Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 418/2024-T
Data da decisão: 2024-11-26  IVA  
Valor do pedido: € 1.071,00
Tema: IVA – Regularização de IVA em Fundos. Repercussão legal do IVA e isenção atinente a serviços de gestão (cf. artigo n.º 9 al. 27 CIVA).
Diretiva do IVA, Princípio da Neutralidade e Jurisprudência do TJUE.
Exceções por ilegitimidade processual.
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SUMÁRIO:

  1. A ausência do fundamento jurídico no pedido de pronúncia arbitral, que enquadra devidamente os vários sujeitos processuais, Requerentes, releva, por ser o ponto de partida para indagar, escrutinar, sindicar (desde logo na Resposta da Requerida), a verificação dos pressupostos de facto e de direito, previstos no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, de que depende a adequada apreciação de um pedido em “coligação de autores”, apta para que uma única decisão arbitral se projete na esfera jurídica de vários sujeitos passivos.
  2. Não foi demonstrado no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O Árbitro Nuno Miguel Morujão, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 11 de junho de 2024, decide:

 

I- Relatório

 

  1. A...‐ Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., com o número de identificação fiscal n.º ... e sede ..., nº ... ‐..., ...‐... Lisboa, doravante abreviadamente designada por “Sociedade Gestora” ou “A...” vem, na qualidade de sociedade gestora (e, por conseguinte, representante fiscal) dos seguintes fundos de investimento mobiliário abertos, aqui requerentes (coletivamente designados doravante por “Fundos” ou “Requerentes”), ao abrigo da al. a) e b) do n.º 2 do artigo 10.º do decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 99.º e n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”):
    1. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível B... (no qual foi fusionado o Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível C...), com o NIF ...;
    2. D...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário (anteriormente designado E...‐ Fundo de Investimento Alternativo Mobiliário Aberto), com o NIF ...;
    3. F...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
    4. G...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
    5. H...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
    6. I...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
    7. J...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
    8. K...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
    9. L...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
    10. M...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto (anteriormente designado N...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto) com o NIF ...;
    11. O...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
    12. P...‐ Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF ...;
    13. Q...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF ...;
    14. R...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
    15. S...– Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma (anteriormente designado T...– Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma), com o NIF...;
    16. U...‐ Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o NIF...;
    17. V...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
    18. W...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível, com o NIF ...;
    19. X...‐ Fundo De Investimento Aberto de Poupança Reforma (aqui se incluem os seus compartimentos ... Ciclo de Vida  ‐  45  ‐54 / ... Ciclo de Vida ‐ 35 ‐44 / ... Ciclo de Vida – 55) com os NIF: ... / ... / ... / ..., respetivamente;
    20. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário – Y..., com o NIF...;
    21. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Z..., com o NIF...;
    22. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações AA..., com o NIF ...;
    23. BB...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
    24. CC...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
    25. DD...– Fundo de Investimento Aberto de Ações (anteriormente designado EE...‐ Fundo de Investimento Aberto de Ações), com o NIF ...;
    26. FF...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário, com o NIF...;
    27. GG...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF... .
  2. Os Requerentes solicitam a pronúncia arbitral sobre a (i)legalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, datado de 22 de dezembro de 2023, emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) no âmbito do processo n.º ...2023... (Doc. 1), apresentado pelos Requerentes com vista à contestação dos atos tributários de (auto)liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) efetuados pela entidade que prestou aos Requerentes serviços de administração e gestão de fundos de investimento, durante os períodos de tributação entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, materializados na submissão das Declarações Periódicas referentes a tais períodos, pela entidade prestadora dos referidos serviços, no âmbito dos quais os Requerentes suportaram um montante de IVA superior ao legalmente devido e, por conseguinte procederam ao pagamento de imposto em excesso no montante de €45.537,70.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 27 de março de 2024
  4. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  5. Em 20 de maio de 2024, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.
  6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 11 de junho de 2024.
  7. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
  8. A Requente alega, sumariamente, que:
    1. O Tribunal Arbitral é competente, o pedido é tempestivo, e os Requerentes são sujeitos processuais legítimos.
    2. Os Requerentes suportaram IVA relativamente a um conjunto de serviços de gestão que lhe foram prestados, por indevido enquadramento na lei, que em rigor isenta os serviços de Imposto.
    3. Neste contexto, os Requerentes interpelaram os prestadores de serviço para substituírem as faturas, e assim regularizarem o IVA entregue ao Estado em excesso.
    4. Com efeito, está prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 135.º da Diretiva IVA (transposta para o ordenamento jurídico nacional através da subal. g) da al. 27 do artigo 9.º do Código do IVA), a isenção de IVA aplicável às prestações de serviços de “administração ou gestão de fundos comuns de investimento”.
    5. Nos termos do Acórdão TJUE de 7 de março de 2013, prolatado no processo C‐275/11 (Caso GfBk), a respeito de uma tipologia de serviço não elencada no Anexo II da Diretiva OICVM, estatuiu que “o artigo 5.°, n.° 2, da referida diretiva dispõe que a enumeração do referido anexo «não deve considerar‐se exaustiva», prosseguindo afirmando perentoriamente que “o facto de os serviços prestados [pelo ali fornecedor] não se encontrarem expressamente enumerados no referido anexo não impede, dado o caráter predominantemente ilustrativo deste último, a sua inclusão na categoria de serviço específico englobado nas atividades de «gestão» de um fundo comum de investimento.
    6. Em decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, a AT refere que “o que está em causa nos autos é o exercício do direito à regularização do imposto a favor dos sujeitos passivos”, afirmando ainda que “as autoliquidações não estão erradas porquanto devem refletir as faturas emitidas e os respetivos registos contabilísticos efetuados pelo sujeito passivo”. Neste sentido, “estar‐se‐á perante uma situação de inexatidão de fatura relevante para efeitos de passível correção nos termos do n.º 1 e 3 do artigo 78.º do CIVA, quando o valor tributável da operação, ou o respetivo imposto nela mencionado, não forem os corretos, face aos factos apurados e ao direito aplicável”.
    7. Acrescenta a AT, ainda, que sempre teria de existir a “obrigatoriedade de observância ao disposto no artigo 36.º, no sentido de fazer constar das mesmas [faturas] a menção e justificação para a aplicação da isenção de imposto (…)”.
    8. Em concreto, no âmbito do Processo C‐595/13, de 9 de Dezembro de 2015, o Tribunal concluiu que “devem ser considerados fundos comuns de investimento isentos na aceção dessa disposição, por um lado, os investimentos abrangidos pela diretiva OICVM e sujeitos, nesse âmbito, a uma supervisão específica por parte do Estado e, por outro, os fundos que, não sendo organismos de investimento coletivo na aceção dessa diretiva, têm características semelhantes a estes e efetuam as mesmas operações, ou, pelo menos, têm características de tal forma comparáveis que se encontram numa relação de concorrência com eles”.
    9. Adicionalmente, entendem os Requerentes ser da maior relevância trazer à colação o entendimento propugnado pelo TJUE no âmbito do seu Acórdão de 8 de dezembro de 2022 prolatado no processo C‐378/21. Questionou‐se o Douto Tribunal se “um sujeito passivo que prestou um serviço e que mencionou na sua fatura um montante de IVA calculado com base numa taxa errada é devedor desse IVA mesmo quando não há um risco de perda de receitas fiscais, pelo facto de os beneficiários desse serviço serem exclusivamente consumidores finais que não beneficiam do direito à dedução do IVA pago a montante”, notando ainda que “nos termos do artigo 203.º da Diretiva IVA, o IVA é devido por qualquer pessoa que mencione esse imposto numa fatura e que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o IVA mencionado numa fatura é devido pelo emitente dessa fatura”.
    10. Neste âmbito, reiterou o Tribunal que “resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 203.º da Diretiva IVA visa eliminar o risco de perda de receitas fiscais que possa resultar do direito à dedução previsto nesta diretiva”.
    11. Sendo que, atentando à jurisprudência supra elencada, recorde‐se que os aqui Requerentes apresentaram‐se, para efeitos de IVA, como sujeitos passivos que, durante o período em apreço, i.e. de janeiro de 2021 a dezembro de 2022, não deduziu qualquer IVA a seu favor, nem o poderia ter feito, porquanto se encontram inseridos no regime de isenção, para efeitos deste imposto.
    12. Assim, por não se ter efetivado o direito à dedução, inexiste, na situação concreta dos Requerentes, qualquer possibilidade de se verificar um risco de perda de receita fiscal porquanto esta nunca deduziu qualquer IVA, respeitante aos serviços ora escrutinados.
    13. Cumpre notar que o intuito do mecanismo da regularização referido pela AT e inerente emissão de uma nota de crédito para correção do imposto indevidamente suportado pelos Requerentes teria como ratio subjacente evitar que a administração fiscal se veja lesada através da perda de receita fiscal o que, conforme demonstrado, nem poderia suceder in casu, porquanto os Requerentes nunca deduziram qualquer imposto, nem o poderiam ter feito.
    14. A este respeito, entendem os Requerentes que acolher tal entendimento, no seu caso, se mostraria irrelevante, na medida em que o efeito prático da necessidade de emissão de novo documento seria nulo face à factualidade descrita, uma vez que estes, conforme mencionado, apresentam‐se, para efeitos de IVA, como um sujeito passivo cujo exercício do direito à dedução, quanto à tipologia de serviços sub judice, nunca foi exercido, inexistindo qualquer risco de perda de receita fiscal.
    15. Paralelamente, recorde‐se ainda que os Requerentes tentaram obter junto do fornecedor em causa a retificação das faturas que lhe foram emitidas com a aplicação do enquadramento em IVA aqui defendido (conforme indicado pela AT), tendo o mesmo mostrado recusa a fazê‐lo. Desta forma, recuperando o entendimento perfilhado pelo TJUE ao esclarecer que, “se for impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago, este adquirente, não lhe sendo imputado nenhum abuso, fraude ou negligência, tem o direito de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente à Autoridade Tributária” (cf. Acórdão de 7 de setembro de 2023 (processo C‐453/22, Caso Finanzamt Brilon) –  não poderão os Requerentes ver‐se coartados da possibilidade de obter, na sua esfera, o reembolso dos montantes de IVA por si indevidamente suportados com a aquisição de serviços tendentes à sua própria gestão e administração, na medida em que os mesmos deveriam ter beneficiado da isenção de imposto consagrada na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA.
    16. Por outro lado, a Requerente sustenta verificar-se a existência de um erro de direito na aplicação do enquadramento em IVA aos serviços adquiridos pelos Requerentes.
    17. Ademais, entende a AT estar‐se perante uma situação subsumível ao n.º 3 do artigo 78.º do Código do IVA.
    18. Contudo, não será esse o caso da situação ora em apreço, mas estaremos sim, perante um erro de Direito aplicável, porquanto os serviços adquiridos pelos Requerentes foram enquadrados pelo prestador enquanto serviços sujeitos a IVA e dele não isentos quando, conforme supra explanado, deveriam ter sido enquadrados como isentos deste imposto, ao abrigo da subalínea g) da al. 27 do artigo 9.º do Código do IVA.
    19. A este respeito, existem diversos normativos legais no Código do IVA que prevêem a possibilidade de regularização de imposto, tanto a favor do Estado, como a favor do sujeito passivo. Tal é uma exigência do princípio da neutralidade, princípio basilar do sistema comum do IVA.
    20. Neste sentido, atente‐se ao n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA que estabelece que “[s]em prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto (…)”.
    21. Ora, pese embora existam no Código do IVA diversas disposições especiais, nenhuma das mesmas se aplica à regularização de imposto motivada por erro de enquadramento das operações tributáveis dos sujeitos passivos (cf. pelo STA no seu Acórdão de 7 de abril de 2021, prolatado no processo n.º 02315/14.1BELRS).
    22. Não é aplicável a Decisão Arbitral proferida a 30 de março de 2023, no âmbito do processo nº 484/2022‐T à situação dos Requerentes, já que os aqui Requerentes se assumem enquanto adquirentes dos serviços em apreço e não como prestador dos mesmos, conforme sucede na situação ali apreciada pelo Douto Tribunal e, ademais, conforme amplamente supra demonstrado, inexiste na esfera dos Requerentes qualquer possibilidade de utilização das faturas para o exercício do direito à dedução.
    23. Não se afigura conforme aos princípios da neutralidade, da efetividade e da eficácia que regem o sistema comum do IVA, perpetuar esta situação de liquidação indevida de IVA com referência aos serviços de gestão e administração de fundos de investimento (cf. o TJUE, no Acórdão de 23 de abril de 2015, prolatado no processo C‐111/14). Em face do exposto, conclui‐se neste processo que “(…) o princípio da neutralidade do IVA exige que este imposto indevidamente faturado possa ser corrigido, sem que esta regularização possa ser subordinada pelos Estados‐Membros à boa‐fé do emitente da referida fatura. Esta regularização não pode depender do poder de apreciação discricionário da Administração Fiscal”.
    24. A este respeito pronunciou‐se já o TJUE sustentando que “no que diz respeito ao princípio da efetividade, há que recordar que os Estados‐Membros têm a responsabilidade de assegurar, em cada caso, uma proteção efetiva dos direitos conferidos pelo direito da União e que esse princípio exige, nomeadamente, que as autoridades fiscais dos Estados‐Membros não tornem impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União”, cf. Acórdão do TJUE de 20 de dezembro de 2017, prolatado no processo C‐500/16.
    25. Juros indemnizatórios: afigurando‐se este ato tributário de autoliquidação de IVA sub judice como manifestamente ilegal nos termos acima expendidos, devem os Requerentes ser integralmente ressarcidos do respetivo valor do IVA entregue em excesso ao Estado (correspondente ao montante de imposto suportados e não deduzidos pelos Requerentes), porquanto não devido, no montante global de € 45.537,70. 
    26. Por seu turno, e sendo procedente o presente pedido, os Requerentes requerem, igualmente, que lhe sejam pagos os respetivos juros indemnizatórios.  O direito a juros indemnizatórios alicerça‐se no artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o que faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida. Dispõe esta norma que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
    27. Reenvio prejudicial: A título subsidiário, na medida em que não seja claro para o presente Tribunal o alcance das normas da Diretiva IVA que possam, em seu juízo, interferir com a boa solução deste caso, deverá então o Tribunal promover o reenvio prejudicial, das questões que entenda suscitar, para o TJUE, relativamente à aplicação da isenção de IVA aos serviços aqui sob escrutínio e, bem assim, ao meio adequado à obtenção do reembolso (aos Requerentes) do IVA que suportaram em excesso por erro (no enquadramento da operação) que o fornecedor se recusou a corrigir mediante a emissão de notas de crédito com IVA e de novas faturas contemplando a isenção aqui discutida.
  9. Por Despacho Arbitral, de 11 de junho de 2024, nos termos do previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT, notificou-se a AT para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando dever ser remetido ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da Resposta, aplicando-se, na falta de remessa, o disposto no n.º 5 do artigo 110.º do CPPT.
  10. A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”) ofereceu Resposta em 2 de setembro de 2024, acompanhada do Processo Administrativo, alegando, em síntese:

