Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 404/2024-T
Data da decisão: 2024-12-10  IRC  
Valor do pedido: € 224.968,22
Tema: IRC – caducidade – benefícios fiscais – artigo 28.º do EBF – empréstimos externos e rendas de locação de equipamentos importados – empresas que prestem serviços públicos.
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SUMÁRIO:

  1. O prazo de caducidade do direito à liquidação no caso de impostos sobre o rendimento cuja tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo conta-se a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou o facto tributário e não a partir do momento em que se verificou este último.
  2. O benefício fiscal previsto no artigo 28.º do EBF apenas prevê três requisitos de que depende a concessão do benefício fiscal às rendas de locação de equipamentos, sendo um deles objectivo (relacionado com a proveniência externa do equipamento locado) e os outros dois subjectivos (relacionados com o domicílio do credor e com a natureza do devedor).
  3. O benefício fiscal previsto no artigo 28.º do EBF não estabelece qualquer condição suspensiva ou resolutiva relacionada como a forma pela qual a empresa prestadora de serviços públicos utiliza no exercício da sua actividade o equipamento importado.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Sofia Quental e Paulo Ferreira Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º..., r/c, sala ..., ...-..., Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo em vista declaração de ilegalidade e anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e, nessa medida, do acto de demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (“IRC”) n.º 2022 ... e dos actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ... a 2022 ..., referentes ao ano de 2018, que sobre ela versaram, com o consequente reembolso do montante de € 224.968,22, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) em 22 de Março de 2024.

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo Carla Castelo Trindade, Sofia Quental e Paulo Jorge Nogueira da Costa, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 14 de Maio de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 4 de Junho de 2024.

 

            5. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, em 7 de Julho de 2024, tendo-se defendido por impugnação.

 

            6. Em virtude da renúncia às funções do árbitro Paulo Jorge Nogueira da Costa, foi proferido despacho pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em 11 de Julho de 2024, a determinar a substituição deste no processo pelo árbitro Paulo Ferreira Alves. As partes foram notificadas dessa designação em 19 de Julho de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar.

 

            7. Em 24 de Setembro de 2024, foi proferido despacho arbitral a agendar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT para o dia 18 de Outubro de 2024, pelas 10 horas. No referido dia, em virtude da ausência de uma testemunha da Requerente da qual esta não prescindiu, foi reagendada a reunião arbitral para o dia 19 de Novembro de 2024, pelas 14 horas. A reunião arbitral teve lugar na data e hora agendadas, com a prestação de declarações de parte de B..., com o depoimento das testemunhas da Requerente C... e D... e com o depoimento da testemunha da Requerida I... .

 

            8. Tendo sido devidamente notificadas para o efeito na reunião arbitral, a Requerida e a Requerente apresentaram alegações escritas, respectivamente, em 26 e em 28 de Novembro de 2024.

 

            9. Em 4 de Dezembro de 2024, foi prorrogado por dois meses o prazo de arbitragem nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, designando-se o dia 4 de Fevereiro de 2025 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.

 

II. SANEAMENTO

 

            10. O Tribunal Arbitral colectivo é competente e foi regularmente constituído, em conformidade com o disposto nos artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.º 3, alínea a) do RJAT. O pedido é tempestivo e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, por força do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            11. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima que tem como objecto social o transporte aéreo regular e não regular doméstico, territorial e internacional, de passageiros e carga, exercendo como actividade acessórias a compra, venda e manutenção de aeronaves e suas peças e acessórios, importação e exportação de componentes de aeronaves, gestão e operação de aeronaves de terceiros, assistência técnica, operacional e aeroportuária de aeronaves de passageiros, carga e correio e, bem assim, representação de outras companhias aéreas – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  2. Por via do Despacho n.º 352/2006 (2.ª série), de 19 de Dezembro de 2005, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 5, de 6 de Janeiro de 2006, foi concedida à Requerente licença para o exercício da actividade de transporte aéreo – cf. diário da república disponível em https://files.diariodarepublica.pt/2s/2006/01/005000000/0023100232.pdf;
  3. Em 3 de Junho de 2015, foi emitido à Requerente pela Autoridade Nacional da Aviação Civil (“ANAC”), o certificado de operador aéreo n.º P‑01/06/49 – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  4. Em 2018 a Requerente mantinha a titularidade de licença para o exercício da actividade de transporte aéreo – cf. diário da república disponível em https://files.diariodarepublica.pt/2s/2020/06/110000000/0011600117.pdf;
  5. Em 2018, a Requerente mantinha a titularidade de certificado de operador aéreo válido emitido pela ANAC;
  6. Em 1 de Dezembro de 2015, a Requerente celebrou com a sociedade de direito irlandês “E...” um contrato de locação designado “Aircraft Lease Agreement”, no qual figura como locatária para exploração comercial da aeronave da marca..., modelo..., ... (“Aeronave”) – cfr. doc. n.º 3 junto aos autos pela Requerente;
  7. Em 2018 a sociedade de direito irlandês “E...” tinha residência fiscal na Irlanda, em conformidade com o certificado de residência emitido pelas autoridades competentes naquela país – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  8. Em 2018 a sociedade de direito irlandês “E...” não tinha estabelecimento estável em Portugal;
  9. O contrato de locação foi celebrado por um prazo de 48 meses após a entrega da Aeronave e iniciou a sua vigência em 3 de Dezembro de 2015 – cfr. doc. n.º 3 junto aos autos pela Requerente;
  10. No âmbito do contrato de locação a Requerente obrigou-se ao pagamento de uma renda mensal, que compreendia uma componente fixa e outra variável, de acordo com o número de horas de voo e número de aterragens e descolagens – cfr. doc. n.º 3 junto aos autos pela Requerente;
  11. No âmbito do contrato de locação a Requerente obrigou-se a suportar por conta da locadora o montante do imposto por esta devido por conta das rendas auferidas – cfr. doc. n.º 3 junto aos autos pela Requerente;
  12. É prática comercial do sector da aviação que, nos contratos de locação operacional de aeronaves, são os locatários a assumir todos os encargos com a tributação que seria suportada pelo locador relativamente aos rendimentos auferidos por conta da locação, o que significa que, na prática, as rendas pagas não são objecto de retenção na fonte pelo locatário – cfr. depoimento de B...;
  13. As margens praticadas nos contratos de locação operacional de aeronaves conjugadas com a necessidade de suportar a tributação que incide sobre a esfera do locador, tornam inviáveis para os locatários o exercício desta actividade comercial, a não ser que estes últimos fiquem nos termos da lei isentos de tributação – cfr. depoimento de B...;
  14. A Requerente beneficiou em anos anteriores a 2018 de isenção de tributação em sede de IRC quanto aos rendimentos auferidos no âmbito de outros contratos de locação operacional de aeronaves – cfr. PA junto aos autos pela Requerida e depoimento de B...;
  15. Em 8 de Fevereiro de 2016, a Requerente apresentou junto da Divisão de Concessão da Direcção de Serviços do IRC, requerimento formulado ao abrigo do artigo 28.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) no qual peticionou a isenção em sede de IRC dos rendimentos pagos pela locação da Aeronave – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  16. Em 16 de Junho de 2016, a Requerente celebrou com a sociedade de direito russo “F...”, um contrato de sublocação da Aeronave, no qual figurou como sublocadora e esta última como sublocatária – cfr. doc. n.º 5 junto aos autos pela Requerente;
  17. O contrato de sublocação foi celebrado por um prazo de 18 meses após a entrega da aeronave e iniciou sua vigência em 24 de Junho de 2016 – cfr. doc. n.º 5 junto aos autos pela Requerente;
  18. Em 1 de Julho de 2016, foi emitido um certificado de abate ao registo aeronáutico nacional, através do qual a Aeronave foi removida do registo aeronáutico de Portugal, tendo sido canceladas as marcas de nacionalidade e matrícula – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  19. Apesar do abate ao registo aeronáutico nacional, a Aeronave continuou a ser operada pela Requerente – cfr. depoimento de B...;
  20. A sublocação da Aeronave à sociedade de direito russo “F...” e o consequente abate ao registo aeronáutico nacional foram essenciais para permitir à Requerente operar rotas com a Aeronave na Rússia, onde os direitos de tráfego estão limitados a sociedades com licença/certificado de operador aéreo sedeadas naquele país – cfr. depoimento de B...;
  21. Por ofício de 23 de Junho de 2017, a Requerente foi notificada de que por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais n.º 206/2017‑XXI, de 31 de Maio de 2017, foi “concedida isenção total em sede de IRC, relativamente às rendas de locação compostas por um valor variável e um valor fixo, com o valor de 407.707 euros (2015), 5.416.676 euros/ano (2016, 2017, 2018), 4.965.286 euros (2019), respeitantes ao contrato de locação, com período de vigência 03.12.2005 a 02.12.2019, de uma aeronave da marca ... modelo ... com o número de série ... e E...” – Irlanda, condicionada ao facto de sempre que se verifiquem alterações durante o período de vigência contratual, ser apresentado pela requerente novo requerimento a solicitar a isenção.” – cfr. doc. n.º 4 junto aos autos pela Requerente;
  22. Entre Fevereiro e Junho de 2018, a Aeronave foi alvo de manutenção em larga escala – cfr. doc. PA junto aos autos pela Requerida;
  23. Entre Junho de 2018 e Novembro de 2019, a Aeronave foi cedida em subaluguer à sociedade “H...”, sedeada em Malta e detida pelos mesmos sócios da Requerente – cfr. doc. PA junto aos autos pela Requerida;
  24. No ano de 2018 a Requerente efectuou o pagamento à sociedade de direito irlandês “E...” das seguintes facturas referentes a rendas pela locação da Aeronave:

 

 

 

– cfr. PA junto aos autos pela Requerida;

  1. No ano de 2018 a Requerente não efectuou retenções na fonte em sede de IRC quanto aos pagamentos das rendas de locação da Aeronave feitos à sociedade de direito irlandês “E...” – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  2. Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2022..., a Requerente foi alvo de um procedimento inspectivo interno de âmbito parcial, quanto a retenções na fonte de IRC referentes ao período de tributação de 2018 – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  3. A Requerente foi notificada do projecto de Relatório de Inspecção Tributária e não exerceu o direito de audição prévia – cfr. PA junto aos autos pela Requerida;
  4. A Requerente foi notificada do Relatório Final de Inspecção Tributária, do qual constam as seguintes correcções meramente aritméticas quanto às retenções na fonte de IRC referentes ao período de tributação de 2018:

Período

Montante (EUR)

Janeiro

13.785,80

Fevereiro

12.164,92

Março

11.933,69

Abril

12.261,70

Maio

12.719,77

Junho

20.472,12

Julho

26.145,86

Agosto

33.133,22

Setembro

3.912,61

Outubro

16.399,77

Novembro

11.000,62

Dezembro

19.288,21

Total

193.218,28

– cfr. PA junto aos autos pela Requerida;

  1. Em 11 de Outubro de 2022, a Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRC n.º 2022... e dos actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2022... a 2022..., referentes ao ano de 2018, no valor total a pagar de € 224.968,22, com data-limite de pagamento em 28 de Novembro de 2022 – cfr. doc. n.º 2 junto aos autos pela Requerente;
  2. Por não ter procedido ao pagamento do referido valor dentro do prazo de pagamento voluntário, a Requerente foi citada, em 28 de Dezembro de 2022, para o processo de execução fiscal n.º ...2022..., com vista à cobrança coerciva da quantia total de € 225.848,50 – cfr. doc. n.º 10 junto aos autos pela Requerente;
  3. Em 2 de Junho de 2023, a Requerente procedeu ao pagamento da quantia de € 233.926,53 – cfr. doc. n.º 11 junto aos autos pela Requerente; 
  4. Em 27 de Março de 2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os actos referidos na alínea anterior – cfr. doc. n.º 8 junto aos autos pela Requerente;
  5. A Requerente foi notificada do projecto de indeferimento da reclamação e não exerceu o direito de audição prévia;
  6. Em 19 de Novembro de 2023, foi proferido despacho de indeferimento quanto à reclamação graciosa apresentada pela Requerente – cfr. doc. n.º 1 junto aos autos pela Requerente;
  7. Em 21 de Março de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos – cfr. certificação do sistema de gestão processual do CAAD.

 

§2 – Factos não provados

 

            12. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que se tenham considerado não provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

13. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

14. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

15. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova documental junta aos autos pela Requerente, do processo administrativo e documentação dele constante junto aos autos pela Requerida, bem como das declarações de parte e depoimentos das testemunhas em sede de reunião arbitral, que depuseram com isenção e objectividade, demonstrando conhecimento directo dos factos relatados.

 

16. A prova produzida foi apreciada pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e com a ausência de contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

17. Regista-se que inexiste nos autos prova documental que certifique, directa e imediatamente, os factos elencados nas alíneas e) e h) dos factos assentes, contudo, estes são factos não controvertidos entre as partes, cuja veracidade e adesão à realidade para além de não ter sido impugnada, foi previamente objecto de controlo e validação pela AT aquando da concessão do benefício fiscal que depende da existência de certificado de operador aéreo válido pela parte locatária e da inexistência de estabelecimento estável em Portugal da parte locadora.

 

18. Regista-se, também, que no PPA e no RIT a Requerente e a Requerida, respectivamente, indicaram como data da celebração do contrato de sublocação da Aeronave com a sociedade de direito russo “F...” o mês de Junho de 2017, sendo que no RIT se afirma que o mesmo vigorou até ao mês de Fevereiro de 2018. Porém, do contrato celebrado junto aos autos como documento n.º 5 pela Requerente, consta como data da celebração o dia 16 de Junho de 2016, como data de início de vigência o dia 24 de Junho de 2016 e um período de vigência de 18 meses, sendo estas datas correspondentes ao hiato temporal indicado pelo CFO e Administrador da Requerente B... no depoimento que prestou na reunião arbitral, razão pela qual se deram estes factos como assentes nas alíneas p) e q) dos factos provados.

