DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO:
-
O Imposto do Selo que em matéria da verba 23.2 da TGIS, é devido pela emissão de livranças, pode ser exigido pela AT ao sujeito passivo do imposto (cf. artigo 2.º, nº 1, al. f) do CIS), independentemente deste o ter recebido ou não do devedor.
-
Nas situações previstas no artigo 2.º, nº 1, al. f) do CIS) e na verba 23.2 da TGIS, o responsável tributário, perante o Estado, pela falta de imposto liquidado, é, em caso de divergência entre a pessoa que figura como sujeito passivo e a que figura como titular do interesse económico que tem o encargo do imposto, o sujeito passivo, e não o repercutido ou o titular daquele interesse económico.
***
Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 20-02-2024, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.
1. RELATÓRIO
A… S.A., pessoa coletiva n.º … … …, com sede na …, em Lisboa (doravante designado por “Requerente”), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, com vista à apreciação da legalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa referente ao processo n.º …, e do ato de liquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”) realizado através da Declaração Mensal de Imposto de Selo (doravante “DMIS”) n.º …, substituída pela DMIS n.º …, na qual foi liquidado IS relativo a livranças, nos termos da Verba 23.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo (doravante “TGIS”), no montante de 36.394,14 Euros.
O Requerente peticiona anda o reembolso do IS pago, no montante de 36.394,14 Euros, e o pagamento de juros indemnizatórios, contabilizados desde a prolação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 14-12-2023 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 19-12-2023.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral, com árbitro singular, a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.
Em 02-02-2024 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20-02-2024.
A Requerida, através de despacho arbitral proferido em 21-02-2024, foi notificada para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
Em 02-04-2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição dos pedidos.
Em 02-04-2024, a Requerida remeteu também ao tribunal arbitral, cópia do processo administrativo (“PA”).
Por despacho de 03-04-2024 foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas.
Em 18-04-2024, o Requerente apresentou as suas alegações.
Em 02-05-2024, a AT apresentou alegações, tendo peticionado afinal a improcedência da ação e absolvição dos pedidos.
Por despachos de 16-08-2024 e de 16-10-2024, foi determinada, nos termos do disposto na norma do artigo 21º-2 do RJAT, a prorrogação, pelo período de dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral nestes autos.
2. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou suscitadas questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. MATÉRIA DE FACTO
3. 1.1. Factos provados
Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
-
O Requerente é uma instituição de crédito cuja constituição ocorreu por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, a 03.08.2014, na sequência da aplicação de resolução do Banco de Portugal ao Banco …, S.A. (…), ao abrigo dos n.ºs 1 e 3 do artigo 145.º-C e do n.º 5 do artigo 145.º-G, ambos do Regime Geral das Instituições Financeiras6 (RGICSF), tendo mantido o objeto social e a atividade que o … desenvolvia (Cf. doc. 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
-
O Requerente, no âmbito da sua atividade, pratica todas as operações permitidas aos bancos, nos termos do artigo 4.º do RGICSF, nos quais se inclui a receção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, sendo supervisionada pelo Banco de Portugal, pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (cf. doc. 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
-
O Requerente, no âmbito da sua atividade, concede também crédito aos seus clientes, sendo que em algumas situações, devido ao incumprimento dos clientes/devedores, se vê na necessidade de proceder ao preenchimento de título executivo (livrança), como forma de tentar a recuperação do crédito concedido (Por acordo das partes).
-
O Requerente tem sede em território nacional e o seu objeto social consiste no exercício da atividade principal “Outra intermediação monetária”, a que corresponde o código da atividade económica (CAE) 64190, e da atividade secundária de “Compra e venda de bens imobiliários”, a que corresponde o código da atividade económica (CAE) 068100 (Cf. doc. 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
-
O Requerente, no âmbito da sua atividade, no dia 8 do mês de março de 2021, procedeu ao preenchimento da Livrança n.º …, no valor de 6.070.182,15 €, com IS no montante de 30.350,91 €, e da Livrança n.º …, no valor de 1.208.644,43 €, com IS no montante de 6.043,23 € (cf. docs. 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
-
O IS da verba 23.2 da TGIS referente a estas duas livranças foi declarado e pago pelo Requerente através da DMIS n.º …, respeitante ao período de março de 2021 (substituída mais tarde pela DMIS n.º …) (cf. docs. 2 e 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
-
O Requerente liquidou e entregou ao Estado, IS no valor de 36.394,14 Euros, detalhado como segue (cf. docs. 2, 3, 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral):
-
Livrança n.º …: IS = 30.350,91 Euros (6.070.182,15 x 0,5%, cfr. Verba 23.2 da TGIS); e
-
Livrança n.º …: IS = 6,043.23 Euros (1.208.644,43 x 0,5%, cfr. Verba 23.2 da TGIS).