1- Exceção: da ilegitimidade material dos Requerentes:

  1. Alega o Requerente que, da interpretação conjugada do n.º 4 do art.º 18.º da LGT com o n.º 2 do art.º 54.º da LGT e o artigo 9.º, resulta ter legitimidade para deduzir a presente ação.

Nos termos do Acórdão proferido no processo 513/2021-T:

“Aqui chegados, importa recordar novamente a distinção entre legitimidade processual, que constitui um pressuposto adjetivo de que depende o conhecimento do mérito da causa, que se afere pelo interesse do autor em demandar e o do réu em contradizer, e legitimidade substantiva, que é um requisito de procedência do pedido, uma vez que tem que ver com a efetividade da relação material, interessando já ao mérito da causa.

Assim, in casu, apesar da Requerente ter legitimidade processual, dado o seu interesse directo em contradizer, o qual decorre do reembolso de imposto que advenha da procedência da acção (artigo 30.º, n.º 2 do CPC), não tem legitimidade material, substantiva ou ad actum, na relação controvertida em análise, dado ser-lhe inaplicável a invocada possibilidade de proceder à dedução de despesas profissionais, atendendo à efectiva relação material controvertida.

Considerando que “A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 – entende-se que não estando a B..., que é o titular do direito violado, nesta acção, julga-se verificada excepção peremptória inominada, de conhecimento oficioso, de ilegitimidade material da Requerente (artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicável ex vi artigo artigo 29.º, n.º 1 e) do RJAT)”.

  1. O direito de decidir pela regularização ou não de tal imposto (se se verificar o direito à regularização), cabe ao sujeito passivo do imposto e não, àquele a quem o imposto foi repercutido.
  2. Sendo que, não se encontra comprovado nos presentes autos que se trate efetivamente de imposto indevidamente faturado e pago em excesso, conforme resposta da prestadora dos serviços, apresentada nesta sede.
  3. No sentido da falta do pressuposto de legitimidade ativa se pronuncia o Acórdão proferido na ação arbitral n.º 471/2023-T, o qual apreciou uma factualidade em tudo coincidente com a que se encontra em apreciação na presente ação, tendo consignado o seguinte entendimento:

“2.4. Apreciação da exceção suscitada: Ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 7 do Código do IVA, quando “o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura”. No mesmo sentido, o artigo 78.º, n.º 1 do Código do IVA prevê que as “disposições dos artigos 36.º e seguintes [referentes aos prazos e às formalidades de emissão das faturas] devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo”, prevendo-se depois, nos restantes números desta norma legal, as exatas condições para o exercício deste direito por parte do sujeito passivo de imposto. A este respeito, Clotilde Celorico Palma in Introdução ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (N.º 1 da Colecção) – 6.ª Edição, p. 80 esclarece que “os sujeitos passivos deverão proceder à regularização do IVA” precisamente nos termos previstos nesta disposição legal sendo que, “caso não se cumpram os requisitos previstos no artigo 78.º, as rectificações são consideradas nulas, com os efeitos legais daí subjacentes. Ora, no presente caso está em causa a questão de saber se a retificação/restituição do IVA incorrido em fatura pode ser diretamente solicitada à AT por alguém que, não sendo o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, assume a posição de repercutido legal do valor liquidado por aquele sujeito passivo”.