 

19. Regista-se, ainda, que no RIT é referido que a Aeronave foi alvo de manutenção em larga escala entre Fevereiro e Junho de 2018 e que entre Junho de 2018 e Novembro de 2019 foi objecto de novo contrato de sublocação, desta vez com a sociedade “H...”, sedeada em Malta e detida pelos mesmos sócios da Requerente. Apesar de inexistir nos autos elementos de prova que validem directamente esta factualidade, a verdade é que a mesma conta do RIT e não foi posta em causa pelas partes, mormente pela Requerente, nem se encontra a mesma em confronto com outros elementos probatórios carreados aos autos, razão pela qual se deram estes factos como assentes nas alíneas v) e w) dos factos provados.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1 – Ordem de conhecimento dos vícios

 

            20. No presente processo a Requerente invocou a ilegalidade dos actos tributários contestados com base na caducidade do direito à liquidação e na violação do artigo 28.º do EBF. Uma vez que os vícios em causa conduzem em igual medida à anulabilidade dos actos impugnados e tendo em consideração o disposto no artigo 124.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CPPT aplicável ex vi artigo 19.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, será respeitada a ordem fixada pela Requerente.

 

§2 – Caducidade do direito à liquidação

 

            21. Relativamente a este vício cumpre apreciar se a emissão dos actos de liquidação controvertidos no presente processo respeitou, ou não, o prazo de caducidade do direito à liquidação previsto para o efeito no artigo 45.º da LGT aplicável ex vi artigo 101.º do Código do IRC.

 

            22. A Requerente fundamentou a sua posição, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

  • O Direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, de todo o modo, a AT pretende, na quase totalidade das correcções efectuadas, liquidar adicionalmente imposto depois de decorrido o respectivo prazo legal de caducidade;
  • Embora o IRC seja considerado como imposto periódico, a retenção na fonte de IRC a título definitivo, que ocorre no caso de pagamentos efectuados a entidade residente no estrangeiro, é qualificada como sendo imposto de obrigação única;
  • Sendo assim, o prazo de caducidade do direito à liquidação conta-se a partir da data do pagamento à entidade residente no estrangeiro, ou seja, do facto tributário, em conformidade com o artigos 4.º, n.º 3, alínea c), parágrafo 2, 94.º, n.ºs 1, alínea b) e 3), alínea b) e n.º 10, alínea b) do artigo 8.º do Código do IRC;
  • À data da notificação, em 11 de Outubro de 2022, da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRC e de Juros Compensatórios, já havia caducado o direito do Estado à liquidação de parte das retenções na fonte, relativamente aos pagamentos efectuados à sociedade de direito irlandês “E...” e, bem assim, já havia caducado o direito de liquidar os respectivos juros compensatórios sobre esses montantes de imposto;
  • Tendo a AT emitido o acto de liquidação que constitui o objecto do presente processo sem promover a sua válida notificação dentro do limite temporal legalmente previsto, a ordem jurídica, norteada pelos princípios da certeza e segurança jurídicas, sanciona-o com ilegalidade, pelo que deverá a liquidação de retenções na fonte de IRC ser anulada parcialmente.

 

            23. Pelo contrário, defendeu a Requerida a improcedência deste vício, em síntese, da seguinte forma:

  • No n.º 4 do artigo 45.º da LGT está bem patente que, na tributação em sede de IRC efectuada por retenção na fonte a título definitivo como sucede no caso concreto, o prazo de caducidade conta-se a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou o facto tributário;
  • Estando em causa retenções na fonte a título definitivo por factos tributários ocorridos entre Janeiro e Dezembro de 2018, conclui-se que o início da contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação ocorreu em 1 de Janeiro de 2019 e que o termo final do prazo de caducidade ocorreu em 31 de Dezembro de 2022;
  • A Requerente tomou conhecimento da liquidação controvertida em 11 de Outubro de 2022, ou seja, antes do termo final do prazo de caducidade.

 

            24. Cabendo decidir, refere-se enquanto ponto de partida que inexiste dissenso entre as partes quanto à circunstância de a AT dispor do prazo de quatro anos para validamente notificar à Requerente, sob pena de caducidade, as liquidações de retenções na fonte e juros compensatórios, em conformidade com o disposto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT. Inexiste, igualmente, divergência, quanto à inexistência no presente caso de factos que impliquem a suspensão daquele prazo nos termos previstos no artigo 46.º, n.º 1 da LGT.

 

            25. O dissídio entre as partes cinge-se, portanto, na determinação do termo inicial da contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação.

 

            26. Determina-se a este respeito no artigo 45.º, n.º 4 da LGT que “O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.”.

 

            27. No presente caso, as rendas pagas à locatária no âmbito do contrato de locação da Aeronave consistem em “rendimentos derivados do uso e da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico” pagos a entidade não residente sem estabelecimento estável em Portugal, sujeitos a retenção na fonte a título definitivo nos termos conjugados do artigo 4.º, n.ºs 2 e 3, alínea c) e do artigo 94.º, n.ºs 1, alínea b), 2 e 3, alínea b), do Código do IRC.

 

            28. Portanto, ao estar em causa um imposto sobre o rendimento em que a tributação opera por via de retenção na fonte a título definitivo, não existem dúvidas que por força do disposto no artigo 45.º, n.º 4 da LGT a contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação tem início no dia 1 da Janeiro do ano civil seguinte àquele em que se verificou o facto tributário.

 

            29. Ora, o facto gerador do imposto considera-se verificado, nos termos do artigo 8.º, n.º 10, alínea a) do Código do IRC, na data em que ocorra a obrigação de efectuar a retenção, ou seja, na data da colocação à disposição dos rendimentos objecto de retenção, conforme previsto no artigo 94.º, n.º 6 do Código do IRC.

 

            30. Da conjugação das normas acima referidas e da matéria de facto provada nos presentes autos resulta a verificação de todos os factos tributários geradores de imposto no ano de 2018, porquanto todas as rendas foram pagas pela Requerente neste período. Por conseguinte, o prazo de caducidade do direito à liquidação tem o seu termo inicial no dia 1 da Janeiro de 2019, que corresponde ao ano civil seguinte àquele em que se verificaram os factos tributários.

 

            31. Aqui chegados, conclui-se que em 11 de Outubro de 2022 ainda não tinha decorrido o prazo de quatro anos, contado a partir de 1 da Janeiro de 2019, de que dispunha a AT para notificar a Requerente da liquidação de retenções na fonte de IRC e de juros compensatórios objecto do presente processo, sendo assim improcedente o vício de caducidade do direito à liquidação invocado pela Requerente.

 

§3 – Violação do artigo 28.º do EBF

 

            32. Quanto a este vício importa analisar se as rendas de locação da Aeronave pagas pela Requerente estavam ou não isentas de tributação em sede de IRC através do mecanismo da retenção na fonte, por aplicação do benefício fiscal previsto no artigo 28.º do EBF.

