SUMÁRIO:
1. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
2. O artigo 22.º do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da UE, é incompatível com a liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra Prof.ª Doutora Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular neste processo, decide o seguinte:
1. Relatório
A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, número de contribuinte português..., com sede em..., ..., Munique, Alemanha (doravante “Requerente”), nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.o 10/2011, de 20 de janeiro, apresentou pedido de pronúncia arbitral para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2020, bem como do indeferimento expresso da reclamação graciosa previamente apresentada para o efeito.
O Requerente peticiona:
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A anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa previamente apresentada;
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A anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC, por vício de violação de lei, em concreto por violação do Direito Comunitário e da CRP;
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O reconhecimento do direito à restituição da quantia de € 35.182,25, relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2020, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 22.º do EBF;
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O reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT;
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A condenação da Autoridade Tributária no pagamento das custas de arbitragem.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada por Requerida ou AT).
O pedido de constituição do tribunal arbitral apresentado no dia 20-03-2024 foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 24-03-2024.
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra do Tribunal Arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 10-05-2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral singular ficou constituído em 28-05-2024, e a Requerida foi notificada para apresentar Resposta em 29-05-2024.
Em 02-07-2024, a Requerida apresentou a Resposta e juntou o processo administrativo.
Por despacho de 04-09-2024, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2, todos do RJAT, tendo concedido às Partes o prazo de 10 dias, simultâneos, para apresentação de alegações escritas.
A 19-09-2024, o Requerente apresentou alegações escritas, tendo mantido a argumentação expendida anteriormente e, ainda, acrescentado a referência a uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, suscitada em reenvio prejudicial no âmbito do processo n.º 93/2019-T, tendo o processo corrido termos junto do TJUE sob o n.º C-545/19 e sido proferida decisão a 17.03.2022, da qual a Requerente dá conta enfatizando a sua importância para o caso presente, considerando a proximidade de situações de facto. Em particular, a Requerente salienta o seguine trecho da decisão:
“O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
Em seu entender, significa isto que o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes) não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais.
2. Posição das partes
2.1. Posição do requerente
Conforme se referiu, o Requerente, em apoio da sua pretensão, menciona o acórdão do TJUE proferido em 17 de março de 2022, no Processo n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN) no qual se decidiu que Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em sede de IRC, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (“UE”) (in casu a Alemanha), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”).
O Requerente defende que o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes) não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais.
2.2. Posição da Requerida
A título prévio, a Requerida informou este Tribunal de que tinha verificado a existência de dois processos de reembolso com despacho de deferimento, no montante correspondente à diferença entre a taxa de retenção na fonte a titulo definitivo (25%) e o limite convencional de 15% (CDT), relativamente a rendimentos e retenções na fonte coincidentes com os indicados no pedido de pronúnica arbitral, referentes aos períodos 05/2020 e 07/2020, conforme consta dos anexos que junta com a denominação “Doc. 2.SGRI Intranet-223676-...” e “Doc.3-SGRI Intranet-223677-...”. Conclui dizendo que existe duplicação de pedidos – um pedido de reembolso junto da direção de Serviços de Relações Internacionais e outro no âmbito do pedido arbitral, mas nada mais requer.
Sobre esta questão prévia, veio o Requerente pronunciar-se, nas alegações, dizendo que os referidos pedidos de reembolso parcial terão sido apresentados em momento posterior à propositura da ação arbitral e que a AT não demonstrou que os mesmos já tenham sido efetuados, não tendo igualmente sido possível à Requerente efetuar essa verificação. Por outro lado, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa notificada à Requerente não são mencionados os referidos pedidos de reembolso parcial, assim como nada é referido quanto à alegada decisão e concretização desses pedidos. Assim, mantém que o pedido de pronúncia arbitral inclui o valor total da retenção na fonte sofrida em Portugal, mas que, não pretendendo cumular a eventual restituição do montante em causa na sequência de uma eventual procedência do presente pedido com o reembolso no âmbito daqueles pedidos de reembolso parcial, em caso de procedência do presente pedido, haverá que verificar, em sede de concretização de julgado, se ocorreu entretanto algum reembolso parcial. Nesse caso, a concretização do julgado deverá implicar o reembolso apenas do montante remanescente, acrescido dos juros indemnizatórios que são devidos, nos termos peticionados.
A este ponto voltaremos mais à frente na decisão.
Por impugnação, a Requerida sustenta a tese geral de que a situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável e que a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas. Atendendo a que é o Estado de residência que dispõe de toda a informação necessária para aferir um correto enquadramento contributivo e da sua capacidade contributiva global, a situação de um residente é distinta da de um não residente e o tratamento diferenciado pode, portanto, justificar-se.
4. Saneamento
O Tribunal Arbitral coletivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.
O processo não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
5. Matéria de facto
5.1. – Factos provados
Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária.
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O Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país
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No ano de 2020, o Requerente era detentor de participações sociais nas seguintes sociedades residentes em Portugal:
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B... S.A.
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C..., SGPS S.A.
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Na qualidade de acionista destas sociedades residentes em Portugal, no ano de 2020, recebeu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos.
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Os quais foram sujeitos a retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%,
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Resultando no total de imposto pago de € 35 182,25.
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No dia 03.06.2022, o Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 132.º n.ºs 3 e 4 do CPPT e do artigo 137.º do CIRC, reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2020, na qual solicitou a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da UE, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal.
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No dia 15.12.2023, o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa.
5.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
5.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, a) e), do RJAT).
Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.
Assim, o presente Tribunal Arbitral formou a sua convicção quanto à factualidade provada tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, como prevê o artigo 110.º do CPPT, a prova documental produzida.
