Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 539/2024-T
Data da decisão: 2024-11-19  IVA  
Valor do pedido: € 811.220,40
Tema: IVA – Redébito de serviços de reabilitação urbana – Taxa reduzida – mandato sem representação – Art. 4.º, 4 e verba 2.23 da Lista I do CIVA – Direito à dedução – Art. 20.º do CIVA.
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Sumário

 

  1. Quando um sujeito passivo atue em nome próprio por conta de outrem na prestação de serviços de reabilitação urbana, este é, sucessivamente, adquirente e prestador do [mesmo] serviço, sendo aplicável o mesmo regime de IVA, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA.

 

  1. Sendo os serviços de reabilitação urbana prestados à Requerente pelos empreiteiros enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, aqueles beneficiam da taxa reduzida nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) desse compêndio fiscal, quer na faturação inicial ao sujeito passivo, quer na refaturação, por parte deste, aos investidores (mandantes/comitentes).

 

  1. A conexão (“direct link”) exigida pelo direito à dedução entre os consumos e a atividade económica exercida, não depende da existência de uma margem positiva, uma vez que este imposto não visa tributar o lucro ou o resultado da atividade económica. Assim, o facto de o valor dos serviços de reabilitação urbana só ter sido parcialmente repercutido pela Requerente aos investidores não constitui fundamento para limitar o direito à dedução daquela, tendo ficado demonstrado que esses serviços foram adquiridos para os fins das suas operações tributadas e que têm também uma relação direta e imediata com a atividade económica do sujeito passivo.

 

  1. O artigo 20.º do Código do IVA não disciplina a dedução parcial deste imposto, pelo que não pode ser invocado como fundamento da aplicação do método de afetação real (no caso, um pro rata específico).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 5 de agosto de 2024, Alexandra Coelho Martins (presidente), Clotilde Celorico Palma, designada pela Requerente, e Fernando Marques Simões, indicado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, acordam no seguinte:

 

 

  1. Relatório

 

A..., S.A., adiante “Requerente”, com o número de matrícula e de pessoa coletiva..., e sede na Rua..., ..., ...-... Porto, apresentou, em 10 de abril de 2024, pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3 e 10.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

 

A Requerente pretende que seja apreciada a (i)legalidade, com a consequente anulação, dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e juros compensatórios correlativos, respeitantes aos 4 períodos trimestrais do ano 2019, com fundamento em vício de violação de lei, na importância global, incluindo juros, de € 811 220,40, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”). Peticiona também a restituição desta quantia e juros indemnizatórios calculados sobre a mesma, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), em 12 de abril de 2024 e, de seguida, notificado à AT.

 

A Requerente designou como árbitro a Prof. Doutora Clotilde Celorico Palma, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, tendo a Requerida indicado o Dr. Fernando Marques Simões.

 

Os árbitros designados comunicaram ao CAAD a designação, por acordo, da Dra. Alexandra Coelho Martins como árbitro presidente, conforme preveem os artigos 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 6 do RJAT, tendo todos os árbitros comunicado a aceitação do encargo.

 

Em 16 de julho de 2024, o Exmo. Presidente do CAAD informou as Partes, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo sido manifestada oposição.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 5 de agosto de 2024.

 

Em 27 de setembro de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por  impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”) parcial, que complementou ulteriormente em 14 de novembro de 2024, a pedido do Tribunal.

 

Por despacho deste Tribunal Arbitral, de 3 de outubro de 2024, foi dispensada reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, uma vez que não foi requerida prova testemunhal, nem foi suscitada ou identificada matéria de exceção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT). 

 

Ambas as Partes foram notificadas para apresentarem, de modo simultâneo, alegações escritas e fixou-se o prazo para a decisão até à data-limite constante do artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

            A Requerida apresentou alegações em 24 de outubro de 2024, remetendo para a Resposta.  A Requerente não apresentou alegações.

 

Posição da Requerente

 

A Requerente invoca erro sobre os pressupostos de facto e de direito relativamente aos dois tipos de correções de IVA de que foi alvo.

 

Sobre a aplicação da taxa de 6% prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA na faturação de adiantamentos para obras de reabilitação urbana, a Requerente pugna pela validade da mesma, salientando que a Requerida nem sequer colocou em crise que se tenham verificado operações de reabilitação urbana nos imóveis designados, com as características necessárias para serem enquadráveis na citada verba e beneficiarem da taxa reduzida. Rejeita que esse enquadramento seja desconsiderado pela AT apenas por não existir uma relação direta entre o empreiteiro geral e os proprietários dos imóveis, pessoas singulares não residentes (investidores em imóveis para reabilitação).

 

Na perspetiva da Requerente, a circunstância de as referidas obras terem sido por si contratadas e adquiridas em nome próprio, não implica, como pretende a Requerida, que a sua imputação aos investidores deixe de ter enquadramento no âmbito da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, uma vez que atuou por conta destes na celebração do contrato de empreitada e na promoção das obras de reabilitação, tendo-se vinculado a praticar atos jurídicos por conta e no interesse dos investidores, ou seja, agiu como mandatária sem representação (v. artigos 1157.º e seguintes do Código Civil e 231.º e 266.º do Código Comercial), situação subsumível ao regime consagrado no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA.

 

Neste âmbito, alega que as liquidações impugnadas derivam da compreensão errónea, por parte da Requerida, do contexto e relações estabelecidas entre os investidores (adquirentes de quotas-partes dos imóveis) e a Requerente, entidade que, após a reabilitação dos imóveis (na titularidade daqueles investidores), os explora como estabelecimentos turísticos, em conformidade com os contratos celebrados com os investidores, que contêm um acordo de recompra, ao fim de um determinado período[1].

 

A finalidade dos edifícios reabilitados é a sua exploração pela Requerente como empreendimentos hoteleiros. Aquela possui, desta forma, um interesse próprio na operação reabilitação urbana. Por outro lado, os investidores têm interesse próprio na aquisição (de quota-parte) dos imóveis, como meio para a obtenção da autorização de residência por atividade de investimento em reabilitação urbana (golden visa).

 

O entendimento da AT de que a realização da operação de reabilitação urbana pela Requerente, em nome próprio, mas por conta dos investidores, no âmbito de um mandato sem representação, não pode beneficiar da taxa reduzida, viola o regime específico previsto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, que transpõe o artigo 28.º da Diretiva IVA[2], segundo o qual quando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome, mas por conta de outrem, considera-se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão.

 

A Requerente apela à jurisprudência do Tribunal de Justiça que explicita que, nestes casos, a atuação do mandatário sem representação é dividida em duas operações para efeitos de IVA, uma do fornecedor para o mandatário (ou comissário), outra do mandatário para o mandante (ou comitente).  As duas operações conservam sempre a mesma natureza objetiva e o mesmo tratamento tributário para efeitos de IVA.

 

Nestes termos, conclui que as obras de reabilitação objeto das faturas por si emitidas aos investidores se enquadram no conceito de reabilitação urbana relevante (v. artigo 2.º, n.º 1, alínea j) do RJRU[3]) e são realizadas em imóveis localizados numa ARU[4] devidamente delimitada e, por essa razão, a taxa de imposto a aplicar na faturação dessas obras aos investidores é de 6%, ao abrigo do estatuído nos artigos 18.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 4 do Código do IVA, em conjugação com o disposto na verba 2.23 da Lista I anexa a esse Código. 

 

A Requerente considera ainda que não é fundamentada a afirmação da AT de que o investidor estrangeiro “não possui” um interesse na reabilitação do imóvel, mas tão-só na obtenção de um documento comprovativo de obras de reabilitação com vista ao preenchimento dos requisitos necessários para obtenção de um visto de residência.

 

Por fim, salienta que em anterior ação inspetiva reportada ao ano 2018 a AT não suscitou qualquer questão, nem efetuou correções ao IVA liquidado por adiantamentos dos investidores relativos a obras de reabilitação urbana.

 

Em relação à segunda correção, respeitante à dedução indevida de IVA no âmbito da reabilitação urbana e constituição de um Aparthotel em ... (Projeto ...), a Requerente começa por assinalar a sua diferenciação dos demais projetos, por inexistir acordo de recompra das quotas dos investidores e, de seguida, rejeita o entendimento da Requerida de que o IVA incorrido nas obras de reabilitação urbana só pode ser deduzido até à concorrência da faturação que lhe está inerente. 

 

Desde logo, porque a fundamentação legal da AT, radicada no artigo 20.º do Código do IVA, não permite a limitação do IVA dos inputs com base no valor da faturação das operações tributadas desenvolvidas pelo sujeito passivo. Assim, o RIT procede a uma inadmissível confusão entre esta norma (artigo 20.º) e o artigo 23.º do mesmo diploma, referente a métodos de dedução mista. Acresce que o critério do limite quantitativo da faturação não tem correspondência com os critérios objetivos de afetação real previstos no artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA, pelo que a correção enferma de erro de direito.

 

Por outro lado, a Requerente argui que não tem sustentação material o argumento de que a faturação das obras de reabilitação consubstancia uma liberalidade e de que os valores faturados a título de obras não foram definidos com base no exercício de uma atividade económica, parecendo assentar em juízos inadmissíveis da AT sobre a sua gestão empresarial. 

 

O facto de o IVA suportado, no decurso das obras de reabilitação, ser superior, em exercícios subsequentes, ao inicialmente estimado, por motivos normais decorrentes da execução do projeto de reabilitação, não legitima que se limite arbitrariamente o direito à dedução do IVA. Conquanto se verifique o nexo direto e imediato das aquisições de bens e serviços com as operações realizadas que conferem o direito à dedução, o direito à dedução não está limitado pelo valor faturado nas operações ativas, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

 

Sendo a atividade económica final desenvolvida pela Requerente a atividade hoteleira e a gestão turística dos imóveis sujeitos à intervenção de reabilitação urbana, todos os inputs incorridos com o projeto ... preenchem os requisitos dos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA, não podendo ser limitado o direito à dedução, pelo que conclui serem ilegais as liquidações de IVA com este fundamento.

 

Por fim, no que se refere os juros compensatórios a Requerente pugna pela sua ilegalidade:

  1. Quer porque as liquidações de IVA de que derivam também são ilegais, pois não se verificam os respetivos pressupostos constitutivos (atraso da liquidação de imposto devido imputável ao sujeito passivo);
  2. Quer por padecerem de vícios próprios: (i) de falta de fundamentação do nexo de causalidade entre o retardamento da liquidação e a conduta do contribuinte e, ainda, (ii) da censurabilidade desta conduta, a título de dolo ou negligência.

 

Conclui que, em matéria de juros compensatórios, a AT não cumpriu o ónus da prova que lhe cabia, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT, e, que, independentemente disso, não se constata culpa da Requerente que atuou de boa-fé e com base numa interpretação plausível da lei que não merece censura.

 

Posição da Requerida

 

A Requerida mantém a posição dos Serviços de Inspeção Tributária no sentido de que as operações tituladas pelas faturas emitidas pela Requerente a investidores, referentes a adiantamentos para obras de reabilitação urbana, não são enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA (e, em consequência, no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA), pelo que não beneficiam da taxa reduzida, de 6%, devendo ser tributadas à taxa normal de 23%.

 

Para a Requerida, a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA abrange apenas as empreitadas de reabilitação urbana realizadas em imóveis localizados em área de reabilitação urbana, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional, e somente é aplicável na relação jurídica estabelecida entre a Requerente e o empreiteiro geral, pois só entre estes existe um contrato de empreitada enquadrado no regime previsto no Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, que aprova o regime jurídico da reabilitação urbana (“RJRU”).

 

Em relação ao artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA invocado pela Requerida, defende que, para ser um verdadeiro redébito previsto nesta norma, não pode ser aplicada uma margem de lucro, devendo ser efetuado pelo exato valor da operação contratada pelo comissário, caso contrário estamos perante uma prestação de serviços tributada à taxa normal.