 

            33. A Requerente sustentou a procedência do pedido de pronúncia arbitral, em suma, com base nos seguintes argumentos:

  • Os actos de liquidação impugnados padecem de ilegalidade, por incorrerem em erro sobre os pressupostos do direito aplicável, mormente em errónea interpretação do disposto no artigo 28.º do EBF;
  • A concessão deste benefício fiscal depende, unicamente, do preenchimento de três requisitos, dois subjectivos e um objectivo;
  • Da letra da norma em escrutínio não decorre, como defende a AT, que a concessão da isenção dependa da condição de a aeronave objecto da locação operar em serviços aéreos com ligações de origem ou destino em Portugal, e sua exploração comercial ser efectuada ao abrigo da licença de operação e do certificado de operador aéreo emitidos pela ANAC;
  • Tal interpretação não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, pelo que viola as regras da interpretação jurídica prevista no artigo 9.º do Código Civil (“CC”);
  • Tal entendimento é aliás, contrário à própria realidade e boas práticas do próprio sector aéreo;
  • Sendo que a jurisprudência existente sobre a aplicação deste preceito – nas suas redacções e numerações anteriores – refere-se, unicamente, aos enunciados três requisitos;
  • Importa esclarecer que a isenção é atribuída aos “organismos que prestem serviços públicos”, portanto, à empresa em si, e não a um determinado trabalho ou serviço específico, portanto, o critério a ter em conta para a correcta aplicação da isenção decorrente do artigo 28.º do EBF deve ter por referência a actividade da própria empresa enquanto prestadora de serviço público;
  • A sublocação e a cessão do uso e exploração de aeronaves constituem parte integrante da actividade a que a Requerente se dedica, não sendo cindível ou destacável do serviço público por esta prestado;
  • A sublocação e a cedência de exploração de aeronaves têm como fim último assegurar o transporte aéreo de passageiros, não se verificando por isso a caducidade do benefício fiscal;
  • Além disso, uma mesma aeronave pode ser, em dado momento, objecto de contrato de sublocação, e posteriormente ser utilizada pela própria Requerente para o transporte de passageiros, razão pela qual a teoria proposta pela AT, de que a isenção deve ser apreciada “renda a renda”, peca por inexequibilidade e total impraticabilidade, levando a situações em que, em um mês, a isenção é de ser aplicada e, no mês seguinte, não, forçando o interessado a requerer a isenção mensalmente, o que não se compreenderia;
  • O legislador não definiu quaisquer requisitos quanto ao fim a que se destina o equipamento locado, nem impôs, em nenhum momento, que o mesmo devesse ser explorado, unicamente, ao abrigo da licença de exploração e do certificado de operador aéreo emitidos pela ANAC, nem tal se pode considerar implícito em qualquer expressão utilizada pelo legislador na redacção do artigo 28.º do EBF;
  • É indubitável que a Requerente, enquanto companhia aérea privada que se dedica ao transporte aéreo, regular e não regular, doméstico territorial e internacional, constitui uma empresa que presta um serviço público;
  • Este facto nunca foi contestado pela AT, não consubstanciando, por isso, matéria controvertida;
  • Tanto assim é que essa condição subjectiva lhe foi reconhecida pela AT em pedidos de isenção anteriores, conforme decorre, também, do Requerimento que está na origem do presente processo;
  • A AT considera que o que deu “causa” à alteração dos pressupostos foi o facto de Aeronave ter sido “desregistada” em Portugal, ignorando, contudo, que tal “desregisto” foi levada a cabo tendo em vista o necessário registo, da mesma Aeronave, na Rússia, condição para que esta pudesse aceder ao espaço aéreo nesse país, mantendo-se, sempre activa, a licença de actividade, bem como a exploração da aeronave continuou a ser feita pela própria Requerente;
  • O “desregisto” terá sido a pedra de toque para a alegada ausência de verificação dos pressupostos e, portanto, para a alegada alteração das circunstâncias iniciais, ignorando-se, contudo, que a Aeronave tinha que ser registada na Rússia e por isso “desregistada” em Portugal, continuando a ser gerida pela Requerente, mantendo esta todas as licenças de empresa prestadora de serviço público e sob supervisão da ANAC;
  • A AT refere que a aeronave, quando sublocada, começou a operar sob supervisão de outra companhia, o que não é, efectivamente, verdade, mantendo-se sob supervisão e gestão da Requerente;
  • Pelo que deve improceder a tese da AT, uma vez que não se verificou qualquer alteração das circunstâncias durante o período de vigência contratual, tendo-se mantido, inalterada, a factualidade tida em conta aquando da apresentação do requerimento de isenção e, bem assim, no momento da sua atribuição;
  • Já no que tange aos requisitos objectivos, resulta provado e reconhecido pela AT que os rendimentos cuja isenção se peticiona respeitam a rendas pagas pela locação operacional de Aeronave em crise a uma entidade estabelecida em território estrangeiro;
  • A Requerente requer, a final, a declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e dos actos de liquidação de retenções na fonte de IRC e de juros compensatórios impugnados nos presentes autos, com a consequente devolução do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

            34. Pelo contrário, a Requerida defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, em suma, com base nos seguintes argumentos:

  • No que concerne à aplicação do disposto no artigo 28.º do EBF e relativamente a rendas de locação, está a sua aplicação dependente da verificação dos requisitos fundamentais que se evidenciam:

1) A proveniência externa dos bens locados, relevado através da expressão “rendas de locação de equipamentos importados”;

2) A entidade locatária desenvolver uma actividade de prestação de serviço público e o exercício da mesma ser feito com o equipamento locado;

3) A entidade locadora ser sediada em país estrangeiro e não disponha de estabelecimento estável em Portugal, ao qual os rendimentos em causa possam ser imputados;

