Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 219/2024-T
Data da decisão: 2024-12-11   Outros 
Valor do pedido: € 237.491,52
Tema: CSR - Incompetência material do Tribunal Arbitral; Ilegitimidade da Requerente.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

1. A competência dos tribunais arbitrais limita-se, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, à apreciação das pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

2. A Requerente é parte ilegítima para questionar os atos de liquidação da CSR praticados pela Administração Tributária e Aduaneira com base na DIC submetida pela sua fornecedora de combustíveis.

3. Apenas o sujeito passivo responsável pela introdução dos produtos petrolíferos (gasolina e gasóleo rodoviário) no consumo e pelo pagamento da CSR, tem legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações com fundamento em erro e consequente reembolso do montante correspondente, conforme o artigo 16.º do CIEC.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Dr. Pedro Guerra Alves e Prof. Doutor João Pedro Rodrigues (Adjuntos) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 29-04-2024, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

1.1. Do pedido

 

A..., S.A. (adiante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), com sede na Rua..., n.º ..., ..., ...-... ..., titular do número de identificação de pessoa coletiva..., ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), conjugado com o disposto no artigo 99.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicáveis ex vi alínea a) do n.º 1 do 10.º do aludido RJAT, requereu a constituição de tribunal arbitral para apreciação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa com o n.º 2023..., a 26 de julho de 2023, que deu entrada junto da Direção Geral Das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo “DGAIEC” relativo á liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (AT).

 

A Requerente concretiza, a final do PPA, o seu pedido:

“Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exa., deve o presente Pedido de Constituição Arbitral e de Pronúncia Arbitral ser totalmente procedente, determinando-se em consequência disso:

  1. A anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão dos atos de liquidação de CSR sindicados, respeitantes ao montante pago a título de CSR por referência ao período supra indicado, bem assim como a anulação dos atos de liquidação aqui em causa por serem ilegais; e consequentemente
  2. O reembolso à Requerente do valor total de CSR indevidamente pago, no valor global de Euro 237.491,52 (duzentos e trinta e sete mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios, devidos nos termos legais.”.

 

1.2. Do âmbito do pedido

Da análise ao pedido formulado pela Requerente, impõe-se a devida clarificação, considerando que pede o reembolso da CSR acrescido de juros indemnizatórios e não pede a invalidade dos atos de repercussão, solicitando a Requerente a anulação das liquidações de CSR que se encontram refletidas nas faturas que apresenta.

Estando o Tribunal limitado na sua decisão, ao pedido apresentado pelo Autor/Requerente, na petição inicial, estabelecendo o artigo 609.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 RJAT: “1 – A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”.

Impõe-se que se proceda à interpretação do pedido em conjugação com a “parte narrativa da petição inicial”, no sentido de delimitar a relação jurídica controvertida.

O nosso sistema judicial tem por base o princípio do pedido, admitindo alguma jurisprudência e doutrina a possibilidade deste princípio basilar do nosso direito adjetivo poder ceder perante o apelidado “pedido implícito”.

De salientar a análise feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-09-2024, proferido no âmbito do Processo n.º 6845/20.8T8ALM.L1-6, que determinou a revogação da decisão que considerou o pedido implícito: “Cumpre, pois, apreciar se estamos perante o que a jurisprudência tem vindo a apelidar de ‘pedido implícito’ e aquilatar da sua admissibilidade. Nos termos do artigo 552.º, n.º 1, alínea e) do CPC, na petição inicial, o autor deve formular o pedido, que irá conformar o objecto do processo e condicionar a decisão de mérito, pelo que o tribunal, sob pena de nulidade, não pode condenar em quantidade superior ou objecto diverso (artigos 615.º, n.º 1, alínea e) e 609.º, ambos do CPC) e deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras (artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 608.º do CPC).

Defendia o Professor Antunes Varela (In ‘Manual de Processo Civil’, Coimbra Editora, 2ª edição, revista e actualizada, 1985, pág. 245, nota 1.) que “o pedido deve ser formulado na conclusão da petição, não bastando que apareça acidentalmente referido na parte narrativa dela. O autor deve, no final do seu arrazoado, dizer com precisão o que pretende do tribunal – que efeito jurídico quer obter com a ação’. Mais recentemente – e atendendo à lógica inerente à estrutura do novo Código de Processo Civil, nomeadamente, de preferência do ‘conteúdo’ em detrimento de razões puramente formais -, tem-se observado uma inversão deste entendimento, com autores como o Professor Lebre de Freitas (In ‘Código de Processo Civil Anotado. Volume II’. Coimbra: Almedina, 3ª edição, julho de 2017, pág. 490) a admitirem que “…o pedido seja expresso na parte narrativa do articulado, desde que se revele com nitidez, com o sentido da declaração para o declaratário normal, a intenção de obter o efeito jurídico pretendido, máxime quando o réu o haja entendido correctamente…’. Os Tribunais superiores têm, bem assim, seguido esta linha de raciocínio, ‘(e)m primeiro lugar, porque a petição configura uma declaração de vontade tendente a obter um determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos arts. 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do CC (cf., por ex., Ac. Do STJ de 21.4.05, em www.dgsi.pt). Depois porque se não releva a ineptidão por falta ou ininteligibilidade do pedido no caso de o réu haver interpretado convenientemente a petição inicial (art.º 193.º, n.º 3 do CPC), por maioria de razão, ou por aplicação analógica, deve admitir-se um pedido feito no corpo do articulado, máxime se foi correctamente interpretado pelo demandado’ (Cfr. Acórdão do TRC, de 10.09.2013, proc. N.º 6/07, disponível em www.dgsi.pt).

(…) O pedido constitui o elemento identificador das acções, é este o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir. Nas lições de Anselmo de Castro (in ‘Direito Processual Civil Declaratório’, pág. 201 e ss.) por pedido, porém, tanto se pode entender as providências concedidas pelo juiz, através das quais é actuada determinada forma de tutela jurídica (condenação, declaração, etc.) ou seja, a providência que se pretende obter com a acção; como os meios através dos quais se obtém a satisfação do interesse à tutela, ou seja, a consequência jurídica material que se pede ao tribunal para ser reconhecido. O primeiro é o objecto imediato; o segundo é o objecto mediato, sendo que para determinar o petitum concorrem ambos os aspectos.

