfr. PA, e por acordo)
h) A 23.03.2023 a Requerente apresentou reclamação graciosa (“RG”) das autoliquidações reportadas aos períodos mensais referidos, a qual tramitou sob o n.º ...2023..., na UGC; (cfr. PA)
i) Após notificação à Requerente do projecto de decisão e para exercício do direito de audição, a RG foi expressamente indeferida, por despacho da Requerida de 11.07.2023, notificado à Req.te; (cfr. PA)
j) Do despacho de indeferimento da RG consta, entre o mais:
“A pretensão formulada na Reclamação Graciosa em apreço, consubstanciando-se na anulação parcial das autoliquidações de IVA supra identificadas, decorrente da alegada liquidação de imposto em excesso (...). / (...) revertendo ao caso concreto, importa atender aos elementos disponíveis sobre o “Cartão ...”, nomeadamente, os termos e condições da sua utilização [Disponíveis em https://... /.] / 45. Na cláusula primeira determina-se que “este cartão representa um vale de compras para utilização nas lojas ..., ... (...). / 46. Resulta da cláusula segunda que “o cartão é ativado com o primeiro carregamento, sendo recarregável com qualquer valor entre os 5€ e os € 1.000€, não podendo o seu saldo exceder esse montante.” / 47. Na cláusula terceira é dito que “o cartão é aceite na compra de qualquer produto à venda nas lojas ..., ..., (...), podendo ser utilizado uma ou mais vezes, sendo o valor das compras pago com o cartão deduzido ao saldo do mesmo. O saldo do cartão não é passível de conversão em numerário ou qualquer meio de pagamento. (...)” / 48. Na cláusula quarta define-se que a “validade do cartão é de 12 meses após o último carregamento, sendo que, se o cartão for recarregado antes da validade expirar, esta é automaticamente prorrogada por mais 12 meses. O cartão é cancelado se não for efetuada nenhuma transação num período de 3 anos.” / 49. Face aos conceitos acima elencados, do exposto resulta que se trata de um VFM, na aceção do disposto na alínea n) do n.º 2 do artigo 1.º do CIVA, porquanto, se configura como um cartão que os fornecedores são obrigados a aceitar como contraprestação pelo fornecimento, aos seus titulares, dos bens ou pela prestação de serviços incluídos nesse cartão, num determinado local, por um período limitado e até um determinado valor, não sendo conhecidos no momento da sua emissão os elementos necessários para a determinação do imposto devido pelos referidos fornecimentos. / 50. Ora, de acordo com o disposto no CIVA, perante um VFM, não sendo o mesmo redimido pelo respetivo detentor durante o período de validade definido (12 meses após o último carregamento), revertendo o valor em causa para a Reclamante, é indubitável que estamos perante uma realidade abrangida pelos pressupostos de incidência objetiva do imposto, e que como tal, se encontra sujeita a tributação nos termos ali definidos. (...) / (...) no que concerne ao valor do pedido formulado, a Reclamante limita-se a fazer referência aos montantes de IVA alegadamente liquidados, sem que, quanto aos mesmos demonstre o respetivo cálculo e apresente qualquer documento comprovativo do apuramento dos mesmos, como se impunha (...) por maioria de razão não se encontram preenchidos os pressupostos para o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios (...)./(...) da análise da presente Reclamação Graciosa resulta que inexiste qualquer erro nos pressupostos de facto e de direito subjacente aos atos tributários em causa, e bem assim, qualquer fundamento que justifique a sua imputação aos serviços. (...)”
j) O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado a 16.10.2023;
2.2. Factos não provados
A base do apuramento dos montantes de IVA autoliquidados pela Requerente a título de Cartões não utilizados/não integralmente utilizados.
Com relevância para a decisão inexistem outros factos não provados.
2.3. Fundamentação da matéria de facto
Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos pela Requerente e no PA, todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos, e, bem assim, nas posições manifestadas pelas Partes nos articulados e factos não questionados.
Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa perspectivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de Direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º/2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[3]), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º/2 e 411.º do CPC[4]).
Relativamente em especial ao facto dado por não provado, o Tribunal fundamentou-se na posição manifestada pelas Partes nos articulados, e na documentação junta aos autos. De referir, a respeito, que a não demonstração pela Requerente da base de apuramento (dito por outras palavras, do modo como apurou a - chegou à - base tributável) dos montantes de IVA que liquidou por referência a Vales não redimidos (e/ou não integralmente redimidos), já suscitada no procedimento de Reclamação Graciosa pela Requerida (v. al. j) dos factos provados, e como também reconhecido pela Requerente no PPA), mantém-se nos presentes autos, nada tendo a Requerente junto com vista à produção de qualquer prova a respeito, e nada constando dos autos que o permita demonstrar.
3. Matéria de Direito
3.1. Questões a decidir
A questão que se coloca nos autos é essencialmente de Direito. A saber, o Tribunal é chamado a apreciar e decidir se o regime jurídico-tributário em vigor no nosso Ordenamento Jurídico no que se refere a situações de não utilização (total ou parcial) de Vales/Vouchers de finalidade múltipla (VFM), nos casos em que a contraprestação paga não seja restituída, é, ou não, violador no Direito da UE. E, assim, a decidir se sim ou não as autoliquidações em crise vêm, por essa via, feridas de ilegalidade (e a, consequentemente, decidir quanto à peticionada anulação).
Mais concretamente, haverá que aferir se a norma constante do art.º 7.º, n.º 15, al. b) do CIVA, da qual foi feita aplicação pela Requerente nas autoliquidações que ora vem colocar em crise, viola o Direito da UE.
Caso se responda afirmativamente à questão antecedente, haverá que apreciar e decidir quanto a devolução de quantias pagas, e juros indemnizatórios. Haverá, ainda, que apreciar e decidir quanto ao, a final, também requerido reenvio prejudicial ao TJUE.
3.2. Da alegada ilegalidade da norma - art.º 7.º, n.º 15, al. b), do CIVA, e das alegadas (i) indevida transposição da Directiva Vouchers, e (ii) violação da DIVA, e, por fim (iii) da Qualificação
Vejamos.
Para fundamentar a ilegalidade por que pugna, das autoliquidações, a Requerente não questiona os pressupostos de facto. Questiona sim a legalidade da referida norma do CIVA - art.º 7.º, n.º 15, al. b), doravante também “a norma”-, que entende violadora da legislação e da jurisprudência Comunitária em matéria de IVA.
Recapitulando brevemente.
A Requerente, no exercício da sua actividade comercial, emite e vende Cartões que comercializa sob a denominação “Cartão-...” (v. supra, al.s a) e b), probatório). Os quais, conforme constante dos respectivos termos e condições de utilização (disponíveis online em https://..., como do procedimento de RG também constante - v. supra, al. j) probatório), e como também assente entre as Partes, conferem ao utilizador/portador o direito de, apresentando-os na rede de lojas aderente, que é dada conhecer aquando da aquisição dos mesmos (“Cartões-...”), adquirir, em troca, bens e serviços. Mediante a apresentação do Cartão, que é aceite para pagamento dos mesmos.
No ano de 2021, por referência aos meses a que respeitam as autoliquidações que coloca em crise, liquidou IVA, a título de saldos dos Cartões por si emitidos e não utilizados dentro do respectivo período de validade (tendo operado, assim, a caducidade, não obstante os Cartões ainda terem saldo), no valor total de € 263.049,04 (v. supra, al. g) do probatório). (Sem que seja possível apurar nos autos se, no apuramento que fez do valor tributável, considerou apenas o montante pago inicialmente como contrapartida pelo Cartão ou, também, montantes posteriormente creditados nos Cartões; não obstante ser invariavelmente a estes carregamentos posteriores que nas suas alegações de direito faz menção). Aplicou, sobre o valor que apurou para o efeito, a taxa normal de IVA de 23%.
E, segundo defende, a norma (art.º 7.º, n.º 15, al. b) do CIVA), com base na qual procedeu às autoliquidações, é contrária ao Direito da UE. Defende que os actos em crise resultam de uma interpretação contra legem do Direito aplicável; que o legislador português transpôs indevidamente a Directiva Vouchers, e a norma viola os princípios fundamentais, internos e Comunitários, em matéria de IVA.
No seu entender, o regime em questão mostra-se contrário à legislação e jurisprudência Comunitária em matéria de IVA: os VFM não redimidos, defende, estão excluídos do âmbito de aplicação do IVA.