 

Refere ainda que:

  • As faturas contêm um descritivo genérico “[a]diantamento para obras de reabilitação urbana”, sem mencionarem a localização da obra, o tipo de serviços e bens fornecidos, a execução de empreitada geral ou outros trabalhos conexos;
  • Os valores faturados aos investidores não suportam a (correspondem à) totalidade das obras, sendo apenas o valor necessário para estes obterem os vistos gold;
  • As faturas foram emitidas pelo empreiteiro geral ao dono da obra [que entende ser a Requerente] e não em nome dos investidores e não se encontram registadas em contas de terceiros na esfera da Requerente, nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea c) do Código do IVA.

 

De onde conclui que tais operações são decorrentes da atividade económica da Requerente e, como tal, são qualificadas como prestações de serviços efetuadas aos investidores, nos termos do artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA, tributadas à taxa normal, conforme disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA.

 

A Requerida afirma, ainda, que é manifesto que o objetivo das operações em causa não é o de os investidores serem comproprietários dos imóveis, nem o de comparticiparem nas obras de reabilitação urbana, mas sim o de obterem a autorização de residência para atividade de investimento (“ARI”), ou a autorização de residência permanente e/ou a nacionalidade portuguesa. Por outro lado, a venda aos investidores é feita com acordo de recompra ao fim de seis (6) anos, ficando, de igual modo, patente que o objetivo, por parte da Requerente, se cinge à obtenção de financiamento e que os investidores nunca obtêm o controlo dos imóveis.

 

Pelo que, na perspetiva da Requerida, a venda do imóvel e a realização do acordo devem ser qualificados como uma operação de financiamento, para efeitos contabilísticos e fiscais, por apelo ao primado do princípio da substância sobre a forma.

 

Relativamente à não dedução do IVA incorrido no projeto ...(Aparthotel em...), no qual, diversamente dos outros projetos, não existe acordo de recompra aos investidores, a Requerida argui que não é inócuo o critério utilizado na repartição dos € 350 000 aplicado por cada investidor entre o valor de venda (da quota-parte) do imóvel e o montante pago a título de adiantamento para obras, pois no primeiro caso a operação é isenta (sem direito à dedução) e no segundo é tributável.

Relembra que o direito à dedução implica um nexo de causalidade entre os bens ou serviços adquiridos (inputs) e as operações realizadas a jusante que sejam tributadas, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA. Nas operações imobiliárias esta dedução deve ser obrigatoriamente feita segundo o método da afetação real (artigo 23.º do mesmo diploma), o que implica a separação, pela Requerente, da atividade isenta da tributada e a aplicação de critérios de utilização objetivos. 

 

Segundo a Requerida, o critério de afetação real utilizado pela Requerente neste projeto desvirtua o regime das deduções de imposto, razão pela qual foi substituído oficiosamente por outro, em face das detetadas distorções na tributação. Aduz que a Requerente não pode deduzir a totalidade do IVA suportado com as obras porque não redebitou os respetivos custos na sua totalidade, custos esses incorridos para a aquisição ou construção de bens imóveis afetos a operações isentas da alínea 30) do artigo 9.º do Código do IVA. Assim, na parte não redebitada, não existe o direito à dedução, por respeitar a bens que não estão afetos a uma atividade tributada da Requerente (v. artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA, a contrario), ainda que a Requerente seja a entidade exploradora do empreendimento em causa.

 

No tocante aos juros compensatórios, a Requerida defende que na situação vertente a Requerente agiu com culpa, pelo que os mesmos são devidos. Sobre os juros indemnizatórios, sustenta que não se encontram preenchidos os pressupostos da sua aplicação, nem se verificam situações suscetíveis de justificar uma reparação por danos. Conclui pela improcedência total do pedido.

 

 

  1. Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo, dirigido à anulação de atos tributários de liquidação adicional de IVA (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, contado do termo do prazo para pagamento voluntário, que ocorreu em 11 de janeiro de 2024, tendo a ação arbitral dado entrada em 10 de abril de 2024.

 

Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

III.     Questões a Apreciar

 

São a decidir por este Tribunal as seguintes questões:

  • Aplicabilidade da taxa reduzida prevista na verba 2.23 da Lista I Anexa ao Código do IVA e do disposto nos artigos 4.º, n.º 4 e 18.º, n.º 1, alínea c) do mesmo diploma à faturação, pela Requerente aos investidores proprietários dos imóveis, dos adiantamentos para obras de reabilitação urbana (estão em causa correções de IVA no montante de € 599 785,24);
  • Direito à dedução do IVA incorrido com as obras de reabilitação pela Requerente em conexão com o Projeto ... – Aparthotel em... (estas correções de IVA cifram-se em € 103 001,55);
  • Legalidade das liquidações de juros compensatórios no valor de € 108 433,61;
  • Direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

 

  1. Fundamentação de Facto

 

  1. Factos Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

  1. A A..., S.A., aqui Requerente, encontrava-se à data dos factos inscrita como sujeito passivo de IVA com enquadramento no regime normal, com periodicidade trimestral e tipo de operações misto com dedução de imposto mediante o método de afetação real de todos os bens e serviços – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) junto como Documento 3 e constante do PA.
  2. A Requerente está registada no cadastro da AT para o exercício da atividade de hotéis com restaurante – CAE 55111 – e das atividades secundárias de promoção imobiliária – CAE 41100 –, contabilidade, auditoria e consultoria fiscal – CAE 69200 – e outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão – CAR 70220 – cf. RIT.
  3. A Requerente dedica-se, em concreto, à atividade de gestão e exploração hoteleira e turística em edifícios, no âmbito da qual compra e reabilita imóveis para unidades hoteleiras com o intuito de nos mesmos desenvolver aquela atividade (hoteleira). Presta, ainda, serviços de apoio e soluções para investimento a pessoas singulares não residentes para a realização da atividade de investimento para reabilitação urbana, suscetível de conferir a essas pessoas a autorização de residência em território português (“visto gold” ou “golden visa”) – cf. RIT.
  4. Neste âmbito, promove a venda de quotas-partes de imóveis a reabilitar para unidades hoteleiras a adquirentes estrangeiros oriundos de países fora da União Europeia interessados em obter o visto gold, proporcionando-lhes a candidatura à obtenção de autorização permanente de residência, na modalidade de investimento em reabilitação urbana, assente num vínculo de longo prazo, visando, simultaneamente, como objetivo económico final, a exploração hoteleira dos imóveis, após a sua reabilitação, por forma a libertar cash flows para reembolsar o investimento àqueles investidores – cf. RIT.
  5.  No ano 2019, a Requerente desenvolveu quatro projetos, todos inseridos em áreas de reabilitação urbana – cf. RIT:
    • ... Hotel, no centro histórico do Porto, em fase de reabilitação e adaptação à atividade hoteleira, com percentagem de execução situada em 17%;
    • Hotel ..., no centro de ..., em fase de estudo de arquitetura e especialidades;
    • ... Hotel, na Av. ..., a concretizar no ano seguinte;
    • ... Hotel, na zona da ..., igualmente a concretizar no ano 2020.
  6. A abertura dos hotéis foi iniciada em 2022 e atualmente todas as unidades hoteleiras se encontram abertas e são diretamente exploradas pela Requerente – cf. RIT.
  7. O modelo de negócio da Requerente envolve diversas etapas e a execução, por esta, das seguintes atividades, operações e contratos/acordos – cf. RIT, Documentos 6 a 9 e PA complementado em 14/11/2024:
    • Divulgação e promoção internacional da modalidade portuguesa de obtenção de autorização de residência permanente e/ou de nacionalidade portuguesa (participação em feiras, organização de eventos e reuniões e publicitação);
    • Gestão de uma rede de agentes internacionais que permitem a divulgação em todos os continentes;
    • Identificação e aquisição de imóveis, designadamente ativos imobiliários deteriorados, com potencial para reabilitação urbana e adaptação à atividade hoteleira, localizados em área de reabilitação urbana ou cuja última intervenção de construção / reabilitação tenha ocorrido há mais de 30 (trinta) anos;
    • Análise e validação da viabilidade económico-financeira do projeto, incluindo um processo de due diligence;
    • Identificação e angariação de investidores não residentes interessados no investimento de, pelo menos, € 350.000,00 em reabilitação urbana como meio de obtenção da autorização de residência em Portugal;
    • Venda de quotas-partes do imóvel selecionado em regime de compropriedade aos investidores não residentes, por contrapartida do pagamento à Requerente, por cada investidor, da importância global de € 350 000,00, repartida, nos termos da escritura pública de compra e venda, entre:
  • € 250 000,00, como contrapartida da venda da quota-parte no imóvel;
  • € 100 000,00, como pagamento (adiantamento com IVA incluído) das obras de reabilitação urbana a realizar no imóvel adquirido em compropriedade.
  • No caso do Aparthotel ..., a repartição dos valores é ligeiramente diferente, variando entre € 210 000,00 e € 265 000,00 pela venda da quota-parte do imóvel, adicionados de € 140 000,00 (com IVA incluído) referentes ao adiantamento para obras de reabilitação urbana, perfazendo globalmente sempre o mínimo de € 350 000,00.
  • Celebração de acordos com os investidores contemplando, designadamente:
  • Que os investidores adquiriram a quota-parte dos imóveis com o propósito de se candidatar a uma ARI, autorização de residência permanente ou nacionalidade portuguesa, tendo interesse em a revender depois de adquirido esse estatuto e que a Requerente tem interesse em a recomprar;
  • Um contrato de arrendamento, a título oneroso, para uso e exploração pela Requerente, dos imóveis reabilitados para unidade hoteleira, com direito de alojamento do investidor pelo período de 7 (sete) dias em cada ano;
  • A atribuição à Requerente da posição de representante de todos os investidores-comproprietários enquanto vigorar o contrato de arrendamento;
  • A obrigação de a Requerente obter os alvarás, realizar as obras previstas no Projeto de reabilitação, restauro e reconfiguração do imóvel, suportar os encargos relacionados com o projeto, subscrever e manter uma apólice de seguro de incêndio;
  • A futura recompra da quota-parte do imóvel pela Requerente (acordo de retoma) pelo valor de € 350 000,00, com ressalva do projeto ..., em que esse acordo não está contemplado;
  • Uma cláusula de inalienabilidade da quota-parte dos investidores a terceiros, exceto se a Requerente não cumprir a sua obrigação de recompra, no prazo aplicável;
  • Celebração de Contrato de Empreitada para a realização das obras de reabilitação urbana, no qual é explicitado que o dono da obra é a Requerente “entidade promotora e proprietária do projeto Turístico” alienado em regime de compropriedade a investidores e que estes pretendem preencher os requisitos legais para requerer uma Autorização de Residência para Atividade de Investimento definida no artigo 3.º, alínea iv) da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho (ARI/Golden Visa);
  • Desenvolvimento do projeto de reabilitação urbana, incluindo o projeto de arquitetura e o projeto de especialidades, obtenção da aprovação camarária, lançamento do concurso de obra e adjudicação do contrato de empreitada de reabilitação urbana, sua monitorização e acompanhamento e obtenção dos licenciamentos exigíveis, sendo o Alvará e Licenças de Obra emitidos em nome da Requerente;
  • Exploração do ativo imobiliário na atividade de alojamento hoteleiro e serviços conexos.
  • Ao longo destas etapas, a Requerente suporta as despesas de conservação e manutenção associadas, paga os correspondentes impostos, contratualiza os seguros e tem total autonomia na gestão e exploração, desde a conceção do projeto – cf. RIT.
  • As obras de reabilitação dos edifícios são faturadas à Requerente como serviços de construção civil pelas construtoras/empreiteiros, sem liquidação de IVA, ao abrigo da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA. Subsequentemente, com referência a essas faturas, a Requerente efetua a autoliquidação do imposto (por inversão do sujeito passivo) à taxa reduzida, por aplicação do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) e da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA – cf. RIT.
  • Por seu turno, a Requerente fatura, a cada um dos investidores, a título de “Adiantamento para Obras de Reabilitação Urbana”, o valor de € 100 000,00 (ou no caso do Aparthotel de ..., de € 140 000,00), com IVA incluído à taxa de 6%, por entender que estarem em causa operações com enquadramento no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) e na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, tendo entregue este imposto ao Estado – cf. RIT.
  • Na venda da quota-parte dos imóveis aos investidores, cujo preço foi fixado em € 250 000,00 (ou entre € 210 000,00 e € 265 000,00 no caso do imóvel de...), foi aplicada a isenção de IVA estabelecida no artigo 9.º, alínea 30 do respetivo Código, por se tratar de uma operação sujeita a IMT – cf. RIT.
  • Os imóveis vendidos pela Requerente com acordo de recompra foram contabilizados como objeto de um contrato de locação, i.e., como ativos fixos tangíveis, em aplicação da NCRF[5] 9 – Locações na Contabilização das Operações, baseado no facto de aquela ter o direito a recuperar o ativo por um preço inferior ao preço de venda, como dispõe a IAS[6] 17. Foi também aplicada ao negócio a IFRS[7] 15 – Rédito de Contratos com Clientes e NCRF 20 – Rédito, com fundamento na interpretação de que os investidores detêm a posse física do ativo, mas não o seu controlo ativo, porque estão limitados na sua capacidade para orientar o seu uso e para obter substancialmente todos os benefícios remanescentes desse ativo – cf. RIT.
  • Em relação à dedução do IVA incorrido nos serviços adquiridos à sociedade canadiana do mesmo grupo económico, a B... Ltd., remunerados por comissões, no ano 2019, a Requerente aplicou o método de dedução parcial da afetação real, previsto no artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA. Neste âmbito, determinou o peso/proporção das operações tributadas (faturação de obras) no total das operações realizadas (venda das quotas-partes dos imóveis + faturação de obras), do que resultaram os seguintes rácios – cf. RIT:
  • 28% no hotel ...;
  • 40% nos hotéis ... e ...;
  • 45% no ... hotel.
  1. Relativamente aos demais inputs, a Requerente exerceu o direito à dedução integral do imposto – cf. RIT.
  2. Em 17 de novembro de 2022, os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças do Porto iniciaram um procedimento inspetivo externo, ao abrigo da ordem de serviço OI2022..., de âmbito geral, referente ao ano 2019, visando a análise ao enquadramento geral das operações desenvolvidas pela Requerente – cf. RIT.
  3. No âmbito deste procedimento inspetivo, os serviços da Requerida concluíram por irregularidades em IVA (entre outras de IRC, IRS e IMT que não são objeto dos presentes autos, pelo que aqui não relevam), com proposta global de correções de € 702 786,79 derivadas de:
  • Falta liquidação de IVA (IVA inferior ao devido), por ter sido aplicada a taxa reduzida (6%) à faturação aos investidores dos adiantamentos para obras de reabilitação urbana, ao invés da taxa normal de 23% (€ 599 785,24);
  • Dedução indevida de IVA (€ 103 786,79), por discordância do critério da dedução da totalidade do imposto incorrido no âmbito do projeto ... (Aparthotel de ...), nos inputs incorridos com as obras de reabilitação (ressalvado o IVA das comissões pagas à B... Ltd., que apenas havia sido deduzido pela Requerente em 40%) – cf. Documento 4 e RIT.
  1. A Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção, para efeitos do exercício do direito de audição, tendo apresentado uma exposição sintética das razões de rejeição da proposta de correções – cf. Documento 5.
  2. Posteriormente, a Requerente foi notificada do Relatório Final (“RIT”), que manteve a proposta de correções de IVA de que se extrai a seguinte fundamentação, com relevo para a matéria em discussão nestes autos – cf. RIT:

V.1 IVA

V.1.1 IVA – Correção de Taxa [faturação dos adiantamentos para obras]

[…]

[…] importa desde logo destacar e sublinhar que, para o investidor, o negócio está montado em torno de um objetivo principal: a obtenção do visto gold, revelando-se a fatura de adiantamento para obras de reabilitação um formalismo para dar cumprimento às exigências do SEF.

Nos termos do art 18º do CIVA – Taxas de Imposto:

nº1 - As taxas do imposto são as seguintes:

  1. Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa a este diploma, a taxa de 6%;
  2. Para as restantes importações, transmissões de bens e prestações de serviços, a taxa de 23%.

O SP liquidou IVA à taxa de 6% por enquadramento das obras na verba 2.23 da lista I do CIVA:

Empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional.

Determina assim como condições para enquadramento na previsão da referida verba a realização de empreitada de reabilitação urbana em área de reabilitação urbana.

O Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro – configura o diploma que estabelece o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana.

De facto, a verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, prevê a possibilidade de aplicação da taxa reduzida (6%) a estas operações, mas mediante a imposição de condições restritas, de verificação cumulativa, a saber:

  • A taxa reduzida só se aplica no âmbito de “Empreitadas de reabilitação urbana”;
  • Nas condições definidas “em diploma específico”;
  • Desde que “realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou,
  • No âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”.

No caso concreto, a A... fatura adiantamentos - a título de obras de reabilitação - aos investidores internacionais que pretendem obter os vistos gold. Na componente das mesmas aplicou IVA a 6% por, na sua perspetiva, se tratar de obras sobre imóveis inseridos numa Área de Reabilitação Urbana (ARU).

Sobre este aspeto, revela-se indevida a aplicação da taxa reduzida pelo facto de tais operações não reunirem condições de enquadramento nos referidos normativos.

Na génese da contraprestação referida não está subjacente um verdadeiro adiantamento para obras de reabilitação do imóvel. O investidor estrangeiro “não possui” um interesse direto ou indireto na reabilitação do imóvel, mas sim a obtenção de documento comprovativo de obras de reabilitação com vista ao preenchimento dos requisitos legais indispensáveis à instrução de processo junto do SEF, para obtenção de um visto de residência. Em qualquer um dos projetos, o fracionamento efetuado entre escritura e fatura é um formalismo. Quem executa, como Dono da Obra, as empreitadas é a A... logo é esta a entidade que reúne os requisitos legais atrás expostos para beneficiar da taxa reduzida de 6%.

Seguidamente a A... fatura as obras de todos os projetos, mas em nenhum deles aliena/presta serviço – efetivamente – de obras. Nos projetos ..., ... e ... a fatura é, como referido, um formalismo, e no projeto... não deixa de o ser também pois, de facto e em substância, aquilo que é objeto de venda é um imóvel reabilitado e não algo fracionado em “casco” e obras.

Em complemento, é pressuposto legal obrigatório – para a validação do RJRU e verba 2.23 da Lista I (anexa ao CIVA) - estarmos perante um contrato de empreitada celebrado entre o empreiteiro geral e o dono da obra.

Ora, a A...- que fatura os trabalhos - não é um empreiteiro geral. Nem os investidores dos vistos gold são o dono da obra [segundo legislação especial que enquadra os contratos de empreitada]. Nem é ao investidor do visto gold que o município (respetivo) emite a declaração oficial para efeito da aplicação da taxa reduzida de IVA aplicável à reabilitação urbana.

O simples facto de o imóvel se encontrar situado numa ARU, também não constitui elemento bastante para, por si só, ser o único argumento invocado para efeito de aplicação da taxa reduzida de IVA.

Acresce ainda que, tem sido entendimento da AT que, em operações de redébito ou comparticipação, o enquadramento do respetivo débito deve seguir as seguintes orientações:

  • Se a fatura for emitida de forma discriminada, identificando os componentes que constituem os bens ou serviços [igual à fatura do gasto que foi suportado], há lugar a tributação à taxa de IVA que corresponder a cada uma das componentes debitadas.
  • Se emitida sem qualquer discriminação, a respetiva tributação é feita à taxa normal. Este é também a situação visível nas faturas da A..., cujo descritivo apresentado se limita a “Adiantamento para obras de reabilitação urbana”.

Em síntese

De todo o circunstanciado resulta claro estarmos perante condições que, de per si e conjuntamente, afastam a aplicação da taxa reduzida na faturação (FT) das obras aos investidores:

  1. Não é suficiente que a certidão refira que o prédio objeto de intervenção se situa numa ARU (zona de reabilitação urbana) reconhecida pela Assembleia Municipal.
  2. Para além de que tal certidão se encontra emitida em nome da A... sendo esta a entidade que, de facto, promove a reabilitação urbana.
  3. E como já referido o interesse dos investidores cinge-se, unicamente, à obtenção do designado visto gold.
  4. Os trabalhos devem encontrar-se previstos no(s) respetivo(s) contrato(s) de empreitada assinado(s) pelas partes: "Dono da obra" e "Empreiteiro geral", sendo sempre a A... a assumir a posição de Dono da Obra.
  5. A taxa reduzida de IVA aplica-se apenas na relação jurídico-tributária estabelecida entre a A... e o empreiteiro geral [porque é entre estes que existe um contrato de empreitada enquadrável em toda a sua plenitude no regime das empreitadas e subempreitadas previsto no DL. n.º 307/2009, de 23/10].
  6. Entre a A... e os Investidores dos vistos gold não existe qualquer contrato de empreitada; pois nem a A... tem a qualificação, licenças, alvarás de empreiteiro geral, nem os investidores dos vistos gold possuem em seu nome a respetiva certificação da autarquia e nem sequer exercem uma atividade económica para efeitos de IVA, nem sendo sequer “donos da obra” segundo a definição de contrato de empreitada.

 

Conclusão

Face ao exposto, é devida correção ao IVA liquidado resultante da aplicação incorreta da taxa reduzida [nota 31: prevista no artigo 18.º, n.º 1, al. a) do CIVA e da Verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA] na faturação - aos investidores - de trabalhos de reabilitação urbana. Efetivamente, na faturação em causa, a A... estava obrigada a liquidar IVA à taxa normal (23%) prevista no artigo 18.º, n.º 1, al. c) do CIVA.

Os quadros abaixo apresentados demonstram as correções devidas de €599.785,24:

Quadro 22 – Calculo da diferença entre o IVA devido e o IVA liquidado na Faturação emitida em 2019

 

 

 […]

V.1.2 IVA Indevidamente deduzido – Projeto ...

Como já referido, o projeto ... (...) não seguiu o modelo de negócio aplicado no..., ... e ... .

Este projeto teve as seguintes especificidades:

1 - Consiste num Aparthotel [com 108 apartamentos e 56 lugares de estacionamento];

2 - A cada investidor, dos 54 adstritos, couberam 2 apartamentos e 1 lugar de estacionamento;

3 - O investimento (total) por parte dos investidores estrangeiros (interessados no visto gold), também na base dos €350.000/cada (com oscilações) foi formalizado do seguinte modo:

(i) 54 Escrituras de venda (CCV) que variaram entre €210.000 e €265.000, e totalizaram €11.538.000;

(ii) 54 Faturas (IVA incluído à taxa de 6%, base de €132.075) no valor de €140.000/cada - a título de “adiantamento para obras de reabilitação urbana” - que totalizaram €7.560.000”; o que no caso é insuficiente para cobrir o orçamento de empreita [€10.441.000 IVA incluído a 6%, zona ARU];

4 - O Acordo efetuado entre as partes – Investor´s Agreement – também distinto dos restantes projetos, não prevê a recompra do imóvel.

[…]

Conclui-se, pois, que, no caso específico (...), uma vez projetada a construção de um Aparthotel com unidades independentes, a formalização da Venda a investidores é efetiva - não prevê a opção de recompra.

[…]

Em sede de IVA, foi indevidamente adotado idêntico tratamento ao aplicado aos restantes três projetos:

- Liquidação de IVA à taxa de 6% na faturação de adiantamento para obras de reabilitação urbana (como já descrito no ponto anterior, objeto de correção para os 23%);

- Dedução de 40% do IVA suportado nas comissões debitadas pela B..., Ltd, [mediante a aplicação do critério já mencionado, ou seja, peso das operações sujeitas sobre operações totais]:

Quadro 24 – Percentagens de dedução do IVA - afetação real - calculada pelo SP nas comissões debitados pela B... l Ltd, no projeto ....