  • Determina o artigo 9.º do EBF que os titulares do direito aos benefícios fiscais são obrigados a declarar, no prazo de 30 dias, que cessou a situação de facto ou de direito em que se baseava o benefício, salvo quando essa cessação for de conhecimento oficioso;
  • No presente processo, estão em causa rendas de locação de uma aeronave, pagas a uma entidade não residente e sem estabelecimento em território português (locador), rendimentos que se enquadram na subalínea 2), da alínea c), do n.º 3, do artigo 4.º do CIRC, tendo inicialmente a isenção do IRC sobre as rendas pagas ao locador, ao abrigo do artigo 28.º do EBF, relativamente à Aeronave, sido concedida em razão das situações factuais à data do pedido e referenciadas pela Requerente, bem como dos elementos que juntou na sequência de elementos adicionais solicitados para efeitos de análise e tramitação procedimental;
  • Tal facto é bem patente no documento 4 junto pela Requerente que determinou a concessão do benefício fiscal, onde está expresso que esta concessão ficou “(…) condicionada ao facto de sempre que se verifiquem alterações durante o período de vigência contratual, ser apresentado pela Requerente novo requerimento a solicitar a isenção”;
  • Ou seja, a isenção de IRC foi concedida com base nos pressupostos contratuais à data e na prova documental carreada pela Requerente;
  • Todavia, e em cumprimento do disposto no artigo 9.º e 14.º do EBF, aquele benefício estava sempre condicionado caso se verificassem alterações durante o período de vigência contratual (como in casu a sublocação da aeronave), e nesse desiderato deveria ter sido apresentado pela Requerente novo requerimento a solicitar nova isenção com base nos novos pressupostos contratuais;
  • Tal facto decorre da lei e do documento de concessão do benefício fiscal, tendo sido corroborado pelo Revisor Oficial de Contas em sede de inquirição de testemunhas, o qual aquilatou que em sede de benefícios fiscais a alteração dos seus pressupostos implica sempre a submissão de novo pedido;
  • Recorta-se assim que, dos elementos juntos ao processo aquando do pedido de isenção evidenciavam que a Aeronave fazia parte dos equipamentos da Requerente, que esta assumiu a posição de locatária para exploração comercial da referida Aeronave e que a mesma constava do registo aeronáutico nacional, e foi com base nesses pressupostos que a Requerida considerou que estavam reunidos os pressupostos para a concessão da isenção do IRC, mas sempre condicionada ao facto de em caso se verificarem alterações durante o período de vigência contratual ser apresentado pela Requerente novo requerimento a solicitar isenção;
  • A Requerente apresentou um certificado de abate ao registo aéreo nacional com data de 1 de Julho de 2016, o que indiciava que a aeronave não seria detida pela Requerente desde aquela data;
  • Logo, o despacho de isenção total de IRC em relação aos pagamentos efectuados no âmbito da locação deixou de vigorar a partir do momento em que a Aeronave foi objecto de abate no registo aeronáutico nacional e passou a uma situação de sublocação para fora do território português, circunstância que é totalmente contrária aos factos declarados e subjacentes aos pressupostos que conduziram ao despacho de isenção;
  • E, nesse desiderato, deixaram de se verificar os requisitos objectivos do benefício fiscal concedido;
  • Acresce ainda, que a exploração comercial da Aeronave deixou de ser efectuada ao abrigo de licença de exploração e do certificado de operador aéreo da Requerente;
  • Donde, a não utilização efectiva da Aeronave por parte da Requerente na prestação de serviço público de passageiros, implica automaticamente a tributação das rendas pagas pela locação, por incumprimento dos pressupostos que presidiram à atribuição da isenção fiscal;
  • Constituindo o pressuposto de aplicação do disposto no artigo 28.º do EBF que haja uma entrada física em território nacional (importação) de um equipamento (no caso, uma aeronave) para ser entregue (locado) a um operador que seja ele mesmo uma empresa de navegação aérea que se dedique ao transporte aéreo internacional a partir do território nacional (condição prévia para que se lhe reconheça a qualidade de prestadora de serviço público), sendo ainda exigível, na acepção e ratio dessa disposição, que esse equipamento esteja disponível em território nacional para efeitos da sua utilização por tal empresa na actividade que reveste a natureza de serviço público;
  • A isenção de IRC que foi concedida à Requerente ao abrigo do artigo 28.º do EBF pelo período de 03.12.2015 a 02.12.2019, terá de ser interpretada como estando subordinada à circunstância da aeronave objecto da locação operar em serviços aéreos com ligações de origem ou destino em Portugal, e a sua exploração comercial ser efectuada ao abrigo de licença de exploração e do certificado de operador aéreo emitidos em território nacional pela ANAC;
  • Note-se que, o dissídio existente nos presentes autos prende-se com o facto de que no entendimento da Requerente o facto de possuir uma licença de exploração confere-lhe sempre o direito à concessão do benefício, pois independentemente da sublocação da Aeronave, a mesma tendo em conta a licença de exploração continua sempre a desempenhar serviço público;
  • Ao invés, entende a Requerida que a partir do momento em que foi contratada a sublocação e houve cedência do uso e fruição da aeronave a uma entidade localizada fora do território nacional (i.e entre Julho de 2016 e Fevereiro de 2018) deixaram de se verificar os requisitos objectivos do benefício fiscal concedido e houve uma alteração superveniente dos pressupostos para a respectiva atribuição, facto que deveria ter sido comunicado pela Requerente à Requerida, e que determina a caducidade do benefício fiscal;
  • A Requerida conclui, a final, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral e pela sua absolvição de todos os pedidos.

 

            35. O litígio entre as partes a este respeito situa-se, por um lado, na interpretação do artigo 28.º do EBF, no que em concreto respeita aos requisitos de que depende a aplicação do benefício fiscal ali previsto e, por outro lado, nas consequências da sublocação da Aeronave à sociedade de direito russo “F...” quanto à manutenção do benefício fiscal.

 

            36. À data dos factos, o benefício fiscal aqui em causa encontrava-se regulado no artigo 28.º do EBF, nos seguintes termos:

“Artigo 28.º

Empréstimos externos e rendas de locação de equipamentos importados

O Ministro das Finanças pode, a requerimento e com base em parecer fundamentado da Direcção-Geral dos Impostos, conceder isenção total ou parcial de IRS ou de IRC, relativamente a juros de capitais provenientes do estrangeiro, representativos de empréstimos e rendas de locação de equipamentos importados, de que sejam devedores o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais e as suas federações ou uniões, ou qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os institutos públicos, e as empresas que prestem serviços públicos, desde que os credores tenham o domicílio no estrangeiro, e não disponham em território português de estabelecimento estável ao qual o empréstimo seja imputado.”.

 

            37. Decorre da mencionada norma a previsão de três requisitos de que depende a concessão do benefício fiscal às rendas de locação da Aeronave pagas pela Requerente, sendo um deles objectivo (relacionado com a proveniência do equipamento locado) e os outros dois subjectivos (relacionados com o domicílio da credora e com a natureza da devedora).

 

            38. Quanto ao requisito objectivo, exige-se no artigo 28.º do EBF a proveniência externa dos bens locados, ou seja, que os equipamentos por conta dos quais é feito o pagamento das rendas sejam oriundos do estrangeiro (importados).

 

            39. Ora, se o benefício fiscal foi inicialmente concedido à Requerente é porque a proveniência externa da Aeronave foi devidamente validada, o que se encontra em conformidade com a prova produzida nos presentes autos, mormente com o contrato de locação designado “Aircraft Lease Agreement”, celebrado entre a Requerente e a sociedade de direito irlandês “E...”.

 

            40. Na verdade, não se compreende a razão pela qual a AT defende que este requisito deixou de estar verificado em resultado da sublocação da Aeronave à sociedade direito russo “F...”, uma vez que a concreta utilização dada à Aeronave pela Requerente em nada interfere ou influencia na aferição da proveniência do equipamento, que se situa a montante daquela afectação e não é por ela alterada.

 

41. Com efeito, independentemente do modo segundo o qual é utilizada a Aeronave e do impacto que essa utilização possa ter no (in)cumprimento dos demais requisitos, certo é que a mesma não deixou de ser “importada” durante o ano de 2018, já que o gozo temporário da Aeronave continuou a ser proporcionado pela sociedade de direito irlandês “E...”, que permanecia proprietária do equipamento.

 

            42. Por conseguinte, resulta verificado o cumprimento deste requisito objectivo.

 

43. No que respeita ao requisito subjectivo relacionado com o domicílio da credora, exige-se no artigo 28.º do EBF que a locadora do equipamento importado esteja domiciliada no estrangeiro e não tenha em território português estabelecimento estável a que possam ser imputados os rendimentos das rendas pagas pela locatária.