Raciocina assim: uma vez expirados os Cartões (VFM, como já aproximado, e como melhor se verá) o direito a obter os bens/serviços subjacentes já não pode ser exercido, pelo que, assim sendo, não há (não haverá já) lugar a uma entrega de bens/a uma prestação de serviços. Nem pode presumir-se que haja.
Apreciando.
Começando por enquadrar muito brevemente.
Estamos em IVA. Imposto indirecto de raíz Comunitária, e imposto harmonizado por excelência. Assistem-lhe em especial os atributos da generalidade e neutralidade.
Neste imposto, e em coerência com estas suas referidas características essenciais, o conceito de actividade económica é de interpretar da forma o mais ampla possível. O legislador, desde logo o Comunitário, é fiel desde sempre à preocupação de tornar amplo este conceito. Como também aprofundado, desde sempre, pelo TJUE no seu labor pretoriano neste contexto. Tudo conduzindo ao carácter objectivo da noção de actividade económica, delimitada essa noção ampla pela necessidade de existir um acto de consumo. O carácter de habitualidade com que vem delineada, desde logo pelo legislador, implicando, por norma, o exercício profissional de uma actividade organizada com o objectivo de fornecer bens e/ou serviços.
Dito isto.
O IVA, imposto geral sobre o consumo de base de incidência alargada, incide, em regra, sobre todas as transacções económicas efectuadas a título oneroso. Incide assim – no essencial e no que aos autos pode relevar – sobre transmissões de bens e sobre prestações de serviços.
E com vista a alcançar tributar tendencialmente todo o acto de consumo (vocação de generalidade), vem o conceito de prestação de serviços, aqui, delimitado pela negativa em face do conceito de transmissão de bens – cfr., entre o mais, art.º 4.º do CIVA (infra). Tendencialmente se alcançando, também assim, identificar, subjacente a qualquer tipo de atribuição patrimonial em que seja detectável uma substância económica nos termos vistos - e que não configure contrapartida por uma transmissão de bens - uma prestação de serviços tributável.
O Princípio da neutralidade, por sua vez, pedra de toque em IVA e transversal a todo o funcionamento do seu Sistema Uniforme, encontra razão de ser, como bem se compreende neste contexto, em outros Princípios. Com os quais vem imbrincado. Como seja, desde logo, quer o Princípio da proibição de duplas tributações, quer o da proibição de não tributação. Sendo que em todas as fases essenciais do funcionamento do imposto o Princípio da neutralidade é convocado. Assim, quando de incidência se cuide.
Aqui chegados.
(i) da alegada indevida transposição da Directiva Vouchers
A Directiva (UE) 2016/1065 do Conselho, de 27.06.2016, “Diretiva Vouchers”, veio especificamente tratar operações que envolvam Vales. Tem por objecto o respectivo tratamento em IVA, clarificando-o. Veio “instituir regras que clarifiquem o tratamento em sede de IVA dos vales” (cfr. Considerando (3) da mesma).
Neste contexto, veio identificar de forma clara o que se entende por Vale para efeitos de IVA e, mais, distinguir os vários tipos de Vales. Já que o tratamento em IVA dos Vales dependerá das características específicas dos mesmos.
E revelou-se necessário estabelecer regras específicas clarificadoras do dito tratamento em IVA para assim, como logo se lê nos Considerandos iniciais da Directiva, “garantir um tratamento seguro e uniforme, ser coerente com os princípios de um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços, evitar incoerências, distorções de concorrência, dupla tributação ou não tributação e ainda reduzir o risco de elisão fiscal”.
Aqui chegados, dê-se então nota: a Directiva não visa as – ou seja, não veio estabelecer regras específicas clarificadoras do respectivo tratamento em IVA das (v. supra) – situações em que um Vale de finalidade múltipla não é resgatado (e o vendedor mantém para si a contraprestação recebida por esse Vale). Cfr. Considerando (12).
Não veio estabelecer regras específicas clarificadoras para o tratamento em IVA dos Vales (nestas ditas situações), por o legislador Comunitário, só assim o podemos ver, ter entendido tal não se revelar necessário. Não se revelar necessário clarificar, para essa situação, as regras (já então) existentes. Somos, assim, remetidos para a DIVA, conforme em vigor já antes (i.e., já antes da Directiva Vouchers, e da introdução naquela, por efeito desta, de regras clarificadoras em matéria de Vales).
Se dúvidas houvesse, veja-se o que logo no Considerando imediato - Considerando (13) – se lê: “(...) os objetivos da presente diretiva (...) e harmonização das regras do IVA aplicáveis aos vales (...) podem, pois, ser mais bem alcançados ao nível da União, a União pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade (...). Em conformidade com o princípio da proporcionalidade (...) a presente diretiva não excede o necessário para alcançar aqueles objetivos”. Entendeu o legislador Comunitário, pois, assumindo-o expressamente, que o objectivo da harmonização (como assim os demais objectivos visados) não exigia regras específicas clarificadoras do tratamento em IVA das situações em que um Vale de finalidade múltipla não é resgatado (“Vales não redimidos”).
Dito isto.
A Directiva é fonte de Direito da União derivado. E, conforme se estabelece no Artigo 288.º do TFUE[5] (Secção 1, Capítulo 2 – “Os atos jurídicos da União”), “vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.”
Os Tribunais, por seu turno, como as demais autoridades nacionais, devem interpretar o Direito Nacional em conformidade com o texto e com a finalidade da Directiva; em conformidade com o resultado e os efeitos jurídicos pretendidos pela Directiva (é o que se denomina de interpretação conforme da Directiva).[6]
A Directiva Vouchers, em qualquer caso, foi transposta por Portugal em tempo.
Teve precisamente como um dos seus fins, vimo-lo, o de evitar não tributação (a par do de evitar dupla tributação). Teve em vista, pois, também, a proibição da ausência de tributação, como do Princípio da neutralidade também resulta.
Ora, é aqui, quanto a nós, que a matéria em que nos centramos exige alguma clarificação, interpretativa. Como nos é dado fazer, no seio do Sistema Uniforme do IVA, tal como vigente e reflectido na legislação Comunitária em vigor e, bem assim, na Jurisprudência do TJUE que a vem trabalhando/interpretando.
Como segue.
Estamos a cuidar de Vales. Tratamento em sede de IVA dos Vales (v. Considerando (3) da Directiva Vouchers).
Um Vale, como a Directiva Vouchers veio clarificar (e como depois reflectido na DIVA, Art.º 30.º-A), é “um instrumento em que existe a obrigação de o aceitar como contraprestação ou parte da contraprestação por uma entrega de bens ou prestação de serviços e em que os bens a entregar ou os serviços a prestar ou a identidade dos potenciais fornecedores ou prestadores estão indicados no próprio instrumento ou em documentação relacionada, incluindo os termos e condições de utilização de tal instrumento.”
Estamos, pois, a tratar de IVA respeitante a tais instrumentos, “IVA pago a respeito desses vales” (v. Considerando (11) da Directiva Vouchers; e v. como também aí se lê: “declarar o IVA com base na contraprestação paga em troca do vale”). IVA incidente sobre os Vales. Que constituem, para efeitos de IVA, “instrumentos” (vimos de vê-lo).
Instrumentos que vêm sendo cada vez mais utilizados nas políticas comerciais das empresas, conforme os seus modelos empresariais, no seio das suas actividades comerciais. Como é o caso da actividade da Requerente nos autos, que no âmbito da sua actividade comercial emite e vende os “Cartões-...” (v. al. a), factos provados). Estamos, assim, além do mais, perante um Sujeito Passivo de IVA (cfr. Art.º 9.º da DIVA, e v. art.ºs 1.º e 2.º do CIVA). Reunidas, assim, incidência subjectiva e objectiva. Especialmente intricadas que são, em IVA. Reunidas na emissão e venda/cessão do “Cartão...”.
Pela Directiva Vouchers o legislador Comunitário não veio, é certo, introduzir regras específicas para clarificar o tratamento em IVA das situações em que um VFM não é resgatado (vimos acima).