 

- Dedução de 100% do IVA suportado nos inputs gerais [exceção para as comissões];

Notas a ter em consideração (V. quadro abaixo):

  • Os inputs suportados com a edificação - que em finais de 2021 ascendem a cerca de €12.000.000 (+IVA) - excedem largamente o valor orçamentado para a empreitada geral, de €9.850.000 […]
  • Os outputs (base de €7.132.075 […]), revelam-se muito inferiores aos inputs que lhes estão associados gerando, como tal, um crédito de IVA a favor da empresa.

Como se constata, quando o sujeito passivo definiu – à priori – o fracionamento a dar aos €350.000 definindo o valor da Escritura (CCV) e o valor da faturação (FT), não teve em consideração, sequer, um (re)débito da empreitada (operações de construção civil).

O valor faturado de €7.132.075 […] é substancialmente inferior ao orçamentado para a obra […], que veio a revelar-se muito superior.

Como evidencia o quadro, e tendo em conta a faturação à taxa de 6% (mesmo que incorreta), é gerado um crédito de IVA a favor do sujeito passivo.

No entanto - e independentemente do valor do IVA - a base tributável é o indicador que nos merece atenção, revelando as operações ativas e as operações passivas (a montante) que lhe estão associadas.

Efetivamente, foi expressado pela A... que o valor debitado a título de adiantamento para obras de reabilitação deveria ter coberto o valor da empreitada, o que aqui – claramente - vemos não ter acontecido.

[…]

Resumindo, estamos perante um empreendimento hoteleiro vendido com as respetivas obras de reabilitação, cujo valor de alienação foi fracionado por Escritura (CCV) e por Fatura (FT) [indo de encontro às necessidades de investidores estrangeiros interessados nos vistos gold]

Tal fracionamento - que consubstancia uma liberalidade - não teve em consideração os efeitos causados na dedutibilidade do IVA.

Vejamos:

O art.20º do CIVA enumera as situações em que o IVA pago a montante pode ser deduzido, dispondo o nº1:

Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou

utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de Bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas:

(…)

Diversa jurisprudência veio já determinar que a existência de uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução é, em princípio, necessária para que o direito a dedução do IVA pago a montante seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar o alcance de tal direito.

O direito à dedução do IVA que incide sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição façam parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito à dedução.

Assim, no empreendimento sob análise (...), torna-se fundamental quantificar em que medida os inputs incorridos com a reconstrução/reabilitação do imóvel [que veio a constituir o aparthotel ...] – como a empreitada, as comissões, as despesas com arquitetura, engenharia e outros demais -, são cobertos pelos outputs faturados (FT - operações sujeitas a IVA), ou, antes, são cobertos pela(s) Escritura(s) de venda do imóvel

(operações isentas, sem direito à dedução).

Resumindo:

Na origem da contraprestação recebida pelas obras não está subjacente um verdadeiro adiantamento para as obras de reabilitação do imóvel. O investidor estrangeiro “não possui” um interesse direto ou indireto na reabilitação, mas sim na obtenção de documento comprovativo de obras de reabilitação com vista ao preenchimento dos requisitos legais indispensáveis à instrução de processo junto do SEF, para obtenção de um visto de residência.

Neste sentido, o(s) valor(es) faturado(s) a título de obras [54 x €132.075,47 (+IVA liquidado a 6%)] não foram definidos com base no exercício de uma atividade económica, mas sim fixados sob uma liberalidade que teve subjacente requisitos externos à própria atividade.

Nessa medida, o IVA suportado com a reabilitação só poderá ser deduzido até à concorrência da faturação que lhe está inerente (FT - faturação das obras de reabilitação), sendo esta a única forma que garante uma imputação real das despesas (a montante) a cada uma das atividades económicas tributáveis ou isentas (a jusante), em cumprimento do citado artigo 20º do CIVA.

No cômputo geral, e tendo em conta a correção definida no ponto anterior, ao total de €140.000 faturado a título de adiantamento para obras de reabilitação, corresponde a uma base tributável de €113.821,14 tendo em conta uma taxa de IVA de 23% liquidado “por dentro”. Às 54 faturas corresponde uma base tributável total de €6.146.341,46 logo, as operações a montante (inputs) que poderão conferir o direito à dedução não poderão ultrapassar este valor.

Quadro 27 – Calculo da base tributável da faturação a título de obras

 

Inclusivamente, esta seria precisamente a intenção do SP. Segundo esclarecimento obtido no seio do GC..., o fracionamento de cada avo de €350.000, é efetuado com base no seguinte critério:

  • “ O valor do financiamento associado ao adiantamento por conta das obras é apurado de acordo com o rácio [valor estimado da reabilitação / número de investidores];
  • O restante valor do financiamento corresponde à diferença entre este último rácio e o valor mínimo necessário para a obtenção da autorização permanente de residência e destina-se a financiar não apenas o custo de aquisição do ativo no estado em que este se encontra à data da aquisição, mas também todos os encargos associados, nomeadamente os seguintes:
  1. Encargos necessários à angariação dos investidores;
  2. Taxas e licenças camarárias;
  3. Seguros de obra;
  4. Projetos de arquitetura e especialidades;
  5. Decoração;
  6. Encargos relativos a eventuais desvios que são comuns ocorrerem na fase de execução da obra.
  • Esta separação tem como propósito fornecer ao SEF a informação necessária e suficiente para o reconhecimento da atividade de investimento, cabimentável na subcategoria de investimento na reabilitação, que de facto o é e que pauta o modelo de negócio da sociedade. ”

A intenção seria, pois, repartir o valor da empreitada por todos os investidores, desencadeando iguais valores a montante e a jusante (inputs com a obra faturados aos investidores).

As restantes operações passivas, como as comissões, obra e outos associados ao projeto que excedessem o valor faturado, seriam inputs das operações isentas pelo art. 9º nº30 (Escrituras - CCV).

Cômputo das deduções excessivas

Nos termos do artigo 20º, é passível de dedução o IVA suportado com as obras de reabilitação até ao limite da base tributável subjacente ao valor faturado aos investidores estrangeiros. O limite de dedutibilidade do IVA suportado com este projeto ascende a uma base tributável de €6.146.341,46 que corresponde à base tributável das operações a jusante que lhe correspondem – base da faturação dos 54 avos, à taxa de 23% [(140.000 x 54) / 1,23 = €6.146.341,46)

Segue-se quadro representativo da faturação a título de obras emitida pelo SP ao longo dos anos:

Quadro 28 – Faturação de Obras (IVA à taxa de 23%)

 

 

 

 

Até 2019/12/31 é passível de dedução o imposto suportado com obras até à concorrência da base tributável faturada (corrigida) de €1.707.317,07.

No ano 2019, o hotel ... apresentava-se em fase de estudo e elaboração do projeto. A empreitada de reabilitação só deu início no ano 2020 pelo que, (em 2019) todo o IVA suportado com este empreendimento não confere direito à dedução [ainda que tenham faturado (FT) 15/54 avos da verba pré fixada a título de obra].

Segue-se quadro demonstrativo das correções apuradas no total de €103.001,55:

[…]”.

  1. Em relação aos argumentos esgrimidos pela Requerente no direito de audição, os Serviços de Inspeção entenderam não ser de alterar a proposta de correções, por, em síntese – cf. RIT:
  • Não anteverem “em que medida os investidores estrangeiros exerceram ativamente eles próprios – pessoalmente ou através de uma sociedade – uma qualquer atividade de investimento”, pois não promoveram pessoalmente a concretização das obras de reabilitação em análise, tendo-o feito, antes, a A...;
  • Os investidores se terem limitado a disponibilizar meios financeiros, como se de uma entidade financiadora se tratasse. O próprio sujeito passivo defende que a escritura pública entrega o título aquisitivo do imóvel e obras, juridicamente, e não economicamente;
  • A taxa reduzida de IVA se aplicar apenas na relação jurídico-tributária estabelecida entre a Requerente e o empreiteiro geral;
  • Não restarem dúvidas de que o propósito dos Investidores estrangeiros, a final, não foi a reabilitação nem a promoveram ativamente. Antes, foi a obtenção de um título de residência utilizando o modelo de negócio que a Requerente estrategicamente lançou. A reabilitação urbana não é um fim para os Investidores, antes um meio para atingir outro fim;
  • As Certidões da Câmara, que reconhecem a obra de reabilitação urbana em edifício localizado em área de reabilitação urbana, estarem passadas em nome da Requerente;
  • Os investidores só constarem dos Contratos de Empreitada na qualidade disso mesmo, investidores, pois nem o empreiteiro fatura a obra aos investidores, nem os investidores pagam a obra ao empreiteiro;
  • Em relação à dedutibilidade do IVA incorrido no Projeto ..., por serem de manter as considerações tecidas no Projeto de Relatório.
  1. No procedimento de inspeção tributária relativo à atividade da Requerente do ano 2018, a Requerida não suscitou qualquer questão ou efetuou correções ao IVA liquidado à taxa reduzida de 6% nas faturas pelos adiantamentos para obras de reabilitação urbana dos investidores, tendo aí sido concluído que a aplicação da taxa de 6% nos “Adiantamentos para obras de reabilitação urbana conforme contrato de empreitada referido em escritura” era enquadrável no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA e na verba 2.23 da Lista I anexa ao mesmo Código em conjugação com o Regime Jurídico de Reabilitação Urbana – cf. Documento 10 (RIT 2018).
  2. Na sequência do mencionado procedimento inspetivo, foram emitidos os seguintes atos tributários e demonstrações de acerto de contas, reportados aos quatro trimestres de 2019, perfazendo o total de € 811 220,40 (€ 702 786,79 de imposto e € 108 433,61 de juros compensatórios) – cf. Documento 1:
  1. Demonstração de liquidação de IVA respeitante ao período 201903T com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 73.790,22, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024, conforme demonstração de acerto de contas n.º 2023...;
  2. Demonstração de liquidação de IVA respeitante ao período 201906T, com o n.º 2023 ... e o valor a pagar de € 32.615,44, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024, conforme demonstração de acerto de contas n.º 2023...;
  3. Demonstração de liquidação de IVA respeitante ao período 201909T, com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 196.137,63, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024, conforme demonstração de acerto de contas n.º 2023...;
  4. Demonstração de liquidação de IVA respeitante ao período 201912T, com o n.º 2023... e o valor a pagar de € 400.243,50, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024, conforme demonstração de acerto de contas n.º 2023...;
  5. Demonstração de acerto de contas com o n.º 2023... referente à liquidação de juros compensatórios n.º 2023... do período 201903T, no valor a pagar de € 13.140,72, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024;
  6. Demonstração de acerto de contas com o n.º 2023 ... referente à liquidação de juros compensatórios n.º 2023... do período 201906T, no valor a pagar de € 5.475,81, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024;
  7. Demonstração de acerto de contas com o n.º 2023... referente à liquidação de juros compensatórios n.º 2023... do período 201909T, no valor a pagar de € 30.866,15, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024;
  8. Demonstração de acerto de contas com o n.º 2023... referente à liquidação de juros compensatórios n.º 2023... do período 201912T, no valor a pagar de € 58.950,93, com data-limite de pagamento de 11 de janeiro de 2024.
  1. A Requerente procedeu ao pagamento do valor de imposto e juros, no total de 811 220,40, em 10 de janeiro de 2024 – cf. Documento 2.
  2. As demonstrações das liquidações de juros de IVA contêm a seguinte fundamentação:

Juros nos termos do artº 96º do CIVA e do artº 35º e/ou artº 44º da LGT de acordo com o fundamento constante na demonstração da liquidação. Os juros podem resultar do atraso na liquidação do imposto por facto imputável ao contribuinte (juros compensatórios) e/ou por atraso ou insuficiência do pagamento (juros de mora) e contam-se dia a dia desde o termo do prazo para cumprimento da obrigação até à data da sua regularização - art. 35 n.º 3 e/ou 44 n.º 2 da LGT. Se os juros compensatórios resultarem de recebimento de reembolso superior ao devido por facto imputável ao contribuinte, são contados desde o recebimento do reembolso até ao suprimento ou correção da falta que o motivou - art. 35 n.º 5 da LGT” – cf. Documento 1.