-
O Requerente suportou o IS das livranças, não tendo conseguido recuperá-lo junto do devedor e tendo assumido o valor de 36.394,14 Euros como gasto (Cf. docs. 8 e 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
-
O Requerente em 20.04.2023 apresentou reclamação graciosa, a que foi atribuído o n.º …, no qual requereu a anulação parcial da liquidação, em matéria de Imposto do Selo da verba 23.2 da TGIS, respeitante à DMIS, referente ao período de março de 2021, com vista à restituição do IS em referência, no valor de 36.394,14 Euros, relativo às duas livranças identificadas (Cf. doc. 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
-
Em 08-09-2023 foi proferido despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, com os fundamentos que detalhadamente constam do documento 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
-
O Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa em 27-09-2023 (cf. doc. 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
-
Em 12-12-2023, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
3.1.2. Factos considerados não provados
Não resultou provado, face à prova produzida, designadamente dos docs. 8 e 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, que o Requerente tenha procedido ao preenchimento das duas livranças, como forma de executar a dívida de um cliente.
Não foram considerados como não provados nenhum dos outros factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
3.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente os documentos juntos pelo Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.
Finalmente, importa sublinhar que a questão essencial a decidir é de direito e assenta na prova documental junta aos autos pelo Requerente e na documentação constante do processo administrativo pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.2. MATÉRIA DE DIREITO
-
Objeto do litígio
A questão decidenda consiste em determinar se o Imposto do Selo que em matéria da verba 23.2 da TGIS, é devido pela emissão de duas livranças, pode ser exigido pela AT ao aqui Requerente, na qualidade de sujeito passivo (cf. artigo 2.º, nº' 1, al. f) do CIS), independentemente deste o ter recebido ou não do devedor, como titular do encargo do imposto nas livranças.
3.2.2 - Posição das partes
O Requerente para sustentar o pedido que deduz, alega em síntese que:
-
A liquidação de imposto do selo em crise configura uma situação de substituição tributária sem retenção, a qual não poderá terminar, de modo algum, com o encargo do imposto a ser por si suportado;
-
O Estado ao negar através da AT o reembolso deste imposto do selo ao Requerente, enriquece injustificadamente e coloca-o em situação de se ver duplamente prejudicado: não só não consegue recuperar (em processo executivo) o crédito concedido ao cliente, como ainda se vê obrigado a suportar um custo com o IS liquidado no preenchimento da livrança para dar seguimento ao processo de execução;
-
Apesar do CIS eleger, através do seu artigo 2.º, n.º 1, alínea f), o Requerente como “sujeito passivo” do IS devido no preenchimento das livranças, assumindo este a veste de “substituto tributário” / “sujeito passivo indireto”, o encargo desse imposto é inequivocamente do devedor (i.e., “contribuinte de facto” / “sujeito passivo direto”), por imposição do artigo 3.º, n.º 3, alínea k), do CIS;
-
O Requerente assumiu, o papel de mero «substituto tributário», o qual, apesar do dever de liquidação e entrega imediata do IS ao Estado, não foi ressarcido desse IS por parte do titular do encargo, o cliente/devedor, dado que, neste caso, a «substituição tributária» não opera por retenção na fonte, tendo por isso o Requerente que adiantar o IS ao Estado, conforme decorre da obrigação imposta no artigo 23.º, n.º 1, e no artigo 41.º, ambos do CIS.
-
Perante uma situação de “substituição tributária”, mas sem retenção, não poderá resultar, em caso algum, que o encargo do imposto seja suportado, a final, pelo “substituto tributário”, aqui Requerente;
-
Tendo presente o disposto no n.º 1 do artigo 20.º da LGT, segundo o qual a «substituição tributária» ocorre quando “por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”, não existe espaço para dúvidas quanto ao facto de, in casu, estarmos perante uma situação de «substituição tributária», na qual a responsabilidade pela liquidação e entrega do IS ao Estado é do Requerente (i.e., o «sujeito passivo» eleito pelo CIS), embora os clientes/devedores sejam quem tem de suportar o encargo do imposto (i.e., os «titulares do interesse económico» eleitos pelo CIS).
