Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 822/2024-T
Data da decisão: 2024-11-26  IRS  
Valor do pedido: € 32.982,38
Tema: IRS; inutilidade parcial superveniente da lide; mais-valias; dever de fundamentação; presunção de veracidade da declaração.
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SUMÁRIO:

1. O dever de fundamentação exige que a administração demonstre, perante o contribuinte –  e, reflexamente, perante o público em geral – que a sua atuação se pautou pelo respeito devido aos princípios da legalidade, racionalidade, verdade material, justiça, igualdade, transparência, segurança jurídica, proteção da confiança dos cidadãos, regularidade de toda a atuação estadual e tutela jurisdicional efetiva, que se perfilam como corolários indeclináveis do princípio do Estado de direito. 

2. O dever de fundamentação não exige que conste, do ato de liquidação, a descrição e explicação exaustiva de todo o quadro legal relevante e de todos os procedimentos internos da Administração, particularmente quando os estes decorrem naturalmente da aplicação padronizada e de boa fé de um quadro legal suficientemente claro e previsível.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1RELATÓRIO

 

 

 

 

1. A..., com o número de identificação fiscal..., com domicílio fiscal na Rua  ..., ..., ...- ... Lisboa, veio, a 01.07.2024, na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., apresentada contra a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2023..., relativa ao ano de 2019, nos termos e para efeitos previstos no n.º 1 do artigo 140.º do CIRS e nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, e n.º 2, do artigo 10.º do RJAT, requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar Pedido de Pronúncia Arbitral visando a anulação da decisão de indeferimento da referida reclamação graciosa n.º ...2023... e da correspondente liquidação oficiosa de IRS n.º 2023... . 

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 03.07.2024.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 21.08.2024.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c), do n.º ,  e do n.º 8, do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 10.09.2024.

 

6.A AT, na qualidade de Requerida, tendo para esse efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º, n.º1, do RJAT, apresentou Requerimento, em 10.10.2024, comunicando a sua decisão de revogação parcial do ato impugnado, por considerar que, quanto ao imóvel sob o artigo ..., os rendimentos auferidos com a sua alienação não devem ser objeto de tributação em sede de IRS.

 

7. Tendo sido concedido à Requerente a faculdade de se pronunciar sobre o Requerimento da AT no prazo de 10 dias, a mesma requereu, em 29.10.2024,  o prosseguimento dos presentes autos quanto à sujeição a tributação do imóvel sob o artigo ..., considerando-se existir inutilidade superveniente da lide apenas contra a parte da liquidação de IRS impugnada nos presentes autos respeitante à tributação dos rendimentos auferidos com a alienação do imóvel sob o artigo ... .

 

8. Tendo sido proferido despacho, a 07.11.2024, no sentido do prosseguimento dos presentes autos quanto à sujeição a tributação do imóvel sob o artigo ..., o mesmo teve a concordância da Requerente e não obteve qualquer oposição da AT.

 

1.1Descrição das circunstâncias do caso

 

9. Em 2020, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos – IRS, Modelo 3, relativa ao ano de 2019, após o que foi a Requerente notificada do Ofício n.º..., de 17.01.2023, alertando para a ausência de declaração de rendimentos da categoria G. Nessa sequência, a 30.01.2023, a Requerente submeteu uma Declaração Modelo 3 de substituição.

 

10. Em março de 2023, a AT procedeu a uma Declaração Oficiosa / Declaração Corretiva, tendo efetuado duas correções à declaração de substituição entregue pela Requerente, no quadro 4 do anexo G: a) uma correção na linha 4001, no campo “Ano de aquisição”, reconhecendo que o imóvel do concelho de Sintra foi adquirido em 1985, e não em 2012; b) uma correção nas linhas 4001 e 4002, no campo “Valores de aquisição”, indicando como valores de aquisição dos imóveis os Valores Patrimoniais Tributários (VPT) dos mesmos aquando da respetiva aquisição, ao invés do preço pelo qual foram efetivamente adquiridos, os quais serviram de base à liquidação de IMT, uma vez que eram superiores ao VPT.