(…) o pedido está ligado ao princípio do dispositivo, sendo este um dos princípios nucleares do processo civil e significa que as partes dispõem do processo e da relação jurídica nele controvertida. Como bem aludia Manuel de Andrade (in ‘Noções Elementares de Processo Civil’, págs. 373 a 374), na visão conservadora e liberal o processo ‘é uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas’, em que o juiz arbitra a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado – daí a inércia, inactividade ou passividade do juiz, em contraste com a actividade das partes e, outrossim, que a sentença procure e declare a verdade formal (intra processual) e não a verdade material (extra processual)”.

De mencionar ainda o decidido no Acórdão do STJ de 22-09-2022, proferido no Processo n.º 605/17.0T8PVZ.P1.S, e que afirma no sumário:

“I. Como decorrência do princípio do dispositivo, continua a vingar na nossa lei adjectiva o princípio do pedido, de acordo com o qual o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses que a acção pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida (art. 3.º, n.º 1 do CPC).

II. Se é certo que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, também não devem, sem assento no alegado e peticionado pelo Autor, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: «Não dês mais do que aquilo que te é pedido».

III. Quando perante o alegado na petição inicial há dúvidas quanto aos concretos e efectivos pedidos pretendidos pelo Autor ou ao real conteúdo da pretensão, e, recorrendo às regras interpretativas da declaração judicial, se extrai implícita uma outra pretensão petitória não expressamente ali formulada, pode o tribunal levá-la em conta, extraindo os efeitos jurídicos correspondentes, sem dessa forma violar o princípio do pedido.

IV. Porém, como o princípio do pedido se encontra a par do princípio do contraditório, tem este último que ser sempre respeitado, pois uma sentença desrespeitadora do princípio do pedido, traduzir-se-ia numa decisão-surpresa.

V. Pedido implícito é aquele que, com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia.”.

E, na análise do mérito do Recurso o tribunal menciona:

(…) Como o princípio do pedido está ligado ao princípio do dispositivo – princípio este que constitui um dos princípios nucleares do processo civil e significa que as partes dispõem do processo e da relação jurídica nele controvertidas -, algumas considerações se justificarão sobre este princípio.

Se se nos afigura certo o acabado de enunciar, certo é, também, que no sistema processual civil nacional o princípio do dispositivo se encontra a par do princípio do contraditório, continuando ambos a ser princípios nucleares e fundamentais da lei adjectiva.

(…)

Esta posição foi ancorada “desde logo, no entendimento de um articulado processual, designadamente uma petição inicial, como configurando “[…] uma declaração de vontade tendente a obter determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1 do Código Civil[…]”, acrescentando-se colher este entendimento algum respaldo no artigo295º do CC, ao determinar a aplicação aos actos jurídicos que não se configurem como negócios jurídicos das disposições do Código Civil referentes a estes, designadamente das atinentes à interpretação e integração previstas nos ditos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, “na medida em que a analogia das situações o justifique”.

Analisando o PPA e as alegações, este Tribunal Arbitral conclui que a Requerente faz um pedido claro: pede a anulação das liquidações de CSR refletidas nas faturas e o reembolso dos valores de CSR, os quais só podem ser os atos de liquidação realizados pela AT ao sujeito passivo com a submissão da e-DIC.

No PPA refere:

Ora, volvendo ao caso concreto, durante o período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022, na aquisição de combustíveis (maxime gasolina e gasóleo) por parte da Requerente, foram incluídos no respetivo preço de venda pela entidade comercializadora de produtos petrolíferos os montantes pagos pela vendedora a título de CSR, totalizando o valor de Euro 237.491,52 (duzentos e trinta e sete mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e dois cêntimos), o qual foi integralmente repercutido na Requerente.

Não devendo, por conseguinte, restar dúvidas de que foi a Requerente quem efetivamente suportou o valor da CSR, enquanto consumidora final, por efeito da repercussão operada.

(...)

 

Sendo inegável o interesse legalmente protegido da Requerente, por ser a mesma quem assume a qualidade de “contribuinte de facto”, isto é, do contribuinte que, em virtude da repercussão, suporta economicamente o imposto.

E, ainda, tendo em consideração todo o entendimento da AT quanto à questão da legitimidade que vai no mesmo sentido do entendimento da aqui Requerente,

Dúvidas não devem restar de que lhe assistiu, por conseguinte, o direito de ter peticionado a revisão das liquidações de CSR e, bem assim, o reembolso dos valores indevidamente liquidados, fruto da ilegalidade do tributo em escrutínio e, consequentemente, legitimidade para a apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral.”

E nas alegações reitera:

A Requerente nas alegações menciona que:

“No âmbito da sua atividade, a Requerente suportou um montante de Euro 237.491,52 (duzentos e trinta e sete mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e dois cêntimos), a título de CSR, correspondente aos atos de liquidação relativos ao período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022.

Sucede que, apesar de quem liquida a CSR ser a Entidade que comercializa os produtos petrolíferos, a mesma é repercutida no consumidor do combustível, isto é, no consumidor final e, bem assim, aquele sobre o qual recai o encargo financeiro da contribuição através do mecanismo da repercussão legal.”

Considerando o disposto no artigo 2.º, e) do CPPT, o Código de Processo Civil constitui direito subsidiário e de aplicação supletiva aos procedimentos e processos judiciais tributários, de acordo com a natureza dos casos omissos.

Este Tribunal Arbitral entende que está limitado na sua decisão ao princípio do pedido, expressamente consagrado no artigo 609.º, n.º 1, do CPC, o qual é aplicável por disposição do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT.