-
No caso em apreço não estamos perante uma situação de «repercussão tributária», mas sim de “substituição tributária”, mas sem retenção;
-
O Requerente procedeu ao preenchimento de duas livranças como forma de executar a dívida de um cliente, tendo, na qualidade de «substituto tributário» que lhe é conferida pelo artigo 2.º, n.º 1, alínea f), do CIS, à cautela, liquidado e entregue nos cofres do Estado o IS previsto na Verba 23.2 da TGIS;
-
Apesar de o encargo do IS em causa ser do cliente/devedor do Requerente, conforme impõe o artigo 3.º, n.º 3, alínea k), do CIS, o Requerente não se viu ressarcido desse IS, tendo suportado economicamente esse gasto;
-
O IS não pode, a final, ser suportado por si, pois estamos perante uma situação de «substituição tributária sem retenção» que a doutrina e a jurisprudência são inequívocas a considerar como insuscetível de gerar um encargo na esfera do «substituto tributário» caso se veja impossibilitado de recuperar aquele imposto junto do «titular do encargo do imposto» elegido pela lei;
-
Tal situação, para além de ser diametralmente contrária à «ratio legis» do CIS, violaria os princípios constitucionais da «legalidade», da «igualdade» e da «capacidade contributiva», na medida em que quem suportaria o encargo do imposto, a final, não seria o «titular do encargo» expressamente eleito pelo legislador;
-
Tendo efetuado, à cautela, a liquidação e entregue o IS ao Estado, dúvidas não podem restar de que é o devedor quem tem de suportar o efetivo encargo nos termos do CIS e nunca o Requerente, e que, sendo julgado procedente o pedido, sejam pagos igualmente os respetivos juros indemnizatórios, contabilizados a partir da prolação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT.
A AT, por seu turno, peticiona a improcedência da ação e a sua absolvição dos pedidos, tendo alegado, para sustentar a sua posição que:
-
O Requerente não logrou contraditar a legalidade da correção controvertida, não cumprindo com o ónus da prova a que se encontra adstrito nos termos dos artigos 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º do Código Civil;
-
No caso em apreço, para exigir o cumprimento do seu direito de crédito resultante do exercício da atividade económica por si desenvolvida não quis o Requerente recorrer à ação judicial e aí obter um outro título executivo, tendo optado pelo preenchimento das duas livranças de modo a repor a sua situação patrimonial, mesmo sabendo da “total incapacidade” do devedor, até para pagar o imposto do selo que sobre aqueles títulos de crédito incidiria;
-
Aceitar a solução avançada pelo Requerente, seria aceitar que com a decisão adotada por este, o objetivo e vantagens obtidas com o preenchimento do título executivo tinham-se por satisfeitas, evitar-se-iam despesas judiciais, e, a final, transferir-se-ia para o Estado a dívida de imposto necessária à cobrança de uma dívida nascida no âmbito de uma relação comercial privada;
-
O preenchimento da livrança não resultou de uma imposição legal feita ao credor/Requerente, resultou antes de uma avaliação livre e consciente das consequências que a sua decisão acarretaria. Assim, só ao Requerente pode ser imputado a liquidação feita e a cobrança do imposto não acautelada;
-
Na previsão da alínea k), do n.º 3, do artigo 3.º do CIS, não cabe a figura do credor/Requerente como sujeito sobre o qual recai o encargo do imposto.
-
O legislador apenas investe o sujeito passivo na competência para liquidar (cf. n.º 1 do artigo 23.º do CIS) e, simultaneamente, cobrar o imposto ou averbar uma eventual isenção.