 

11. Sobre o ato administrativo, a Requerente sabe apenas que a AT (i) não reconhece o ano de aquisição do imóvel, (ii) nem o valor de aquisição conforme foi declarado pela Requerente.

 

12. Posteriormente, na sequência da Declaração Oficiosa / Declaração Corretiva, a AT notificou a Requerente da liquidação oficiosa de IRS n.º 2023... e respetiva demonstração de juros compensatórios e de acerto de contas, sem alegadamente ter apresentado qualquer justificação à Requerente sobre o que impulsionou a declaração oficiosa e a consequente liquidação.

 

13. Neste contexto, a Requerente requereu, em 10 de abril de 2023, nos termos do artigo 37.º do CPPT, a fundamentação legalmente exigida do ato tributário consubstanciado na liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., pedido a que nunca foi dada qualquer resposta.

 

14. A Requerente pagou o IRS adicionalmente liquidado, embora não conhecendo os fundamentos daquela liquidação, não lhe sendo possível discutir com objetividade a matéria controvertida que deu origem ao valor que lhe foi liquidado. Para impedir que o ato de liquidação se consolidasse no ordenamento jurídico, em 28.08.2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação, na qual pugnou pela anulação do ato tributário por falta da fundamentação legalmente exigida.

 

15. Em fevereiro de 2024, a Requerente foi notificada do projeto de decisão da reclamação graciosa e em março de 2024, apresentou direito de audição prévia. Em 01.04.2024, foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa.

 