Assim, este Tribunal não pode decidir sobre a validade dos atos de repercussão da CSR, cuja liquidação é realizada nas faturas emitidas pelos seus fornecedores de combustíveis, porque não lhe é feito esse pedido, conforme o artigo n.º 1 do CPC, ex vi artigo 29.º, e) do RJAT e só da invalidade dessas liquidações poderia ser decretado o reembolso da CSR, alegadamente paga pela Requerente.

Destarte, este Tribunal Arbitral adere ao afirmado no mencionado Acórdão do STJ de 22-09-2022, quando refere:

“É certo que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, que é absolutamente essencial nos tempos que correm. É que um processo que não seja efectivo é um processo amorfo, que nada resolve, que se perde em questiúnculas formais, muitas das vezes dessa forma remetendo para as calendas a resolução do litígio. Mas também não podemos, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: «Não dês mais do que aquilo que te é pedido».

 

1.3. Dos requerimentos anteriores à constituição do Tribunal Arbitral

 

  1. Requerimento da Requerida

Em 11-03-2024 a Requerida apresentou um Requerimento dirigido ao Exmo. Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa com o seguinte teor:

“Exm.º Senhor

Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), notificada em 22/02/2024 do pedido de constituição de tribunal arbitral no processo supramencionado, apresentado por A..., S.A., NIPC ..., vem informar, que analisado o pedido, não detetou a identificação de qualquer ato tributário. Identificação que, aliás, também não consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária.

Tendo em conta, que:

a) A competência dos tribunais arbitrais, que funcionam no CAAD, abrange exclusivamente a apreciação direta da legalidade de ato(s) de liquidação ou de atos de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de ato(s) daquele tipo, conforme decorre do n.º 1, do artigo 2.º do RJAT e como se depreende das referências expressas que se fazem na alínea a), do nº 1, do artigo 10.º do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT;

b) Conforme dispõe expressamente a alínea b), do nº 2, do artigo 10º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;

c) Sem a identificação, por parte dos interessados, do ato ou atos tributários, cuja ilegalidade é invocada, não pode o dirigente máximo da AT exercer a faculdade prevista no artigo 13.º

do RJAT.

Solicita-se que seja(m) identificado(s) o(s) ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação, à Autoridade Tributária e Aduaneira, da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.

Tendo o Senhor Presidente do CAAD entendido que seria o Tribunal Arbitral a entidade competente para a pronúncia sobre o requerido pela AT, foi o requerimento integrado nos autos, constando do SGP do CAAD. De mencionar que não cabe ao Tribunal Arbitral praticar quaisquer atos processuais ainda antes da sua constituição e as questões colocadas, mormente quanto à alegada não identificação dos actos tributários impugnados e a legitimidade processual apenas releva no âmbito do saneamento do processo.

E, sendo o referido requerimento da AT dirigido a entidade alheia ao Tribunal Arbitral Coletivo, entendeu-se que a pretensão da Requerida poderia ser respondida pela Requerente nas Alegações.

 

b) Requerimento da Requerente

Em 25-03-2024, a Requerente apresentou um requerimento, onde afirmou:

“3º O pedido da Requerente sustenta-se na ilegalidade das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), entre julho de 2019 e dezembro de 2022, e que ascendem a € 237.491,52, tendo por objeto o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que deu entrada junto da Direção Geral Das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo “DGAIEC” com o n.º 2023..., a 26 de julho de 2023 – o que não deixa a Requerente de identificar logo ab initio no seu requerimento inicial. Para além de que,

4º A Requerente junta igualmente a prova documental referente quer ao pedido de revisão oficiosa supra referido, como bem assim todos os documentos que sustentam e demonstram as liquidações das contribuições em causa, cujo custo foi [indevidamente] suportado pela Requerente, por repercussão legal.

(…)

7º Consequentemente, a Requerente não tem em sua posse, como já deu nota, de quaisquer outros elementos, pelo que a sua apresentação não se lhe pode ser exigida(…)”

(…)

12.º Por outro lado, e antevendo-se o caminho que a Requerida pretende trilhar, resulta evidente do requerimento inicial apresentado pela Requerente que o seu pedido assenta na declaração da ilegalidade dos actos de repercussão das Contribuições de Serviço Rodoviário (CSR), suportadas nas facturas de gasóleo rodoviário adquiridos pela mesma no período temporal supra referido (julho de 2019 e dezembro de 2022).

13.º Em consequência de tal ilegalidade, deverão as correspondentes liquidações de CSR ser anuladas e nessa medida determinado o reembolso das quantias suportadas a esse título pela Requerida à Requerente, acrescido de juros indemnizatórios, o que se reitera.

14º Dos documentos juntos aos autos, nomeadamente declaração de repercussão e facturas juntas (DOC. 2, 3 e 4 apresentados com o requerimento inicial), mostra-se, por um lado, sindicável o acto de liquidação em questão, e, por outro, determinável o seu montante.”

 

1.4. Tramitação processual

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral enviado no dia 16-02-2024 foi aceite no dia 19-02-2024, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

Os Árbitros designados em 08-04-2024 pelo Conselho Deontológico do CAAD, comunicaram a aceitação do encargo, no prazo aplicável.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 29-04-2024.

Em 31-05-2024 a AT apresentou Resposta em que se defendeu por impugnação e suscitou as seguintes exceções:

- Da incompetência do Tribunal em razão da matéria;

- Da ilegitimidade processual e substantiva da Requerente;

- Da ineptidão do pedido arbitral –

a) da falta de objeto;

b) da ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir;

- Da caducidade do direito de ação.

 

Por despacho de 03-06- 2024 (notificado a 04-06-2024) foi decidido dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e facultar às Partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas no prazo simultâneo de 20 dias, podendo a Requerente pronunciar-se sobre as exceções invocadas pela Requerida na Resposta.

Em 19-06-2024 a Requerida apresentou alegações escritas.

A Requerente apresentou alegações escritas e respondeu às exceções em 28-06-2024, (por e-mail datado de 27-06-2024.

 

2. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação).

O processo não enferma de nulidades.