 

            44. Ficou provado nos autos que, no ano de 2018, a sociedade de direito irlandês “E...” era residente fiscal na Irlanda e não tinha em Portugal estabelecimento estável ao qual fossem imputáveis os rendimentos de fonte portuguesa auferidos por conta da locação da Aeronave.

 

            45. Neste sentido, também resulta verificado o cumprimento deste requisito, cujo preenchimento não era, de resto, controvertido entre partes.

 

            46. Por fim, relativamente ao requisito subjectivo relacionado com a natureza da locatária, exige-se no artigo 28.º do EBF que a entidade devedora dos rendimentos seja o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais e as suas federações ou uniões, ou qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os institutos públicos, ou que seja uma empresa que preste serviços públicos.

 

            47. A Requerente, enquanto entidade de direito privado que é, apenas pode preencher este requisito na medida em que seja considerada uma empresa prestadora de serviços públicos, já que não se enquadra em nenhum dos outros grupos de entidades que podem requerer este benefício fiscal.

 

            48. Ora, é no cumprimento ou incumprimento deste requisito subjectivo que reside o âmago do litígio em causa no presente processo.

 

49. Por um lado, invoca a AT que na acepção e ratio da norma contida no artigo 28.º do EBF, o conceito de empresa prestadora de serviços públicos terá de ser interpretado no sentido de apenas abranger as entidades que desenvolvam a actividade de prestação de serviços públicos através do equipamento locado relativamente ao qual a isenção é requerida.

 

            50. Para a AT, este requisito só estará cumprido se a Aeronave importada estiver disponível em território nacional para efeitos da sua utilização pela Requerente na actividade de transporte aéreo que reveste a natureza de serviço público. Mais ainda, considera a AT que o cumprimento deste requisito está subordinado à circunstância da Aeronave operar em serviços aéreos com ligações de origem ou destino em Portugal e de a sua exploração comercial ser efectuada ao abrigo de licença de exploração e do certificado de operador aéreo emitidos em território nacional pela ANAC. Pressupostos estes que, no entendimento da AT, têm de ser aferidos em cada um dos momentos em que são realizados os pagamentos das rendas pela Requerente.

 

            51. Foi com base nestas premissas, conjugadas com o abate da Aeronave no registo aeronáutico nacional, que a AT considerou ter deixado de se verificar a condição de que dependia a manutenção do benefício fiscal previsto no artigo 28.º do EBF.

 

            52. Por outro lado, defende a Requerente em sentido oposto que da referida norma não resulta, nem sequer de forma implícita, que a prestação de um serviço público depende do preenchimento do conjunto de condições adicionais invocadas pela AT quanto ao destino a dar à Aeronave, quanto aos termos em que esta deve ser utilizada e quanto a cada um dos momentos em que deve ser aferido o cumprimento destes requisitos condicionais. Para a Requerente, da norma jurídica em causa resulta apenas a imposição de a empresa locatária ser prestadora de serviços públicos, o que se verificava no momento da concessão do benefício fiscal e continuou a verificar-se no ano de 2018.

 

            53. Cumpre então aferir a admissibilidade do resultado interpretativo sufragado pela AT, que condiciona a concessão do benefício fiscal previsto no artigo 28.º do EBF ao conjunto de condições anteriormente referidas, que não resultam expressamente do teor literal da norma e que por essa razão carecem de ser validadas com base no elemento lógico da interpretação, mormente no elemento teleológico que expressa a razão extrafiscal da existência deste benefício fiscal.

 

            54. Para tal, revela-se previamente necessário classificar o benefício fiscal aqui em causa, o que facilitará a respectiva análise e compreensão. Para o efeito, transcrevem‑se aqui as seguintes considerações feitas Tribunal Constitucional no acórdão n.º 175/2018, de 5 de Abril de 2018, proferido no âmbito dos processos n.º 175/2017 e 246/2017:

 

“(…) os benefícios fiscais podem ser puros ou condicionados. Benefícios puros (ou absolutos) são aqueles cujo efeito não se encontra dependente da verificação de qualquer pressuposto acessório; inversamente, os benefícios condicionados veem a sua eficácia dependente da verificação de certos «pressupostos futuros e incertos, acessórios, secundários» (cf. Nuno Sá Gomes, Teoria Geral, cit., p. 147), que integram a sua conditio juris, e cuja função é a de subordinar o direito ao benefício a contrapartidas de interesse público na forma de deveres ou ónus impostos aos respetivos beneficiários (neste sentido, a propósito das isenções condicionais, Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, V.I, Lisboa, Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, 1974, p. 291).

No que diz respeito aos benefícios condicionados, a condição aposta pode, por seu turno, vez, revestir uma de duas formas: suspensiva ou resolutiva.

Diz-se que a condição aposta é suspensiva nas situações em que o direito ao benefício fica dependente do preenchimento dos pressupostos da condição, só ocorrendo após a respetiva verificação; inversamente, diz-se que a condição é resolutiva quando o benefício é concedido, mas a sua eficácia fica dependente da verificação dos pressupostos, positivos ou negativos, que integram a respetiva condição: neste caso, os efeitos do facto tributário suspendem-se por força da verificação dos pressupostos do benefício, que caducará, contudo, pela verificação dos pressupostos que integram a condição a que se acha subordinado, renascendo então a obrigação tributária (Nuno Sá Gomes, Teoria Geral, cit., pp. 147-148 ss).

Ainda do ponto de vista classificatório, uma última distinção pode contribuir ainda para uma melhor compreensão da solução impugnada.

Trata-se daquela que contrapõe benefícios fiscais estáticos a benefícios fiscais dinâmicos com base no seguinte critério: enquanto os primeiros se dirigem, «em termos estáticos, a situações que, ou porque já se verificaram (), ou porque, ainda que não se tenham verificado ou verificado totalmente, não visam, ao menos diretamente, incentivar ou estimular mas tão-só beneficiar, por superiores razões de natureza política geral de defesa, económica, religiosa, social, cultural, etc.» , os segundos «visam incentivar ou estimular determinadas atividades, estabelecendo, para o efeito, uma relação entre as vantagens atribuídas e as atividades estimuladas em termos de causa-efeito». Assim, enquanto «naqueles a causa do benefício é a situação ou a atividade em si mesma, nestes a causa é a adoção (futura) do comportamento beneficiado ou o exercício (futuro) da atividade fomentada» (cf. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 391)”.

 

            55. Do confronto entre o teor do artigo 28.º do EBF na redacção vigente à data dos factos e as possíveis classificações citadas, conclui-se que apesar de depender de prévio reconhecimento (artigo 5.º, n.º 1 do EBF), o benefício fiscal para rendas de locação de equipamentos importados aqui em análise classifica-se como puro e estático.

 

56. É puro, porque não resulta do enunciado normativo a subordinação da atribuição do benefício fiscal à afectação do Aeronave importada a um concreto e determinado fim e, como tal, a uma condição suspensiva ou resolutiva cujo pressuposto se projecte para além do facto tributário. Dito de outro modo, não resulta da norma em análise a sujeição pelo legislador da atribuição do benefício fiscal à verificação de um qualquer pressuposto acessório, muito menos futuro e incerto, como seja o de a Aeronave permanecer em território nacional e apenas operar rotas cuja origem ou destino seja Portugal.