1.2Argumentos das partes

16. A Requerente sustenta a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

  1. Nos termos dos artigos 268.º, n.º3, da CRP, e 77.º, n.º2, da LGT, qualquer ato que venha a ser praticado pelos serviços da AT deverá conter a respetiva fundamentação, a qual estará necessária e materialmente associada à decisão de procedimento, e que não deverá deixar de ser clara, congruente, suficiente e expressa, equivalendo a falta de fundamentação, a fundamentação insuficiente (cf. artigo 153.º, n.º 2, do CPA);
  2. As características exigidas quanto à fundamentação formal do ato tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico;
  3. No domínio da fundamentação do ato, é relevante a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a atuação administrativa no caso concreto;
  4. O Serviço de Finanças de Lisboa ... procedeu a uma declaração oficiosa e consequente liquidação oficiosa de IRS sem, contudo, explicar/fundamentar as razões de facto ou de direito que motivaram a qualificação de rendimentos efetuada pela AT;
  5. Apesar dos esforços da Requerente para a obtenção de uma fundamentação que lhe permitisse compreender o iter cognoscitivo do ato, não lhe foi notificada – ainda que em momento posterior – qualquer fundamentação para a liquidação oficiosa de IRS;
  6. Tendo a liquidação oficiosa sido notificada à Requerente sem estar acompanhada da respetiva e obrigatória fundamentação e sendo que, nem após o recurso ao disposto no n.º 1 do artigo 37.º do CPTT, a AT cumpriu esta sua obrigação, a liquidação oficiosa em questão deverá ser anulada, com as devidas e legais consequências, por padecer do vício de falta de fundamentação;
  7. No projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, entende a AT que era ónus da Requerente fazer prova dos valores de aquisição dos imóveis tal como declarados, entendendo que não foi junta qualquer prova nesse sentido e que se limitou, na declaração oficiosa de correção, a substituir os valores de aquisição declarados pela Requerente (preços de aquisição dos imóveis), pelo VPT à data da sua aquisição, sem explicar porque razão os valores de aquisição neste caso devem ser os VPT e não os preços reais de aquisição declarados pelo contribuinte, sendo que o VPT apenas é utilizado como valor de referência nos casos especificamente previstos na lei e quando seja superior ao valor declarado e este último não seja justificado;
  8. Não se compreende o teor da liquidação adicional quando sujeita a tributação uma alienação de imóvel adquirido em 1985 (antes de 01.01.1989) - e foi a própria AT que corrigiu para 1985 – nem do Ofício da AT, n.º ..., de 17.01.2023, resulta em momento algum, qualquer justificação para a correção dos valores de aquisição (Urbano – artigo ... da freguesia... –...433,43€ Urbano – artigo ... fração AP da freguesia ... – 48 008,00€);
  9. Na decisão final da reclamação graciosa não existe uma verdadeira apreciação da audição prévia apresentada pela Requerente, pois não introduz quaisquer novidades face ao projeto de decisão;
  10. A audiência dos interessados não é um mero rito procedimental não podendo ser encarada e tratada como uma mera formalidade, sem qualquer efeito ou consequência;
  11. A AT dispõe das escrituras, detendo essa informação, pois é-lhe comunicada oficiosamente pelos notários;
  12. Caso se considere que os atos tributários estão devidamente fundamentados com a mera indicação de que os valores de aquisição devem ser os VPT (sem acrescida explicação), sempre ocorreria fundamentação a posteriori, que é legalmente inadmissível e equivale a falta de fundamentação, pois só no projeto de decisão de reclamação graciosa a AT refere que considera como corretos apenas os VPT como valor de aquisição;
  13. O direito à fundamentação dos atos administrativos e tributários reclama que o particular apenas tenha de defender-se dos pressupostos inicialmente enunciados, e dos quais se extraíram os efeitos lesivos, não sendo de admitir qualquer fundamentação a posteriori, nem o aproveitamento do ato quando isso implique a valoração de razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação;
  14. A Requerente cumpriu com as suas obrigações declarativas, gozando a sua declaração de rendimentos (e a declaração de substituição não é exceção a esta regra) da presunção de veracidade, nos termos do artigo 75.º da LGT, ficando o contribuinte dispensado de efetuar qualquer prova adicional da sua situação tributária;
  15. Tendo a Autoridade procedido a correções aos elementos declarados pelo contribuinte, é sobre ela que recai naturalmente o ónus da prova do direito à liquidação adicional que se arroga, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT;
  16. É à AT que cabe demonstrar os pressupostos de facto da sua atuação, designadamente a existência de factos tributários em que assenta a liquidação do tributo, que não tenham sido declarados pelo contribuinte;
  17. Presumindo-se verdadeira e de boa-fé a declaração entregue pela Requerente, para ilidir tal presunção, a AT deverá fundamentar a sua posição, sob pena de prevalecer o declarado pela Requerente e de à AT que caber suportar as desvantagens da incerteza do facto que não tenha logrado provar;
  18. A incerteza sobre a realidade dos factos tributários reverte, em regra, contra a AT, não devendo esta efetuar a liquidação se não existirem indícios consistentes da existência daqueles, isto é, se o conhecimento desses factos for baseado em meras aparências desacompanhadas da expressão factual de verdadeiros elementos probatórios;
  19. Sendo julgado procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, assiste à Requerente o direito ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

17. A AT veio informar os autos da revogação dos atos impugnados no presente processo, remetendo para competente despacho em que se reconhece que:

  1. O valor do processo não deve ser de 49.843,37€, pois deve ser deduzido o montante de 16.860,99€ apurado na liquidação n.º 2020..., de 24.07.2020, relativamente ao mesmo ano e tributo, que a contribuinte não veio colocar em causa;
  2. O montante em discussão no âmbito do presente processo é o correspondente à diferença entre os quantitativos apurados nas liquidações números 2023..., de 14.03.2023, e n.º e 2020..., de 24.07.2020, agora colocada em crise, no valor de 32.982,38€;
  3. Quanto ao imóvel sob o artigo ..., os rendimentos auferidos com a sua alienação não devem ser objeto de tributação em sede de IRS.

 

 

 

1.3. Saneamento  

 

 

18. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

19. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT). 

 

20. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir para a decisão sobre o mérito relativamente o imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa, sob o artigo ... (verba nº 3).

 

       21. O valor da causa é de 32.982,38€ e não de 49.843,37€, como pretende a Requerente, que se baseou no montante de imposto apurado na liquidação que vem contestar. Contudo, em 24.07.2020 foi efetuada, em seu nome, relativamente ao mesmo ano e tributo, a liquidação nº 2020..., no âmbito da qual foi apurado o valor de imposto a pagar de 16.860,99€ não colocado em causa.