Tendo em consideração a matéria de exceção suscitada pela Requerida (da incompetência do Tribunal em razão da matéria; da ilegitimidade processual e substantiva da Requerente; da ineptidão da petição inicial por falta de objeto e ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir e da caducidade do direito de ação,), importa apreciar, preliminarmente, estas matérias, começando pela da incompetência do Tribunal Arbitral, que é de conhecimento prioritário (artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT).

 

3. Matéria de facto

3.1. Factos provados

O Tribunal Arbitral considera provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial com sede em Portugal, que se dedica à atividade de construção de estradas, vias férreas, instalações desportivas, entre outras; (cfr. PPA e não contestado pela Requerida).
  2. Em 2019, a Requerente adquiriu à fornecedora de combustível -B..., S.A. -, no período compreendido entre julho e dezembro, 9.292,93 litros de gasolina rodoviária e 227.893,06 litros de gasóleo; (cfr. PPA, mapa excel e faturas juntas com o PPA).
  3. Em 2020, a Requerente adquiriu à fornecedora de combustível – B..., S.A. -, no período compreendido entre janeiro e dezembro, 13.681,58 litros de gasolina rodoviária e 456.848,83 litros de gasóleo; (cfr. PPA, mapa excel e faturas juntas com o PPA).
  4. Em 2021, a Requerente adquiriu à fornecedora de combustível – B..., S.A. -, no período compreendido entre janeiro e dezembro, 16.705,12 litros de gasolina rodoviária e 798.871,74 litros de gasóleo; (cfr. PPA, mapa excel e faturas juntas com o PPA).
  5. Em 2022, a Requerente adquiriu à fornecedora de combustível – B..., S.A. -, no período compreendido entre janeiro e dezembro, 12.510,73 litros de gasolina rodoviária e 615.043,68 litros de gasóleo; (cfr. PPA, mapa excel e faturas juntas com o PPA).
  6. A Requerente, apresentou em 26-07-2023, junto da Direção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, pedido de revisão da liquidação da contribuição de serviço rodoviário (CSR), relativamente ao imposto alegadamente suportado nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022; (cfr. doc. 1 junto com o PPA).
  7. Sobre o pedido de revisão oficiosa não recaiu, até ao momento, qualquer decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3.2. Factos não provados

O Tribunal Arbitral considera como não provados os seguintes factos:

  1. A fornecedora de combustíveis da Requerente (B..., S.A.), tenha pago o imposto apurado nos atos de liquidação CSR praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas e-DICs por aquela submetidas.
  2. A mencionada fornecedora de combustíveis tenha repercutido nas respetivas faturas a CSR correspondente a cada um desses consumos, nem que a Requerente tenha suportado integralmente este imposto.
  3. Com a aquisição do referido combustível, a Requerente suportou a título de CSR, a quantia global de € 237.491,52.

 

3.3. Motivação da matéria de facto

O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor e decidir se a considera provada ou não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, a) e), do RJAT).

Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.

O Tribunal Arbitral formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, como prevê o artigo 110.º do CPPT, e a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

4. Matéria de direito

4.1. Das exceções

A Requerida na Resposta invoca várias exceções e, a proceder alguma, obstará ao conhecimento do pedido e que, por isso, são de decisão prévia.

Considerando o disposto no artigo 13.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT há que iniciar por determinar a competência do presente Tribunal Arbitral, sendo que o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria. Porém, e dada a sua importância para determinar a competência do presente Tribunal Arbitral, analisamos a começar, a questão da natureza jurídica da CSR.

 

a) Da natureza jurídica da CSR

A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) foi criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e entrou em vigor em 01-01-2008. Teve alterações introduzidas pelas Lei n.ºs 67-A/2007, de 31 de dezembro, 64-A/2008, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, 66-B/2012, de 31 de dezembro, 83-C/2013, de 31 de dezembro, 82-B/2014, de 31 de dezembro, 7-A/2016, de 30 de março, sendo substituída pela “Consignação de serviço rodoviário”, pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.

Considerando o disposto no artigo 1.º e no artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, a CSR visava financiar a rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A., constituindo a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis.

Como determina o artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, em vigor à data dos factos, a CSR é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP), estando estes identificados no artigo 4.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC).

O Código dos Impostos Especiais de Consumo, na redação aplicável ao caso em concreto, define como sujeito passivo:

“Artigo 4.º - Incidência subjetiva

1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado e o destinatário registado;

(...).

Na tributação dos produtos petrolíferos e energéticos era aplicada uma taxa de ISP, a que acrescia o montante legalmente estabelecido a título de Fator de Adicionamento de CO2 e de CSR.

O artigo 7.º da Lei 55/2007 determina que “As taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário.”.

Nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do CIEC o facto gerador do ISP consiste: “A produção em território nacional dos produtos a que se refere o artigo 5.º”; “A entrada em território nacional, quando provenientes de outro Estado -Membro, dos produtos a que se refere o artigo 5.º, ainda que irregular”; e a “A importação dos produtos a que se refere o artigo 5.º, ainda que irregular”.

Os IEC, como o ISP, são exigíveis, conforme decorre do artigo 8.º do CIEC no momento da introdução no consumo de produtos sujeitos a imposto ou da constatação de perdas que devam ser tributadas em conformidade com o referido Código.

São considerados como introdução no consumo os factos que se enquadrem no descrito no n.º 1 do artigo 9.º, designadamente a saída dos produtos do regime de suspensão, a detenção e armazenagem fora do regime de suspensão sem pagamento do imposto, a produção fora do regime de suspensão, a importação, a entrada dos produtos no território nacional, ainda que em situação irregular, a cessação ou violação dos pressupostos de um benefício fiscal.

A introdução no consumo é formalizada através da Declaração de Introdução no Consumo (DIC), processada por transmissão eletrónica de dados (e-DIC), conforme o artigo 10.º do CIEC.

De acordo artigo 10.º-A do CIEC, com as introduções no consumo efetuadas num determinado mês pelos sujeitos passivos que detenham um dos estatutos previstos CIEC são globalizadas no mês seguinte, numa única liquidação, processada de forma automática.