 

57. É estático, porque do enunciado normativo não é possível extrair um intuito de fomentar ou desincentivar um determinado comportamento futuro dos destinatários do benefício fiscal numa lógica de causa-efeito, mas antes um simples propósito de favorecer uma actividade em si considerada por superiores razões de natureza económica.

 

58. Esta mesma conclusão vai ao encontro do objectivo extrafiscal identificado no Estudo dos Benefícios Fiscais em Portugal, datado de Maio de 2019, elaborado pelo Grupo de Trabalho para o Estudo dos Benefícios Fiscais, onde se refere que este benefício visa “[f]acilitar a obtenção de financiamento externo e a locação de equipamentos importados, cujos devedores sejam organismos públicos ou empresas que prestem serviços públicos” e onde se esclarece que o mesmo “é concedido ao não residente, mas quem deve beneficiar de facto são os devedores residentes. A lógica subjacente parece ser a de que sem [o] B[enefício] F[iscal] os custos do imposto seriam refletidos nos custos do empréstimo”.

 

59. Este objectivo extrafiscal é, também ele, consentâneo com o costume ou praxis do sector da aviação, tal qual identificado pelo CFO e Administrador da Requerente B..., que no seu depoimento explicou que sem o benefício fiscal em causa não seria possível a sociedades como a Requerente assegurar a locação de aeronaves com proveniência no estrangeiro, já que não teriam capacidade para suportar os custos da locação. Isto porque as entidades locadoras estabelecem como condição inultrapassável para viabilizar a locação que o pagamento das rendas seja líquido de impostos, o que significa que é sobre os locatários que acaba por incidir o encargo do imposto, que sem o benefício fiscal aqui em causa não poderia ser  acomodado no custo nos serviços prestados por falta da margem de lucro necessária para o efeito.

 

60. Fixado que está o alcance do benefício fiscal aqui em causa tal qual evidenciado pelo teor gramatical do artigo 28.º do EBF e pelo espírito ou teleologia da norma subjacente à sua consagração, não resta senão concluir pela inexistência das condições extraídas pela AT por via interpretativa acima mencionadas, isto é, pela inexistência (i) da obrigatoriedade de permanência da Aeronave locada pela Requerente em Portugal para ser utilizada em serviços aéreos com ligações de origem ou destino em Portugal, (ii) de a exploração da Aeronave ser feita ao abrigo da licença de exploração e do certificado de operador aéreo emitidos pela ANAC e (iii) de a verificação das condições anteriores ter de ocorrer em cada um dos momentos em que ocorre o pagamento das rendas.

 

            61. Compreenda-se que levado ao extremo o raciocínio da AT, verificar-se-ia a caducidade do benefício fiscal pela mera circunstância de a Aeronave operar uma ligação aérea com origem e destino no estrangeiro enquanto rota intermédia de uma ligação cuja origem ou fim fosse Portugal (em termos correntes: a realização de uma ou sucessivas “escalas”). Isto sem contar com a manifesta inexequibilidade e inviabilidade prática deste benefício fiscal resultante da aferição dos mencionados pressupostos numa lógica “renda a renda”. Basta pensar na eventualidade de ser celebrado um contrato de locação de muito curta duração em que as rendas são pagas numa base diária ou semanal, onde não faria qualquer sentido a hipótese de terem de ser dirigidos à AT requerimentos de concessão do benefício fiscal entre cada um daqueles pagamentos, que muito dificilmente obteriam resposta em tempo útil dadas as condicionantes do actual estado de “administração e procedimento de massas”.

 

62. Acresce ainda referir que o resultado interpretativo defendido pela AT não encontra sustento na circunstância de os benefícios fiscais serem normais excepcionais que carecem de uma especial legitimação por implicarem restrições aos princípios da igualdade e capacidade contributiva. Para melhor compreensão, transcreve-se o seguinte excerto do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 22 de Fevereiro de 2017, no âmbito do processo n.º 01245/16:

 

“(…) os benefícios fiscais, entre os quais a isenção de tributação, são, por natureza, de carácter excepcional, pois encerram uma derrogação aos princípios gerais que presidem à tributação, visto que, de certo modo, derrogam os princípios da capacidade contributiva, da generalidade e da igualdade da tributação e apenas encontram justificação na tutela de interesses públicos constitucionalmente relevantes, superiores aos da própria tributação, sejam de carácter político, económico, social ou cultural (Manual de Direito Fiscal, 11ª edição com adenda, 2000, páginas 323/326, Nuno de Sá Gomes, citado no parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto)

As normas de benefícios fiscais merecem assim tratamento autónomo porque são normas anti-sistemáticas por definição, estando em tensão permanente com o princípio da capacidade contributiva, que derrogam como padrão na repartição do imposto (Vide Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, pag. 312.) .

E é essa circunstância que legitima que se sustente quanto a elas um princípio de interpretação estrita ou declarativa (strict interpretation), fundado precisamente na sua natureza excepcional ou anti-sistemática.

Daí que se entenda que, a isenção de imposto, na medida em que contraria os princípios da generalidade e da igualdade da tributação, é insusceptível de aplicação a casos que não tenham sido expressamente contemplados no benefício concedido.”

 

63. Portanto, enquanto normas excepcionais que são os benefícios fiscais devem ser objecto de uma interpretação estrita ou declarativa, impedindo-se a que sejam por ele incluídas realidades não visadas pela norma que os institui. Porém, não significa isto que o intérprete aplicador do direito deverá realizar uma interpretação restritiva – senão mesmo correctiva – da norma jurídica, no sentido de excluir do campo de aplicação do benefício fiscal um conjunto de realidades através da criação pela via interpretativa de pressupostos de aplicação que não resultam do espírito ou teleologia da norma evidenciado pelo objectivo extrafiscal do benefício fiscal e que não têm na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, não podendo desse modo ser admitidos por força do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do CC.

 

            64. Neste sentido, resulta evidente que a AT incorreu num erro de direito na interpretação e aplicação do artigo 28.º do EBF.

 

            65. Sem prejuízo, é ainda assim necessário aferir se a Requerente era ou não uma empresa prestadora de serviços públicos e se o abate da Aeronave colocou ou não em crise a validade daquele estatuto, pois só assim se poderão considerar verificados todos os pressupostos de que dependia a concessão do benefício fiscal.

 

            66. A respeito do preenchimento do conceito de “serviços públicos” referiu o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido em 22 de Janeiro de 2020, no âmbito do processo n.º 0993/11.2BELRS, o seguinte:

 

“(…) resulta claramente do disposto no citado artigo 28.º do EBF [que] só podem beneficiar da isenção as empresas que prestem serviços públicos (…), não havendo aí qualquer referência à satisfação do interesse público ou à prossecução do interesse público.