  1. Em discordância das liquidações adicionais de IVA referentes aos quatro trimestres do ano 2019 e dos juros compensatórios inerentes, a Requerente apresentou junto do CAAD, em 10 de abril de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

            2.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto e Factos não Provados

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes.

            Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

 

  1. Do Direito

 

  1. Redébito de obras de reabilitação urbana

 

  1. Enquadramento preliminar

           

            A primeira questão que se suscita nos autos prende-se com saber se a faturação, pela Requerente, aos investidores/comproprietários dos edifícios, das obras de reabilitação urbana nestes efetuadas beneficia da taxa reduzida de IVA, de 6%.

 

           

            Estão em causa prestações de serviços relativos a empreitadas de reabilitação urbana que a Requerente adquiriu, tendo celebrado os correspondentes contratos de empreitada com sociedades de engenharia e construção civil.

 

            Ambas as Partes consideram que os serviços de reabilitação urbana prestados e faturados pelas sociedades construtoras (empreiteiros gerais) à Requerente preenchem os requisitos legais para o respetivo enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, respeitando a empreitadas de reabilitação urbana, tal como definidas em diploma específico, realizadas em imóveis localizados em áreas de reabilitação urbana, e, portanto, passíveis de serem tributados em IVA à taxa reduzida de 6%.

 

            O ponto de divergência está na “repassagem” dessa faturação, pela Requerente, aos investidores/comproprietários que suportam (pelo menos em parte) os encargos com a empreitada.

 

            Na perspetiva da Requerente, a contratação dos serviços de empreitada de reabilitação urbana foi realizada por conta e no interesse dos investidores e comproprietários, ao abrigo de um mandato sem representação (v. artigos 1157.º[8] e 1180.º[9] do Código Civil e artigos 231.º e 266.º do Código Comercial), aplicando-se o disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, segundo o qual, “quando a prestação de serviços for efetuada por intervenção de um mandatário agindo em nome próprio, este é, sucessivamente, adquirente e prestador do serviço”[10], ficcionando-se, desta forma, duas operações sucessivas (entre o empreiteiro e a Requerente, por um lado, e entre a Requerente e o investidor, por outro lado), que conservam o mesmo regime de IVA.

 

            Assim, se na primeira relação jurídico-tributária é devido IVA à taxa de 6%, no que ambas as Partes concedem, na segunda relação, da Requerente com os investidores, será, igualmente, aplicável tal taxa reduzida. Esta última conclusão é, porém, rebatida pela Requerida, que se opõe à aplicação do regime de redébitos previsto no citado artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, por entender que não cabem na sua previsão as situações em que a faturação emitida ao mandante (aqui, o investidor) não seja exatamente do mesmo montante que a faturação emitida pelo fornecedor dos serviços ao mandatário (a ora Requerente), sendo que, na situação vertente, os valores faturados aos investidores a título de obras de reabilitação são inferiores aos incorridos pela Requerente.

 

            Além do mais (e parece que independentemente da aplicabilidade do regime de redébito), para a Requerida, os seguintes argumentos afastam o enquadramento das operações da Requerente vis à vis os investidores na taxa reduzida de IVA:

 

  1. A previsão da verba 2.23 implica uma relação direta entre o empreiteiro-geral e o contratante dos serviços de empreitada (a Requerente), não abrangendo a relação da Requerente com os investidores;
  2. A venda do imóvel e a realização do acordo com os investidores correspondem, em substância, a uma operação de financiamento[11], para efeitos contabilísticos e fiscais, dado que o objetivo dos investidores não é adquirir a quota-parte do imóvel e/ou os serviços de reabilitação, tão-só fazer um investimento temporário (a seis anos) que lhes permita o acesso à autorização de residência no território da União Europeia. Visão que está em consonância com o tratamento contabilístico conferido pela Requerente, derivado do reconhecimento de que é esta que, desde o início do investimento, tem o controlo do ativo e não os investidores (exceção feita ao Aparthotel de..., em que não há acordo de recompra);
  3. Do ponto de vista formal:
    1. As faturas foram emitidas pelos empreiteiros em nome da Requerente e não em nome dos investidores e não foram registadas em contas de terceiros, nos termos do artigo 16.º, n.º 6, alínea c) do Código do IVA;
    2. As faturas emitidas pela Requerente aos investidores contêm um descritivo genérico.

 

  1. Regime de IVA nos redébitos com origem em mandato sem representação

                       

            O sistema comum do IVA contém uma disciplina específica para as operações realizadas pelos sujeitos passivos em nome próprio, por conta de outrem, regime que abrange, quer as transmissões de bens, quer as prestações de serviços.

 

            No caso das transmissões de bens, rege o artigo 14.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA que considera como tais as transmissões efetuadas “nos termos de um contrato de comissão de compra ou de venda.” Esta regulação acompanha, de igual modo, as prestações de serviços, nos termos do artigo 28.º da Diretiva IVA: “[q]uando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome mas por conta de outrem, considera-se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão”, que o Código do IVA transpôs no seu artigo 4.º, n.º 4 (“[q]uando a prestação de serviços for efetuada por intervenção de um mandatário agindo em nome próprio, este é, sucessivamente, adquirente e prestador do serviço”).

 

            Ben Terra e Julie Kajus[12] explicam que sem estas normas um intermediário sem poderes de representação [undisclosed agent] teria sempre de revelar o nome do mandante para a adoção de procedimentos de faturação conformes ao sistema comum do IVA. Para ultrapassar essa limitação, a Diretiva introduziu a “ficção” de uma operação para e a partir do undisclosed agent (mandatário ou comissário). É a este (na qualidade de destinatário) que as faturas têm de ser emitidas pelos fornecedores dos bens transmitidos ou prestadores dos serviços realizados[13] e é também o mandatário (comissário) que deve emitir as faturas (de redébito) dos bens ou serviços em causa ao mandante (comitente), quando o primeiro, atuando em nome próprio, intervém numa operação relevante para efeitos de IVA.

 

            Segundo Xavier de Basto, esta solução é imposta pela natureza técnica do IVA, cujo correto funcionamento exige a inexistência de cortes ou interrupções na cadeia de deduções[14]: “há que impedir, através de uma ficção, a interrupção da cadeia de deduções. A ficção será agora a de que o mandatário “recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão”, conseguindo-se assim que o mandatário possa deduzir o imposto que lhe foi debitado quando os adquiriu. De outra forma, apenas o imposto que onerasse as despesas do mandatário poderia ser por ele deduzido[15].

 

            A refaturação ou “redébito” das operações pelo intermediário ao mandante/comitente segue o mesmo regime de IVA da operação inicial, nomeadamente no tocante à sua qualificação e regime (v.g. incidência e taxa aplicável), devendo a fatura conter a discriminação das operações, nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 5 do Código do imposto.

 

            O Tribunal de Justiça tem sido chamado a pronunciar-se sobre o tratamento em IVA das operações – sejam de bens ou de serviços – efetuadas em nome próprio por intermediários.

 

            Para aquele Tribunal europeu, a atuação em nome próprio significa que o vínculo jurídico não nasce diretamente entre o prestador (ou adquirente, consoante os casos) e a entidade por conta de quem o intermediário age, mas entre esse prestador e o intermediário, por um lado, e entre o intermediário e o seu mandante, por outro – v. ponto 33 do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo C-464/10, Henfling, em 14 de julho de 2011.

 

            Nestes termos, “o artigo 28.º da Diretiva IVA cria a ficção jurídica de duas prestações de serviços idênticas fornecidas consecutivamente, considerando‑se que o operador, que intervém na prestação de serviços e que é o comissário, recebeu, num primeiro momento, os serviços em causa de prestadores especializados antes de fornecer, num segundo momento, esses serviços ao operador por conta do qual atua (Acórdão de 4 de maio de 2017, Comissão/Luxemburgo, C‑274/15, EU:C:2017:333, n.º 86)” – ponto 37 do acórdão proferido no processo C-707/18, Amărăşti Land Investment, de 19 de dezembro de 2019.

 

            Por outro lado, o Tribunal de Justiça refere expressamente que o artigo 6.º, n.º 4 da Sexta Diretiva[16] (correspondente ao atual artigo 28.º da Diretiva IVA) está “redigido em termos gerais, sem conter restrições quanto ao seu âmbito de aplicação ou ao seu alcance” e que “a ficção criada por esta disposição diz também respeito à aplicação das isenções do IVA previstas na Sexta Directiva. Daí resulta que, se a prestação de serviços em que o comissário intervém está isenta de IVA, essa isenção também é aplicável à relação jurídica entre o comitente e o comissário” – ponto 36 do acórdão C-464/10, Henfling. Rematando que a tal conclusão não se opõe o princípio da neutralidade fiscal.

 

            A argumentação do Tribunal de Justiça sobre a aplicação do regime de isenção de IVA em operações sucessivas com intervenção de comitente/comissário é totalmente transponível para as taxas de IVA. Uma vez que se verifica a equiparação do serviço prestado (ou bem transmitido)[17] ao serviço refaturado (e adquirido em última instância pelo mandante ou comitente) a ambos caberá a mesma taxa de IVA.

 

            O Tribunal de Justiça considera, além do mais, que a aplicação do regime específico de tributação das operações efetuadas com intervenção de intermediários que agem em nome próprio, mas por conta de outrem, é independente do valor “refaturado” pelo intermediário. Neste âmbito declara que, “tendo em conta que a redação do artigo 28.º da Diretiva IVA não prevê nenhuma condição relativa ao caráter oneroso da participação na prestação de serviços, é irrelevante, para efeitos da aplicação deste artigo, o facto de os custos associados à primeira inscrição do imóvel em causa no Registo Predial não terem sido de novo faturados pelo adquirente ao vendedor, de modo que o contravalor das operações cadastrais não foi incluído no preço de venda desse imóvel” – ponto 42 do acórdão C-707/18, Amărăşti Land Investment.

 

            Desta forma, o facto de os redébitos serem feitos pelo mandatário/comissário por um valor que não corresponda exatamente ao montante faturado pelo prestador de serviços, refletindo uma margem positiva ou negativa, não constitui circunstância que, segundo o Tribunal de Justiça, e também a nosso ver[18], tenha qualquer relevância, contrariamente ao defendido pela Requerida.

 

            Os requisitos legais de enquadramento no artigo 28.º da Diretiva IVA e no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA são apenas dois:

  1. A atuação pelo mandatário/comissário em seu próprio nome, por conta do comitente. Neste âmbito, a legislação do IVA não prevê sob que forma, escrita ou oral, o mandato em questão deve ter sido conferido. No entanto, o artigo 28.o da Diretiva IVA requer que o sujeito passivo tenha agido “por conta de outrem”, pelo que o Tribunal de Justiça conclui que deve existir, entre o comissário e o comitente, um acordo que tenha por objeto a atribuição do mandato em causa.
  2. A identidade das prestações de serviços fornecidas sucessivamente, ou seja, dos serviços adquiridos pelo comissário e das prestações de serviços vendidas ou cedidas ao comitente,

– v. pontos 51 e 52 do acórdão proferido no processo C-734/19, ITH Comercial, em 12 de novembro de 2020.

 

            Sobre a questão de saber se o intermediário agiu em nome próprio, o Tribunal de Justiça remete o seu conhecimento e verificação concreta para o Tribunal nacional – pontos 40 e 42 do acórdão C-464/10, Henfling.

            Recentemente o Tribunal de Justiça voltou a apreciar um caso de atuação de intermediários em nome próprio, relativo ao fornecimento de eletricidade, no qual reitera os princípios atrás enunciados e esclarece que “a tomada em consideração da realidade económica, que é, em princípio, refletida nos acordos contratuais, constitui um critério fundamental para a aplicação do sistema comum do IVA (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de fevereiro de 1997, DFDS, C 260/95, EU:C:1997:77, n.° 23, e de 28 de fevereiro de 2023, Fenix International, C 695/20, EU:C:2023:127, n.° 72 e jurisprudência referida)” – v. pontos 30 a 37 do acórdão C-60/23, Digital Charging Solutions, de 17 de outubro de 2024.