Nos termos dos artigos 11.º, e 12.º do CIEC os sujeitos passivos são notificados da liquidação do imposto, até ao dia 15 do mês da globalização, devendo aquele ser pago até ao último dia útil do mês em que foi notificada a liquidação.

Como é afirmado no preâmbulo, a CSR é atribuída pelo legislador a finalidade de financiar a Empresa Infraestruturas de Portugal, I.P.

Uma vez descrito o regime jurídico da CSR, importa analisar se é um imposto, uma taxa ou uma contribuição especial.

Por concordamos com o que se afirma no Acórdão do STA, 2.ª Sec. de 04-07-2018, proferido no Processo n.º 01102/17, transcrevemos:

“(...) Dando por adquiridas as inúmeras reflexões doutrinárias e jurisprudenciais produzidas sobre a matéria atinente à distinção entre imposto e taxa [ou seja, que ambos constituem receitas públicas coactivamente impostas, mas enquanto o imposto «... é uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos» (Cfr. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, p. 262.) a taxa tem «carácter sinalagmático, não unilateral, o qual por seu turno deriva funcionalmente da natureza do facto constitutivo das obrigações em que se traduzem e que consiste ou na prestação de uma actividade pública ou na utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares» (Cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, Lisboa, 1981, p. 42.) pressupondo, pois, uma contraprestação por parte do ente público que a exige, a verificar-se na respectiva génese, e que deve concretizar-se naquela prestação de serviço público, naquele acesso à utilização de bens do domínio público ou na remoção do obstáculo jurídico à actividade do particular] (Cfr. Casalta Nabais, Contratos Fiscais, Coimbra 1994, 236.) ressalta na definição legal e doutrinal da taxa a individualização de um aspecto estrutural da mesma (a supra apontada sinalagmaticidade ou bilateralidade) e, em consequência, os respectivos pressupostos da sua cobrança. (...)”

Mencionamos também, o decidido no Acórdão do TC n.º 232/2022 de 31-03-2022, Proc. 105/22, relator J. E. Figueiredo Dias:

“Esta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos (...)”

De mencionar, também, a posição do Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, que afirma:

“Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.

Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito activo da respectiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e da plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento do Estado de cada ano.”

O mesmo entendimento podemos colher no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 24-10-2024, Proc. n.º 128/23.9BCLSB, disponível in www.dgsi.pt, onde se lê, após discorrer sobre o regime jurídico da CSR, o seguinte:

“À luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui uma contribuição financeira. // Como se refere no acórdão proferido no Processo n.º 269/2021, corroborado pelo acórdão tirado no Processo n.º 304/2022, a Contribuição de Serviço Rodoviário não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da E… - Estradas ……., E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2). // Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à E……. - Estradas ……….., E. P. E. é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da E…….. – Estradas ………….., E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.” // Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respetivos utilizadores, que são os beneficiários da atividade pública desenvolvida pela E… - Estradas ………., E. P. E., verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”. // Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos.”.

Este Acórdão faz ainda referência à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia que “…segue orientação semelhante. No despacho de 07/02/2022, P. C-460/21, cujo objecto incidiu sobre a apreciação da conformidade do regime da CSR com o Direito da União Europeia, o TJUE teve ocasião de referir que «[o] artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE, deve ser interpretado no sentido de que não prossegue «motivos específicos», na aceção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários». Do exposto se infere que o tributo em referência corresponde a um imposto liquidado pelos sujeitos passivos do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), no momento do apuramento da divida do imposto em referência, tendo por base o consumo dos referidos produtos (artigo 4.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Não existe nexo de correspectividade entre o pagamento do tributo e os benefícios que derivam para o sujeito passivo do mesmo da existência e funcionamento da “E…….. – Estradas ……………, E.P.E”, cujo objecto consiste na exploração e conservação das estradas nacionais. O tributo é devido independentemente do nível de utilização das estradas nacionais e do prejuízo que tal utilização possa causar às mesmas. Em rigor, sendo o sujeito passivo do tributo o mesmo que liquida o ISP não existe qualquer nexo de correspectividade entre o pagamento do mesmo e os eventuais benefícios que derivam da actuação da “E……… – Estradas …………, E.P.E”, no exercício da sua actividade. A alegada repercussão do imposto no consumidor final dos produtos energéticos não logra ser comprovada, dado que depende de variáveis a apurar em cada caso concreto.”.

 

Conclui este Tribunal Arbitral que a Contribuição de Serviço Rodoviário é um imposto indireto, um imposto monofásico, em que não estão legalmente previstos quaisquer atos de repercussão. O facto tributário ocorre apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez, com a apresentação da e-DIC, nos termos do CIEC.

 

  1.  Da incompetência do Tribunal Arbitral

Nestes autos, a AT suscita a questão da incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria por considerar, que a CSR é uma contribuição e não um imposto, pelo que as matérias sobre a CSR na sua perspetiva encontram-se, assim, excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal.

A AT alega ainda que os Tribunais Arbitrais não têm competência para sindicar atos de repercussão de CSR.

A Requerida considera ainda que “Ainda que assim não se entenda, sempre existiria a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por outra via.

Efetivamente, resulta do teor do pedido de pronúncia arbitral e sua fundamentação, que a Requerente suscita, também, junto desta instância arbitral, a legalidade do regime da CSR, no seu todo.

De facto, ao sustentar o seu pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, não obstante com fundamento na sua desconformidade face ao direito europeu, a Requerente vem questionar todo o regime jurídico desta contribuição.

Pelo que, pretendendo a Requerente, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visa, com a presente ação, suspender a eficácia dos atos legislativos.”

Nas alegações, respondendo à matéria de exceção, a Requerente defendeu, a improcedência desta exceção:

“(...) ao contrário do defendido pela AT, a CSR constitui um verdadeiro imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, e não uma mera contribuição financeira…”

Consequentemente, pugna pela improcedência da exceção da incompetência material do tribunal arbitral, tendo por base a natureza da CSR.