Porém, não deixou de (v. Art.º 73.º-A na DIVA), ao clarificar o que se tem por valor tributável da entrega de bens ou da prestação de serviços subjacente a um VFM, ressalvar fazê-lo “sem prejuízo do disposto no artigo 73.o”. Onde, por sua vez, se lê que “(…) o valor tributável compreende tudo[7] o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber (…)”. Como também não deixou de referir, após especificar que se considera que cada cessão anterior (anterior à operação final - a expressão é nossa - a que o Vale tende) do VFM não está sujeita a IVA, que, ainda assim, caso “a cessão” seja efetuada “por um sujeito passivo diferente do sujeito passivo que efetua a operação (...)” (a operação final a que...) qualquer prestação de serviços que possa ser identificada, tais como serviços de distribuição ou de promoção, está sujeita a IVA.” (e v., na DIVA, os Art.ºs 1.º, n.ºs 1 e 2, Art.º 2.º, n.º 1, al. c), Art.º 9.º e Art.º 24.º, n.º 1).
Ou seja, na Directiva Vouchers, que o nosso legislador transpôs, não só não deixa de esclarecer-se a situação dos Vales (VFM) não redimidos não carecer, face às normas já existentes, de vir clarificar-se com introdução de normas específicas (v. entre o mais, Considerandos 12 e 13); como, ademais, as normas gerais (cfr. DIVA) não deixam de fazer-se aí expressamente presentes.
Dá-se expressamente corpo, também assim, pela Directiva Vouchers, ao Princípio da neutralidade. Além do mais, afastando-se a possibilidade de não tributação, que este tem por proibida. Tudo em coerência com os objectivos, os resultados visados pela Directiva. Que o nosso legislador, como lhe era devido, ao transpôr (Artigo 288.º do TFUE), teve em mente.
Aos resultados/objectivos visados pela Directiva Vouchers, como supra, e, ainda, ao expressamente ali vertido (em especial ao que vimos agora de referir a sublinhado), deu, por sua vez, o nosso legislador corpo – na al. b) do n.º 15 do art.º 7.º do CIVA.
Contrariamente ao defendido pela Requerente, a transposição da Directiva Vouchers não foi, pois, errada ou ilegalmente efectuada pelo legislador nacional.
Como melhor ainda se verá.
(ii) da alegada violação da Directiva IVA
Tudo o que se dispõe na DIVA é, afinal, traduzido, bem, pela nossa norma.
Senão vejamos. Na Directiva IVA, no mais relevante aos autos (e cfr. versão em vigor, e assim ao tempo dos factos, já em conformidade com a Directiva Vouchers) estabelece-se:
“(…)
Objecto e âmbito de aplicação
Artigo 2.o
1. Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:
a) As entregas de bens (...)
c) As prestações de serviços efectuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade; (...)
Sujeitos Passivos
Artigo 9.o
1. Entende-se por «sujeito passivo» qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma actividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa actividade.
Entende-se por «actividade económica» qualquer actividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. (…)
Operações Tributáveis
Entregas de bens
Artigo 14.o
1. Entende-se por «entrega de bens» a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário. (...)
Prestações de serviços
Artigo 24.o
1. Entende-se por «prestação de serviços» qualquer operação que não constitua uma entrega de bens. (…)
Artigo 30.o-A
Para efeitos da presente diretiva, entende-se por:
1) «Vale», um instrumento em que existe a obrigação de o aceitar como contraprestação ou parte da contraprestação por uma entrega de bens ou prestação de serviços e em que os bens a entregar ou os serviços a prestar ou a identidade dos potenciais fornecedores ou prestadores estão indicados no próprio instrumento ou em documentação relacionada, incluindo os termos e condições de utilização de tal instrumento;
2) «Vale de finalidade única», um vale em que o lugar da entrega dos bens ou prestação dos serviços a que o vale diz respeito e o IVA devido sobre esses bens ou serviços são conhecidos no momento da emissão do vale;
3) «Vale de finalidade múltipla», um vale que não seja um vale de finalidade única.
Artigo 30.o-B
1. Cada cessão de um vale de finalidade única efetuada por um sujeito passivo atuando em nome próprio é considerada uma entrega dos bens ou prestação dos serviços a que o vale diz respeito. A entrega material dos bens ou a prestação efetiva dos serviços em troca de um vale de finalidade única aceite pelo fornecedor ou prestador como contraprestação ou parte da contraprestação não é considerada uma operação independente.
Caso a cessão do vale de finalidade única seja efetuada por um sujeito passivo atuando em nome de outro sujeito passivo, considera-se que essa cessão constitui a entrega dos bens ou a prestação dos serviços a que o vale diz respeito efetuada pelo outro sujeito passivo em cujo nome atua o sujeito passivo.
Caso o fornecedor de bens ou o prestador de serviços não seja o sujeito passivo que, atuando em nome próprio, emitiu o vale de finalidade única, considera-se, porém, que esse fornecedor ou prestador efetuou a esse sujeito passivo a entrega dos bens ou a prestação dos serviços a que respeita o vale.
2. A entrega material dos bens ou a prestação efetiva dos serviços em troca de um vale de finalidade múltipla aceite como contraprestação ou parte da contraprestação pelo fornecedor está sujeita a IVA por força do artigo 2.o, considerando-se que cada cessão anterior desse vale de finalidade múltipla não está sujeita a IVA.
Caso a cessão de um vale de finalidade múltipla seja efetuada por um sujeito passivo diferente do sujeito passivo que efetua a operação sujeita a IVA nos termos do primeiro parágrafo, qualquer prestação de serviços que possa ser identificada, tais como serviços de distribuição ou de promoção, está sujeita a IVA.
Entregas de bens e prestações de serviços
Artigo 73.o
Nas entregas de bens e às prestações de serviços (…) o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro (…).
Artigo 73.o-A
Sem prejuízo do disposto no artigo 73.o, o valor tributável da entrega de bens ou da prestação de serviços em relação a um vale de finalidade múltipla é igual à contraprestação paga pelo vale ou, na ausência de informação quanto a essa contraprestação, ao valor monetário indicado no próprio vale de finalidade múltipla ou em documentação relacionada, deduzido o montante do IVA relativo aos bens entregues ou aos serviços prestados. (…)”
Pois bem.
Afirma a Requerente que a DIVA não qualifica os Vales (VFM) não redimidos como prestação de serviços.
Porém, sem razão.
Afirma ainda que, não tendo também a Directiva Vouchers vindo fazê-lo, não podia o legislador português vir presumir que estamos aí perante uma prestação de serviços. Que tendo esta Directiva vindo considerar “a transmissão original” do VFM “não sujeita para efeitos de IVA” – não pode entender-se, “como faz a Requerida”, estarmos aí perante uma prestação de serviços consistente na colocação à disposição do titular do direito aos bens ou serviços constantes do Vale. E isto também uma vez que “expirados tais vales, o direito a obter os bens/serviços subjacentes já não pode ser exercido”.
Porém, novamente, e ressalvado sempre o devido respeito, a Requerente labora em erro.
Vejamos.
Deve começar por dizer-se que nem no entendimento da Requerida, nem no que foi vertido em lei (CIVA) pelo legislador nacional, se detecta uma presunção. Contrariamente ao que vem alegado pela Requerente. Não se presume uma operação de prestação de serviços. Não. Diferentemente. Segundo a Requerida (v. Relatório, supra) “na ausência dessa circunstância [o resgate do vale], a tributação ocorre no momento da caducidade do vale, por força do art.º 7.º, n.º 15, al. b).” Precisamente o que determinou, sim, o nosso legislador, no art.º 7.º, n.º 15, al. b) do CIVA (infra). A operação tributável “corresponde a uma prestação de serviços”, é uma prestação de serviços.
E, assim é. Assim resulta do Sistema Uniforme do IVA, em toda a sua abrangência.
As normas existentes qualificam a operação (o produto Vale, se se quiser) como tal. Como prestação de serviços para efeitos de IVA.
A saber, as normas que também já vimos de percorrer (na DIVA, v. supra, a sublinhados). E, recorde-se (v. também factos provados, acima): a Requerente é Sujeito Passivo de IVA e nessa qualidade emite e vende os “Cartões-...”.
Assim também, as normas (pré-)existentes no CIVA (prévias à Directiva Vouchers também).