 

       22. O montante em discussão no âmbito do presente processo é o correspondente à diferença entre os quantitativos apurados nas liquidações 2023..., de 14.03.2023, e 2020..., de 22.07.2020, no montante de 32.982,38€ resultante do acerto de contas nº 2023..., de 14,03.2023, porque essa é, na verdade, quantia cuja anulação se pretende e a utilidade económica imediata do pedido, para efeitos dos artigos 97.º-A do CPPT e 296.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º1, alíneas c) e e) do RJAT.

 

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

23. Com base nos documentos trazidos aos autos e são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

 

  1. No âmbito do processo de divórcio e separação de pessoas e bens por mútuo consentimento que correu termos na ... Conservatória do Registo Predial/Comercial de Almada sob o nº .../2019 foram adjudicadas ao ex-cônjuge da Requerente as verbas números 1 e 3 da relação de bens a partilhar, as quais se reportavam aos bens imóveis com os artigos... e ... .
  2. Ao imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Sintra, sob o artigo...  (verba nº 1) foi atribuído o valor declarado de 260.844,85€;
  3. À fração autónoma designada pelas letras AP do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob o artigo...  (verba nº 3) foi atribuído o valor declarado de 96.019€.
  4. Em 2020, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos – IRS, Modelo 3, relativa ao ano de 2019; (cf. Documento n.º 2).
  5. A Requerente notificada do Ofício n.º ..., de 17.01.2023, alertando para a ausência de declaração de rendimentos da categoria G; (cf. Documento n.º 3).
  6. A 30.01.2023, a Requerente submeteu uma Declaração Modelo 3 de substituição; (cf. Documento n.º 4)
  7. No 4001 do quadro 4 a Requerente fez constar a alienação, pelo montante de 130.433,43€, de uma quota-parte de 50% do imóvel sob o artigo ... que declarou haver adquirido em abril de 2012 pelo valor de 128.495€; 
  8. No campo 4002 mencionou ter alienado, pela importância de 48.008€, 50%, da fração AP do imóvel inscrito sob o artigo..., que fez constar ter adquirido em junho de 2003 pela quantia de 85.419€;
  9. Em março de 2023, a AT procedeu a uma Declaração Oficiosa / Declaração Corretiva, tendo efetuado duas correções à declaração de substituição entregue pela Requerente, no quadro 4 do anexo G: a) Uma correção na linha 4001, no campo “Ano de aquisição”, reconhecendo que o imóvel do concelho de Sintra foi adquirido em 1985, e não em 2012; b) Uma correção nas linhas 4001 e 4002, no campo “Valores de aquisição”, indicando como valores de aquisição dos imóveis os Valores Patrimoniais Tributários (VPT) dos mesmos aquando da respetiva aquisição; (cf. Documento n.º 5)
  10. A AT notificou a Requerente da liquidação oficiosa de IRS n.º 2023... e respetiva demonstração de juros compensatórios e de acerto de contas, apurando o imposto a pagar de 46.624,78€, acrescido de 3.218,59€, a título de juros compensatórios, no valor total de 49.843,37€. (cf. Documento n.º 7)
  11. Em 14.03,2023 os serviços tribuários procederam ao acerto de contas com o montante apurado na liquidação de IRS nº 2020..., efetuada em 24.07,2020 através do acerto de contas nº 2023..., no qual se apurou o saldo final a pagar de 32.962,38€ (cf. Documento n.º 6).
  12. A Requerente solicitou, em 10.04.2023 a fundamentação legalmente exigida do ato tributário consubstanciado na liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., apurando o imposto a pagar de 46.624,78. 26€, acrescido de 3.218,59€, a título de juros compensatórios., no valor total de 49.843,37€. (cf. Documento n.º 7)
  13. Em 28.08.2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação (cf. Documento n.º 8);
  14. Em fevereiro de 2024, a Requerente foi notificada do projeto de decisão da reclamação graciosa (cf. Documento n.º 9).
  15. Em março de 2024, apresentou direito de audição prévia; (cf. Documento n.º 10).
  16. Em 01.04.2024, foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa; (cf. Documento n.º 11).