-
Com efeito, nascendo a obrigação tributária [cfr. artigo 5.º, n.º 1, alínea f), do CIS] no momento em que as livranças possam ser preenchidas pelo credor/Requerente nos termos da respetiva convenção de preenchimento, tendo o Requerente a consciência e conhecimento que o encargo do imposto não recaía sobre si, não tendo nem assim acautelado de alguma forma que o devedor suportaria os custos que essa obrigação fiscal envolvia, sabendo, ainda, que este não teria capacidade financeira para o fazer, resta concluir que o prejuízo que aqui apresenta e que quer ver ser suportado pelo Estado apenas e só é resultado de uma relação comercial privada surgida entre o credor e o devedor;
-
A tese defendida pelo Requerente de que se está perante uma situação de “substituição tributária”, mas sem retenção, não tem suporte legal;
-
No caso concreto do IS, não se pode dizer que a prestação tributária é exigida a pessoa diferente do contribuinte, dado que o contribuinte é o sujeito passivo do imposto de acordo com as normas de incidência subjetiva. Não existe, pois, substituição tributária. Quanto muito, existirá aquilo que comummente se designa “contribuinte de facto” no âmbito da distinção que usualmente se faz entre “contribuinte de direito” e “contribuinte de facto” atento o fenómeno da repercussão tributária ocorrido na tributação sobre o consumo;
-
O único responsável tributário, perante o Estado, pela falta de imposto liquidado é, em caso de divergência entre a pessoa que figura como sujeito passivo e a que figura como titular do interesse económico que tem o encargo do imposto, o sujeito passivo, e não o repercutido ou o titular daquele interesse económico;
-
Não houve, contrariamente ao que pretende fazer crer o Requerente, qualquer enriquecimento sem causa por parte do Estado, mas apenas o cumprimento de uma disposição legal;
-
O imposto de selo liquidado e entregue decorreu da emissão das duas livranças, nos termos do disposto nos artigos 1.º n.º 1, art.º 2.º n.º 1 alínea f) e verba 23.2 da TGIS. O facto do titular do encargo (devedor da livrança) não ter procedido ao pagamento do imposto como alega o ora Requerente, não altera o sentido da norma que prevê tal tributação;
-
Não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido ao Requerente qualquer indemnização, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT.
3.2.3. Apreciação da questão
Os argumentos e as posições das partes quanto ao tema a decidir já constam no antecedente ponto 3.2.2), pelo que importa começar por fazer o enquadramento jurídico da questão.
A norma do artigo 1º do CIS, define o âmbito de incidência objectiva do imposto, estatuindo que o Imposto do Selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na tabela geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens (Cf. artigo 1.º, n.º 1, do CIS).
Por seu turno, o artigo 2.º do CIS, define o âmbito de incidência subjectiva do imposto, intitulando como sujeitos passivos, entre outros, as “Entidades emitentes de letras e outros títulos de crédito, entidades editantes de cheques e livranças ou, no caso de títulos emitidos no estrangeiro, a primeira entidade que intervenha na negociação ou pagamento " (n.º 1, alínea f).
O artigo 3.º do CIS, sob a epígrafe “Encargo do imposto”, consigna, por sua vez, que, nas situações de incidência subjectiva que se encontram descritas no artigo 1.º, o “imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico” (n.º 1), considerando-se, especificamente, como titular do interesse económico, no caso das livranças, o “devedor" (n.º 3, alínea k)).
A norma do artigo 5.º, n.º 1, alínea f), do CIS, estabelece que a obrigação tributária, se considera constituída, no que às livranças respeita, “no momento em que possam ser preenchidas nos termos da respectiva convenção de preenchimento”.
Nos termos da verba 23.2 da TGIS, as livranças estão sujeitas a IS sobre o respectivo valor, com o mínimo de 1 euro, à taxa de 0,5%.
O artigo 23º, nº 1 do CIS, estabelece que a “liquidação do imposto compete aos sujeitos passivos referidos nos nºs. 1 e 3 do artigo 2.º”.
O artigo 41º do CIS, estatui que o pagamento do IS – no que ao caso aqui importa – “é efetuado pelas pessoas ou entidades referidas no artigo 23.º”.
Feito o enquadramento legal, analisemos então a situação em concreto.
No caso em apreço, o Requerente é quem é o sujeito passivo do imposto, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS, onde se prevê que são sujeitos passivos do imposto, as entidades editantes de livranças.
Aqui chegados, há que distinguir os conceitos de sujeito passivo e de encargo do imposto e respetivo titular do interesse económico e aferir quem é o responsável do imposto.
O artigo 20º da LGT, dá-nos o conceito de substituição tributária, dispondo que:
“1 - A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte.
2 - A substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido.”
Por seu turno, a norma do artigo 28.º da LGT, regula a responsabilidade em caso de substituição tributária, dispondo o seguinte:
“1 - Em caso de substituição tributária, a entidade obrigada à retenção é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do Estado, ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu pagamento, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Quando a retenção tiver a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária, ficando este ainda sujeito aos juros compensatórios devidos desde o termo do prazo de entrega até ao termo do prazo para apresentação da declaração pelo responsável originário ou até à data da entrega do imposto retido, se anterior.
3 - Nos restantes casos, o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente o foram.”