 

  1.  Análise concreta

                       

            Estabelecido o quadro jurídico-tributário aplicável às prestações de serviços realizadas por um mandatário em nome próprio por conta de outrem (v. artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA), interessa aferir se na situação dos autos estão preenchidos os respetivos pressupostos constitutivos, a saber: uma atuação ao abrigo de um mandato sem representação e a identidade dos serviços (de reabilitação urbana) adquiridos e prestados.

 

            Resulta da factualidade provada nos autos que a Requerente celebrou acordos com os investidores/comproprietários dos imóveis, obrigando-se a realizar nestes as obras do projeto de reabilitação, restauro e reconfiguração, tendo em vista a sua exploração hoteleira, o que implicou a celebração de contrato(s) de empreitada, bem como a requisição e obtenção das indispensáveis licenças das autoridades.

 

            Os contratos de empreitada de reabilitação foram celebrados pela Requerente em nome próprio, enquanto “entidade promotora e proprietária do projeto Turístico”. Assim, apesar da divulgação nos contratos de empreitada de que os imóveis eram detidos pelos investidores em compropriedade (e, bem assim, de que estes últimos pretendiam preencher os requisitos legais para requerer uma Autorização de Residência para Atividade de Investimento), os direitos e obrigações derivados desses contratos de empreitada produziram os seus efeitos na esfera da Requerente e não na dos investidores, que não são sujeitos das relação jurídicas deles emergentes, por não serem Contraentes ou Partes dos mesmos.

            Nestes termos, atendendo à definição do contrato de mandato constante do artigo 1157.º do Código Civil e ao facto de a Requerente agir em seu próprio nome, há que concluir que estamos perante um mandato sem representação, nos moldes recortados no artigo 1180.º do Código Civil, o que não é prejudicado pelo facto de os terceiros terem conhecimento do mesmo: “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos atos ou sejam destinatários destes.”

 

            Tais circunstâncias têm enquadramento no disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA, uma vez que a Requerente intervém na contratação e realização das empreitadas de reabilitação de edifícios em nome próprio, com mandato de terceiros, os investidores/comproprietários dos edifícios. Encontra-se, assim, preenchida a primeira condição de aplicação deste regime, dado estarmos perante uma prestação de serviços efetuada por intervenção de um mandatário [a Requerente] agindo em nome próprio.

 

            A segunda e última condição prende-se com a necessidade de se tratar da mesma prestação de serviços, i.e., de se constatar a identidade dos serviços adquiridos pelo mandatário e daqueles por este prestados (dada a ficção) ao mandante. Também neste ponto é afirmativa a resposta: os serviços em causa nos autos – obras de reabilitação urbana em edifícios degradados adquiridos pela Requerente – são exatamente os mesmos que a Requerente faturou aos investidores.

 

            A circunstância de os investidores pagarem esses serviços de forma antecipada, no momento da escritura de aquisição da quota-parte do imóvel que passam a deter em compropriedade com os demais investidores, a título de “Adiantamento para Obras de Reabilitação Urbana”, não tem qualquer impacto na caracterização e natureza dos serviços, somente em relação à temporalidade do imposto. O momento do pagamento releva para efeitos de exigibilidade do IVA, quando efetuado em momento prévio ao da emissão da fatura e da realização das operações (v. artigo 8.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA), sem, contudo, como referido, ter influência sobre a qualificação das operações de que constituem a contraprestação.

            A aplicabilidade do disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA à situação vertente implica a manutenção do tratamento em IVA conferido às prestações de serviços adquiridas e “vendidas” pela Requerente (na qualidade de mandatária/comissária), materializadas nas obras de reabilitação dos edifícios com vista à sua recuperação, modernização e utilização como unidades hoteleiras.

 

            Como atrás assinalado, ambas as Partes consideram que os serviços de reabilitação urbana realizados nos imóveis pelas empresas de construção / empreiteiros-gerais no âmbito dos contratos celebrados com a Requerente são enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, pelo que beneficiam da taxa reduzida nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do mesmo compêndio fiscal.

 

            Partindo desta premissa, que é consensual, e uma vez demonstrados os requisitos legais mencionados de atuação em nome próprio por conta de outrem e de fornecimento dos mesmos serviços, tal como resulta da factualidade processual, a estatuição normativa revela que o mandatário – a aqui Requerente – é sucessivamente adquirente e prestador do [mesmo] serviço, sendo, portanto, aplicável idêntico regime de IVA, quer na fase de aquisição a terceiros, quer na da sua transferência (faturação) para o mandante/comitente.

           

            À face do exposto, conclui-se em linha com a Requerente que as prestações de serviços de reabilitação de edifícios faturadas aos investidores/comproprietários é tributável à taxa reduzida de 6%, tal como esses serviços foram faturados à Requerente pelos empreiteiros[19].

 

            A Autoridade Tributária levanta diversas objeções a esta solução, contudo, sem razão.

 

            A começar pela invocação de que a faturação dos serviços tem de ser efetuada exatamente pelo mesmo valor para poder beneficiar do mesmo regime de IVA, não o tendo sido no caso, pois os serviços de reabilitação urbana debitados (via adiantamento) aos investidores foram de valor inferior ao dos serviços de reabilitação prestados pelos empreiteiros. Este entendimento da AT não só não tem suporte legal, pois a norma do artigo 4.º, n.º 4 e a sua fonte, o artigo 28.º da Diretiva IVA, não contêm tal exigência, como o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a questão concluindo isso mesmo (ponto 42 do acórdão C-707/18, Amărăşti Land Investment), pelo que o argumento é, sem mais, improcedente.

 

            Outro motivo de discordância da Requerida refere-se a não ter sido celebrado um contrato de empreitada com os investidores/comproprietários, o que tornaria inviável o enquadramento da operação na verba 2.23.

 

            Todavia, analisando o teor da verba, de novo, não se desprende que tenha de existir um contrato de empreitada direto. Com efeito, o enunciado legal prevê de forma singela “empreitadas de reabilitação urbana”, sem sequer fazer referência a um contrato. Da mesma forma, o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (“RJRU”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, não prevê ou exige um contrato de empreitada, centrando-se na definição e delimitação das ações de reabilitação abrangidas, no âmbito das quais, sem dúvida, se inserem as obras de reabilitação efetuadas nos imóveis em causa nestes autos, pelo que a Requerida não tem razão.

 

            A Requerida afirma, por outro lado, que o objetivo das operações foi unicamente, do ponto de vista dos investidores, realizarem um investimento transitório com a finalidade de acederem a uma autorização de residência para atividade de investimento (“ARI”), ou a residência permanente e/ou a nacionalidade portuguesa. De tal ordem que, findo o período de 6 anos[20], necessário para efeitos de cumprimento dos requisitos legais previstos na Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (na versão à data dos factos, reportados a 2019), deve ocorrer o desinvestimento, prevendo-se a recompra pela Requerente das quotas-partes adquiridas pelos investidores e a consolidação, na esfera daquela, da titularidade dos imóveis, com a única exceção do Aparthotel de ... que constituiu um investimento definitivo.

 

            Sem prejuízo do exposto, pois na realidade, conforme assumido pela própria Requerente, os acordos celebrados com os investidores tinham por finalidade permitir-lhes aceder aos vistos gold, ou seja, o investimento realizado (concretizado na aquisição de quotas-partes de imóveis e na sua reabilitação) constituía um meio de alcançar a residência em Portugal, este circunstancialismo não permite a desconsideração ou requalificação, para efeitos de IVA, das operações realizadas, ou a conclusão de que os investidores não têm interesse direto na reabilitação da quota-parte adquirida do imóvel, operação [a de reabilitação] da qual resulta, desde logo, a valorização dos ativos adquiridos.

 

            Essas operações de compra e venda de quotas-partes de imóveis e de reabilitação dos mesmos tiveram lugar e são efetivas.

 

            A circunstância de servirem determinados propósitos – para os investidores e, de igual modo, para a Requerente que, assim, obteve ativos para exploração hoteleira – não permite que se proceda à sua requalificação. Uma operação de reabilitação urbana de um edifício não deixa de o ser porque é financiada de determinada forma, ou porque tem por propósito concretizar um investimento elegível para um dado benefício, ou porque é destinada à instalação de uma unidade hoteleira. Assim como os investidores não deixam de ser comproprietários dos imóveis adquiridos por contratos de compra e venda pelo simples facto de com esse investimento pretenderem um dado resultado.

 

            A Requerida não tem suporte legal, nem o invocou, para requalificar as operações realizadas, nomeadamente como operações de financiamento. Porém, se essa requalificação fosse de admitir, que não é, o efeito da mesma não seria de modo algum a sua tributação à taxa de 23% aplicada pela AT, pois de acordo com o disposto no artigo 9.º, 27), alínea a) do Código do IVA, as operações de concessão de crédito são isentas de IVA.

            Em síntese, se a tese da Requerida tivesse acolhimento, a tributação da mesma resultante corresponderia a zero. Deste modo, para manter a consistência do seu argumento, deveria restituir os 6% de IVA liquidado pela Requerente aos investidores[21] e não liquidar adicionalmente o diferencial de 17 pontos percentuais (da taxa de 6% para 23%) que está subjacente aos atos tributários impugnados.

 

Das motivações subjetivas dos investidores (que têm interesse em realizar o investimento em reabilitação urbana, por forma a tornar-lhes acessível a candidatura ao golden visa) não emanam consequências no recorte objetivo e regime fiscal das operações de reabilitação urbana efetivamente realizadas. A única exceção seria a da convocação da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT que, contudo, a AT não suscitou, pelo que não será objeto de análise. Em qualquer caso, obiter dictum, importa notar que a aplicação da norma anti-abuso reclama pressupostos que na situação vertente não se verificam, pois é patente que o fim visado pelos investidores não foi sequer fiscal (com finalidade principal de obtenção de uma vantagem fiscal), pelo que a existir contorno ou fraude à lei, não foi à lei fiscal, mas ao regime de entrada, permanência e saída de estrangeiros.

 

            Em síntese, o investimento nos imóveis e na reabilitação destes foi real e efetivo e a circunstância de servir determinados objetivos ou finalidades, não permite a sua desconsideração ou recaracterização a outro título.

 

            De sublinhar que é comum a realização de operações diversas com o objetivo de obtenção de financiamento, como sejam a locação financeira e o sale and lease back, sem que isso signifique que deixem de ser tributadas como aquilo que são efetivamente – locação ou venda com locação – apenas porque o seu objetivo final é a obtenção de meios financeiros.

 

            O facto de os acordos celebrados entre a Requerente e os investidores permitirem inferir que o objetivo desta é o de assegurar a exploração direta de empreendimentos hoteleiros nos prédios adquiridos pelos investidores e reabilitados não prejudica ou compromete a qualificação das operações intermédias que viabilizam esse resultado.

 

            Nem se diga que a classificação contabilística das operações determina o respetivo enquadramento em IVA. Novamente apelando ao caso da locação financeira, do ponto de vista contabilístico esta representa uma compra e venda com financiamento associado (o ativo – bem dado em locação – é reconhecido no balanço do locatário), sem que com isso deixe de ser tributada em IVA como uma locação que é.

 

            Aliás, esta questão da interpenetração da contabilidade e do IVA não é nova e tem sido abordada na jurisprudência do Tribunal de Justiça, sobre a assimilação da locação de bens a uma transmissão para efeitos deste imposto. No processo C-118/11, Eon Aset, com acórdão de 16 de fevereiro de 2012, o Tribunal europeu vem afirmar que uma locação financeira contabilisticamente enquadrada na norma internacional IAS 17[22] pode subsumir-se à noção de transmissão de bens. Porém, posteriormente, com o acórdão do processo C-164/16, Mercedes-Benz, de 4 de outubro de 2017, verificou-se uma inflexão, com retorno ao paradigma tradicional da locação como prestação de serviços[23].