Mais invoca a Requerente que não resulta do petitório qualquer pretensão de declaração de ilegalidade em bloco do regime legal vigente.

 

 

Vejamos,

 

A competência dos Tribunais Arbitrais a constituir no âmbito do CAAD está estabelecida no artigo 2.º do RJAT, Portaria n.º 112-A/2011, e abrange nos temos do n.º 1 a) a “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;” porém o n.º 2 circunscreveu – ao menos literalmente – tal vinculação às “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

A Portaria de Vinculação limita, deste modo, a competência dos Tribunais Arbitrais usando o termo impostos e não tributos.

Como acima concluído, sendo a CSR um imposto, não procede a exceção alegada pela Requerida que parte do pressuposto que a contribuição de serviço rodoviário deve ser qualificada como contribuição especial, e não como imposto, encontrando-se excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.

 

c) - Exceção da ilegitimidade processual e substantiva da Requerente

Nos presentes autos, a Requerente, invocando a qualidade de repercutida de facto, pede a anulação dos atos de liquidação de CSR, praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, consubstanciados nas faturas referentes aos combustíveis que adquiriu à sociedade B..., S.A., no período de julho de 2019 a dezembro de 2022.

 

A Requerida em síntese alega:

“Ora, desde logo é importante salientar que, apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago (cfr. n.º 2 do artigo 15 CIEC). Pelo que é a estes que são emitidas as respetivas liquidações de imposto, apenas estes podendo identificar tais atos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (artigos 15.º e 16.º do CIEC).

(…)

Dispondo, também o n.º 1, do artigo 78.º, da LGT, que a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária.

(…)

Estando tal possibilidade restringida, independentemente do tipo de erro ou da situação que motive o reembolso, ao sujeito passivo (aquele que declara para consumo e paga o imposto que deve em nome e por conta próprios) e que poderá, ou não, no momento da venda, ter transferido parte ou a totalidade desse encargo para outros intervenientes na cadeia de comercialização de combustíveis (distribuidores, grossistas, retalhistas, consumidores finais).

(…)

Ora, no caso concreto, não se encontram reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não podendo a entidade em que alegadamente teria sido repercutido o imposto apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro.

Não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do CIEC, não tem legitimidade nos termos supra nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.”

 

A Requerente respondendo a esta exceção defende:

“Conforme resulta evidente dos autos, tanto pelo pedido, como pela causa de pedir, a Requerente solicitou a intervenção do Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, para efeito da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos – os quais constituem o objecto mediato do processo arbitral.

De igual modo, e porque não se conforma com o indeferimento, embora silente, do Pedido de Revisão Oficiosa incidente sobre os aludidos actos tributários de liquidação de CSR, a Requerente solicitou a declaração da ilegalidade daquele indeferimento – que constitui o objecto imediato dos autos.

E isto porque, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, estão abrangidos no âmbito da jurisdição do Tribunal Arbitral todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através de impugnação judicial, desde que tenham por objeto os actos mencionados no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT – como é claramente o caso, a menos que a Fazenda Pública entenda que os actos tributários em causa são inatacáveis e inimpugnáveis…

No caso concreto, foram impugnados os actos tributários de liquidação de CSR – e, bem assim, os consequentes actos tributários de repercussão de CSR.

Resulta também inequívoco que a apreciação do indeferimento tácito de um procedimento incidente sobre a legalidade de acto tributário se encontra compreendida no âmbito da competência do Tribunal Arbitral e, bem assim, dos atos tributários subjacentes a tal procedimento.”

A Requerente defende que a CSR é um imposto e por isso insere-se na “competência conferida ao CAAD a apreciação da ilegalidade de atos de liquidação fica assim, clara, a competência do Tribunal Arbitral para a apreciação das pretensões dos sujeitos passivos referentes a impostos, como a CSR.”

 

Vejamos

 

O RJAT é omisso quanto à regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso nos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD.

Temos de procurar a resposta nas normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

Do artigo 9.º, n.º 1 do CPTA resulta que: Sem prejuízo do disposto no número seguinte e no capítulo II do título II, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”.

E, determina o artigo 30.º do CPC: “1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer;

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

Assim, a legitimidade processual é definida nestas normas, de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por referência à relação material controvertida que no caso dos Tribunais Arbitrais a funcionar no CAAD, terá na sua génese um ato tributário. O sujeito passivo dessa relação jurídica tem de se enquadrar no artigo 18.º, n.º 3 da LGT.

A LGT no artigo 1.º, n.º 2 estabelece que “Para efeitos da presente lei, consideram-se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas”.

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento tributário, a LGT determina no artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.” E, o artigo 78.º da LGT assegura a mesma posição de legitimidade ou ilegitimidade conferida pelas regras gerais sobre o tema.

Por seu lado, o artigo 5.º, n.º 1 da Lei 55/2007 estipula: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações”.

 

Consideramos que o legislador se limitou a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. O referido artigo 5.º, n.º 1 da Lei 55/2007, remete para o CIEC no que concerne às normas que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

Entendemos que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, a legitimidade neste caso, para questionar os atos de liquidação da CSR, só poderia advir da comprovação de a Requerente é titular de um interesse legalmente protegido (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

Neste sentido é de referir a decisão arbitral, de 01-02-2024, proferida no Processo n.º 296/2023-T e Acórdão do STA de 28-10-2020, proferido no Proc. 0581/17.BEALM, nos termos da qual se refere “(...). V - “A repercussão fiscal consiste na transferência do imposto que legalmente incide sobre um sujeito passivo, para um terceiro, alheio à relação jurídica tributária, com quem aquele tem relações económicas. Nas palavras de alguns autores, o repercutido será um mero "contribuinte de facto" (titular da capacidade contributiva), por contraposição ao "contribuinte de direito", aquele a quem é juridicamente exigível o pagamento do tributo. De acordo com a doutrina pode fazer-se a distinção entre a repercussão obrigatória ou legal, a qual encontra consagração, por exemplo, em sede de I.V.A., por contraposição à repercussão voluntária (…)”.