 

2.2Factos não provados

 

24. Com relevância para a decisão do presente processo não existem factos dados como não provados. 

 

2.3Motivação

 

25. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

26. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4Questão decidenda

 

            2.4.1. Ato de liquidação e ónus prova

 

27. O pedido apresentado no CAAD tem por objeto o ato de liquidação de IRS nº 2023..., referente ao ano de 2019, e o Despacho de indeferimento proferido (por subdelegação de competências) em 25.03.2024 pela Chefe da Divisão de Justiça Administrativa (DJA) da Direção de Finanças (DF) de Lisboa no âmbito do procedimento de reclamação graciosa nº ...2023... .

 

28. Em causa está a tributação da fração autónoma designada pelas letras AP do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa, sob o artigo ... (verba nº 3), a que foi atribuído o valor declarado de 96.019€. Em 22.07.2020 a Requerente procedeu à apresentação, em seu nome, de uma declaração modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2019, a qual foi acompanhada dos anexos A, B, F, H e J. Em 30.01.2023 apresentou uma declaração modelo 3, de substituição, também em seu nome, igualmente respeitante ao exercício de 2019, igualmente acompanhada dos anexos A, B, F, H e J. 11 e também do anexo G. No campo 4002 mencionou ter alienado, pela importância de 48.008€, a quota-parte de 50%, da fração AP do imóvel inscrito sob o artigo ..., fazendo constar ter sido adquirido em junho de 2003 pela quantia de 85.419€.

 

29. O sistema informático da AT deu a declaração de substituição de 30.01.2023 como “não liquidável”, tendo sido instaurado no Serviço de Finanças (SF) de Lisboa ..., um procedimento de gestão de divergências em nome da Requerente, concernente ao IRS relativo ao ano de 2019, que conduziu à elaboração, em 28.02.2023, de uma declaração oficiosa modelo 3 relativamente a esse ano, em nome da Requerente, tendo alterado o valor de aquisição da quota-parte da fração inscrita sob o artigo ..., sido para 11.470,04€., considerando como VPT, para efeitos de aquisição, aquele que o mesmo detinha no momento em que a requerente declarou ter ocorrido essa mesma aquisição, a saber, Junho de 2003.

 

30. Entende o presente Tribunal que a AT adotou um critério objetivo, que vai ao encontro da previsão legal contida no artigo 59.º do CPPT. Nos termos do n.º 1 deste artigo, “[o] procedimento de liquidação instaura-se com as declarações dos contribuintes, ou, na falta ou vício destas, com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente”. Esta norma é clara, na medida em que informa os contribuintes de que, na existência de qualquer contradição entre os elementos constantes da declaração e os elementos de que a AT disponha, esta reverterá, por defeito, para esses elementos à sua disposição, considerando viciada a declaração do contribuinte.

 

31. Quando assim sucede, caberá ao contribuinte fornecer à AT os elementos probatórios que lhe permitam verificar a sua situação tributária. Isso mesmo resulta do artigo 59.º, n.º2, do CPPT, onde se diz que “[o] apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes, desde que estes as apresentem nos termos previstos na lei e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária.” No mesmo sentido apontam outras disposições. A declaração apresentada pelo contribuinte constitui, indiscutivelmente, o ponto de partida do procedimento de liquidação do imposto. No entanto, se forem detetadas divergências entre o respetivo conteúdo e as informações na posse da AT as mesmas devem ser devidamente esclarecidas. 

 

32. Nesse mesmo sentido apontam outras disposições. O artigo 65.º, n.º 1, do CIRS, reitera que “[o] rendimento coletável de IRS apura-se de harmonia com as regras estabelecidas nas secções precedentes e com as regras relativas a benefícios fiscais a que os sujeitos passivos tenham direito, com base na declaração anual de rendimentos apresentada em prazo legal e noutros elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha.” Por sua vez, o n.º 4 do artigo 65.º do CIRS atesta que “[a] Autoridade Tributária e Aduaneira procede à alteração dos elementos declarados sempre que, não havendo lugar à fixação a que se refere o n.º 2, devam ser efetuadas correções decorrentes de erros evidenciados nas próprias declarações, de omissões nelas praticadas ou correções decorrentes de divergência na qualificação dos atos, factos ou documentos com relevância para a liquidação do imposto.”