 

            Em linha com as conclusões do advogado-geral, a decisão do processo C-164/16, Mercedes-Benz assinala que a teleologia económica das normas de contabilidade difere da que subjaz às regras jurídicas. As normas contabilísticas visam espelhar o mais fielmente possível a situação económica e financeira de uma empresa, ainda que a mesma não corresponda à situação jurídica formal, uniformizando os critérios à escala global, por forma a permitir a comparabilidade da informação financeira relativa a empresas e grupos económicos que operem em diferentes e múltiplos mercados. Para este fim é dado tratamento contabilístico a diversas realidades que são desconhecidas do IVA como depreciações e imparidades.

 

            No entanto, as regras jurídicas não se atêm unicamente ao resultado económico da transação em causa, devendo a sua apreciação por uma autoridade administrativa ou judiciária ser previsível e, se possível, partilhada por todos os operadores no tráfego jurídico. Os objetivos e razão de ser dos parâmetros contabilísticos não são partilhados pela estrutura e lógica de funcionamento deste imposto, diferentemente do que sucede com o imposto sobre o rendimento das entidades corporativas, que tem uma relação de dependência parcial da contabilidade. Esta dependência não ocorre no IVA que parte de conceitos e realidades totalmente autónomos da classificação contabilística.

 

            Acresce que uma tal interpretação não se contém nos limites da letra da lei, faltando-lhe a correspondência textual nas normas de incidência, como se afigura ter sucedido com a jurisprudência Eon Asset, e o seu resultado é uma interpretação abrogante, solução metodologicamente incomportável à face dos princípios constitucionais da legalidade e da separação de poderes[24].

 

            Sérgio Vasques refere-se ao acórdão Eon Asset como um “mero passo em falso ou antes uma viragem de fundo que nos obriga a rever a noção de transmissão de bens[25] (sendo que à data ainda não tinha sido proferida a decisão do processo C-164/16, Mercedes-Benz[26]), e aponta diversos argumentos para a sua rejeição. O primeiro é que o tratamento sugerido pelo Tribunal de Justiça foi abertamente rejeitado quando da conceção da Sexta Diretiva (77/388/CEE). Um outro, é que o impacto sobre os operadores económicos não pode ser ignorado e a assimilação dos quadros conceituais contabilísticos no domínio do IVA “constitui uma opção cheia de consequências e que seguramente não representa a única opção metodológica na concretização dos elementos essenciais do imposto[27]

 

 

 

            Interessa notar que com a entrada em vigor da IFRS 16, quase todas as locações passam a ser tratadas contabilisticamente como financiamento, com o ativo a ser reconhecido no balanço do locatário. Assim, na tese da AT, estas operações, que são, inequivocamente, do ponto de vista do Código do IVA prestações de serviços, seriam, pela sua contabilização, transmissões de bens, solução que este Tribunal Arbitral não pode confirmar, face ao disposto nos artigos 3.º, n.º 3, alínea a), 16.º, n.º 2, alínea h) e 18.º, n.º 5, todos do Código do IVA.

 

            Deste modo, não se pode concordar com a AT quando esta desconsidera operações e o seu regime de tributação em IVA, pela forma como aquelas foram (e bem) contabilizadas. A aplicação das normas do Código do IVA (por estarem reunidos os pressupostos da sua previsão) não pode ser afastada e substituída pelo enquadramento contabilístico como recorte e base de incidência do imposto, nem essa solução deriva do princípio da substância sobre a forma, que é manifestação da doutrina da interpretação económica, pois aquele constitui um critério interpretativo válido, porém, não é uma fonte normativa autónoma que permita a criação de normas tributárias ex novo, sob pena de violação do princípio da legalidade.

 

            A Requerida funda ainda a aplicação da taxa normal de 23% no entendimento de que as faturas emitidas pela Requerente aos investidores contêm um descritivo genérico. No entanto, não só o descritivo menciona de forma clara “Adiantamento para Obras de Reabilitação Urbana”, que constitui a denominação usual dos serviços prestados, como preceituado no artigo 36.º, n.º 5, alínea b) do Código do IVA, como qualquer dúvida que se suscitasse é facilmente elucidada pela análise da documentação contratual (acordos pormenorizados com os investidores e contratos de empreitada) a que a Requerida teve acesso na fase do procedimento. Com efeito, esta documentação detalha as obras realizadas, a sua localização, os imóveis a que respeitam e demais detalhes pertinentes.

 

            Mesmo que se entendesse que o descritivo das faturas da Requerente aos investidores não é suficientemente detalhado, o seu complemento pela prolixa documentação existente em relação a cada projeto permite dissipar quaisquer dúvidas quanto ao teor das operações, sua extensão, valor, destinatários e momento da sua realização.

            De notar que a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça sobre os requisitos formais das faturas, nomeadamente em relação ao exercício do direito à dedução, é no sentido de que eventuais insuficiências podem ser superadas. Compulsa-se a este respeito o acórdão proferido no processo C-516/14, Barlis, de 15 de setembro de 2016, que sublinha que “a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA” e é à luz desta finalidade que importa analisar se as faturas respeitam as exigências do artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva IVA – cf. n.ºs 26, 27 e 28 do acórdão Barlis.

 

Para o Tribunal Europeu, “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” – cf. acórdão Barlis, n.º 42.

 

            Se assim é a respeito de uma matéria tão sensível e importante para a cobrança do imposto como o direito à dedução, não se vislumbra razão para que não seja, de idêntica forma, aplicável às taxas de IVA, conquanto fiquem cabalmente demonstrados os requisitos factuais materiais de que depende o enquadramento da operação na taxa respetiva. Isto além de, como acima dito, as faturas mencionarem o requisito que habilita a aplicação da taxa reduzida, i.e., tratar-se de uma obra de reabilitação urbana.

 

           

 

Por fim, quanto ao argumento da AT de que as faturas não foram emitidas pelos empreiteiros aos investidores, como disposto no artigo 16.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA, não se compreende a sua invocação no contexto do mandato sem representação, que é o que está em discussão nos presentes autos. A citada norma só tem cabimento nos casos, distintos, de mandato com representação, i.e., se a Requerente atuasse em nome e por conta dos investidores, o que não é notoriamente o caso que nos ocupa, pois a Requerente contratou os empreiteiros em nome próprio e não em nome dos investidores (embora o tenha feito “por conta” destes).

 

O mesmo se diga em relação à emissão das licenças e das declarações camarárias, pois se o mandatário agiu em nome próprio, aquelas não têm de ser passadas em nome dos investidores, o que aliás não seria muito praticável, dada a compropriedade de dezenas de indivíduos que são os titulares, em conjunto, do direito de propriedade e de edificação/reabilitação dos imóveis em causa.

 

            Não se alcança a relevância destes argumentos no âmbito da aplicação do regime do mandato sem representação previsto na norma especial do n.º 4 do artigo 4.º do Código do IVA, que postula precisamente que as operações sejam, em primeira linha e perante terceiros, realizadas em nome do mandatário (com ou sem “disclosure” dos mandantes/investidores), pelo que também nesta matéria não assiste razão à Requerida.

 

            Em síntese, as operações de reabilitação urbana faturadas pela Requerente aos investidores decorrem da atividade económica desta Requerente e, como tal, são qualificadas como prestações de serviços.

 

            Em virtude de a Requerente ter atuado nestas operações em nome próprio, mas por conta dos investidores (os proprietários dos imóveis reabilitados), é aplicável o disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA. Sendo as obras de reabilitação urbana levadas a efeito pelos empreiteiros enquadráveis na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA e, portanto, na taxa reduzida prevista no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma, ponto no qual confluem as posições de ambas as Partes, a sua refaturação ou redébito, mesmo que apenas parcial, pela Requerente aos investidores, beneficia de idêntico tratamento, pelo que deve também ser tributada à taxa reduzida.

           

            Nestes termos, as liquidações adicionais emitidas pela AT, na medida em que derivam da aplicação às mesmas operações, da taxa normal, de 23%, enfermam de erro nos pressupostos, de facto e de direito, e são anuláveis ao abrigo do disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).

 

  1. Direito à dedução. Aparthotel de ...

 

            A não aceitação, por parte da AT, da dedução integral do IVA dos inputs suportados pela Requerente com as obras de reabilitação do Aparthotel de ...  (no montante aproximado de € 12 000 000), radicou na circunstância desses inputs excederem o valor estimado e faturado aos investidores (de € 7 132 075), gerando um “crédito de IVA a favor” da Requerente. Ou seja, o valor cobrado aos investidores a título de obras de reabilitação foi insuficiente para cobrir o custo total incorrido pela Requerente com as mesmas.

 

            A AT conclui ainda, a partir desta factualidade que os valores faturados a título de obras de reabilitação “não foram definidos com base no exercício de uma atividade económica, mas sim fixados sob uma liberalidade que teve subjacente requisitos externos à própria atividade. Nessa medida, o IVA suportado com a reabilitação só poderá ser deduzido até à concorrência da faturação que lhe está inerente (FT – faturação das obras de reabilitação), sendo esta a única forma que garante uma imputação real das despesas (a montante) a cada uma das atividades económicas tributáveis ou isentas (a jusante), em cumprimento do citado artigo 20º do CIVA.”

 

            A primeira observação que se suscita é a da errónea conformação do conceito de liberalidade, para efeitos de IVA, por parte da Requerida. De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma operação é onerosa (e, portanto, não gratuita) se for efetuada por uma contrapartida com tradução pecuniária e um nexo direto entre aquela contrapartida e a prestação de serviços – v. acórdão de 20 de janeiro de 2005, processo C-412/03, Hotel Scandic AB, p. 22[28].

 

            Deste modo, o facto de uma operação económica ser realizada a um preço inferior ao preço de custo é insuscetível de determinar o seu caráter gratuito, não se verificando aí qualquer liberalidade, nem o necessário animus donandi. Uma operação de transmissão de bens ou de prestação de serviços efetuada em contrapartida de uma prestação pecuniária (transação com prestações recíprocas) reveste caráter oneroso ainda que o resultado seja um prejuízo.

 

            Por outro lado, a conexão (“direct link”) exigida pelo direito à dedução entre os consumos e a atividade económica exercida, não depende da existência de uma margem positiva, uma vez que este imposto não visa tributar o lucro ou o resultado da atividade económica, ao contrário dos impostos sobre o rendimento, mas, sim, o valor total das operações realizadas, independentemente de gerarem ou não lucro ou prejuízo. 

 

            Com efeito, o direito à dedução depende de condições materiais relativas à existência de um nexo direto e imediato entre os inputs e as operações ativas da Requerente que conferem esse direito, como resulta dos artigos 19.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1 do Código do IVA e dos correspondentes artigos 168.º e 169.º da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro).

 

            Esta posição conforma-se com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, segundo a qual o direito à dedução do IVA faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, atenta a parametria do princípio da neutralidade. A dedução visa libertar inteiramente o sujeito passivo do “peso” do IVA incorrido e garante a neutralidade da carga fiscal de todas as atividades económicas que conferem o direito à dedução[29].  

            De notar ainda que o referido nexo direto tanto pode ser com específicas operações a jusante que conferem o direito à dedução, como com a atividade geral dos sujeitos passivos, globalmente considerada (se e na medida em que confira tal direito)[30]. Como acima se ressaltou, não releva, para efeitos de dedução do IVA, a circunstância de o valor faturado pela Requerente ser inferior ao montante dos gastos incorridos. O Código do IVA e a Diretiva não consagram, nem postulam que as despesas tenham de ser repercutidas por valor igual ou superior (com margem de lucro) para que se possa constatar uma conexão direta e imediata entre aquelas e as operações /atividades que conferem o direito à dedução, indispensável para o exercício do mesmo. Se assim fosse, sempre que as operações ou atividades fossem realizadas com prejuízo, i.e., por valor inferior ao dos gastos incorridos, estaríamos numa situação de indedutibilidade de gastos, que não só seria de difícil validação em momento contemporâneo ao da realização das operações (a análise da margem das operações pode não ser linear e depende de alguns elementos que frequentemente só são conhecidos em fase ulterior), como comprometeria a neutralidade do imposto, pelo que esta conceção não é de acolher.