  1. E continua o douto Acórdão: “Afigura-se-nos pacífico que, como refere Rui Duarte Morais in Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2016, p. 58, a verificação de uma situação em que seja liquidado imposto de montante superior ao devido terá para o repercutido “consequências económicas negativas (daí o serem, muitas vezes, designados por contribuintes de facto)”. Nesta medida, e em decorrência do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, em conjugação com o artigo 9.º do CPPT, reconhece ao repercutido legal o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou requerer pronúncia arbitral nas questões legais em que tenha um interesse legalmente protegido, isto é, em que tenha interesse direto em contradizer. Sucede que, por expressa previsão da norma da LGT acabada de referir, tal reclamação, recurso, impugnação ou pedido de pronúncia arbitral deve ser realizada “nos termos das leis tributárias”, sendo mister tomar ainda em consideração a posição assumida pela doutrina nacional e, principalmente, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) a este respeito. Ora, sendo parcos os estudos, em território nacional, sobre os direitos processuais do repercutido legal, importa chamar à colação a posição defendida já em 2008 por Bruno Botelho Antunes in Da repercussão fiscal no IVA, Almedina. No âmbito do IVA, defende este Autor que “o direito do repercutido previsto no art. 18.º, n.º 4 al. a), da LGT foi consagrado para fazer face a situações em que, o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso, não agiu nesse sentido. Nessa base, consagrou-se a possibilidade de o repercutido reaver o seu dinheiro diretamente do Estado (…)”. E esta posição afigura-se concordante com a posição assumida pelo TJUE a este respeito. (…) Portanto, da jurisprudência do TJUE acabada de referir, resulta à saciedade que o direito ao pedido direto de reembolso do IVA liquidado apenas surge na esfera do repercutido legal nas situações em que se afigure “impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago”. Como tal, e descendo ao caso concreto, cumpre então perceber se se verifica no caso sub judice a impossibilidade ou dificuldade excessiva relatada na jurisprudência do TJUE. E entendemos que não.

Nesta medida, não se encontra no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA previstos no ordenamento jurídico português, tanto mais que ainda não decorreu o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA para o efeito, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que se aplica nos casos de erros de direito (conforme Acórdãos deste Tribunal proferidos a 28-06-2017 no processo n.º 01427/14, a 03-06-2020 no processo n.º 0498/15.2 BEMDL, a 17-06-2020 no processo n.º 0443/13.0BEPRT, a 07-04-2021 no processo n.º 0796/15.5BEVIS, a 12-05-2021 no processo n.º 01023/15.0BELRS e a 07-04-2022 no processo 0379/16.2BEVIS). Ademais, e do ponto de vista da justiça material, não se vislumbra qualquer razão para “forçar” uma interpretação distinta, já que o Requerente não só contactou a C... já depois de apresentada a reclamação graciosa e o pedido de pronúncia arbitral (sendo que poderia ter, por sua exclusiva iniciativa, antecipado tal contacto) como foi precisamente o Requerente que, por esquecimento ou negligência, não deu continuidade à conversa encetada com a C... nesses termos (não respondendo ao e-mail de 30 de outubro com as informações que lhe são pedidas por esta entidade)”.

  1. Assim, o Tribunal arbitral concluiu: “Nestes termos, e considerando que o Requerente não cumpre os pressupostos que lhe permitam ser titular direto do direito ao reembolso do IVA que alega ter suportado em montante superior ao devido, não tem o mesmo legitimidade material, substantiva ou ad actum para figurar no presente processo arbitral. Como tal, e considerando que “A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 e a decisão arbitral proferida a 14 de fevereiro de 2022 no Processo n.º 513/2021-T), julga-se verificada a exceção perentória inominada de ilegitimidade material do Requerente arguida pela Requerida, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. Improcede, por isso, o pedido arbitral, por verificação da exceção perentória referida”.
  2. Perfilha o mesmo entendimento o douto Acórdão proferido na ação arbitral n.º 474/2023-T, o qual refere:

“Quanto à falta de legitimidade activa da aqui Requerente, afirmamo-la também com respaldo na decisão arbitral prolatada no Processo n.º 471/2023-T (trazida à discussão pela Requerida) que decidiu pela procedência da excepção invocada pela Requerida com base no argumentário que aqui se acolhe e a seguir se transcreve e relativamente ao qual não vemos razões para divergir.

Assim, em suma, atenta a Jurisprudência acima referida, deve ser julgada verificada a exceção perentória inominada, de conhecimento oficioso, de ilegitimidade material do Requerente (artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1 e) do RJAT), com todas as consequências legais, o que desde já se requer”.

2- Impugnação:

  1. Quanto à impugnação substantiva, a fundamentação da decisão de rejeição liminar da reclamação graciosa deduzida pela Requerente assentou na impropriedade do meio para fazer valer a pretensão, “por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legalmente previstos para o efeito, não se vislumbrando que seja admissível a sua convolação noutro qualquer meio impugnatório” – cf. ponto 88 da informação n.º 207-ISC/2023, na qual foi exarado o referido despacho de rejeição liminar.

Assenta, também, na falta de prova, nessa sede, de que tivesse solicitado às prestadoras a regularização do imposto nos termos do art.º 78.º, n.º 3 do Código do IVA, com a devida correção das faturas, nos termos legais, para que passasse a constar das mesmas a menção e justificação para a aplicação da isenção de imposto nos termos do disposto no n.º 5 do art.º 36.º do Código do IVA, e, ademais, na exclusiva disponibilidade do exercício da regularização do IVA pela prestadora do serviço – cf. ponto 51 e 75 da informação n.º 207-ISC/2023, de 2023-12-22. Não se verificando a correção das faturas inexatas, concluiu pela inexistência de fundamento legal para a anulação das autoliquidações em crise, por as mesmas se encontrarem em conformidade com as normas legais aplicáveis.

  1. O n.º 7 do art.º 29.º do Código do IVA impõe que deve ser emitido documento retificativo de fatura quando o valor tributável de uma operação ou imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo.
  2. A Requerente admite a imprescindibilidade desse mecanismo de recuperação próprio, previsto no art.º 78.º do Código do IVA, uma vez que, procedeu a diligências junto da prestadora dos serviços, para que esta anulasse as faturas e emitisse outras novas faturas com isenção do IVA, com a consequente restituição do imposto, com fundamento no acórdão do TJUE de 17 de junho de 2021, C-58/20 e C-59/20 (cf. documento n.º 9, anexo à p.i.). Contudo, a prestadora dos serviços em causa recusou-se a seguir o procedimento proposto “perante a complexidade do tema apresentado ainda não consolidado no sei da Autoridade Tributária” (cf. documento n.º 5, anexo à p.i.).
  3. Segundo o Ofício-circulado n.º 030136, de 19 de novembro de 2012, divulgado pela Direção de Serviços do IVA, a correção do valor tributável ou do correspondente imposto de uma fatura opera-se através da emissão de documentos retificativos de faturas (notas de crédito ou débito), ficando a anulação de faturas reservada a situações muito restritas relacionadas com algumas incorreções de outros elementos das faturas.
  4. Na situação concreta, caberia à prestadora retificar a fatura mediante a emissão de nota de crédito a favor dos adquirentes, conforme estatuído no n.º 7 do art.º 29.º do Código do IVA.
  5. Cumpre, no entanto, referir que, quando o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços corrigir a fatura mediante a emissão de uma nota de crédito pelo total da operação, deve subsequentemente emitir nova fatura, fazendo referência à fatura objeto de correção, e procedendo à regularização do imposto nos termos indicados.
  6. Este é o procedimento correto face às normas legais aplicáveis e que corresponde ao entendimento atual da Direção de Serviços do IVA (cf. informação n.º 2024 ..., sancionada por despacho exarado pela Diretora de Serviços do IVA, de 2024-03-08).
  7. Saliente-se que a regularização pelo prestador de serviços tem caráter facultativo, dentro do prazo previsto no n.º 3 do artigo 78.º do Código do IVA, sendo a sua devolução ao cliente, efetuada de forma voluntária ou, através de instauração de competente ação cível, a interpor pelo lesado.
  8. Afigura-se, portanto, que a pretensão da Requerente não se enquadra no âmbito da reclamação graciosa, devendo a decisão impugnada manter-se na ordem jurídica.
  9. Por outro lado, no que tange ao objeto mediato do pedido arbitral – as autoliquidações de IVA da entidade prestadora dos serviços externalizados –, independentemente do enquadramento jurídico-tributário das operações, a AT encontra-se impossibilitada a proceder à sua anulação, nos termos do n.º 3 do artigo 97.º do Código do IVA, que impede a anulação das liquidações quando existe imposto repercutido (“as liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º”).
  10. Nesse sentido, decidiu o coletivo do Tribunal Arbitral Tributário, na decisão arbitral n.º 484/2022-T, cujo entendimento afigura-se ser, de facto, aplicável à situação vertente, uma vez que está em causa a impossibilidade de anulação de liquidações por falta da prévia correção de faturas por parte do emitente.
  11. Aí, numa situação idêntica à que ora se discute, foi entendido que:

“Na verdade, as facturas em que se materializam as autoliquidações incluem menção do IVA e não foram objecto de correcção ou regularização, pelo que o IVA é devido pela A..., independentemente de ser ou não aplicável a isenção, pois, por força do disposto no artigo 203.º da Directiva n.º 2006/112/CE «o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa factura», mesmo que essa menção seja indevida, como acentua a alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA e foi confirmado pelo TJUE no acórdão de 31-01-2013, proferido no processo C-643/11, que se refere que «o imposto sobre o valor acrescentado mencionado numa fatura por uma pessoa é por ela devido, independentemente da existência efetiva de uma operação tributável”.