Por seu lado, DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária, 3.ª edição, VISLIS Editores, 2003, pág. 121, afirmam: “A exclusão do terceiro repercutido do âmbito de sujeitos passivos tem larga consagração na doutrina (vd., DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÓNICA HORTA NEVES LEITE DE CAMPOS, ob. Cit., 2.ª ed. Coimbra, 2000, Parte II, A obrigação tributária) entre ele repercutido e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.”

A legitimidade para requerer o reembolso do ISP e, inerentemente, da CSR pertence aos sujeitos passivos do imposto enunciados no n.º 1 e no n.º 1 a) do artigo 4.º do CIEC, ou seja, os operadores que introduzem no consumo os bens sujeitos a IEC e CSR, em virtude da remissão do n.º 1 do artigo 5.º da Lei nº 55/2007, com exclusão dos repercutidos.

A liquidação de CSR é realizada através do Documento de Introdução ao Consumo (e-DIC), que contém todos os elementos que permitem o cálculo e a liquidação do tributo aplicável, ou seja, é o documento que suporta as quantidades de produtos declaradas para consumo, bem como, a liquidação do imposto correspondente, o qual a Requerente pretende a sua anulação.

A Requerente não apresenta as DICs correspondentes ao combustível que adquiriu à fornecedora de combustíveis e junta ao pedido arbitral mapas em Excel com as listagens das faturas e cópia das faturas.

As faturas não fazem prova do alegado pagamento, pois não consubstanciam fatura-recibo, nem recibo, nem nota de crédito, nem a conjugação de documentos (contabilísticos ou outros), que permitam comprovar o pagamento dos montantes por si alegados.

Uma fatura é documento fiscalmente relevante, que consubstancia um “documento em papel ou em formato eletrónico que: i) Contenha os elementos referidos nos artigos 36.º ou 40.º do Código do IVA, incluindo a fatura, a fatura simplificada e a fatura-recibo; ii) Constitua um documento retificativo de fatura nos termos legais; cfr artigo 2.º, c) do Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro.

Das faturas mencionadas não se pode considerar que delas resultaria qualquer ato imputável à AT, quer tributário, quer administrativo em matéria tributária. Por definição uma fatura é um documento que deve ser emitido pelo fornecedor ou prestador de serviços, sempre esteja em causa a prestação de um serviço ou aquisição de um bem ou prestação de um serviço sujeito a IVA e da DIC resulta um ato tributário stricto sensu, a liquidação de CSR da competência da AT e que é impugnável nos termos do artigo 51.º do CPTA.

Na DIC está em causa um Imposto Especial ao Consumo (IEC), o qual é devido pela introdução no consumo de produtos petrolíferos.

As entidades que introduzem os combustíveis no consumo e que estejam registadas como tal, são os sujeitos passivos da CSR e têm a posição de entidades obrigadas a proceder ao pagamento ao Estado, não a Requerente. E, com base nas faturas juntas com o PPA, não é possível comprovar qual a entidade que procedeu à introdução no consumo, se submeteu as DICs respetivas, se procederam ou não a esse pagamento porque não é junto qualquer documento que se possa considerar como prova desse pagamento.

E, das faturas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas quaisquer referências a montantes pagos a título de ISP ou CSR, (estando a € 0,00 o campo das faturas referentes a ISP/Outras contribuições) pelo que não permitem provar quaisquer pagamentos ao Estado do ISP/CSR, consubstanciados pela apresentação dos respetivos Documentos Únicos de Cobrança (e-DIC).

De salientar que impostos especiais sobre o consumo (IECs) são impostos monofásicos e o facto tributário ocorre apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez.

O regime previsto no CIEC (artigos 15.º a 20.º) é o aplicável quando se suscite a questão da revisão do ato tributário e consequente reembolso com os fundamentos previstos nas mesmas normas, incluindo o do erro na liquidação, como resulta do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007.

Como ocorre no âmbito dos IEC, e em outros tipos de impostos, as disposições especiais previstas nos respetivos códigos prevalecem sobre as normas gerais previstas na LGT e no CPPT.

Apenas a entidade que introduziu no consumo os combustíveis e apresentou nas Alfândegas as DICs, o sujeito passivo de ISP/CSR, teria legitimidade para solicitar à AT o reembolso da CSR, (artigos 15.º e 16.º do CIEC), não a Requerente.

Pelo exposto, considera-se que a Requerente não tem legitimidade processual para questionar os atos de liquidação da CSR praticados pela Administração Tributária e Aduaneira, com base nas DIC submetidas pela entidade que introduziu no consumo os combustíveis, porque no âmbito dos impostos especiais de consumo apenas a entidade responsável pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR, tem legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações e consequente reembolso do montante correspondente, conforme o artigo 16.º do CIEC.

Acresce ainda o seguinte:

O RJAT não contém a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do seu artigo 29.º, n.º 1, que remete para as disposições legais de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).

A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.

Neste domínio, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.º, n.º 2 da LGT).

O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT, no âmbito da revisão dos atos tributários, assegura a mesma posição apelando aos conceitos de sujeito passivo e de contribuinte.

Em relação aos sujeitos passivos não originários, o legislador teve a preocupação de justificar, especificadamente, a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Assim, quanto aos responsáveis solidários, a legitimidade processual deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). E, relativamente aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações, constituiu-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias –, o que sucede igualmente com outra categoria de sujeito passivo (não originário), o substituto.

Compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. A ser assim, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

Apesar de a LGT estender a legitimidade ativa ao repercutido legal[1], que, como acabámos de ver, não é sujeito passivo, a CSR não constitui um caso de repercussão legal.

A Lei n.º 55/2007, que institui a CSR, não contém qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo. Basta atentar, para esta conclusão, no seu artigo 5.º, n.º 1: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.

Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1 não remete para o artigo 2.º do Código dos IEC, mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

Em síntese, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vide artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil)[2].