 

            Importa salientar que, sem prejuízo do que antecede, ainda que se entendesse que as operações entre a Requerente e os investidores eram gratuitas (o que, como atrás se referiu não sucede) o direito à dedução na esfera da Requerente não teria de ser coartado, uma vez que se verifica uma ligação direta inequívoca dos gastos incorridos com a reabilitação urbana dos edifícios e a atividade hoteleira que é subsequentemente desenvolvida pela Requerente nesses mesmos edifícios.

 

            Neste sentido se pronunciou recentemente o Tribunal de Justiça, no acórdão de 4 de outubro de 2024, processo C-475/23, VGL, a propósito de uma operação de disponibilização gratuita de um bem a um subcontratado para a realização de serviços em benefício do próprio sujeito passivo.

 

            O Tribunal de Justiça parte da premissa de que quando o sujeito passivo adquire um bem (ou no caso dos autos serviços) para os fins das suas operações tributadas, está autorizado a deduzir o IVA devido ou pago em relação ao referido bem[31]. Para que o direito a dedução do IVA pago a montante seja reconhecido ao sujeito passivo, é, em princípio, necessária a existência de uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução. O direito à dedução do IVA que incide sobre a aquisição de bens ou de serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com vista à sua aquisição façam parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante que confiram direito a dedução.

           

            “No entanto, também é admitido um direito a dedução a favor do sujeito passivo, mesmo não existindo uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando os custos dos bens e dos serviços em causa fizerem parte das despesas gerais do referido sujeito e forem, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens fornecidos ou dos serviços prestados pelo mesmo. Tais custos têm, com efeito, uma relação direta e imediata com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo (Acórdãos de 14 de setembro de 2017, Iberdrola Inmobiliaria Real Estate Investments, C‑132/16, EU:C:2017:683, n.o 29, e jurisprudência referida, e de 7 de março de 2024, Feudi di San Gregorio Aziende Agricole, C‑341/22, EU:C:2024:210, n.o 30 e jurisprudência referida)[32].

 

            A existência de tal relação deve ser apreciada à luz do conteúdo objetivo da operação em questão e estabelece-se entre a aquisição dos bens e serviços – no caso dos autos, dos serviços de reabilitação dos imóveis – e as operações tributadas efetuadas pelo sujeito passivo. Na situação vertente, além da relação direta entre os serviços/obras de reabilitação adquiridos aos empreiteiros e a refaturação dos mesmos (com IVA) aos investidores, que se encontra patente na prova produzida, é inegável ainda a relação dessa reabilitação com a subsequente exploração hoteleira dos edifícios pela Requerente, materializada em prestações de serviços tributadas em IVA.

 

            Dito de outro modo, sem as obras de reabilitação não seria possível à Requerente desenvolver a sua atividade económica (hoteleira) nos edifícios em questão. De onde se retira que as obras de reabilitação foram refaturadas, com IVA, aos investidores, com a consequente constatação do nexo direto entre estas duas operações e o inerente direito à dedução dos inputs, nos termos do artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA, com a consequente dedutibilidade do IVA incorrido.

 

            A fundamentação da correção do direito à dedução que consta do Relatório de Inspeção Tributária limita-se à invocação do artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA e ao facto, já referido, de o valor dos serviços de reabilitação urbana não ter sido totalmente repassado aos investidores, argumentos atrás analisados no sentido preconizado pela Requerente.

 

            Neste âmbito, não há que convocar critérios de “imputação real” ou de repartição de IVA dedutível/não dedutível, os quais somente têm lugar na previsão do artigo 23.º do Código do IVA. Contudo, o citado artigo 23.º não consta da fundamentação dos atos tributários e somente tem pertinência quando os inputs a que respeita o IVA dedutível são parcialmente afetos a operações que não conferem o direito à dedução, o que não se afigura ser o caso.

 

            Ora, em sede de resposta, a Requerida vem justificar as correções do direito à dedução também por apelo ao artigo 23.º do Código do IVA, o que consubstancia fundamentação a posteriori, inadmissível pois como salienta a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no contencioso de mera legalidade, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do ato sindicado tal como ele ocorreu, em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato “estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori na pendência de meio impugnatório”. Acresce que “o direito à fundamentação dos atos administrativos e tributários reclama que o particular apenas tenha de defender-se dos pressupostos inicialmente enunciados e dos quais se distraíram os efeitos lesivos, não sendo de admitir qualquer fundamentação a posteriori nem o aproveitamento do ato quando isso implique a valoração de razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação” – v. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27/01/2016, processo n.º 043/16, de 17/02/2021, processo n.º 02111/14.6BEPRT 0981/16, de 03/02/2021, processo n.º 0357/12.0BESNT, e de 30/01/2019, processo n.º 02176/15.3BEPRT.

 

            Em síntese, a correção do IVA dedutível da Requerente pela AT enferma de erro de facto e de direito, sendo anulável por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA.

 

  1. Juros compensatórios

 

            Os juros compensatórios que constituem objeto da presente ação referem-se aos atos tributários de liquidação adicional de IVA que, nos moldes acima enunciados, se julgam inválidos, por vício material de erro nos pressupostos.

 

            A constituição da obrigação de juros compensatórios depende e assenta no retardamento, por facto imputável ao sujeito passivo, da liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido, conforme preceituado no artigo 35.º, n.º 1 da LGT e 96.º, n.º 1 do Código do IVA.

 

            Inexistindo prestação tributária de IVA em dívida no período de tributação de 2019, ou cujo pagamento tenha sido retardado, face à anulação das liquidações adicionais de imposto [IVA] controvertidas, daí resulta que não estão reunidas as condições legais para a liquidação de juros compensatórios, de acordo com as normas acima referidas.

 

            A invalidade das liquidações adicionais de imposto repercute-se, assim, nas liquidações de juros com aquelas conexas, sendo inútil conhecer dos vícios autónomos imputados pela Requerente a estas últimas liquidações.

  1. Juros Indemnizatórios

 

A Requerente, peticiona, como decorrência da anulabilidade dos atos de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios, a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

O que significa que na execução do julgado anulatório a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.

 

O direito a juros indemnizatórios depende da ocorrência de “erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (v. artigo 43.º, n.º 1 da LGT).

 

Em relação aos atos de liquidação controvertidos, verificou-se erro nos pressupostos imputável à Requerida (violação do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA, conjugado com a verba 2.23 da Lista I anexa a este diploma e, bem assim, do artigo 20.º, n.º 1 do mesmo diploma), para o qual a Requerente nada contribuiu, pelo que é devida a restituição do montante pago a título de IVA, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, para restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário não tivesse sido praticado.

 

A contagem dos juros é devida desde o momento da privação ilegal das quantias de IVA até à data de processamento da nota de crédito (v. artigo 61.º, n.º 5 do CPPT).

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil, nos termos do disposto nos artigos 608.º e 130.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

    

  1. Decisão

 

            Atento o exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação arbitral procedente e, em consequência:

 

  1. Anular as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios emitidas à Requerente, com referência aos quatro trimestres do ano 2019;
  2. Condenar a AT ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos supra expostos. 

Tudo com as legais consequências.

 

  1. Valor do Processo

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 811 220,40, que corresponde à importância do IVA liquidado e juros compensatórios inerentes cuja anulação a Requerente pretende e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

  1. Taxa de Arbitragem

 

            Dada a modalidade de designação de árbitro pelo sujeito passivo, a taxa de arbitragem, no montante de € 48 000,00 (quarenta e oito mil euros), foi paga e constitui encargo da Requerente, nos termos do disposto no artigo 5.º do RCPAT e da Tabela de Custas a este anexa.

 

                        Notifique-se.

 

                        Lisboa, 19 de novembro de 2024

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, relatora

 

 

 

Clotilde Celorico Palma

 

 

 

Fernando Marques Simões

 

 

 



[1] Com exceção do empreendimento...– Aparthotel em ... – em que esse acordo de recompra não existe.

[2] Diretiva 2006/112/CE, de 28 de novembro de 2006.

[3] Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro.

[4] Área de Reabilitação Urbana.

[5] Norma Contabilística e de Relato Financeiro.

[6] International Accounting Standards.

[7] International Financial Reporting Standards.

[8] Que dispõe o seguinte: “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.”

[9] Norma que rege o mandato sem representação: “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.”

[10] Em transposição do artigo 28.º da Diretiva IVA, que dispõe de forma idêntica: “Quando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome mas por conta de outrem, considera-se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão.

[11] Por contraposição aos serviços de empreitada de reabilitação urbana.

[12] V. Ben Terra, Julie Kajus, Commentary – A Guide to the Recast VAT Directive, 2017, IBFD (comentário ao artigo 14(2)(c) da Diretiva IVA e também ao artigo 28 na versão eletrónica acedida a 14 de novembro de 2017) pp. 664-665 e 838-843.

[13]Without these provisions an agent should always be required to reveal the name of his principal, which would have been necessary for correct invoicing procedures. The Directive therefore introduces the fiction of a supply to and by the undisclosed agent, to whom and by whom proper invoices must be issued, i.e. mentioning the full price of the goods or services supplied rather than a separate invoice for the commission.

[14] V. Xavier de Basto, A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional, CTF 164, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa 1991, p. 176.

[15] Sobre a aplicação do artigo 4.º, n.º 4 do Código do IVA pode ver-se também Patrícia Noiret Cunha, Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias, Instituto Superior de Gestão, 2004, pp. 130-131; Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Coord., Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, 2015, p. 69.

[16] Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977.

[17] Uma laranja (re)vendida múltiplas vezes não deixa de ser uma laranja …

[18] No mesmo sentido, v. a decisão arbitral n.º 806/2022-T.

[19] De notar que a manutenção da taxa reduzida ao abrigo da citada verba 2.23 nem sequer depende de condições subjetivas especiais, sendo os respetivos pressupostos totalmente objetivos: os serviços têm de respeitar a empreitadas de reabilitação urbana realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana delimitadas nos termos legais.

[20] De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, alínea d), subalínea iv) da Lei n.º 23/2007, a atividade de investimento tinha de ser exercida pelo período mínimo de 5 anos.

[21] Isto, sem prejuízo das eventuais consequências (desfavoráveis para a Requerente) ao nível do direito à dedução, por se tratar de uma isenção incompleta.

[22] As normas internacionais de contabilidade foram acolhidas pelo direito europeu através do Regulamento (CE) n.º 1126/2008, da Comissão, de 3 de novembro de 2008.

[23] V. Alexandra Coelho Martins, Locação, Cedências, IVA e Contabilidade, Cadernos IVA 2018, Almedina, pp. 41-69.

[24] Princípios acolhidos nos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) (princípio da legalidade) e nos artigos 2.º e 111.º (princípio da separação de poderes), todos da Constituição.

[25] Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 200-202 (citação p. 201).

[26] O acórdão proferido no processo C-164/16, Mercedes-Benz parece indicar que o Eon Asset foi um “passo em falso”.

[27] Sérgio Vasques, op. cit. p. 202.

[28] Só assim não seria se o valor da contraprestação fosse meramente simbólico, o que não se verifica na situação dos autos.

[29] V. Acórdãos do Tribunal de Justiça de 6 de julho de 21 de março de 2000, C-110/98, Gabalfrisa; de 15 de novembro de 2017, C-374/16, Rochus Geissel. V. também a decisão arbitral 246/2021-T, que aqui se acompanha.

[30] V., a título ilustrativo, os Acórdãos do Tribunal de Justiça, de 27 de setembro de 2001, C-16/00, Cibo Participations; de 26 de maio de 2005, C-465/03, Kretztechnik; de 29 de outubro de 2009, C-29/08, SKF; de 6 de setembro de 2012, C-496/11, Portugal Telecom; e de 16 de julho de 2015, C-108/14, Larentia e Minerva.  

[31] Pontos 18 e 19 do acórdão VGL, C-475/23, que cita o acórdão de 22 de outubro de 2015, Sveda, C‑126/14, n.º 18, e o acórdão de 7 de março de 2024, Feudi di San Gregorio Aziende Agricole, C‑341/22, n.º 28 e jurisprudência neles referida.

[32] V. ponto 21 do acórdão VGL, C-475/23.