 

33. Cumpria à Requerente, se entendesse dever ser outro o valor a considerar como de aquisição da fração AP do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa, sob o artigo..., proceder à respetiva prova nos termos do artigo n.º 1 do artigo 74.º da LGT. Com efeito, a presunção de verdade das declarações dos contribuintes, consagrada no artigo 75.º, n.º1, da LGT, não se verifica, nos termos respetivo do n.º 2, quando as mesmas apresentem inexatidões que não reflitam, à luz dos elementos de que a AT dispõe, a matéria tributável real do sujeito passivo. 

 

34. Ora, a contribuinte não juntou as escrituras de aquisição dos imóveis, confiando que a AT dispunha dessa informação por lhe ser comunicada oficiosamente pelos notários. Porém, essa obrigação só passou a impender sobre os notários nos termos do n.º 4 do artigo 49º do CIMT, diploma que, nos termos do artigo 32.º, nº 3, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12.11, entrou em vigor no dia 01.01.2004, tendo a aquisição da fração ocorrido em junho de 2003. Nessa altura, vigorava ainda o Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISSD), que não continha disposição idêntica à consagrada no n.º 4 do artigo 49.º do CIMT, diploma que lhe sucedeu de acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12.11.

 

35. O artigo 131.º do CIMSISSD apenas interditava os notários de lavrarem escrituras sem que lhes fosse apresentado o respetivo conhecimento de sisa, norma correspondente ao n.º 1 do artigo  49º do CIMT, que proíbe os notários de outorgar escrituras sem que lhes seja apresentado extrato da declaração modelo 1 de IMT, acompanhada do respetivo documento de cobrança. No entanto, o CIMSISSD nada dispunha quanto à obrigação de envio de relações de atos sujeitos a sisa. Pelo que, nos termos do já mencionado n.º 1 do artigo 74. º da LGT, era à Requerente que cumpria apresentar elemento probatório do valor de aquisição da fração AP do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa, sob o artigo ... .

 

36. Torna-se claro que, na interação procedimental entre a AT e a Requerente, aquela se limitou a atuar como habitualmente de acordo com as normas pertinentes respeitantes ao ónus da prova na determinação da matéria tributável, como resulta do princípio da legalidade da Administração que concretiza o princípio do Estado de direito. Tanto basta, no entender deste Tribunal – atento o tipo de ato em presença e as circunstâncias do caso concreto – para se concluir que um sujeito passivo normal, destinatário do mesmo ato, estaria em condições de apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela AT para proferir a correspondente decisão e discernir as razões que estiveram na sua base. Este aspeto fica ainda mais saliente à luz das considerações a seguir expendidas.

 

2.4.3.  Dever de fundamentação 

 

37. O artigo 66.º do CIRS dispõe que “[o]s atos de fixação ou alteração previstos no artigo 65.º são sempre notificados aos sujeitos passivos, com a respetiva fundamentação.” Esta norma concretiza a imposição constitucional exarada no artigo 268.º, n.º 3 da CRP, “[o]s atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos.” O dever de fundamentação exige que a administração demonstre, perante o contribuinte –  e, reflexamente, perante o público em geral – que a sua atuação se pautou pelo respeito devido aos princípios da legalidade, racionalidade, verdade material, justiça, igualdade, transparência, segurança jurídica, proteção da confiança dos cidadãos, regularidade de toda a atuação estadual e tutela jurisdicional efetiva, que se perfilam como corolários indeclináveis do princípio do Estado de direito. 

 

38. No entanto, esse dever de fundamentação não exige que conste, do ato de liquidação, a descrição e explicação exaustiva de todo o quadro legal relevante e de todos os procedimentos internos da Administração, particularmente quando os estes decorrem naturalmente da aplicação padronizada e de boa fé de um quadro legal suficientemente claro e previsível. Por isso se diz, no artigo 66.º. n.º 2, do CIRC, que a fundamentação pode ser sucinta, desde que não contenha elementos contraditórios, obscuros e insuficientes.