A obrigação consagrada no artigo 203.º da Diretiva visa eliminar o risco de perda de receitas fiscais que pode resultar do direito a dedução (acórdãos do TJUE de 18-06-2009, Stadeco, C-566/07, n.º 28, e de 31-01-2013, LVK - 56 EOOD, processo C-643/11,n.º 36), pelo que deve ser interpretada, em sintonia com o que o TJUE, aquela obrigação «é limitada pela possibilidade, que os Estados- Membros podem consagrar nas suas ordens jurídicas, de se corrigir o imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre estar de boa-fé ou quando, em tempo útil, tiver eliminado completamente o risco de perda de receitas fiscais (v., neste sentido, acórdão Genius, já referido, n.° 18. e acórdãos de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel, C-454/98, Colet., p. I-6973, n.ºs 56 a 61 e 63, e de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o., C-78/02 a C-80/02, Colet., p. I-13295, n.° 50)» (acórdão de 31-01-2013, proferido no processo C-643/11, n.º 37). É em consonância com este regime da Directiva IVA, de valor superior ao direito ordinário (artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), que tem de ser aplicada a isenção prevista na alínea 27) do artigo 9.º do CIVA. No caso em apreço, não tendo havido correcções das facturas nem demonstrada a impossibilidade de utilização das facturas para exercício do direito a dedução, não se está perante uma situação em que seja permitida a anulação das autoliquidações, como, aliás, decorre do teor expresso do n.º 3 do artigo 97.º do CIVA, que estabelece que «as liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º». Não obstante, tal como avançado pela Requerida no artigo 53.º da sua Resposta, «se a Requerente entende que o não deveria ter liquidado IVA nas facturas, ou seja, que liquidou indevidamente IVA nas facturas, então, deveria proceder à correcção das facturas (sempre e quando esteja em tempo para o fazer) e, nos termos previstos no art.º 78.º do CIVA, regularizado a seu favor o imposto, uma vez que cumprido o procedimento para tal ali previsto», o que é pertinente por o prazo para tal ser, no máximo, 4 anos, em conformidade com o previsto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA e como vem sendo o entendimento do STA: acórdão do STA de 28-6-2017, recurso n.º 01427/14, 03-06-2020, recurso n.º 498/15.2BEM,de 17-06-2020, recurso n.º 443/13.0BEPRT. Pelo exposto, tem de se concluir que, no actual contexto, as autoliquidações impugnadas não podem ser anuladas, pelo que o pedido de pronúncia arbitral tem necessariamente de improceder”.

  1. Relativamente ao concreto fundamento da jurisprudência do TJUE, caso Schütte, no referido acórdão é sublinhado que, não havendo regulamentação da União em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado Membro prever as condições em que esses pedidos podem ser exercidos.
  2. No que concerne ao acórdão do STA n.º 02315/14.1BELRS, invocado pela Requerente, a respetiva jurisprudência também não é de aplicar ao caso vertente, pois naquele processo encontrava-se confirmada a legítima aplicação da isenção do artigo 9.º do Código do IVA, através de uma informação vinculativa prestada pela AT ao sujeito passivo, encontrando-se em discussão, no plano judicial, apenas o prazo/norma aplicável para o prestador dos serviços poder regularizar a seu favor o imposto indevidamente liquidado, o que, igualmente, não é aqui o caso, pois na situação em apreço os Fundos são os repercutidos, e não têm na sua posse a validação dos enquadramentos em sede de IVA das operações realizadas pela prestadora dos serviços externalizados.
  3. Quanto ao pedido de reenvio prejudicial o mesmo não deve, igualmente, proceder, porque, conforme o TJUE tem afirmado, é aos tribunais nacionais que incumbe verificar se a legislação nacional abrange todas as situações em que, de acordo com o n.° 1 do artigo 90.º da Diretiva IVA, as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitam às que permitem justificar que, depois de efetuada a operação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação (processo C-146/19).
  4. Por Despacho Arbitral, de 2 de setembro de 2024, notificaram-se as partes da dispensa a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste, cf. artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT.
  5. As partes apresentaram alegações escritas no prazo legal.
  6. Como alegações finais, a Requerente aduziu os seguintes argumentos:
    1. Em matéria de legitimidade para apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, dispõe o artigo 18.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) que o “sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável”, acrescentando o n.º 4 que “[n]ão é sujeito passivo quem: a) suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias”.
    2. Ademais, dispõe também o n.º 2 do artigo 54.º da LGT que “[a]s garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”.
    3. Ainda, nos termos do n.º 1 do artigo 9.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), aplicável por força da alínea a) do nº 1 do art.º 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) “[t]êm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”.
    4. Nos termos do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, o repercutido tem um interesse legalmente protegido, pelo que, também nos termos do artigo 9.º do CPPT, terá direito de agir em processo, conforme sucede in casu.
    5. Nesta senda e em linha com o supra exposto, o artigo 65.º da LGT dispõe que “[t]êm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido” (sublinhado nosso).
    6. Com efeito, o n.º 1 dos artigos 20.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com os artigos 9.º, 18.º e 95.º da LGT, e com o n.º 1 do artigo 9.º CPPT, conferem a possibilidade ao repercutido e habilitam-no para reclamar, recorrer ou impugnar, contanto que este possua um direito ou interesse legalmente protegido, in casu, a carga tributária que os Requerentes suportaram indevidamente, não devendo os mesmos ver-se vedados de o fazer, cabendo respeitar o princípio constitucionalmente reconhecido de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
    7. Ademais, não é, de todo, correto afirmar que o repercutido não assume qualquer ligação com a relação tributária subjacente, sendo certo que se estabelece um dever na esfera do sujeito passivo, de repercussão do imposto, e consequentemente se impõe ao repercutido o dever de o suportar, estando a relação de repercussão intrinsecamente conexa com a obrigação tributária em causa.
    8. Com efeito, entendem os Requerentes ser um facto que a segunda parte da alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT atribui ao repercutido o direito de impugnar a liquidação do imposto repercutido e que a parte final do n.º 1 do artigo 9.º, em conjugação com o seu n.º 4, lhe atribui legitimidade processual ativa na impugnação judicial correspondente.
    9. Nestes termos, resulta evidente ser reconhecida “a legitimidade ao repercutido (…), uma vez que a liquidação (pelo sujeito passivo) de imposto superior ao devido terá para ele consequências económicas negativas (daí o serem, muitas vezes, designados por contribuintes de facto)” – vide Rui Duarte Morais, in Manual de Procedimento e Processo Tributário, 2016, p.58.
    10. Não só existe suporte legal para demonstrar a legitimidade dos ora Requerentes, como a própria AT já deixou claro, numa situação semelhante, que “[o] repercutido que seja titular de uma interesse legalmente protegido que tenha sido ofendido por uma liquidação (indevida) de imposto do selo, deve efectuar uma reclamação graciosa necessária antes de deduzir a impugnação judicial, nos termos do artigo 131.º, n.º1, do CPPT”, possibilidade esta que, de resto, tem sido pacificamente aceite pela jurisprudência nacional.
    11. Atentando ao supra expendido, fica justificada e sustentada a legitimidade processual ativa dos Requerentes no presente processo, por terem suportado indevidamente IVA na aquisição de serviços, cujo fornecedor incorreu em erro na determinação do enquadramento jurídico-tributário a estes conferido.
    12. Adicionalmente, entendemos Requerentes ser da maior relevância reiterar o entendimento propugnado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no âmbito do seu Acórdão de 7 de setembro de 2023, prolatado no âmbito do processo C-453/22 nos termos do qual foi analisada a admissibilidade e, bem assim, legitimidade que o adquirente de bens/serviços repercutido possui para despoletar junto da Administração Fiscal Alemã um pedido de reembolso relativo a montantes de IVA indevidamente faturados pelo fornecedor e a este pagos.
    13. Ora, a título preliminar, afirmou desde logo aquele Tribunal que “se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil (…), o princípio da efetividade pode exigir que o adquirente do bem em questão possa requerer o reembolso diretamente às autoridades tributárias. Por conseguinte, os Estados-Membros devem prever os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao referido adquirente recuperar o imposto indevidamente faturado, de modo a que o princípio da efetividade seja respeitado”[1].
    14. Prossegue o TJUE no sentido de sustentar que “tendo em conta o lugar que o princípio da neutralidade do IVA ocupa no sistema comum do IVA, uma sanção que consiste em recusar de forma absoluta o direito ao reembolso do IVA incorretamente faturado e indevidamente pago é desproporcionada quando não for demonstrada nenhuma fraude ou prejuízo para o orçamento do Estado, mesmo em caso de negligência comprovada por parte do sujeito passivo”[2].
    15. Na esteira daquele Tribunal, o mesmo reiterou que “se for impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago, este adquirente, não lhe sendo imputado nenhum abuso, fraude ou negligência, tem o direito de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente à Autoridade Tributária”[3].
    16. Indo ao encontro do racional propugnado por este Tribunal cumpre, nesta sede, notar que os Requerentes lograram encetar todos os esforços necessários para que, junto do fornecedor em apreço, este procedesse à substituição das faturas previamente emitidas de tal modo que, aquando da anulação das mesmas e subsequente emissão de novas faturas, estas passassem a refletir o correto enquadramento em sede de IVA.
    17. Ora, a ratio que se encontra na base do mecanismo da repercussão legal habilita, precisamente, que quem suporta o verdadeiro encargo do imposto, conforme sucede in casu com os Requerentes, não se veja lesado em situações em que o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso ou indevidamente, não atuou nesse sentido.
    18. Neste contexto, os Requerentes interpelaram os prestadores de serviço para substituírem as faturas, e assim regularizarem o IVA entregue ao Estado em excesso.
    19. Além do exposto, no essencial, a Requerente mantém as posições propugnadas nas alegações iniciais.
  7. A Requerida prescindiu de alegações finais.

 

II- Saneamento

 

  1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.
  2. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e os Requerentes, através da Sociedade Gestora, juntaram procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.
  3. Em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), o tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
  4. O processo não enferma de nulidades.
  5. Foi suscitada pela Requerida uma questão prévia, quanto à legitimidade material processual dos Requerentes.

 

 

 

 

III- Fundamentação

 

III.1- Matéria de facto

 

  1. Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas quanto ao mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos, sem prejuízo do que é mencionado no parágrafo 22:
    1. No período em análise, a A...‐ Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., é Sociedade Gestora dos Fundos (Requerentes):
      1. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível B... (no qual foi fusionado o Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível C...), com o NIF...;
      2. D...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário (anteriormente designado E...‐ Fundo de Investimento Alternativo Mobiliário Aberto), com o NIF...;
      3. F...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
      4. G...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
      5. H...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
      6. I...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
      7. J...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
      8. K...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
      9. L...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
      10. M...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto (anteriormente designado N...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto) com o NIF...;
      11. O...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
      12. P...‐ Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
      13. Q...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
      14. R...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
      15. S...– Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma (anteriormente designado T...– Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma), com o NIF ...;
      16. U... ‐ Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o NIF...;
      17. V...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF ...;
      18. W...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível, com o NIF ...;
      19. X...‐ Fundo De Investimento Aberto de Poupança Reforma (aqui se incluem os seus compartimentos ... Ciclo de Vida  ‐  45  ‐54 / ... Ciclo de Vida ‐ 35 ‐44 / ... Ciclo de Vida – 55) com os NIF: ... / ... / ... /..., respetivamente;
      20. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário –Y..., com o NIF ...;
      21. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Z..., com o NIF ...;
      22. Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações AA... com o NIF...;
      23. BB... – Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF ...;
      24. CC...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF ...;
      25. DD...– Fundo de Investimento Aberto de Ações (anteriormente designado EE...‐ Fundo de Investimento Aberto de Ações), com o NIF...;
      26. FF...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário, com o NIF...;
      27. GG...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF... .
    2. Os Requerentes incorreram em gastos referentes à aquisição de serviços necessários e indispensáveis à referida atividade de gestão, designadamente, serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas:
      1. A Sociedade Gestora externalizou parte dos serviços necessários e indispensáveis à gestão e administração do portfólio de ativos que integram o património dos Requerentes.
      2. Outra parte dos serviços de gestão e administração, tem vindo a ser prestada e faturada, pela Sociedade Gestora aos Requerentes.
    3. No quadro da gestão e administração dos fundos de investimento, a HH... prestou serviços à Sociedade Gestora e aos Fundos.
    4. Enquanto operação sujeita a IVA e dele não isenta, emitiu as correspondentes faturas aos Requerentes e liquidou o imposto, durante os anos de 2021 e 2022 à taxa normal de 23% (cf. Doc. 3).
    5. No período de tributação compreendido entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, a HH... faturou aos Requerentes por serviços prestados, tendo tal entidade liquidado o respetivo IVA, à taxa normal de 23%.
    6. Na (auto)liquidação de IVA relativa aos períodos de tributação acima indicados, materializados na apresentação das Declarações Periódicas, os Requerentes suportaram o montante de IVA supra referido, já que esses serviços (de administração e gestão dos fundos) foram enquadrados como prestações sujeitas a IVA e dele não isentas.
    7. A Requerente interpôs uma Reclamação Graciosa em 17 de outubro de 2023, para que a AT se pronunciasse acerca da (i)legalidade dos atos tributários de (auto)liquidação de IVA, respeitantes aos exercícios de 2021 e 2022 (Doc. de Procedimento de Reclamação Graciosa, anexo à Resposta da AT).
    8. A AT proferiu decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, em 22 de dezembro de 2023, no âmbito do processo n.º ...2023... (Doc. 1).
    9. A Reclamação Graciosa foi objeto de decisão de rejeição liminar, determinada por despacho proferido, em 22 de dezembro de 2023, pelo Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes da AT, “por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legalmente previstos para o efeito, não se vislumbrando que seja admissível a sua convolação noutro qualquer meio impugnatório”, cf. ponto 88 da informação n.º 207-ISC/2023, na qual foi exarado o referido despacho de rejeição liminar.
    10. A HH... foi interpelada para substituir as faturas emitidas, visando refletir diferente enquadramento em IVA, cf. Doc. 4 (aplicando isenção deste imposto, acompanhadas da correspondente devolução aos ora Requerentes do IVA indevidamente pago), nos seguintes termos: “N/ REF.: 002/... ES/2023”

“A...– Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, SA (… “A...”), vem, muito respeitosamente, na qualidade de sociedade gestora (e, por conseguinte, representante fiscal), dos seguintes fundos de investimento mobiliários abertos, aqui requerentes (“Fundos):

  • Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível B... (no qual foi fusionado o Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível C...), com o NIF ...;
  • D... – Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário (anteriormente designado E... ‐ Fundo de Investimento Alternativo Mobiliário Aberto), com o NIF...;
  • F...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
  • G...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
  • H...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
  • I...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
  • J...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
  • K...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ...;
  • L...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
  • M...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto (anteriormente designado N...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto) com o NIF.,..;
  • O...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF...;
  • P...‐ Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
  • Q...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
  • R...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
  • S...– Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma (anteriormente designadoT...– Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma), com o NIF ...;
  • U...‐ Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o NIF...;
  • V...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
  • W...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível, com o NIF...;
  • X...‐ Fundo De Investimento Aberto de Poupança Reforma (aqui se incluem os seus compartimentos ... Ciclo de Vida  ‐  45  ‐54 / ... Ciclo de Vida ‐ 35 ‐44 / ... Ciclo de Vida – 55) com os NIF: .../ ... / ... / ..., respetivamente;
  • Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário –Y..., com o NIF ...;
  • Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Z..., com o NIF ...;
  • Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações AA..., com o NIF ...;
  • BB...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
  • CC...– Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o NIF...;
  • DD...– Fundo de Investimento Aberto de Ações (anteriormente designado EE...‐ Fundo de Investimento Aberto de Ações), com o NIF...;
  • FF...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário, com o NIF ...;
  • GG...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o NIF ....

requerer a substituição das faturas por Vós emitidas aos Fundos pela aquisição de serviços de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal, durante o período compreendido entre agosto de 2019 e dezembro de 2022 (…) nos termos que seguidamente se expõem:

1. Na sequência da realização de uma revisão de procedimentos fiscais levada a efeito pela A..., tendo em vista aferir o enquadramento em sede de IVA a conferir aos serviços de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal prestados pela HH... SROC (…) aos Fundos durante o período compreendido entre agosto de 2019 e dezembro de 2022, a mesma constatou que tal enquadramento não se encontra conforme a legislação aplicável (conforme resultado entendimento expresso no parecer elaborado pelos consultores fiscais que apoiaram a A... na referida revisão de procedimentos (…)

2. Neste sentido, tendo tomado conhecimento acerca da atual jurisprudência proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) neste particular, constatou que os serviços externalizados pelas sociedades gestoras, sempre que, formando um conjunto distinto, tenham um nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatórias para a gestão da carteira e/ou a gestão dos fundos de investimento devem beneficiar da isenção de IVA prevista na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA, sendo a mesma aplicável às prestações de serviços de “administração ou gestão de fundos de investimento” (cf. Acórdão do TJUE de 17 de junho de 2021, prolatado nos processos apensos C-58/20 e C-59/20).

3. Atendendo a que a A... adquiriu junto da HH... serviços de contabilidade auditoria e consultoria fiscal que apresentam um claro nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatórias para a gestão de um fundo de investimento, encontram-se preenchidos os requisitos elencados pelo TJUE para que estes devam ser considerados isentos ao abrigo da isenção de IVA supra referida.

4. Neste contexto, estabelece o n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA que “quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura”.

5. Deste modo, e face ao supra exposto, gostaríamos de averiguar a Vossa disponibilidade para se proceder à retificação e consequente anulação das faturas emitidas pela HH... à A... durante o período compreendido entre agosto de 2019 e dezembro de 2022 (com referência às faturas juntas em anexo …), e a emissão de novas faturas com a respetiva aplicação da isenção deste imposto prevista na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA, acompanhada da inerente restituição do IVA indevidamente suportado pela A... .

Permanecemos ao inteiro dispor para apresentar qualquer informação ou esclarecimento adicional que se revele necessário.

(este Doc. 5 transcrito, junto aos autos, não contém qualquer anexo com síntese ou discriminação das faturas em análise, e imposto liquidado).

  1. O pedido de substituição de faturas tem data de 27 de novembro de 2023 (Doc. 4), a mesma data em que a Sociedade Gestora foi interpelada pela AT para exercer o direito de audição prévia decorrente da Reclamação Graciosa que apresentou, no Procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2023..., cf. ofício ...-DGT/2023, em cuja resposta consta, no § 87, que “é patente que nada foi feito no sentido de regularizar os documentos que considera padecerem de erro na sua emissão”, capítulo V, p. 12, do Relatório de Procedimento em anexo à Resposta da AT).
  2. O pedido de substituição de faturas refere-se a período económico entre agosto de 2019 e dezembro de 2022, sem especificar quais as concretas faturas a que se refere, remetendo para um anexo que não foi enviado (Doc. 4).
  3. O fornecedor expressou recusa em corrigir as faturas (Doc. 5), em 1 de março de 2024 (Doc. 5), posteriormente à decisão de rejeição da Reclamação Graciosa, pela AT, nos seguintes termos:

“A... SGOIC, SA (…)

Ex.mos Senhores,

Na sequência da vossa carta datada de 27 de novembro de 2023 com a V/ REF.: 002/ ... ES/2023, a qual mereceu a nossa melhor atenção e após análise efetuada pelo nosso departamento fiscal consideramos que, na presente data e perante a complexidade do tema apresentado ainda não consolidado no seio da Autoridade Tributária portuguesa, não estamos em condições de, com a segurança necessária que o tema pressupõe, podermos proceder à retificação das faturas emitidas (com a consequente anulação das faturas por nós emitidas aos fundos de investimento mobiliário aberto geridos pela A..., SGOIC no período compreendido entre agosto de 2019 e dezembro de 2022 e emissão de novas faturas com a aplicação da isenção do Imposto sobre o Valor Acrescentado – “IVA” – previsto na subalínea g) do n.º 28 do artigo 9.º do Código do IVA) (…) (sublinhado nosso).

  1. A factualidade provada teve por base a apreciação crítica da posição assumida por cada uma das partes, bem como a análise crítica dos documentos juntos aos autos, cuja autenticidade e veracidade não foram impugnadas por nenhuma das partes.
  2. Dão-se por não provados os factos antes expostos, mesmo que não impugnados mas que colidem com a antes exposto, decorrente da apreciação crítica pelo Tribunal, devido às inconsistências e omissões que referidas infra:
  1. Foi junto ao processo um conjunto de faturas (cerca de 150, cf. Doc. 3), emitidas entre 2021 e 2022 pela HH... a diversos Fundos (e não à respetiva Sociedade Gestora), possivelmente aquelas a que se refere a controvérsia. Essas faturas têm como descrição “honorários de serviços de auditoria”, e não serviços de “gestão”, “contabilidade” ou “fiscalidade”. Não tendo sido junto aos autos qualquer elemento editável ou de síntese, apto a permitir análise dos documentos na sua globalidade apta a permitir concluir pela coerência com os montantes totais expostos, em condições praticáveis (ainda que nos termos do princípio da cooperação, tenha sido solicitado pelo Tribunal Arbitral o envio de elementos em formato editável, visando criar condições para elaboração célere da decisão), importa notar que o pedido de substituição de faturas (Doc. 4), em 27 de novembro de 2023, refere-se a período económico entre agosto de 2019 e dezembro de 2022, sem especificar quais as concretas faturas a que se refere, remetendo para um anexo que não foi enviado. A recusa do fornecedor em corrigir as faturas (abrangendo o mesmo período temporal, mas cujo detalhe é desconhecido), ocorreu em 1 de março de 2024 (Doc. 5), posteriormente à decisão de rejeição da Reclamação Graciosa, pela AT.
  2. Sustentam os Requerentes que a natureza dos gastos incorridas pelos Requerentes consistem em prestação de serviços tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas, prestados pela HH... . Porém, o contrato de prestação de serviços e respetivo aditamento, outorgado entre a Sociedade Gestora e a HH... junto aos autos (Doc. 2), tem como objeto social a “revisão legal de contas e auditoria”, e não prestação de serviços de gestão, contabilidade e fiscalidade, à Sociedade Gestora e a Fundos sobre gestão, referindo-se aos exercícios económicos de 2018 a 2020, e não a exercícios posteriores.
  3. Por conseguinte, não obstante a troca de correspondência entre a Sociedade Gestora e a HH..., não foi provado: i) que os serviços controvertidos (gestão, contabilidade e fiscalidade) tenham sido prestados, ii) que correspondam aos elementos carreados para os autos, designadamente contratos e faturas (que apenas se referem a serviços de auditoria), e finalmente, iii) o valor das faturas emitidas e respetivo IVA liquidado.
  1. Inexistem outros factos, com relevo para apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

III. 2- Matéria de Direito

 

III.2.1. Exceção suscitada pela Requerida: da ilegitimidade material do Requerente:

 

Enquadramento introdutório:

 

Na elaboração da decisão arbitral deve dar-se prioridade ao conhecimento “das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica” (artigo 608.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

No caso concreto, existe uma questão prévia, que se prende com a legitimidade processual dos Requerentes. Em suma, “o Requerente é a pessoa a quem o imposto foi repercutido, mas não é sujeito na relação jurídico tributária da qual resultaram os atos em apreço”…. “o Requerente não é o sujeito passivo daquela relação jurídica tributária”.

 

Refere a Requerida, nos termos do Acórdão proferido no processo 513/2021-T do CAAD: “(…) importa recordar (…) [a] legitimidade processual, que constitui um pressuposto adjetivo de que depende o conhecimento do mérito da causa, que se afere pelo interesse do autor em demandar e o do réu em contradizer, e legitimidade substantiva, que é um requisito de procedência do pedido, uma vez que tem que ver com a efetividade da relação material, interessando já ao mérito da causa”.

 

Por outro lado, o pedido de pronúncia arbitral sub judice é apresentado por uma Sociedade Gestora de um conjunto de Fundos.

 

 

 

Nos termos do Acórdão TCAN (proc. 03598/15.5BEBRG, relator: Helena Ribeiro, emitido em 13/9/2023):

“I- O pressuposto processual da legitimidade exprime-se pela relação que, segundo a lei adjetiva, tem de existir entre as partes (sujeitos) que figuram no processo e o objeto desse processo (pedido e causa de pedir), sem o que não poderá o juiz entrar na apreciação do mérito dessa relação material que lhe é submetida pelo autor a fim de a dirimir naquele concreto processo, por nele não figurar como autor quem tem o poder de dirigir contra o aí réu aquele concreto pedido, atenta a respetiva causa de pedir que o suporta e que fora alegada pelo mesmo na petição inicial (ilegitimidade ativa) e/ou por não figurar, nesse processo, como réu a pessoa a quem assiste o direito de defesa em relação a esse pedido e causa de pedir alegados pelo autor na petição inicial (ilegitimidade passiva).

2- A legitimidade processual, enquanto “pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa” não se confunde com a denominada “legitimidade substantiva”, que configura uma exceção perentória inominada e que é consabidamente um requisito da procedência do pedido. (…)”.

 

Vejamos então.

 

  1. Matéria de exceção de conhecimento oficioso, atinente à ilegitimidade processual adjetiva (exceção dilatória, cf. artigo 577.º al. e), 578.º do CPC e n artigo 89.º n.º 2 e n.º 4 al. e) do CPTA, ex vi artigo 29.º n.º 1 al. c) e e) do RJAT)

 

Antes dessa questão, e ainda que a não tenha sido expressamente referida no pedido de pronúncia arbitral, ou suscitada pela Requerida – por ser de conhecimento oficioso, e preceder em termos lógicos, a questão suscitada pela AT quanto à legitimidade processual material em razão da concreta relação jurídica sub judice – importa analisar uma outra questão, também atinente à legitimidade processual dos sujeitos: estar em causa uma pretensão em “coligação de autores”.

 

Aparentemente, o pedido de pronúncia arbitral é apresentado por uma Sociedade Gestora de um conjunto de Fundos, cuja atividade é regulada pela CMVM.

 

A Sociedade Gestora não será a Requerente, antes representante fiscal de vários Fundos, que pretensamente serão os Requerentes.

 

E o requerimento para apreciação do pedido de pronúncia arbitral, foi fundamentado nos termos da al. a) e b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, em conjugação com o artigo 99.º e n.º 1 do artigo 102.º do CPPT. Fundamento que, portanto, não inclui qualquer alusão à circunstância de se estar em presença de uma “coligação de autores”. Ou seja, o exposto no pedido de pronúncia arbitral e os argumentos aí aduzidos, sugerem que se estará em presença de circunstâncias que poderão justificar a “coligação de autores”, mas esse fundamento, essa pretensão, não foi expressamente requerida no pedido de pronúncia arbitral.

 

Ora, a ausência desse fundamento jurídico, que enquadra devidamente os vários sujeitos processuais, Requerentes, releva, por ser o ponto de partida para indagar, escrutinar, sindicar (desde logo na Resposta pela Requerida), a verificação dos pressupostos de facto e de direito, previstos no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, de que depende a apreciação de um pedido, devidamente delimitado, em “coligação de autores”: “1 - A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.

 

Ou seja, apenas quando o pedido se funda em “coligação de autores” importa averiguar, como ponto de partida, a verificação de que, em concreto, se verificam as mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, habilitando por um lado ao contraditório pela AT, e depois a uma decisão única do Tribunal Arbitral que, legitimamente, se projete na esfera jurídica dos vários autores.

 

Improcede portanto, desde logo, o pedido de pronúncia arbitral, por ilegitimidade processual, face à verificação desta exceção dilatória, nos termos antes referidos.

 

  1. Matéria de exceção suscitada pela Requerida, atinente à ilegitimidade processual substantiva (exceção perentória, cf. artigo 576.º n.º 3 e artigo 579.º do CPC e n.º 2 do artigo 89.º n.º 3 do CPTA, ex vi artigo 29.º n.º 1 al. c) e e) do RJAT)

 

E ainda que assim não fosse, quanto à legitimidade processual substantiva, não consideramos ter sido demonstrado no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA:

  1. A (única) interpelação pela Sociedade Gestora, para a HH... retificar as faturas emitidas aos Fundos (abrangendo período desde agosto de 2019) foi feita apenas durante o período de audição prévia ocorrido durante o procedimento da Reclamação Graciosa[4], ocorrido em 27 de novembro de 2023, sendo referido no Procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2023..., cf. ofício ...-DGT/2023, no § 87 (para efeitos de audição prévia), que “é patente que nada foi feito no sentido de regularizar os documentos que considera padecerem de erro na sua emissão”. Ou seja, as diligências não têm vindo a arrastar-se no tempo.
  2. Na (única) interpelação que a Sociedade Gestora faz à HH... para retificar as faturas existem inconsistências e omissões[5] que conferem a essa interpelação um caráter pouco assertivo e conclusivo (e não um caráter “admonitório” [6]);
  3. O que não será alheio à resposta da HH..., que também parece não ser definitiva[7].

 

Com efeito, e de forma similar ao que sucede no Acórdão 471/2023-T do CAAD, presidido por Jorge Lopes de Sousa (em coletivo de que fazem parte também Júlio Tormenta e Ana Paula Marques Rocha), proferida em 18 de dezembro de 2023, o que resulta do probatório é que a Sociedade Gestora dos Requerentes apenas contactou o prestador de serviços para regularizar IVA (respeitante a um período que se inicia em agosto de 2019), em novembro de 2023, já depois de apreciação da Reclamação Graciosa pela AT, que ao conceder o devido período de audição prévia, revela que até então, nenhuma diligência havia sido feita.

 

Apenas então, iniciou-se a troca de correspondência, traduzida em uma interpelação e uma resposta, uma e outra em termos que não sugerem uma “recusa veemente” (definitiva) em seguirem as regras legais previstas no ordenamento jurídico para a regularização do IVA.

 

Tanto mais que, estando em causa no processo IVA respeitante a 2021 e 2022, “ainda não decorreu o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA para o efeito, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que se aplica nos casos de erros de direito (conforme Acórdãos deste Tribunal proferidos a 28-06-2017 no processo n.º 01427/14, a 03-06-2020 no processo n.º 0498/15.2 BEMDL, a 17-06-2020 no processo n.º 0443/13.0BEPRT, a 07-04-2021 no processo n.º 0796/15.5BEVIS, a 12-05-2021 no processo n.º 01023/15.0BELRS e a 07-04-2022 no processo 0379/16.2BEVIS)”.

 

Com efeito, nos termos do Acórdão 471/2023-T do CAAD:

 

“Ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 7 do Código do IVA, quando “o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura”. No mesmo sentido, o artigo 78.º, n.º 1 do Código do IVA prevê que as “disposições dos artigos 36.º e seguintes [referentes aos prazos e às formalidades de emissão das faturas] devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo”, prevendo-se depois, nos restantes números desta norma legal, as exatas condições para o exercício deste direito por parte do sujeito passivo de imposto. A este respeito, Clotilde Celorico Palma in Introdução ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (N.º 1 da Colecção) – 6.ª Edição, p. 80 esclarece que “os sujeitos passivos deverão proceder à regularização do IVA” precisamente nos termos previstos nesta disposição legal sendo que, “caso não se cumpram os requisitos previstos no artigo 78.º, as rectificações são consideradas nulas, com os efeitos legais daí subjacentes”.

 

Ora, no presente caso está em causa a questão de saber se a retificação/restituição do IVA incorrido em fatura pode ser diretamente solicitada à AT por alguém que, não sendo o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, assume a posição de repercutido legal do valor liquidado por aquele sujeito passivo.

 

Afigura-se-nos pacífico que, como refere Rui Duarte Morais in Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2016, p. 58, a verificação de uma situação em que seja liquidado imposto de montante superior ao devido terá para o repercutido “consequências económicas negativas (daí o serem, muitas vezes, designados por contribuintes de facto)”. Nesta medida, e em decorrência do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, em conjugação com o artigo 9.º do CPPT, reconhece ao repercutido legal o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou requerer pronúncia arbitral nas questões legais em que tenha um interesse legalmente protegido, isto é, em que tenha interesse direto em contradizer.

Sucede que, por expressa previsão da norma da LGT acabada de referir, tal reclamação, recurso, impugnação ou pedido de pronúncia arbitral deve ser realizada “nos termos das leis tributárias”, sendo mister tomar ainda em consideração a posição assumida pela doutrina nacional e, principalmente, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) a este respeito.

 

Ora, sendo parcos os estudos, em território nacional, sobre os direitos processuais do repercutido legal, importa chamar à colação a posição defendida já em 2008 por Bruno Botelho Antunes in Da repercussão fiscal no IVA, Almedina. No âmbito do IVA, defende este Autor que “o direito do repercutido previsto no art. 18.º, n.º 4 al. a), da LGT foi consagrado para fazer face a situações em que, o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso, não agiu nesse sentido. Nessa base, consagrou-se a possibilidade de o repercutido reaver o seu dinheiro diretamente do Estado (…)”. E esta posição afigura-se concordante com a posição assumida pelo TJUE a este respeito.

 

Com efeito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) de 26 de abril de 2017, Farkas, C‑564/15, EU:C:2017:302 que:

 

“50   A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, não havendo regulamentação da União em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado Membro prever as condições em que esses pedidos podem ser exercidos, devendo estas condições respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a impossibilitar na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 37).

 

51     Uma vez que cabe, em princípio, aos Estados Membros determinar as condições em que o IVA indevidamente faturado pode ser regularizado, o Tribunal de Justiça reconheceu que um sistema em que, por um lado, o vendedor do bem que pagou por erro o IVA às autoridades tributárias pode exigir o seu reembolso e, por outro, o adquirente do bem pode intentar uma ação cível para repetição do indevido contra esse vendedor respeita os princípios da neutralidade e da efetividade. Com efeito, esse sistema permite ao referido adquirente que suportou o encargo do imposto faturado por erro obter o reembolso dos montantes pagos indevidamente (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.os 38, 39 e jurisprudência referida).

 

52     Além disso, segundo jurisprudência constante, na falta de regulamentação da União na matéria, as vias processuais destinadas a garantir a proteção dos direitos que decorrem para os cidadãos do direito da União dependem da ordem jurídica interna de cada Estado Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados Membros (v., designadamente, acórdãos de 16 de maio de 2000, Preston e o., C 78/98, EU:C:2000:247, n.o 31, e de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 40).

 

53     No entanto, se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do vendedor, o princípio da efetividade pode exigir que o adquirente possa requerer o reembolso diretamente às autoridades tributárias. Por conseguinte, os Estados Membros devem prever os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao referido adquirente recuperar o imposto indevidamente faturado, de modo a que o princípio da efetividade seja respeitado (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 41)”.

 

Portanto, e de acordo com este entendimento do TJUE (já anteriormente sufragado no acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167), o repercutido legal pode requerer diretamente o reembolso do IVA à AT se e na medida em que a regularização do IVA por parte do sujeito passivo de imposto “se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do vendedor”. Mais recentemente, o TJUE voltou a reafirmar esta posição no acórdão de 13 de outubro de 2022, HUMDA, C 397/21, EU:C:2022:790, no qual se pode ler que “a Diretiva IVA, lida à luz dos princípios da efetividade e da neutralidade do IVA, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro em aplicação da qual um sujeito passivo, ao qual outro sujeito passivo prestou um serviço, não pode pedir diretamente à Autoridade Tributária o reembolso do montante correspondente ao IVA que lhe foi indevidamente faturado pelo referido prestador e que este último pagou à Fazenda Pública, quando a recuperação desse montante junto do prestador de serviços for impossível ou excessivamente difícil pelo facto de este último ter sido objeto de um processo de liquidação, e quando não for possível imputar a estes dois sujeitos nenhuma fraude ou abuso, de modo que não há risco de perda de receitas fiscais para este Estado-Membro”.

 

Como decorre que vem de ser dito, o acórdão do TJUE de 7 de setembro de 2023, Schütte, C453/22, ECLI:EU:C:2023:639 (por diversas vezes citado pelo Requerente) insere-se no espírito das anteriores decisões do TJUE sobre o tema em apreço, sufragando que “se for impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago, este adquirente, não lhe sendo imputado nenhum abuso, fraude ou negligência, tem o direito de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente à Autoridade Tributária”, esclarecendo, contudo, que “(…) quanto à questão de saber se o facto de não haver insolvência dos fornecedores pode ter uma incidência sobre o direito ao reembolso do IVA à luz da jurisprudência mencionada no n.o 23 do presente acórdão, é pacífico que a utilização sistemática do advérbio «designadamente» nesta jurisprudência demonstra que a hipótese da insolvência dos fornecedores é apenas uma das circunstâncias em que pode ser impossível ou excessivamente difícil obter o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago (…)” (§ 26 e 29).

 

Portanto, da jurisprudência do TJUE acabada de referir, resulta à saciedade que o direito ao pedido direto de reembolso do IVA liquidado apenas surge na esfera do repercutido legal nas situações em que se afigure “impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago”. Como tal, e descendo ao caso concreto, cumpre então perceber se se verifica no caso sub judice a impossibilidade ou dificuldade excessiva relatada na jurisprudência do TJUE. E entendemos que não.

 

Com efeito, o que resulta do probatório é que o Requerente apenas contactou a C... já depois de apresentado o pedido de constituição do presente processo arbitral, tendo encetado conversações com esta entidade no sentido de regularização do IVA liquidado apenas no passado mês de outubro do corrente ano (i.e., há sensivelmente dois meses). Nesta medida, e ao contrário do alegado pelo Requerente, não se encontra no probatório qualquer “recusa veemente” dos responsáveis da C... em seguirem as regras legais previstas no ordenamento jurídico português para a regularização do IVA, antes se encontrando, no último e-mail que consta do probatório (datado de 30 de outubro), a disponibilidade para manter a discussão sobre o tema em análise mediante a prestação de determinadas informações por parte do Requerente.

 

Nesta medida, não se encontra no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA previstos no ordenamento jurídico português, tanto mais que ainda não decorreu o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA para o efeito, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que se aplica nos casos de erros de direito (conforme Acórdãos deste Tribunal proferidos a 28-06-2017 no processo n.º 01427/14, a 03-06-2020 no processo n.º 0498/15.2 BEMDL, a 17-06-2020 no processo n.º 0443/13.0BEPRT, a 07-04-2021 no processo n.º 0796/15.5BEVIS, a 12-05-2021 no processo n.º 01023/15.0BELRS e a 07-04-2022 no processo 0379/16.2BEVIS). Ademais, e do ponto de vista da justiça material, não se vislumbra qualquer razão para “forçar” uma interpretação distinta, já que o Requerente não só contactou a C... já depois de apresentada a reclamação graciosa e o pedido de pronúncia arbitral (sendo que poderia ter, por sua exclusiva iniciativa, antecipado tal contacto) como foi precisamente o Requerente que, por esquecimento ou negligência, não deu continuidade à conversa encetada com a C... nesses termos (não respondendo ao e-mail de 30 de outubro com as informações que lhe são pedidas por esta entidade).

 

Nestes termos, e considerando que o Requerente não cumpre os pressupostos que lhe permitam ser titular direto do direito ao reembolso do IVA que alega ter suportado em montante superior ao devido, não tem o mesmo legitimidade material, substantiva ou ad actum para figurar no presente processo arbitral. Como tal, e considerando que “A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 e a decisão arbitral proferida a 14 de fevereiro de 2022 no Processo n.º 513/2021-T), julga-se verificada a exceção perentória inominada de ilegitimidade material do Requerente arguida pela Requerida, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT”.

(…)

Com efeito, o que resulta do probatório é que o Requerente apenas contactou a C... já depois de apresentado o pedido de constituição do presente processo arbitral, tendo encetado conversações com esta entidade no sentido de regularização do IVA liquidado apenas no passado mês de outubro do corrente ano (i.e., há sensivelmente dois meses). Nesta medida, e ao contrário do alegado pelo Requerente, não se encontra no probatório qualquer “recusa veemente” dos responsáveis da C... em seguirem as regras legais previstas no ordenamento jurídico português para a regularização do IVA, antes se encontrando, no último e-mail que consta do probatório (datado de 30 de outubro), a disponibilidade para manter a discussão sobre o tema em análise mediante a prestação de determinadas informações por parte do Requerente.

 

Nesta medida, não se encontra no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA previstos no ordenamento jurídico português, tanto mais que ainda não decorreu o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA para o efeito, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que se aplica nos casos de erros de direito (conforme Acórdãos deste Tribunal proferidos a 28-06-2017 no processo n.º 01427/14, a 03-06-2020 no processo n.º 0498/15.2 BEMDL, a 17-06-2020 no processo n.º 0443/13.0BEPRT, a 07-04-2021 no processo n.º 0796/15.5BEVIS, a 12-05-2021 no processo n.º 01023/15.0BELRS e a 07-04-2022 no processo 0379/16.2BEVIS). Ademais, e do ponto de vista da justiça material, não se vislumbra qualquer razão para “forçar” uma interpretação distinta, já que o Requerente não só contactou a C... já depois de apresentada a reclamação graciosa e o pedido de pronúncia arbitral (sendo que poderia ter, por sua exclusiva iniciativa, antecipado tal contacto) como foi precisamente o Requerente que, por esquecimento ou negligência, não deu continuidade à conversa encetada com a C... nesses termos (não respondendo ao e-mail de 30 de outubro com as informações que lhe são pedidas por esta entidade).

 

Termos em que, considerando o antes exposto, improcede o pedido arbitral, por verificação das exceções referidas, atinentes à legitimidade processual dos Requerentes.

III.2.2 –Questões de conhecimento prejudicado

 

Procedendo a exceção de ilegitimidade suscitada pela AT, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no processo.

 

IV. Decisão

 

Considerando as diversas razões vindas de expor em sede de fundamentação, decide o Tribunal Arbitral:

 

a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com todas as legais consequências;

b) Condenar o Requerente no pagamento das custas do processo.

 

V. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 1.071,00 €.

 

 

VI. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no montante de 306,00 €, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de novembro de 2024.

 

O Árbitro,

 

 

Nuno Miguel Morujão.

 

 

 



[1] Cf. Parágrafo 23 da Decisão do TJUE no âmbito do Acórdão de 7 de setembro de 2023, prolatado no processo C-453/22.

[2] Cf. parágrafo 24 da Decisão do TJUE no âmbito do Acórdão de 7 de setembro de 2023, prolatado no processo C453/22.

[3] Cf. parágrafo 26 da Decisão do TJUE no âmbito do Acórdão de 7 de setembro de 2023, prolatado no processo C-453/22.

[4] Apresentada em 17 de outubro de 2023.

[5] Cf. referido no parágrafo 22, atinente à vigência dos contratos, sujeitos intervenientes e períodos abrangidos, relevantes quanto à faturação em análise, detalhe e valores das faturas e IVA, e os correspondentes fundamentos de liquidação invocados nas faturas indicados no pedido de retificação e a resposta da HH... .

[6] “Permanecemos ao inteiro dispor para apresentar qualquer informação ou esclarecimento adicional que se revele necessário”.

[7] “…consideramos…nesta data… tema apresentado ainda não consolidado”.