Aqui, Código do IVA, no mais relevante, lê-se (e integramos já aqui também as normas conforme constantes do Código após transposição da Directiva Vouchers):
Artigo 1.º - Incidência objectiva
1. Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado:
a) As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal; (…)
2. Para efeitos das disposições relativas ao IVA, entende-se por: (…)
l) “Vale”, um instrumento que, nos termos e condições nele especificados ou em informação contratual relacionada, independentemente da sua designação e do seu suporte físico ou eletrónico, confere ao titular o direito de obter, junto de transmitentes de bens ou de prestadores de serviços identificados, o fornecimento de uma ou de várias categorias de bens ou serviços previamente determinadas ou determináveis, e de o utilizar, total ou parcialmente, como contraprestação desse fornecimento, não abrangendo, designadamente, os meros instrumentos ou meios de pagamento e os vales de descontos que não conferem ao respetivo titular o direito de exigir em troca a transmissão de um bem ou a prestação de um serviço;
m) “Vale de finalidade única”, um vale em relação ao qual todos os elementos necessários para a determinação do imposto devido, independentemente do bem que venha a ser transmitido ou do serviço que venha a ser prestado, são conhecidos no momento da sua emissão ou cessão;
n) “Vale de finalidade múltipla”, um vale em relação ao qual, no momento da sua emissão ou cessão, não são conhecidos todos os elementos necessários para a determinação do imposto devido;
Artigo 2.º - Incidência subjectiva
1. São sujeitos passivos do imposto:
a) As pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo (…);
Artigo 3.º - Conceito de transmissão de bens
1. Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade. (…)
Artigo 4.º - Conceito de prestação de serviços
1. São consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens. (…)
Artigo 7.º - Facto gerador e exigibilidade do imposto
1. Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o imposto é devido e torna-se exigível:
a) Nas transmissões de bens, (…)
b) Nas prestações de serviços, no momento da sua realização;
(...)
13 - Nas cessões de vales de finalidade única, o imposto é devido e exigível no momento em que ocorre cada cessão, considerando-se que a transmissão de bens ou prestação de serviços a que o vale diz respeito é efetuada nesse momento, pelo sujeito passivo em nome de quem a cessão do vale é realizada.
14 - Em relação a vales de finalidade múltipla, independentemente de quaisquer cessões dos mesmos previamente ocorridas, o imposto é devido e exigível no momento em que o sujeito passivo efetua a transmissão dos bens ou a prestação dos serviços a que o vale diz respeito, em conformidade com as alíneas a) e b) do n.º 1.
15 - Não obstante o disposto no número anterior, o imposto é devido e exigível nas seguintes circunstâncias:
a) Se se verificar a realização, pelo sujeito passivo que procede à cessão do vale de finalidade múltipla, de operações tributáveis distintas da própria cessão, ainda que efetuadas, designadamente, a título da respetiva promoção ou distribuição, o imposto é devido e exigível no momento da sua realização, pela contraprestação que lhe seja devida a esse título;
b) Se se verificar a caducidade do direito de o respetivo titular obter a transmissão de bens ou a prestação de serviços a que o vale de finalidade múltipla diz respeito, sem que o sujeito passivo que procedeu à cessão lhe restitua a contraprestação paga, o imposto relativo à prestação de serviços de colocação à disposição, a título oneroso, do referido direito é devido e exigível no momento em que o mesmo caducar.
Artigo 8.º - Exigibilidade do imposto em caso de obrigação de emitir factura
1. Não obstante o disposto no artigo anterior (…) sempre que a transmissão de bens ou a prestação de serviços dê lugar à obrigação de emitir uma fatura nos termos do artigo 29.º, o imposto torna-se exigível:
(…)
b) Se o prazo previsto para a emissão não for respeitado, no momento em que termina;
c) Se a transmissão de bens ou a prestação de serviços derem lugar ao pagamento, ainda que parcial, anteriormente à emissão da fatura, no momento do recebimento desse pagamento, pelo montante recebido, sem prejuízo do disposto na alínea anterior;
Artigo 9.º - Isenções nas operações internas
Estão isentas de imposto: (…)
Artigo 16.º - Valor tributável nas operações internas
1. Sem prejuízo (...) o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.
2. Nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é: (…)
4. Para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, entende-se por valor normal de um bem ou serviço: (…)
13 - Em relação a vales de finalidade múltipla, sem prejuízo do disposto no n.º 1, o valor tributável da transmissão de bens ou prestação de serviços a que o vale diz respeito é constituído pela contraprestação paga, quando da cessão do vale, pelo adquirente, pelo destinatário ou por um terceiro em seu lugar, deduzido do montante do imposto devido por essa transmissão de bens ou prestação de serviços.
14 - Quando o transmitente dos bens ou prestador dos serviços não tenha sido o próprio cedente do vale de finalidade múltipla e não lhe seja possível aceder a informação segura acerca da contraprestação referida no número anterior, sem prejuízo do disposto no n.º 1, o valor tributável da transmissão de bens ou prestação de serviços a que o vale diz respeito é constituído pelo valor monetário indicado no próprio vale ou resultante de informação contratual relacionada, deduzido do montante do imposto devido por essa transmissão de bens ou prestação de serviços.
15 - No caso previsto no número anterior, não havendo indicação (...) é determinado nos termos do n.º 4.
Artigo 18.º - Taxas do imposto
1 - As taxas do imposto são as seguintes:
a) Para as (...) prestações de serviços constantes da lista I (...)
b) Para as (...) prestações de serviços constantes da lista II (...)
c) Para as restantes (...) prestações de serviços, a taxa de 23%.
Artigo 29.º - Obrigações em geral
1. Para além da obrigação de pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º devem, sem prejuízo do previsto em disposições especiais:
(…)
b) Emitir obrigatoriamente uma fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como vêm definidos nos artigos 3.º e 4.º, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços (…), bem como pelos pagamentos que lhes sejam efetuados antes da data da transmissão de bens ou da prestação de serviços;
Artigo 36.º - Prazo de emissão e formalidades das faturas
1. A fatura referida na alínea b) do n.º 1 do artigo 29.º deve ser emitida:
(…)
c) Na data do recebimento, no caso de pagamentos relativos a uma transmissão de bens ou prestação de serviços ainda não efetuada, bem como no caso em que o pagamento coincide com o momento em que o imposto é devido nos termos do artigo 7.º
Artigo 40.º - Faturas simplificadas
1. A obrigatoriedade de emissão de fatura (…) pode ser cumprida através da emissão de uma fatura simplificada (...) nas seguintes situações: / a) Transmissões de bens efetuadas por retalhistas (…) a não sujeitos passivos, quando o valor da fatura não for superior a € 1.000; (…)
Artigo 49.º - Apuramento da base tributável nas facturas com imposto incluído
Nos casos em que a facturação ou o seu registo sejam processados por valores, com imposto incluído, nos termos dos artigos anteriores, o apuramento da base tributável correspondente é obtido através da divisão daqueles valores por (…).
*
Não se presume, dizíamos, haver uma operação de prestação de serviços. Não há qualquer presunção. Contrariamente ao que alega a Requerente, não “resulta do entendimento da AT que, aquando da caducidade dos vales de finalidade múltipla, se presume ou ficciona (?) que seja prestado um serviço de colocação à disposição do titular do direito aos bens ou serviços constantes do vale.” Nem é verdadeiro que por isso é que “será devido e exigível o IVA (à taxa normal) no momento da respectiva caducidade.”
Não.
Atente-se.
Aquilo que através da Directiva Vouchers o legislador Comunitário veio fazer, cuidando e clarificando o tratamento em IVA dos Vales - e no que ao nosso caso respeita, em VFM - foi, afinal, diferir no tempo o momento da exigibilidade do imposto numa determinada operação de prestação de serviços. Naquela que é uma operação que qualifica - desde logo, ao abrigo da DIVA - como operação de prestação de serviços para efeitos de IVA. No caso, o produto Vale – VFM.
Porquê o fez? Porque diferiu o momento da exigibilidade do imposto? Porque, não sendo possível, no caso dos VFM, conhecer, no momento da emissão e primeira cessão do Vale (“cessão na emissão do Vale”, ou “emissão-cessão”, ou “emissão - primeira cessão”; na versão em Inglês da Directiva Vouchers assim: “each transfer, including on the issue of that Voucher” – Considerando 9), os bens/serviços em que o Vale, ao ser utilizado, se traduzirá, fica impedido conhecer-se a taxa de IVA correspondente a estes e, assim, impossível é, nesse momento, aplicar o imposto exactamente proporcional ao preço dos bens e serviços – cfr. Art.º 1.º, n.º 2 da DIVA, e cfr. constante expressamente no elenco dos objectivos/resultados visados pela Directiva Vouchers (como vimos). Assim se compreende que tenha sido diferida para momento posterior a exigibilidade do imposto. Para o momento em que se torna cognoscível a taxa aplicável.