Ora, no caso concreto, a prestação tributária (IS) não está a ser exigida a pessoa diferente do contribuinte, dado que o Requerente é o sujeito passivo do imposto de acordo com as normas de incidência subjetiva.
Não existe, pois, substituição tributária. Quanto muito, existirá aquilo que comummente se designa “contribuinte de facto” no âmbito da distinção que usualmente se faz entre “contribuinte de direito” e “contribuinte de facto” atento o fenómeno da repercussão tributária ocorrido na tributação sobre o consumo.
A distinção destas figuras está bem consolidada na jurisprudência. Veja-se a título de exemplo, e pela sua relevância, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 22-04-2004 (Rel. Oliveira Barros), Proc. 04B837, onde se afirma o seguinte:
“Enquanto responsável fiscal chamado a pagá-lo (contribuinte de direito), é-o também pela falta da sua oportuna liquidação e cobrança a quem efectivamente o desembolsa (ou seja, ao contribuinte de facto). Como o imposto de selo, o IVA é, na verdade, um imposto cobrado por uns, mas posto a cargo de e suportado economicamente por outros. [...] são estes últimos que vêm na realidade a ser os contribuintes. [...] são eles os devedores principais e originários desse tributo, e, assim, o seu sujeito passivo propriamente dito.”
Como defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, o repercutido do tributo não é sujeito passivo do imposto e, sendo a obrigação do repercutido uma obrigação legal, ainda assim está na mão do sujeito passivo repercutir ou não o imposto na esfera jurídica daquele no âmbito de uma relação jurídica privada em que se admitiria a figura da renúncia contratual (cf. Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada, 4ª ed., 2012, pp. 188 a 189).
Importa, também fazer a distinção entre os conceitos de substituição tributária e de repercussão tributária, citando-se a este propósito, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) proferido em de 30-04-2013, onde foi Relator Jorge Cortês:
“1) Seja pela constituição da garantia, seja pela utilização do crédito concedido é devido Imposto de Selo, cujo dever de liquidação e pagamento recai sobre a recorrente, caixa de crédito agrícola mútuo, sujeito passivo do imposto, mas não titular do interesse económico sobre o qual recai o encargo do imposto.
2) Verifica-se a repercussão fiscal do imposto, dado que o sujeito directamente determinado pela lei para pagar o imposto não é verdadeiramente o titular da riqueza a tributar, mas apenas um sujeito sobre quem é mais fácil executar a cobrança.”
Na repercussão fiscal, “tudo se passa apenas entre dois sujeitos privados, com o afastamento do sujeito activo da relação jurídica tributária” (cf. Diogo Feio, A substituição fiscal e a retenção na fonte: o caso específico dos impostos sobre o rendimento, Coimbra Editora, 2001, p. 93).
Neste sentido, o único responsável tributário, perante o Estado, pela falta de imposto liquidado é, em caso de divergência entre a pessoa que figura como sujeito passivo e a que figura como titular do interesse económico que tem o encargo do imposto, o sujeito passivo, e não o repercutido ou o titular daquele interesse económico.
O que significa que é ao sujeito passivo que compete a liquidação do imposto, como prevê o artigo 23.º, n.º 1, do CIS, e o efectivo pagamento do imposto liquidado, como também consta do artigo 41.º, n.º 1. do CIS, não havendo sequer lugar à responsabilidade solidária daquele a quem a lei confere o encargo do imposto (artigo 42.º).
Como esclarece ainda o artigo o artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, não é sujeito passivo "quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso ou impugnação nos termos das leis tributárias".
Como é de concluir, o único responsável pela liquidação do imposto é o sujeito passivo, neste caso, a entidade editante da livrança, o aqui Requerente, sendo que sobre o devedor apenas recai o encargo de pagar o imposto por efeito de um mecanismo de repercussão.
Considerando todo o antes enunciado, não restam dúvidas que o Requerente é o sujeito passivo de Imposto do Selo, recaindo sobre o mesmo a obrigação de cobrança e entrega do imposto ao Estado, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 2.º, n.º 1 do artigo 23.º e artigo 41.º, todos do CIS.
Em face do exposto, impõe-se concluir pela improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral.
4. DECISÃO
Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
-
Julgar totalmente improcedentes os pedidos formulados pelo Requerente;
-
Condenar o Requerente no pagamento das custas do processo.
5. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 36.394,14 (trinta e seis mil, trezentos e noventa e quatro euros e catorze cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
6. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento, a pagar pelo Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de dezembro de 2024.
O Árbitro,
___________________________
(Carla Almeida Cruz)