 

39. No caso, a Requerente foi notificada, pelo Ofício nº ... que lhe foi remetido pelo SF de Lisboa ... em 17.01.2023, da existência de incorreções na declaração de rendimentos do ano 2019, n.º ...-2019...-..., respeitantes, além do mais, ao imóvel inscrito no artigo ... fração-AP, sub judice, incluindo a indicação de que (e como) poderia ser exercido o direito de audição prévia.

 

40. Importa ainda referir o Ofício enviado pelo mesmo serviço periférico local de finanças à requerente em 01.03.2023, sob o n.º ..., onde ia inserido o anexo G com os valores de aquisição e alienação dos imóveis, conforme conhecimento da AT, informando a Requerente que seria elaborada declaração oficiosa e apurado o imposto que se mostrar em falta, sendo de acrescer juros compensatórios devidos e instaurado procedimento contraordenacional para exigência da coima devida. Em resposta à notificação 2018, de 17.01.2023, a AT manteve o projeto de correção da MOD 3 IRS/19, fundamentando, nos termos do artigo 66.º do CIRS, que isso se devia ao facto de não terem sido apresentados documentos com argumentos, que permitissem alterar o sentido do referido projeto.

 

41. Dos ofícios remetidos pelo SF de Lisboa... Requerente em 17.01.2023 e 01.03.2023, resulta que lhe foi comunicado que estava em causa uma transmissão efetuada através de partilha de património conjugal, quais os bens tidos em consideração, os valores a ter em conta relativamente a cada um deles, que os valores de aquisição e alienação a considerar eram aqueles que a AT tinha conhecimento, que a Requerente poderia carrear para o procedimento administrativo elementos que permitissem contrariar os valores em causa e o com base neles imposto liquidado. Ainda que sucinta, esta fundamentação afigura-se, a este Tribunal, plenamente consistente com o artigo 66º do CIRS e com a respetiva ratio essendi.

 

42. Decai, pois, a pretensão da Requerente segundo a qual o ato de liquidação contestado padece de falta de fundamentação na parte que respeita à tributação das mais-valias resultantes da transmissão da quota-parte de 50% desta fração AP do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa, sob o artigo..., ocorrida em 14.03.2019.

 

3DECISÃO

 

Termos em que decide este Tribunal Arbitral

  1. Declarar a inutilidade parcial superveniente da lide relativamente ao imóvel in casu sob o artigo... ;
  2. Absolver a Requerida da instância relativamente à tributação das mais-valias resultantes da transmissão da quota-parte de 50% da fração AP do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob o artigo ... .

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em  32.982,38€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

 

            O n.º 4 do artigo 22.º do RJAT determina que “[d]a decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral, quando o tribunal tenha sido constituído nos termos previstos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º”.

            O n.º 1 do artigo 527.º do Código de Processo Civil estabelece que «[a] decisão […] condena em custas a parte que a elas houver dado causa …». Por seu lado, o artigo 607.º, n.º 6, do mesmo diploma, dispõe que “[n]o final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respetiva responsabilidade.”

            No caso em apreço, a causa de extinção parcial da instância quanto ao imóvel sob o artigo... é imputável à Requerida, pelo que, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 536.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29º, n.º 1, alínea e) do RJAT, lhe é imputável a correspondente responsabilidade. Já no tocante ao imóvel ..., as custas são imputáveis à Requerente.

            A repartição das custas pela Requente e pela Requerida deve tomar como base a proporção relativa das mais-valias correspondentes à alienação dos dois imóveis, consideradas em abstrato, independentemente da questão de saber se devem dar, ou não, causa à liquidação de imposto, visto que era isso que estava inicialmente em discussão no presente processo.  

Assim sendo, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 836.00€, sendo as custas repartidas pela Requerida, em 77%, e pela Requerente, em 23%, na proporção do respetivo decaimento, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.ºs4 e 5, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo

Notifique-se.

Lisboa, 26 de novembro de 2024

 

O Árbitro

 

 

Jónatas E. M. Machado