Se os bens/serviços em que o Vale se virá a traduzir ao ser utilizado fossem conhecidos aquando da emissão e primeira cessão do mesmo, já tal não se faria. Que é o que ocorre com os VFU, os Vales em que nesse momento inicial se conhecem os elementos necessários para precisar o imposto devido. Pois que nesses – VFU – a utilização que pode ser dada ao Vale é definida/determinada ab initio, cfr. Art.º 30.º-A, n.º 2 da DIVA, e art.º 1.º, n.º 2, al. m) do CIVA.
Ao clarificar, como clarificou, especificando o momento da exigibilidade do imposto para o caso desse outro tipo de operação (não a do tipo que temos nos autos) de prestação de serviços Vale – VFU – evitou o legislador a ocorrência de dupla tributação. Ou seja, evitou tributar-se duas vezes um mesmo acto de consumo. Melhor, e adaptando à especificidade em questão, evitou tributar-se duas vezes a mesma manifestação de capacidade contributiva. (Que, sempre se deixe nota, tão só ocorre no momento da aquisição do Vale, i.e., no momento da emissão-cessão; não já quando um qualquer portador do Vale o ...- o apresenta - em troca de produtos/serviços).
E, por outro lado, ao especificar o momento da exigibilidade do imposto para o caso do tipo de operação que temos nos autos, de prestação de serviços Vale, ao postergar para o momento em que seja utilizado o Vale - VFM - a exigibilidade do imposto, evitou o legislador liquidar-se IVA num montante que podia não ser proporcional ao preço dos bens/serviços em que o Vale viesse a traduzir-se ao ser utilizado. Porquê? Por nesse mesmo momento (da emissão-cessão) ainda não serem conhecidos os bens/serviços que o Vale propõe, e, assim, ainda não serem conhecidos os elementos necessários à correcta liquidação do IVA – isto, em protecção desse mesmo Princípio (central, também, no Sistema Uniforme do IVA, Princípio de um imposto geral sobre o consumo exactamente proporcional ao preço dos bens e serviços). Mas não pode, o legislador Comunitário, ter, com isso, pretendido legitimar a não tributação da operação, a ausência de tributação. Sequer, desqualificá-la (como operação de prestação de serviços que é).
Note-se, neste contexto, a delicadeza em tratamento pelo legislador. Há uma contraprestação apenas, a contraprestação paga pelo Vale (seja ele VFM, seja VFU). E é dessa mesma contraprestação que o legislador Comunitário vem cuidar na Directiva Vouchers. Que não de outra.
O pagamento existente é um, apenas. Essa mesma contraprestação. Preço pago pelo Vale, aquando da sua “emissão - primeira cessão”. Contraprestação efectivamente recebida pelo sujeito passivo que emite e vende o Vale (no nosso caso, a Requerente).
Não obstante, há, porque incorporado no Vale - porque esse o modelo do produto comercializado (no caso, o denominado “Cartão-...”) pelo sujeito passivo - o direito por parte do utilizador/portador do Vale a obter, depois, utilizando o Vale (apresentando-o em troca) a certo ou certos bens e/ou serviços.
Daí a delicadeza em matéria de possibilidades de dupla tributação / não tributação.
No que aos autos releva, não tendo o legislador Comunitário expressamente cuidado na Directiva Vouchers da situação dos VFM quando não utilizados e não retornada a contraprestação pelos mesmos paga (à Requerente, no caso), tudo na mesma Directiva aponta para que não estava com isso o legislador a querer “abrir a porta” à não tributação dos VFM. Muito pelo contrário. Conforme decorre dos objectivos visados pela mesma, e aí plasmados (cfr Considerandos, como supra percorremos). Foi também assim que não deixou de fazer a ressalva a que já nos referimos acima – do Art.º 73.º-A para o Art.º 73.º (v. DIVA). E, também assim, que no Art.º 30.º-B, n.º 2, 2.º parágrafo, acautelou a situação para quaisquer prestações de serviços identificáveis em cessões de VFM.
A emissão-cessão dos VFM não deixa de ser, também ela, uma prestação de serviços. A exigibilidade do imposto relativamente a ela ficou postergada para o momento da utilização em concreto do Vale (da sua troca por bens/serviços). Caso, porém, esse momento não chegue a ocorrer - o Vale não chegue a ser utilizado (total ou parcialmente) – deixa de haver a razão para o diferimento da exigibilidade, aquilo que justificou o diferimento, pelo legislador, do momento da exigibilidade. Tudo se passando então como decorrente das regras gerais aplicáveis. DIVA, desde logo. Como percorrido.
Como aliás, com as necessárias adaptações, com o que já se encontrava também previsto, se bem se atentar, no Art.º 66.º, al. c) da DIVA - e, depois, nos art.ºs 8.º, n.º 1, al.s b) e c), e 36.º, n.º 1, al. c), CIVA, todos conjugada e devidamente interpretados. O legislador português, dentro do espírito do Sistema e exercendo as suas atribuições, previu que o imposto se torne exigível em relação à operação de serviços VFM nas situações de não utilização e ainda assim recebimento de contrapartida, e expressamente fixou (clarificou) e bem quanto a nós, um prazo (limite) a contar da data do facto gerador. A saber, o momento da caducidade do Vale.
Ao dispor como fez no n.º 15 do art.º 7.º do CIVA, o legislador nacional está, afinal, a dar cumprimento à Directiva Vouchers. Ao daí constante no – cfr. depois incorporado na DIVA - Artigo 30.º-B, n.º 2, segundo parágrafo; e, bem assim, ao daí constante nos Considerandos, e que é transversal a toda a Directiva Vouchers – os objectivos/resultados que pela mesma foram visados, e entre eles, os de evitar distorções da concorrência e a não tributação.
Na al. a) do n.º 15 fá-lo por referência às transmissões de VFM que eventualmente ocorram entre a primeira (a “emissão e primeira cessão”) e a operação final (ou operações) a que o Vale tende (em que são transmitidos bens/prestados serviços propostos/incorporados no VFM). Na al. b) do n.º 15 fá-lo por referência à primeira cessão, i.e., a cessão aquando da emissão do Vale, e para o caso (apenas para o caso), que o legislador Comunitário não tratou especificamente na Directiva Voucher (por entender não carecer de clarificação, vimos), para o caso, dizíamos, de não utilização do Vale ficando o Sujeito Passivo emitente do mesmo com (fazendo sua) a contraprestação que pelo mesmo havia recebido. Contraprestação essa que constituiu, afinal, o preço pago pelo VFM. Numa relação entre emitente e quem adquiriu o Vale, em que se detectam prestações recíprocas, pois, e, assim um nexo de ligação (vínculo directo) entre o serviço prestado (no produto Vale) e a contrapartida recebida (a contrapartida paga, o preço pago, pelo Vale). Remuneração efectivamente recebida (e que, ademais, o emitente fará sua sem sequer ter a pagar, depois, a fornecedores de bens/serviços – quando essas propostas últimas operações não chegam a materializar-se).
O emitente do Vale é, afinal, um intermediário instrumental que presta assim serviços (através do “instrumento Vale”) não só de disponibilização de direitos a bens e serviços por troca dos Vales como, ainda, de divulgação/promoção dos bens e/ou serviços que outros operadores comercializam e que conseguem, assim, por essa via, tornar mais visíveis, mais vendáveis, potenciando a respectiva força de vendas destes.
Relação jurídica, sempre, entre prestador e beneficiário, em que são transaccionadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador (emitente) o contravalor efectivo do serviço por si fornecido ao beneficiário, e sendo beneficiário tanto aquele que adquire o Vale para através disso também beneficiar outros, como aqueles a quem o emitente está, assim também, a prestar serviços de divulgação e promoção, ou mesmo os próprios portadores seja utilizando o Vale sem qualquer carregamento por si seja na eventualidade de eles próprios o recarregarem. (Não será por, por hipótese – v. supra, p. 15, o que também se referiu - haver portadores de Vale que eles próprios venham a recarregar os Vales de que já disponham que a operação assume diferente qualificação (se isso eventualmente ocorrer ... sendo que não só o mais comum será, mesmo numa tal aproximada situação, serem outros, que não os portadores, a carregar os Cartões e também eles a obter com isso um benefício - cfr., no caso, https://..., onde constam os termos e condições de utilização, como também constante do processo administrativo – e v., aí, empresas[8], como, ainda que fossem os próprios portadores a fazê-lo, sempre estariam a fazer uso da mesma prestação serviços que é fornecida pelo sujeito passivo - no caso, a Requerente - através do produto Vale, diferentemente do que sucede se, ao invés, adquirirem os bens/produtos pagando o preço utilizando verdadeiros e próprios meios de pagamento).
Por fim, também se refira que não é por não ser utilizado um Vale que o mesmo deixa de qualificar enquanto Vale para efeitos de IVA. Nem essa questão vem discutida pela Requerente, nem o TJUE deixou de já o esclarecer. V. Ac. do TJUE de 28.04.2022, proc. C-637/20, já referido; e v. também, com as devidas adaptações, Ac. do TJUE de 18.04.2024, proc C-68/23 mencionando carregamentos pelo próprio portador.
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A interpretação do Direito da UE que se conclui ser a devida, como vimos de percorrer, tem apoio na Jurisprudência firmada pelo TJUE a respeito das questões implicadas. Seja na qualificação de uma operação como sendo uma operação tributável em IVA. Seja na própria interpretação-clarificação dos esclarecimentos operados pela Directiva Vouchers.
Em matéria de qualificação como operações tributáveis, pode referir-se, entre tantos outros, o Acórdão do TJUE de 3 de Março de 1994 no Caso Tolsma, proc.º C-16/93, sucessivamente citado e desenvolvido depois ao longo dos anos na Jurisprudência do Alto Tribunal (v. também, a título de exemplo recente o Acórdão no Proc. C‑179/23, de 4 de Julho de 2024, Caso Credidam - “(...) [s]egundo o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva IVA, estão sujeitas a IVA as prestações de serviços efetuadas a título oneroso no território de um Estado‑Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade. Além disso, por força do artigo 24.°, n.° 1, desta diretiva, qualquer operação que não constitua uma entrega de bens deve ser considerada uma prestação de serviços. O artigo 25.° da referida diretiva enumera, a título indicativo (...) Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio considerou que as operações (...) se inscrevem numa atividade económica desenvolvida (...) enquanto sujeito passivo, na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da Diretiva IVA, (...) saber (...) se as prestações de serviços assim efetuadas o são «a título oneroso», na aceção do artigo 2.°, n.° 1, alínea c), desta diretiva. A esse respeito, decorre de jurisprudência constante que a possibilidade de qualificar uma prestação de serviços de operação a título oneroso pressupõe unicamente a existência de um nexo direto entre essa prestação e uma contrapartida realmente recebida pelo sujeito passivo. Tal nexo direto é demonstrado quando exista entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica no quadro da qual se trocam prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo do serviço prestado ao beneficiário (Acórdão de 15 de abril de 2021, Administration de..., C‑846/19, EU:C:2021:277, n.o 36). (...).”
E em matéria de esclarecimentos operados pela Directiva Vouchers v. o Acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2022 no Caso DASB Destination Stockholm, proc.º C-637/20 (aí, entre o mais, os termos em que deve operar-se a interpretação de disposições do Direito da União – cfr Par. 18, e o não relevar para a qualificação como instrumento Vale, não desqualificá-lo como tal, o facto de o mesmo poder não chegar a ser utilizado – cfr Par.s 24 e 32); e v. também o Acórdão mais recente, de 18 de Abril de 2024, proc.º C-68/23, Caso M-GbR (entre o mais aqui, v., com as necessárias adaptações - entre cessões posteriores à inicial versus, no nosso caso, a primeira cessão, a emissão-cessão -, como o TJ declara que qualquer cessão do Vale nesse circuito económico pode ser sujeita a IVA, desde que seja qualificada como prestação de serviços em benefício do sujeito passivo que efectua a entrega de bens/prestação de serviços ao consumidor final – cfr ponto 2) do decisório aí).
Por outro lado, v. também como quanto à questão da incidência - que é afinal a que no essencial a Requerente vem colocar em questão (haver ou não incidência sobre Vales, não resgatados) - dos próprios Considerandos da Directiva Vouchers se apreende aquilo que também vimos de afinal concluir. De que a dita questão, da incidência, se mantém desde logo regida pelo já antes constante da DIVA. Assim, no Considerando primeiro (Directiva Vouchers), quando se referem regras da DIVA que não são (não eram) suficientemente claras ou abrangentes, nunca se referem regras relativas à incidência, referindo-se outras matérias mas não essa.
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Conclui-se, assim, sempre, que a norma (art.º 7.º, n.º 15, al. b) do CIVA), contrariamente ao que vem defendido pela Requerente, não viola nem é contrária, seja em que medida for, ao Direito da UE. Muito pelo contrário, a norma dá, precisamente, cumprimento ao disposto pelo legislador Comunitário em sede de IVA. Tudo como percorrido supra.
Dispondo a norma que, a ocorrer tal não utilização (a não troca do vale por bens e serviços) o momento da exigibilidade é então o momento em que deixa definitivamente de vir a ser possível essa troca (e tudo se passa afinal como pelas regras gerais logo se concluiria) – i.e., o momento da caducidade – cumpre-se, além do que já decorria das normas aplicáveis e Princípio da neutralidade, também o visado pela Directiva Vouchers.
A DIVA também não vem violada.
Há, pois, que decidir pela não verificação do vício que vem imputado às autoliquidações.
(iii) Ainda, descendo mais concretamente ao caso – Qualificação
Sempre se veja, muito brevemente, a terminar - e embora a factualidade que se revelou relevante à decisão não vindo contraditada - a qualificação subjacente ao que deixámos percorrido.
Estamos perante uma operação sujeita e não isenta. Como se vê, do que antecede. Não se recaindo em qualquer isenção – v., entre o mais, art.º 9.º do CIVA.
É de qualificação de operações tributáveis aquilo de que aqui se trata.
Estando no caso a Requerente, emitente do Vale, ao emiti-lo e comercializá-lo, a exercer a sua actividade comercial, estamos em face de actividade económica para efeitos de IVA (v. supra).
Levada a cabo por um sujeito passivo de IVA, pois, nessa mesma qualidade (v. supra).
Temos, pois, uma Prestação de Serviços a título oneroso, cfr., entre o mais, Art.s 2.º, n.º 1, al. c) e 9.º, n.º 1 da DIVA (v. supra).
Não configura uma transmissão de bens, cfr, entre o mais, Art.º 14.º da DIVA. Pelo que recai na qualificação de Prestação de Serviços, cfr., entre o mais, Art.º 24.º, n.º 1, da DIVA. Tudo como também supra.
Para qualificar, por sua vez, como Vale o instrumento em questão (“Cartão-...”, no caso) tem que reunir, cumulativamente, duas condições. A saber, as referidas na Directiva IVA, Art.º 30.º-A, 1). Como no caso. A saber, o Cartão-... contém em si a obrigação por parte dos fornecedores incluídos na rede de lojas em questão de o aeitarem em pagamento ou parte do pagamento de bens e serviços, e a identidade desses fornecedores/lojas incluídas é indicada no próprio Vale ou em documentação relacionada.
Estamos, pois, perante um Vale para efeitos de IVA.
É este um Vale de Finalidade Única. Não, pois que não recai na previsão 2) do mesmo Art.º 30.º-A. Os concretos bens/serviços em que depois o portador utilizará o Vale não é conhecido aquando da emissão do mesmo.
Consequentemente – cfr., entre o mais, 3), Art 30.º-A da DIVA – estamos perante um VFM.
E não é por não ser resgatado ou utilizado integralmente o seu saldo que deixa de qualificar como tal. Vimos também supra.
Concluindo, estamos perante Operações de Serviços, produto Vale, no caso, em situações de Vales de Finalidade Múltipla não resgatados (total ou parcialmente).
Mais, a noção genérica de Prestação de Serviços para efeitos de IVA implica que os montantes pagos constituam, em qualquer caso, uma contrapartida efectiva de um serviço individualizável, fornecido no âmbito de uma relação jurídica em que são trocadas prestações recíprocas. Sujeito Passivo e operação tributável. Pois.
E - sempre sem prejuízo de tudo o que se disse já - nem o Princípio da Neutralidade compactuaria com diferente interpretação e aplicação das normas que se deixa feita. Senão sempre vejamos, muito sinteticamente:
Diferente interpretação acarretaria desde logo conferir um tratamento diferente a situações semelhantes. Atente-se: se um VFU não for utilizado ele não deixou, lá por isso, de ficar sujeito a IVA – Cfr, entre o mais, Art.º 30.º-B, 1 (supra). O IVA sobre a contraprestação foi liquidado.
Não só os emitentes de VFU ficariam a beneficiar de vantagens injustificadas, com potenciais distorções de concorrência, como em simultâneo os emitentes de VFM ficariam a beneficiar da ausência de tributação das operações que realizam. Que o Princípio da Neutralidade também proíbe. Sendo que, como é bom de ver, este mesmo Princípio está necessariamente presente na interpretação e aplicação das normas quando de incidência - subjectiva e objectiva - se cuide.
É pois - a conclusão a que se chegou – o que a aplicação correcta das normas em vigor, sem mais delongas, impõe e determina.
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Requer a Requerente, por fim, reenvio prejudicial ao TJUE. Convoca o Artigo 267.º do TFUE.
Entende, porém, o Tribunal, como ficou exposto, que estavam já disponíveis, pela Jurisprudência do TJUE, os elementos de interpretação do Direito Comunitário bastantes para a decisão nestes autos, revelando-se o sentido das normas de Direito da UE claro.
Assim, e em aplicação do determinado pelo TJUE no Acórdão de 06.10.82, Caso Cilfit, Proc. 283/81, inexiste obrigação de suscitar questão prejudicial de interpretação. A correcta aplicação do Direito Comunitário impõe-se, de forma suficientemente evidente, não persistindo dúvida razoável quanto à solução a dar à questão, por o sentido das normas em causa ser claro e evidente. Estamos perante acto claro, por tudo o percorrido, e não há fundamento para suscitar o reenvio. Sendo que para assim concluir o Tribunal não deixou de ter em consideração, em todo o caso, as características próprias do DUE e as dificuldades de interpretação que com frequência suscita. Não se afigurando, face ao que vem de percorrer-se acima, a questão concretamente em apreciação acarretar risco de divergências. Tudo conforme prescrito no Acórdão Cilfit (cfr. também os mais recentes Acórdãos do TJUE que reiteram a doutrina).
Contrariamente ao alegado pela Requerente a este respeito, também não resulta por aqui violado o Princípio da tutela jurisdicional efectiva. Decidindo-se, como se faz pela presente, dá-se precisamente cumprimento aos valores protegidos pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva não se violando quaisquer dispositivos legais a respeito, desde logo os art.ºs 9.º, n.º 1 e 95.º, n.º 1 da LGT. Por outro lado, muito embora a Requerente refira, neste contexto, a certo passo, os art.ºs 268.º, n.º 4 e 20.º da CRP, não vem, em qualquer caso, suscitar de modo processualmente adequado qualquer inconstitucionalidade. O que implicaria a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entendesse ser inconstitucional (Ac.s do TC n.ºs 450/06, 578/07, 131/08) e a indicação das razões que a levasse a considerar verificada a violação de normas ou princípios constitucionais (Ac.s n.ºs 645/06, 630/08). Como não sucede. Não há assim mais de que tomar conhecimento.
4. Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios
Face ao que antecede, conclui-se que não houve pagamento de quantias indevidas, não se reunindo, também, os pressupostos do art.º 43.º, n.º 1 da LGT de cuja verificação depende a dívida de juros indemnizatórios. Improcedem, assim, ambos estes pedidos.
5. Decisão
Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o PPA, e assim:
Absolver a Requerida de todos os pedidos, mantendo-se as autoliquidações de IVA melhor identificadas supra, e bem assim o acto de segundo grau que as confirmou, na Ordem Jurídica.
6. Valor do processo
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), fixa-se ao processo o valor de 263.049,04 euros.
7. Custas
Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em 4.896 euros, a cargo da Requerente.
Lisboa, 2 de Janeiro de 2025
O Árbitro Presidente,
Regina de Almeida Monteiro
O Árbitro Adjunto,
Sofia Ricardo Borges
(Relatora por vencimento)
O Árbitro Adjunto,
Francisco Nicolau Domingos
(com declaração de voto)
DECLARAÇÃO DE VOTO
I – REENVIO PREJUDICIAL
A Requerente formula um pedido de reenvio prejudicial, por isso, a primeira questão que se coloca é a seguinte: podem os tribunais arbitrais submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”)?
A competência para submeter uma questão prejudicial ao TJUE é dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, embora o conceito de órgão jurisdicional não se encontre vertido em qualquer Tratado da União.
O conceito de órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros depende da verificação de vários requisitos: criação por lei e nomeação dos seus membros pelo poder público; caráter permanente; respeito pelo princípio do contraditório; independência; natureza obrigatória da sua jurisdição e aplicação de regras de direito – acórdãos Vaassen-Göbbels e Broekmeulen[9].
E relativamente aos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”)?
A questão é, hoje, pacífica na jurisprudência do TJUE, o acórdão “Ascendi” concluiu que:
24.No processo principal, resulta das indicações fornecidas na decisão de reenvio que os tribunais arbitrais em matéria tributária têm origem legal. Os tribunais arbitrais constam, com efeito, da lista dos órgãos jurisdicionais nacionais, no artigo 209.º da Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, o artigo 1. o do Decreto-Lei n. o 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, dispõe que a arbitragem fiscal constitui um meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, e o artigo 2.º desse decreto-lei atribui competência geral aos tribunais arbitrais em matéria tributária, para apreciar a legalidade da liquidação de qualquer imposto.
25. Por outro lado, enquanto elemento do sistema de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, os tribunais arbitrais em matéria tributária satisfazem a exigência de permanência.
26. Com efeito, como salientou o advogado-geral no n. o 37 das suas conclusões, embora a composição das formações de julgamento do Tribunal Arbitral Tributário seja efémera e a sua atividade termine após decidirem, não é menos verdade que, no seu todo, o Tribunal Arbitral Tributário apresenta caráter permanente, enquanto elemento do referido sistema.
27. Quanto ao caráter vinculativo do órgão jurisdicional, há que recordar que este elemento não está presente no âmbito da arbitragem convencional, uma vez que não há nenhuma obrigação, nem de direito nem de facto, de as partes contratantes confiarem os seus diferendos à arbitragem e que as autoridades públicas do Estado-Membro em causa não participam na escolha da via da arbitragem nem são chamadas a intervir oficiosamente no decorrer do processo perante o árbitro (acórdão Denuit e Cordenier, C-125/04, EU:C:2005:69, n. o 13 e jurisprudência referida, e despacho Merck Canada, C-555/13, EU:C:2014:92, n. o 17).
28. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça já reconheceu a admissibilidade de questões prejudiciais que lhe tinham sido submetidas por um tribunal arbitral de origem legal, cujas decisões eram vinculativas para as partes e cuja competência não dependia do acordo destas (despacho Merck Canada, EU:C:2014:92, n. o 18 e jurisprudência referida).
29. Ora, como salientou o advogado-geral nos n. os 28 e 40 das suas conclusões, o Tribunal Arbitral Tributário, cujas decisões são vinculativas para as partes nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do Decreto-Lei n. o 10/2011, distingue-se de um órgão jurisdicional arbitral em sentido estrito. Com efeito, a sua competência resulta diretamente das disposições do Decreto-Lei n. o 10/2011, não estando por isso sujeita à expressão prévia da vontade das partes de submeterem o seu diferendo à arbitragem (v., por analogia, acórdão Danfoss, 109/88, EU:C:1989:383, n.º 7). Assim, quando o contribuinte recorrente submete o seu diferendo à arbitragem fiscal, a jurisdição do Tribunal Arbitral Tributário tem, nos termos do artigo 4. º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, caráter vinculativo para a autoridade tributária e aduaneira.
30. A natureza contraditória do processo nos tribunais arbitrais em matéria tributária é, por sua vez, garantida pelos artigos 16. ° e 28.° do Decreto-Lei n. o 10/2011. Por outro lado, nos termos do artigo 2.º, n. o 2, do mesmo, os tribunais arbitrais em matéria tributária «decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade».
31. No que respeita à independência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, resulta, por um lado, da decisão de reenvio que os árbitros que constituem o Tribunal Arbitral Tributário ao qual foi submetido o litígio no processo principal foram designados, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, de entre os árbitros que figuram na lista elaborada por essa instituição.
32. Por outro lado, o artigo 9. o do Decreto-Lei n. o 10/2011 prevê que os árbitros estão sujeitos aos princípios da imparcialidade e da independência. Além disso, o artigo 8.º, n.º 1, desse decreto-lei prevê, como caso de impedimento do exercício da função de árbitro, a existência de qualquer ligação familiar ou profissional entre o árbitro e uma das partes no litígio. Garante-se assim que o tribunal arbitral em causa tem a qualidade de terceiro em relação à autoridade que adotou a decisão objeto de recurso (v. acórdão RTL Belgium, C-517/09, EU:C:2010:821, n.º 38 e jurisprudência referida, e despacho Devillers, C-167/13, EU:C:2013:804, n. o 15). 33 Por fim, como resulta do artigo 1. º do Decreto-Lei n. o 10/2011, os tribunais arbitrais em matéria tributária pronunciam-se no âmbito de um processo que conduz a uma decisão de caráter jurisdicional.
O acórdão é inequívoco na qualificação dos aludidos tribunais como órgãos jurisdicionais de um Estado-Membro, na aceção do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”). Paralelamente, no preâmbulo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) o legislador escreveu que:
Nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é suscetível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Em suma, se os tribunais arbitrais são órgãos jurisdicionais à luz do artigo 267.º do TFUE podem submeter questões prejudiciais ao TJUE.
O reenvio prejudicial constitui, assim, um mecanismo processual de cooperação judiciária ao legitimar o diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o TJUE, por meio do qual se visa conseguir, em todo o espaço da União Europeia, a interpretação e a aplicação uniformes do direito europeu.
As questões prejudiciais podem ser de interpretação ou de validade, isto é, relativas à interpretação dos Tratados ou à validade e à interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Podem ainda ser facultativas ou obrigatórias.
Quando a questão prejudicial é suscitada perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial, previsto no direito interno, a submissão desta ao TJUE é obrigatória. Por outro lado, se da decisão do órgão jurisdicional do Estado-Membro couber recurso, à luz do direito interno, o reenvio é, em princípio, facultativo.
As decisões dos tribunais arbitrais, constituídos sob a égide do CAAD, são irrecorríveis quanto ao mérito, embora essa solução se encontre temperada por hipóteses excecionais de controlo pelos seguintes tribunais: i) Tribunal Constitucional e ii) Supremo Tribunal Administrativo, incluindo-se na competência deste último, quanto à mesma questão de direito, a oposição de acórdãos (dos Tribunais Centrais Administrativos e do Supremo Tribunal Administrativo) e de decisões arbitrais.
A jurisprudência do TJUE concretizou essa obrigatoriedade, tendo definido no caso CILFIT[10] que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação deixa de existir nas seguintes hipóteses: i) quando a questão não for “necessária”, nem “pertinente” para o julgamento do litígio principal; ii) quando se verificar uma “identidade material” da questão prejudicial com outra já decidida pelo TJUE; e iii) quando o órgão jurisdicional nacional verificar que a interpretação da norma objeto de dissídio é “clara”.
Na presente hipótese, a nosso ver, contrariamente à posição que obteve vencimento, a questão objeto do dissídio não é “clara”. Vejamos.
I.a A concreta questão objeto do dissídio
O legislador europeu não trata na Diretiva (UE) 2016/1065, do Conselho, de 27 de junho de 2016 (“Diretiva Vouchers”) das situações em que um vale de finalidade múltipla não é redimido pelo seu detentor durante o respetivo período de validade, sendo a contrapartida recebida (por esse vale) retida pela entidade que o emitiu.
Ressalta-se, em tal linha, que no Considerando 12 da referida Diretiva consta o seguinte:
A presente diretiva não visa as situações em que um vale de finalidade múltipla não é resgatado pelo consumidor final durante o seu período de validade e o vendedor mantém a contraprestação recebida por esse vale. (nosso sublinhado)
O artigo 7.º, n.º 15, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”) tem a seguinte redação:
Se se verificar a caducidade do direito de o respetivo titular obter a transmissão de bens ou a prestação de serviços a que o vale de finalidade múltipla diz respeito, sem que o sujeito passivo que procedeu à cessão lhe restitua a contraprestação paga, o imposto relativo à prestação de serviços de colocação à disposição, a título oneroso, do referido direito é devido e exigível no momento em que o mesmo caducar.
A Diretiva Vouchers não qualifica, em nenhum normativo, que os vales não redimidos devem ser considerados como entregas de bens ou serviços tributáveis, após a sua caducidade.
Sucede, no entanto que, na transposição da diretiva o legislador nacional veio estabelecer que a caducidade do vale de finalidade múltipla, sem que o transmitente do mesmo restitua ao respetivo adquirente a contraprestação paga, desencadeia a exigibilidade do imposto respeitante “[à] prestação de serviços de colocação à disposição, a título oneroso, do referido direito…” – artigo 7.º, n.º 15, alínea b), do CIVA.
Suscita-se, no presente processo, a questão da eventual contradição entre duas normas, ambas invocadas a propósito do regime tributário dos “vales de finalidade múltipla” não utilizados (e caducados):
i. a da Diretiva (UE) 2016/1065, do Conselho, de 27 de junho de 2016;
ii. a do artigo 7.º, n.º 15, alínea b), do CIVA (na redação dada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro).
Ora, se a segunda norma pretendeu ser a transposição da primeira, suscitam-se dúvidas quanto ao alcance do Considerando 12 da referida da Diretiva (UE) 2016/1065, do Conselho, de 27 de junho de 2016 , com consequências no plano da eventual necessidade de subordinação desta matéria a regras comuns, ou, pelo contrário, da suscetibilidade de, nesta matéria, existirem soluções não coordenadas nos vários Estados-Membros.
Concomitantemente, a jurisprudência do TJUE não parece fornecer uma solução consolidada relativamente ao enquadramento, em IVA, do não-resgate dos vales de finalidade múltipla, daí decorrendo que o reenvio prejudicial, nos termos do artigo 267.º do TFUE, se afigura ser a solução necessária, na medida em que se requer uma interpretação nova, com interesse geral para a aplicação uniforme do Direito da União.
Em resumo, perante as dúvidas que existem, decidiria pelo reenvio prejudicial dos autos para o TJUE, com a seguinte questão:
O previsto na Diretiva (UE) 2016/1065, do Conselho, de 27 de junho de 2016, atento, em particular, o seu considerando 12, deve ser interpretado no sentido de que, em caso de caducidade do direito aos bens ou serviços correspondentes a um vale de finalidade múltipla, sem restituição do que foi pago, se opõe a que o IVA relativo ao serviço de colocação à disposição, a título oneroso, do referido direito seja devido e exigível no momento em que o mesmo caducar, conforme previsto na alínea b), do n.º 15, do artigo 7.º do CIVA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 29 de junho – alínea aditada a este Código pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro?
Lisboa, 16 de julho de 2024
(Data em que como relator sorteado a nossa posição ficou vencida, mantendo-a com a presente decisão arbitral)
Francisco Nicolau Domingos
[2] (n.º 30208, de 04.01.2019, Área de Gestão Tributária-IVA)
[3]Estes últimos Diplomas legais aplicáveis ao nosso processo ex vi art.º 29.º/1 do RJAT (e assim sempre que para eles se remeter na presente Decisão).
[4] Todos Diplomas legais aplicáveis ex vi art.º 29.º/1 do RJAT - cfr. nota anterior – como sempre assim quando remetermos para normativos de outros Diplomas aqui aplicáveis.
[5] Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
[6] V. Fausto de Quadros, “Direito da União Europeia”, 3.ª Ed., Almedina
[7] Quaisquer sublinhados e/ou negritos na presente serão nossos, salvo se indicado em contrário.
[8] https://... /conhecer-cartoes/empresas/... /perguntas-frequentes-... /
[9] FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, 3.ª edição, Almedina, 2015, pp. 604-608.
[10] C- 233/81, de 06/10/1982.