6. Questão de direito
Neste processo arbitral, a questão jurídica material que vem controvertida consiste em determinar se a legislação portuguesa, na redação em vigor à data dos factos tributários, ao excluir de tributação os dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal a organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (artigo 22º do EBF) e, por isso residentes em território nacional, mas sujeitando a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por essas mesmas sociedades a organismos de investimento coletivo que não tenham sido constituídos nem operem de acordo com a legislação nacional, e por isso não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, não consentida pelo art.º 63º do TFUE.
6.1. A legislação nacional
O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação vigente em 2020, estabelecia o seguinte:
Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 – Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.
8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.
9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo no entanto ser inferior a um ano civil:
a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;
b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.
10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.
11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.
12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.
13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.
14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.
15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.
16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.
Nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 7/2015, que procedeu à reforma do regime de tributação dos organismos de investimento coletivo (OIC), “as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015”.
No referido artigo 22.º, n.º 1 determina-se que o regime nele previsto é aplicável aos “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”.
O Requerente é constituído ao abrigo da lei alemã e não da lei nacional e, por isso, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF afasta a aplicação daquele regime ao Requerente.
6.2. O TFUE
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
O artigo 65.º do TFUE limita a aplicação deste princípio, estabelecendo o seguinte:
Artigo 65.º
(ex-artigo 58.º TCE)
1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
A questão da compatibilidade, ou não, do regime previsto no artigo 22.º, n.º 1, do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no acórdão do TJUE de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, relativo a pedido de decisão prejudicial, do qual salientamos as seguintes conclusões, (também transcritas no Acórdão do STA de 28-09-2023, proferido no Processo n.º 093/19.7BALSB):
a) Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a A...-Fonds AEVN alega que, nos anos de 2015 e 2016, os OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa estavam sujeitos a um regime fiscal mais favorável do que aquele a que foi sujeita em Portugal, na medida em que, relativamente aos dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, esses organismos estavam isentos, ao abrigo do artigo 22.°, n.° 3, do EBF, do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. A A...-Fonds AEVN considera que, sendo tributada à taxa de 25 % sobre os dividendos que lhe são pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, é objeto de um tratamento discriminatório proibido pelo artigo 18.° TFUE, bem como de uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.° TFUE. (§ 17);
b)Uma vez que a legislação nacional em causa no processo principal tem, assim, por objeto o tratamento fiscal de dividendos recebidos pelos OIC, deve considerar-se que a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais (§ 33);
c)Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. (§ 57);
d) um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado-Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra-se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (§ 69);
e) Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes. Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis. (§ 73 e 74);
f) No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado-Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (§ 83);
g) Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. (§ 85).
Em consequência, o TJUE expressa a seguinte declaração final:
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Nestes termos, concluindo-se pela incompatibilidade do artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01 (a aplicável ao caso "sub iudice"), com o disposto no artº.63, do TFUE, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia, impõe-se a não aplicação do referido normativo nacional, de onde se deve concluir que a decisão arbitral recorrida não poderá manter-se, dado enfermar de erro de julgamento de direito, determinante da sua anulação, mais sendo a posição adoptada na decisão arbitral fundamento a que se encontra em conformidade com o direito e jurisprudência, europeus.
Por este Acórdão de 28-09-2023, proferido no Processo n.º 093/19.7BALSB o Supremo Tribunal Administrativo uniformizou a jurisprudência sobre esta matéria em obediência ao decidido pelo TJUE nos seguintes termos:
“1-Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2-O artº.63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3-A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma (anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).
O primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional encontra-se previsto, ademais, no n.º 4 do artigo 8.º da CRP:
“as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Assim, considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, dele excluindo os rendimentos das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados Membros.
Pelo exposto, tem de se concluir que os atos de retenção na fonte impugnados enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de acordo, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
7. Reembolso das importâncias pagas e juros indemnizatórios
O Requerente pede o reembolso da quantia de € 35 182,25 que foi retida na fonte, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.
7.1. Reembolso
Na sequência da anulação da retenção na fonte, o Requerente tem direito a ser reembolsado da quantia retida. Tendo sido retida a quantia de € 35.182,25, o Requerente tem direito a dela ser reembolsado.
7.2. Juros indemnizatórios
O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros indemnizatórios, e referimos o acórdão de 18-04-2013, processo n.º C-565/11:
21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).
Cabe a cada Estado-Membro determinar as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT determina que: “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que permite concluir pelo reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no âmbito de um processo arbitral.
O Requerente pede a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, contados desde a notificação do despacho de indeferimento, isto é, 15.12.2023.
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT determina que:
São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Assim, na execução do julgado anulatório, a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
Acresce que, por Acórdão de 29-06-2022, proferido no Processo n.º 93/21.7BALSB, o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo procedeu à harmonização de jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, decidindo o seguinte: “Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.”
Nos presentes autos, o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa em 15.12.2023, pelo que tem direito a juros indemnizatórios contados desde essa data até ao integral reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
8. Decisão
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente o pedido de anulação do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra os atos de liquidação de IRC, por retenção na fonte, no ano de 2020, bem como destes destes mesmos atos;
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Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 35.182,25, condenando a AT (i) a pagar este montante ao Requerente na sua totalidade caso se determine, em sede de execução do julgado, que não houve ainda qualquer reembolso ao Requerente com referência à liquidação de imposto em causa ou (ii) a pagar ao Requerente a diferença entre o montante de € 35.182,25 e o que se determinar, em sede de execução de julgado, que já foi pago ao Requerente com referência à liquidação de imposto em causa;
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Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, condenando a AT a pagar ao Requerente esses juros, contados desde 15.12.2023 até integral reembolso ao Requerente da quantia de € 35.182,25;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
9. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 35.182,25, indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
10. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se
Lisboa, 27-11-2024
A Árbitra
(Raquel Franco)