 

A prossecução do interesse público ou do interesse da colectividade organizada sob a forma de Estado é um conceito distinto do de prestação de serviços públicos, mais amplo, que define a finalidade, desde logo, da actividade administrativa em geral, sendo levada a efeito por todas as pessoas colectivas de direito público, (constituindo o seu fim único) e por pessoas jurídicas de direito privado que tenham essa missão ou às quais venham a ser delegadas tarefas com essa finalidade.

A prossecução do interesse público visa, no essencial, o bem comum, a organização da sociedade em respeito pelo individuo, enquanto pessoa e enquanto parte de um colectivo, e pelas regras do Estado de direito; assim, devem os órgãos da administração pública prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, cfr. artigos 266.º, n.º 1, da CRP e 4.º do CPA.

O artigo 28.º do EBF refere-se, expressa e limitadamente, a entidades que “prestem serviços públicos”, ou seja, no caso dos serviços de natureza económica, como é o caso do transporte aéreo aqui em apreço, tal prestação de serviços públicos corresponde actualmente, no contexto da europeização da gestão e organização destas actividades, aos denominados serviços públicos essenciais, definidos entre nós na Lei n.º 23/96, de 26.07, onde, entre outros serviços públicos identificados no artigo 1.º, n.º 2, se inscreve a actividade de transporte aéreo:

a) Serviço de fornecimento de água;

b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica;

c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;

d) Serviço de comunicações electrónicas;

e) Serviços postais;

f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;

g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.

h) Serviço de transporte de passageiros.

 

Porém, como claramente resulta do probatório, a recorrida não presta qualquer um destes serviços públicos, nem qualquer outro serviço que se possa qualificar como um serviço público, desde logo porque as entidades a quem os presta também não podem ser consideradas utentes, na definição do n.º 3 do já referido artigo 1.º da Lei n.º 23/96.

A recorrida limita-se a prestar os seus serviços (para o que aqui importa, financeiros) às sociedades relativamente às quais exerce a gestão de participações sociais, admitindo-se, em tese, que essa possa ainda ser interpretada como forma atípica indirecta (por financiar e potenciar) de exercício de uma ou mais actividades económicas. Porém, quer este exercício indirecto da actividade económica (mesmo que assim pudesse ser qualificado como expressão de serviço público), quer o facto de o seu capital social ser detido directa ou indirectamente pelo Estado, não são requisitos adequados ou suficientes para que se possa considerar preenchido o pressuposto legal do artigo 28.º do EBF, que habilitaria a recorrida a beneficiar da isenção, uma vez que essa isenção está reservada para as empresas que prestem directamente o serviço público ao utente e, portanto, que se relacionam directamente com o mesmo.

Na verdade a interpretação que se deve fazer da norma constante deste artigo 28.º do EBF, segundo as regras estabelecidas nos artigos 9.º do Código Civil, 10.º do EBF e 11.º da LGT, deve antes de mais ter correspondência com o texto editado pelo legislador, não sendo permitido ao julgador fazer uma interpretação de tal modo abrangente e ampla de modo a que o próprio texto da Lei deixe de ter correlação com o sentido que se lhe quer atribuir.

Assim, o legislador ao referir-se a empresas que prestem serviços públicos apenas pretende abranger aquelas empresas que efectivamente os prestam, as que têm uma relação directa e imediata com o utente e beneficiário desse serviço público; não sendo esse o caso, naturalmente, da recorrida, conclui-se que a mesma não se enquadra na previsão da norma e, nessa medida, não lhe pode ser concedida a isenção pretendida.”.

 

            67. Ao contrário do sucedido no citado acórdão, ficou provado nos presentes que a Requerente presta directa e imediatamente serviços públicos de transporte de passageiros a utentes, sendo detentora para o efeito de licença para o exercício de actividade de transporte aéreo e de certificado de operador aéreo emitido pela ANAC cuja validade se mantinha no ano de 2018.

 

68. Conclusão esta que não é colocada em causa pelo facto de a Aeronave ter sido objecto de abate ao registo aeronáutico nacional, isto é, de ter sido removida do registo aeronáutico de Portugal, tendo sido canceladas as marcas de nacionalidade e matrícula, em virtude da sublocação da Aeronave à sociedade de direito russo “F...”. Em primeiro lugar, porque a sublocação do equipamento importado não implica que a Requerente deixou de prestar os serviços públicos em causa nem tão pouco que perdeu as licenças e certificados que lhe permitem exercer tal actividade. Em segundo lugar, porque conforme reconhece a AT a Aeronave foi objecto de manutenção em larga escala durante vários meses do ano de 2018, sendo tal intervenção necessária para assegurar a qualidade e segurança dos serviços públicos de transporte aéreo de passageiros, que não se podem considerar por esse facto abandonados pela Requerente. Em terceiro lugar, porque a Requerente não passou a actuar como mera intermediária financeira, tendo pelo contrário continuado a operar a Aeronave que apenas foi objecto de sublocação pela necessidade de associar o respectivo registo aeronáutico a uma sociedade sedeada na Rússia sob pena de não ser possível à Requerente operar rotas naquele país, já que os direitos de tráfego são ali limitados a entidades residentes.

 

            69. Em face do exposto, conclui-se que a Requerente, enquanto companhia aérea privada que se dedica ao transporte aéreo, regular e não regular, doméstico territorial e internacional, consiste numa empresa que presta um serviço público, pelo que se encontrava preenchido este critério subjectivo de que dependia a concessão do benefício fiscal.

 

            70. Uma vez que a Requerente preenchia todos os requisitos objectivos e subjectivos previstos no artigo 28.º do EBF para beneficiar da isenção de retenção na fonte em sede de IRC quanto aos pagamentos de rendas efectuados por conta da locação da Aeronave, julgam-se ilegais a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e o acto de liquidação de retenções na fonte de IRC n.º 2022 ... e os actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ... a 2022 ..., referentes ao ano de 2018, que sobre ela versaram.

 

§4 – Reembolso do imposto e juros indemnizatórios

 

            71. Em virtude da declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos impugnados no presente processo, impõe-se o reembolso à Requerente do montante de imposto por esta indevidamente pago, em conformidade com o disposto no artigo 24.º, n.º 1 do RJAT.

 

            72. Por fim, cabe apreciar o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios formulado pela Requerente.

 

73. Determina-se no artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

            74. Uma vez que os actos declarados ilegais foram praticados pela Requerida e resultaram de erro imputável aos serviços conforma acima exposto, são devidos à Requerente juros indemnizatórios, contados sobre o valor do imposto indevidamente pago e desde a data do pagamento indevido, à taxa legal supletiva e até à data da emissão da correspondente nota de crédito, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 1 e 100.º da LGT, 61.º do CPPT e 24.º, n.º 5 do RJAT.

 

V. DECISÃO

 

75. Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar a ilegalidade e anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa, da liquidação de retenções na fonte de IRC n.º 2022 ... e dos actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ... a 2022 ...;
  2. Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido, à taxa legal supletiva, até à data da emissão da correspondente nota de crédito;
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            76. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 224.968,22.

 

VII. CUSTAS

 

            77. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 4.284,00, a suportar pela Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 10 de Dezembro de 2024

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e Relatora)

 

Sofia Quental

 


Paulo Ferreira Alves