De salientar que a mera repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, que reclama, nos termos da lei, a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Sendo que, na situação concreta, nem sequer tal repercussão foi minimamente evidenciada.

Interessa ainda sublinhar que a Requerente não tem a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que, se a CSR se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida, a Requerente não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos (v. neste sentido as decisões dos processos arbitrais n.ºs 408/2023-T, de 8 de janeiro de 2024, e 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024).

Ora, ao não revestir a qualidade de sujeito passivo de CSR (seja como contribuinte direto, substituto ou responsável), nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, nem sendo parte em contratos fiscais, a Requerente só teria legitimidade para demandar a Requerida e solicitar o reembolso do imposto [CSR] se comprovasse que é titular de um interesse legalmente protegido (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

Assim, teria que alegar e demonstrar factos que suportassem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, em concreto, que o sujeito passivo lhe tinha transferido o encargo económico da CSR e, cumulativamente, que esse encargo tinha sido por si suportado a final, ou seja, sem que tivesse sido repassado no âmbito da atividade desenvolvida (por via do preço dos serviços praticado com os seus clientes). 

Conforme antes referido, a Requerente não logrou atestar que foi repercutida e que suportou a CSR contra a qual reage, ou a medida em que a suportou. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal.

Por fim, em cumprimento do desiderato do direito nacional e da União Europeia, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma ação civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunir os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspetiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 20.º da Constituição).

De notar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (v. Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03).

Em síntese, não tendo ficado provada a repercussão da CSR pelos fornecedores de combustíveis, nem que a Requerente suportou o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

A conclusão da ilegitimidade da Requerente também se retira da exegese do Código dos IEC, aplicável à CSR na parte referente à liquidação, cobrança e pagamento do imposto (por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007). Conforme declara o acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (realce nosso)

A referida norma [artigo 15.º, n.º 2, do Código dos IEC] estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.

Desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados (no artigo 4.º), e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.

Importa, ainda, notar que, contrariamente ao que a Requerente afirma, sem contudo indicar qualquer base jurídica, a questão de legitimidade processual não tem de ser analisada à luz da Diretiva 2008/118/CE, nem da jurisprudência do Tribunal de Justiça. O direito da União Europeia não se projeta no domínio do direito adjetivo, seja procedimental, ou processual, que continua a fazer parte das competências próprias dos Estados-Membros, sem prejuízo do seu controlo (negativo) por conformação aos parâmetros (princípios) do direito da União Europeia, nomeadamente da proporcionalidade, na medida em que afetem posições substantivas regidas por este direito.

A Requerente faz apelo aos princípios (europeus) da equivalência e da efetividade, mas não justifica a sua aplicação e pertinência à situação em análise, nem este Tribunal a consegue alcançar. O enunciado do princípio da equivalência é o de que as regras nacionais não podem tratar de modo mais desfavorável um direito decorrente da ordem jurídica europeia, por comparação a direitos decorrentes da ordem jurídica nacional. No caso, não há qualquer tratamento diferenciado.

Por outro lado, o princípio da efetividade postula que as regras nacionais não podem tornar impossível ou excessivamente difícil a efetivação de um direito decorrente da ordem jurídica europeia. Circunstância que também aqui não se verifica, pois, o direito de ação contra o credor tributário é assegurado ao sujeito passivo ou a quem demonstre que suportou o imposto (não o tendo demonstrado a Requerente). Acresce que o Tribunal de Justiça, como atrás referido, já se pronunciou no sentido de que nos demais casos o ressarcimento pode ser acedido através de uma ação civil dirigida aos fornecedores.

 

Pelo exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.

 

5. Decisão

a) Julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar atos de liquidação de CSR;

b) Julgar procedente a exceção dilatória de ilegitimidade da Requerente quanto ao pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR;

c) Em consequência, absolver a Requerida da instância, condenando a Requerente nas custas.

 

6. Valor do processo

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 237.491,52, indicado pela Requerente, sem oposição da Requerida.

 

7. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 4.284,00 a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de dezembro de 2024

 

Os Árbitros

 

 

_____________________

(Regina de Almeida Monteiro – Presidente e Relatora)

 

 

_________________

(Pedro Guerra Alves-Adjunto, com voto vencido quanto a exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria)

 

 

_________________

(João Pedro Rodrigues– Adjunto, com declaração de voto)

 

 

 

 

 

Voto Vencido

 

Entendo não poder subscrever a posição da presente Decisão Arbitral, quanto a exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria, entendo que é procedente a exceção de incompetência do Tribunal, por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], posição que já subscrevi nos processos arbitrais 372/2023-T, 520/2023-T, 673/2023T, 876/2023-T e 168/2024T, cujos fundamentos passo sinteticamente, a expor:

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando deem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projeto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

     Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

     Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

     1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

     2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

     3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

            Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efetuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias exceções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[3]

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». [4]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efetuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efetuada ao artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objeto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspetiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as exceções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [5] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a exceção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.

Razões pela qual voto vencido, quanto a procedência da exceção e em consequência julgaria totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

Pedro Guerra Alves

 

 

 

 

 

Declaração de voto,

Vencido, pelas razões constantes do acórdão tirado no processo n.º 982/2023-T que assinei.

João Pedro Rodrigues

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Desta forma, a lei implica (e pressupõe) que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT), não o fazendo, porém, em relação ao mero repercutido de facto, pelo que, neste caso, a repercussão tem de ser demonstrada, não se podendo presumir.

[2] De referir que a alteração legislativa do Código dos IEC, ocorrida em dezembro de 2022, que passou a consagrar a repercussão nos IEC, além de não ser subsidiariamente aplicável à CSR, por falta de norma remissiva, mesmo que o fosse, não poderia reger a situação em análise porque é posterior à data dos factos. Esta conclusão não resulta afastada pela atribuição de natureza interpretativa pelo legislador (artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro), pois a retroatividade inerente às leis interpretativas “é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.” (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 16 de dezembro de 2020).

 

[3] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[4] Publicado em https://www.caad.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.

[5] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB.