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Sumário:
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A isenção de IMT a que se refere o art. 9º do CIMT configura um benefício fiscal de natureza automática, inexistindo ato administrativo de reconhecimento em procedimento tributário próprio e autónomo, sendo o prazo de caducidade de oito anos ( art. 35°, nº1 do ClMT).
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Para os efeitos do art. 12º, n.º5, al. h) do CIMT, o valor das hipotecas e das penhoras registadas no imóvel são encargos a que comprador fica legalmente obrigado.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
I.1
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Em 26 de abril de 2024 o contribuinte A..., NIF..., com residência na Rua..., ...-..., Prior Velho, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 30 de abril de 2024.
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O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n. º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
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O tribunal arbitral foi constituído em 05.07.2024.
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No dia 08.07.2024 o Tribunal proferiu um despacho a ordenar a notificação da Requerida para apresentar a sua resposta.
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A AT apresentou a sua resposta em 26 de setembro de 2024.
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Por despacho de 30.09.2024, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.
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As partes não apresentaram alegações escritas.
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Pretende o Requerente que o Tribunal Arbitral declare ilegal e anule o ato de liquidação de IMT n.º..., DUC ..., no montante de 15.584,22 € (quinze mil, quinhentos e oitenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos).
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Pretende também o Requerente a restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.
I.2. O Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
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O prazo de caducidade do direito à liquidação no caso sub judice é o prazo de 4 anos imposto pelo n.º 3 do artigo 31.º do CIMT
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É clara a existência de um prévio ato de liquidação, promovido por quem tem competência para a sua prática, ainda que na base de uma declaração do sujeito passivo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 19.º do CIMT
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Deste modo se conclui, que o prazo de caducidade do direito à liquidação de IMT é de 4 (quatro) anos, contados da prática do ato de liquidação a corrigir, razão pela qual a liquidação adicional promovida pela ATA, na sequência das várias comunicações remetidas no ano de 2022 e 2023, não pode subsistir na ordem jurídica, por extemporânea, sendo considerando o ato de liquidação, consequentemente, ilegal.
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O artigo 12.º do CIMT estabelece que o IMT incidirá sobre o valor constante do ato ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, conforme o que for de maior valor.
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Todavia, é fundamental notar que, nos termos da alínea h) do n.º 5 do mesmo artigo 12.º, o valor constante do ato ou do contrato abrange, em linhas gerais, todos os encargos a que o comprador ficar legal ou contratualmente obrigado.
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Certos encargos não estão abrangidos pela base tributável em IMT, mesmo que o adquirente esteja contratual ou legalmente obrigado a eles.
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A redação do artigo 12.º do CIMT não abarca indiscriminadamente todos os encargos legais ou contratuais aos quais o comprador possa estar sujeito.
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Para assegurar a aplicação coerente desse princípio a outras formas de encargos
atípicos, o n.º 5 do artigo 12.º do CIMT inclui uma cláusula genérica na alínea h), destinada a abranger "quaisquer [outros] encargos a que o comprador ficar legal ou contratualmente obrigado".
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No entanto, é fundamental compreender que essa cláusula geral não deve ser interpretada de forma excecional em relação às cláusulas específicas das quais deriva, as quais se limitam a incluir na base tributável em IMT os valores prestados como contraprestação do valor transmitido pelo contrato, ou seja, o valor patrimonial do imóvel.
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A imprudência manifestada pela ATA ao considerar os ónus e encargos no cálculo do valor do IMT, com base no montante indicado na certidão permanente do imóvel, desconsidera por completo a eventualidade de tais penhoras/hipotecas já terem sido total ou parcialmente liquidadas.
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O simples facto de a ATA, no ofício que ora se impugna, mencionar estas dívidas fiscais como um ónus ou encargo "desconhecido" na altura da liquidação originária, incorre no vício de violação de lei, configurando-se como um caso de abuso do direito – venire contra factum proprium.
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Até porque, parte dos “ónus e encargos” elencados pela ATA referem-se a penhoras por dívidas fiscais SF Loures-...; Penhora pelo valor SF ... e Penhora em que é exequente a Fazenda Nacional;
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A mera soma aritmética desses encargos, sem avaliar a quitação dos mesmos, reflete uma flagrante negligência nos procedimentos adotados.
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Os encargos legais e contratuais assumidos pelo devedor originário, permanecem na sua esfera jurídica e não são transferidos para o atual proprietário do imóvel, aqui impugnante.
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Nesta medida, os montantes adicionados pela ATA como “ónus ou encargos” não podem ser considerados válidos pois, além de grave do ponto de vista ético e moral e ainda que se admitisse, por mero exercício académico, que estávamos perante uma “omissão ou inexatidão” a mesma nunca poderia ser invocada pela ATA, relativamente às dívidas fiscais referentes à Penhora pelo valor de 1.882.66 € à ordem do PE ... e Apensos do SF Loures-...; Penhora pelo valor de 14.215,51 € a à ordem do PEF ... e Aps. do SF Loures-...,e Penhora pelo valor de € 2.081 ,18 em que é exequente a Fazenda Nacional - Ap ..., de ... * Processo executivo ... e apensos, por clara violação de lei na modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium.
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Sendo a presente pronúncia arbitral considerada procedente, deve o Requerente ser reembolsado do montante que não foi reembolsado por força da isenção, acrescido de juros indemnizatórios.
I.3 Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:
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No momento da aquisição do imóvel em questão, não houve uma liquidação de IMT, dado que o Requerente invocou a isenção do artigo 9.º do CIMT, pelo que, a Liquidação contestada constitui uma liquidação originária, à qual é aplicável o prazo de caducidade de oito anos (contados da data da transmissão a que o imposto se refere, ou da data em que a isenção de imposto ficou sem efeito), previsto no artigo 35.º, n.º 1, do Código do IMT.
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Face ao contexto factual e jurídico exposto, in casu, o imposto foi liquidado quando ainda não havia decorrido o prazo de caducidade, pelo que o alegado nesta parte deverá improceder, mantendo-se a liquidação impugnada em vigor na ordem jurídica.
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Tanto a hipoteca, como a penhora, fazem com que os bens a elas associados, sejam do devedor ou de terceiro, fiquem afetos ao cumprimento da obrigação.
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O Requerente tem razão quando afirma que, no caso em apreço, não estamos perante uma verdadeira assunção de divida, o devedor originário continuou e continuará a ser responsável pelos créditos/penhoras, não havendo uma autêntica "desoneração da sua esfera jurídica".
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Ou seja, a relação que originou as hipotecas (ou seja, o mútuo), assim como as penhoras (dividas comuns e fiscais), permanecem na esfera do devedor original, não gerando obrigações para o proprietário de ½ imóvel, o Requerente.
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Neste âmbito, em momento algum os credores podem recorrer a qualquer outro património pessoal do impugnante para saldar as dividas geradas pelo devedor originário.
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Contudo, voltando ao caso concreto, a quota parte (½) do imóvel em causa, propriedade do Requerente, em razão das garantias que incidem sobre ele, responde, dentro dos limites do valor do bem e do valor da dívida que o bem garante. Ou seja, a obrigação garantida pela hipoteca do imóvel acompanha sempre o imóvel até que se verifique o seu cumprimento.
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Face ao exposto, a liquidação de IMT em causa que teve por base não só o valor do preço acordado pela aquisição do imóvel, mas também os valores dos ónus e encargos associados ao imóvel como garantia das dívidas do anterior proprietário, foi emitida de acordo com os citados normativos legais, pelo que se deverá manter na ordem jurídica.
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Pelo que se os valores das dívidas averbados na certidão predial estão desatualizados, cabe ao Requerente o ónus de provar qual o montante exato ainda em divida à data da escritura, não se verificando, in casu, uma violação de lei na modalidade de abuso do direito na atuação da AT – venire contra factum proprium –, como invoca o Requerente.
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Não tendo cumprido com o ónus que lhe cabia, o cálculo do valor tributário que esteve na base da liquidação de IMT em causa está de acordo com a lei em vigor, pelo que o alegado nesta parte pelo Requerente, também deverá improceder
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Vem ainda peticionado o pagamento de juros indemnizatórios nos artigos 102º a 104º do pedido de pronuncia arbitral, sem que, contudo, lhe assista razão, uma vez que, à data dos factos, a Administração Tributária fez a aplicação da lei, vinculadamente pois como órgão executivo está adstrita constitucionalmente
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Donde necessariamente se conclui que não se verifica nenhum erro imputável aos serviços, não estando assim preenchido o requisito previsto no n.º 1 do artigo 43º da LGT.
II. SANEAMENTO
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e encontram-se legalmente representadas.
Antes de mais é de referir que no pedido de pronúncia arbitral o Requerente solicita a intervenção de um coletivo de três árbitros. Contudo, no formulário preenchido pelo Requerente é indicado que opta por não designar árbitro. Esta desconformidade tem, agora, de ser sanada.
Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários (art. 6º, n.º2 da Portaria n.º 380/2017, de 19 de Dezembro aplicável ex vi art. 29º, al. c) do RJAT). Porquanto, tendo em conta que o Requerente opta por não designar arbitro e o valor da ação é de €15.584,22, este Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º, n.º2, als. a) e b) e 6.º, n.º1 todos do RJAT.
O processo é o próprio.
Inexistem questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito dos pedidos.
III. THEMA DECIDENDUM
A questão central a decidir, tal como colocada pelo Requerente, está em saber se o direito à liquidação (IMT) já caducou e se no valor tributável para efeitos de IMT se deve, ou não, incluir o valor das hipotecas e das penhoras registadas no imóvel aquando da sua aquisição.
IV. – MATÉRIA DE FACTO
IV.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
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Em 15 de outubro de 2015, o Requerente adquiriu, através da celebração de escritura pública de compra e venda, pelo preço de € 38.500,00, ½ da fração autónoma “H” do prédio urbano, sito na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., inscrito na respetiva matriz predial da freguesia de ... e ..., concelho de Loures, sob o artigo ... .
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Previamente à aquisição da metade da referida fração, o Requerente declarou tratar-se de prédio destinado habitação própria e permanente (Modelo 1, identificada sob o n.º de registo de declaração 2015/..., apresentada em 13-10-2015, na qual ficou consignada a isenção - benefício 75 – Parte Indivisa de Bem exclusivamente para habitação própria e permanente)
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O Serviço de Finanças de Loures emitiu Documento de cobrança sob o n.º ...“a zeros”.
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Na escritura pública de compra e venda é referido “Que sobre a referida fração autónoma subsistem registados na dita Conservatória os seguintes ónus”:
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Consta também do título aquisitivo que: “PELO SEGUNDO OUTORGANTE FOI DITO: Que aceita a presente venda, e que a indicada fração autónoma se destina a sua habitação própria e permanente.”
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No dia 15.10.2015, na ficha do registo predial do imóvel constavam as seguintes inscrições:
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Ap. 13 de 2007/05/09 - Hipoteca voluntária até ao valor máximo de 207.719,54 € a favor do B... SA;
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Ap. 14 de 2007/05/09 - Hipoteca voluntária até ao valor máximo de 52.003,09 € favor de B..., SA;
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Ap. 60 de 2007/10/01 - Hipoteca voluntária até ao valor máximo de 5.122,96 € favor de B..., SA;
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Ap. 4668 de 2009/02/09 - Hipoteca voluntária até ao valor máximo de 78.591,50 € favor de B..., SA;
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Ap. 2487 de 2012/01/18 - Penhora pelo valor de 12.979,69 € à ordem do Proc. .../11...TCLRS do 5.º Juízo Cível de Loures – Tribunal Família, Menores e Comarca- C..., Limitada;
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Ap. 2423 de 2013/04/24 - Penhora pelo valor de 1.882,66 € à ordem do PEF ... e apensos do SF Loures ...;
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Ap. 3165 de 2014/12/12 - Penhora pelo valor de 14.215,51 € à ordem do PEF... e apensos do SF Loures ...;
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Ap. 2264 de 2015/02/16 - Penhora pelo valor de 2.081,18 € à ordem do PEF ... e apensos do SF Loures ...;
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Ap. 1751 de 2015/04/09 - Penhora pelo valor de 5.923,35 €, em que é exequente o Banco D..., SA.
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Pelo ofício nº..., de 13/03/2023, do Serviço de Finanças Loures ... -Sacavém, foi o Requerente notificado de um projeto de liquidação de IMT, no valor total de € 15.584,22, sendo € 12.019,78, a título de imposto, e € 3.564,44, a título de juros compensatórios, devido pela aquisição que efetuou, em 15-10-2015, de ½ da fração autónoma “H” do prédio urbano, sito na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Sacavém, inscrito na respetiva matriz predial da freguesia de ... e ..., concelho de Loures, sob o artigo ... referindo o seguinte:
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Em 27/03/2023, o Requerente exerceu o seu direito do direito de audição.
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Por despacho de 31/08/2023, da Chefe do Serviço de Finanças de Loures ..., foi proferida a decisão final e emitida a liquidação de IMT com o n.º ..., no valor total de € 15.584,22, sendo € 12.019,78, a título de imposto, e € 3.564,44, a título de juros compensatórios, com a data limite de pagamento de 01-09-2023. (Decl.Mod.1 de IMT n.º 2023/...).
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Pelo ofício n.º..., de 31/08/2023, do Serviço de Finanças de Loures ... - Sacavém, o Requerente foi notificado, em 07/09/2023 (data da assinatura do AR), do despacho de 31/08/2023 e do ato de liquidação de IMT.
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O Requerente, procedeu, em 29-09-2023, ao respetivo pagamento, incluindo juros, tudo num montante global de € 15.584,22.
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Em 26/09/2023, o Requerente apresentou uma reclamação graciosa contra a liquidação de IMT, a qual foi instaurada com o nº ...2023... .
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O Requerente foi notificado do projeto de decisão, bem como do despacho de 11/12/2023 que o sancionou, através do ofício n.º ..., de 11/12/2023, remetido por carta registada de 13/12/2023.
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O Requerente não exerceu o direito de participação.
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No âmbito do referido procedimento de Reclamação Graciosa foi elaborado, em 29/12/2023, o despacho de indeferimento.
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O Requerente foi notificado da referida decisão de indeferimento, através ofício de 10/01/2024 e por ofício de 26/01/2024.
IV.2. Factos não provados
Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.
IV.3. Motivação da matéria de facto
Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.
Os factos que constam dos números 1 a 16 são dados como assentes pela análise do processo administrativo, dos documentos 1 a 7 juntos pelo Requerente, com o ppa e pela posição assumida pelas partes.
V. Do Direito
I) Caducidade
Impõe-se começar por analisar a alegada caducidade do direito à liquidação de IMT pelo decurso do prazo de quatro anos. A Requerente alega a caducidade por entender que a liquidação sindicada é uma liquidação adicional sujeita ao prazo de quatro anos previsto no art. 31º, n.º3 do CIMT.
No caso em apreço, o Requerente apresentou a declaração prevista no art. 19º, n.º1 do CIMT, indicando a isenção prevista no art. 9º do CIMT. De seguida, a AT emitiu um documento único de cobrança a zeros.
A questão da contagem do prazo de caducidade de factos tributários relacionados com benefícios fiscais automáticos não é nova, tendo já sido diversas vezes apreciada pelos tribunais superiores, sempre no mesmo sentido. Primeiro, à luz da revogada SISA (Ac. do STA de 17.01.2007, proc. n.º 909/06, Ac. do STA de 18.05.2011, proc. n.º 153/11, Ac. do STA de 14.09.2011, proc. n.º0294/11) e mais recentemente já ao abrigo do CIMT, incluindo com as alterações efetuadas pela Lei n.º64-A/2008 de 31.12 ao art. 19º e 10º, n.º8 do CIMT (Ac. do STA de 13.09.2017, proc. n.º 01126/16, Ac. do TCA Sul de 23.03.2017, proc. n.º 35/16.1 BELLE, Ac. d TCA do Sul de 19.06.2024, proc. n.º 2469/14.7 BELRS, Ac. do TCA Sul de 27.06.2024, proc. n.º 72/15.3 BELRS).
Assim, em cumprimento do art. 8º, n.º3 do CC, resta-nos aderir aos fundamentos destes Arestos para os quais remetemos e aqui passamos a reproduzir.
Os benefícios fiscais podem ser automáticos, ou, dependentes de reconhecimento.
O aludido benefício invocado pelo Requerente (art. 9º do CIMT) é classificado como automático (art. 10º, n.º8, al. b) do CIMT), não operando a pedido do interessado, isto é, através de requerimento autónomo dirigido especificamente à sua obtenção e com a inevitável instauração e decisão de procedimento próprio para o efeito (como acontece com os benefícios dependentes de reconhecimento – cfr. art.º 5º, nº 3, do EBF), inexistindo, por conseguinte, ato administrativo de reconhecimento em procedimento tributário próprio e autónomo.
Inexistindo, no caso em análise, um ato administrativo a conceder um benefício fiscal, a liquidação agora sindicada não é uma liquidação adicional mas sim a primeira liquidação.
O que, no caso, se verificou foi que o sujeito passivo, ao dar cumprimento ao dever declarativo imposto pelo art.º 19º, n.º3 do CIMT, fez operar, de forma direta e automática, a isenção de tributação ao declarar que a aquisição se fazia por um valor inferior a €92.407,00, isto é, ao declarar a existência de uma realidade que faz automaticamente espoletar a isenção. O que levou o serviço de finanças a emitir documento único de cobrança (DUC) com o valor de 0,00 euros, atenta a inexistência de obrigação de imposto perante o teor dessa declaração e a necessidade de emissão de DUC para sua apresentação junto do notário, em conformidade com o disposto no art.º 49º do CIMT. In casu, o que houve foi a mera prática de atos materiais, na sequência da declaração apresentada pelo Requerente (que é o que resulta, aliás, do n.º 8 do art.º 10.º do CIMT), que não se confundem com um ato de liquidação.
O que se tratou foi, em termos substantivos, de uma Declaração invocando o benefício de IMT por parte do Requerente, atendendo ao benefício 75 – Parte Indivisa de Bem exclusivamente para habitação própria e permanente - (art. 9º do CIMT). Ou, dito de outro modo, o que se declarou foi a inexistência da obrigação de imposto, atento o invocado benefício.
Reconhece-se, é certo, que ocorreu o facto tributário à data da transmissão mas daí não pode retirar-se, sem mais, que houve uma liquidação da qual não teria resultado imposto a pagar por dele estar o Requerente isento, pelo contrário, por força dessa isenção, não se procedeu, então, a qualquer liquidação de IMT.
A liquidação que veio posteriormente a ser efetuada em consequência da inspeção levada a cabo pela AT não é, assim, uma liquidação adicional já que a mesma não se destinou a corrigir uma liquidação anterior viciada por erro de facto ou de direito ou por omissões ou inexatidões praticadas nas declarações prestadas para efeitos de liquidação.
Mas vindo a administração tributária a verificar, posteriormente, através de ação inspetiva, que o valor tributável, afinal, é superior a €92.407,00, e que, por conseguinte, não ocorriam os pressupostos para a isenção de que aquele havia beneficiado de forma automática mas indevida, a administração tinha o poder/dever de proceder, como procedeu, à liquidação do tributo devido, por não ter caducado o direito a essa liquidação à luz da norma que estabelece o prazo para o efeito (“oito anos seguintes à transmissão ou à data em que a isenção ficou sem efeito”– cfr. art.º 35º do CIMT), não havendo, por conseguinte, que convocar o disposto no art. 31º, n.º3.
Destarte, in casu, trata-se da primeira liquidação de IMT efetuada após a transmissão do bem, pelo que o prazo de caducidade é o de oito anos, contados da data da transmissão, nos termos do artigo 35°, nº1, do ClMT.
Ora, tendo a data da transmissão ocorrido em 15.10.2015 - cfr. nº 1 do probatório - e a notificação da liquidação tenha sido efetuada em 07.09.2023 - cfr. nº 9 do probatório -, forçoso será concluir que não caducara o poder da Administração à liquidação do imposto.
Deste modo, improcede o vício da caducidade
II)Valor Tributável
Nesta parte o Requerente alega que o valor das hipotecas e das penhoras registadas no imóvel adquirido não representam uma contrapartida do valor patrimonial do imóvel e por isso não devem ser incluídos no valor tributável. Estes encargos na opinião do Requerente não se incluem na al. h), n.º5, do art. 12º do CIMT.
Prossegue alegando que:
a) eventualmente as penhoras e as hipotecas já tinham sido parcialmente liquidadas e por isso o seu valor está errado;
b) não ocorreu qualquer assunção de dívida do Requerente relativamente ao crédito assegurado pelas hipotecas e penhoras registadas sobre o imóvel.
Quid Juris?
Nos termos do art. 12º, n.º1 do CIMT, o IMT incidirá sobre o valor constante do ato ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior.
O art. 12º, n.º5, al. g) prevê o seguinte:
“5 - Para efeitos dos números anteriores, considera-se, designadamente, valor constante do acto ou do contrato, isolada ou cumulativamente:
(…)
h) Em geral, quaisquer encargos a que o comprador ficar legal ou contratualmente obrigado.”
O Requerente para sustentar a sus interpretação invoca o Ac. do STA de 22.04.2009, proc. n.º 01124/08. O Acórdão conclui que o IVA não é um encargo que deve integrar o valor tributável, para efeitos do art. 12º, n.º5, al. h) do CIMT.
Sucede que, o Ac. não analisa se o valor das hipotecas e das penhoras que estejam registadas sobre o imóvel devem, ou não, integrar o valor tributável para efeitos de IMT. Não obstante, o Acórdão é deveras relevante para o apuramento da melhor interpretação, passando a citá-lo:
“[Como “encargos a que o comprador fica legalmente obrigado” podemos pensar, v. g., nos direitos transmitidos ao comprador ob rem ou propter rem e que acompanham, ope legis, a transmissão do direito principal sobre os imóveis sujeitos a IMT].”
Assim, temos de apurar se as hipotecas e as penhoras são, ou não, direitos propter rem.
A obrigação propter rem é aquela cujo sujeito passivo – o devedor – é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa[1]. Consubstancia uma verdadeira relação creditória incrustada no estatuto do direito real, figurando como elemento do seu conteúdo[2].
Consequentemente, em caso de transmissão da coisa, e porque o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória, o novo titular do direito real (porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respetivo estatuto) fica colocado, relativamente a esse estatuto, na mesma situação em que se encontrava o anterior, ou seja, as obrigações de garantia transmitem-se com o direito real de que elas decorrem, cabendo-lhe, como tal, a obrigação de realizar a prestação.
Sendo assim, essa obrigação transmite-se ao adquirente da coisa com o direito real de que ela decorre: o novo titular do direito real fica colocado, relativamente ao cumprimento dessa obrigação (no caso sub judice, a obrigação decorrente das hipotecas e das penhoras) na mesma situação em que se encontrava o anterior (quem transmitiu o imóvel).
Ora, como “o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória”[3] e, por isso, ou seja, “porque a obrigação está ligada ao domínio e com o detentor desta posição jurídica coincide a legitimidade para nela interferir, é também este sujeito que deve realizar a prestação. Portanto, impõe-se também a conclusão de que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto.”[4]
Citando o Henrique Mesquita: “Sendo inaceitável, no entanto, que a simples alienação do direito real prive o credor da obrigação propter rem do direito à prestação – prestação esta, de resto, que, na maior parte dos casos, se destina a efectivar o regime imperativo dos direitos reais – forçoso é entender que ele poderá exigir o cumprimento ao subadquirente, precisamente com fundamento em que a dívida acompanha o direito real de cujo estatuto emerge, vinculando todo aquele a quem a respectiva titularidade sucessivamente for pertencendo.”[5]
Deste modo, “(…) é mais consentâneo com os princípios que disciplinam as relações creditórias o entendimento de que estamos perante um caso verdadeiro e próprio de transmissão de uma dívida propter rem.”[6]
No que diz respeito às hipotecas o art. 686º, n.º1 do CC, prevê o seguinte: “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.”
Assim os credores a favor dos quais foram constituídas as hipotecas têm o direito de ser pagos pelo valor do imóvel que agora é propriedade do Requerente (terceiro). “Se a transmissão do ius in re implicasse a extinção da obrigação, o credor perderia o benefício da garantia hipotecária, dada a relação de acessoriedade ou instrumentalidade que sempre existe entre uma garantia e a obrigação garantida.”[7]
A hipoteca é direito real de garantia.[8]
Quanto à penhora, trata-se igualmente de um direito real de garantia[9]. Tendo as penhoras sido efetuadas e registadas na Conservatória do Registo Predial, a alienação a favor do Requerente é inoponível ao exequente (art. 819º do CC). Com a penhora o exequente adquire o direito de ser pago com o produto da venda do bem, que agora, é propriedade do Requerente (art. 822. n.º1 do CC e arts. 5º, n.º1 e 6º, n.º1 do Código do Registo Predial).
A hipoteca e a penhoras são obrigações propter rem porque seguem a coisa que nela encontra o seu fundamento de existência, independentemente do titular da mesma. Assim, o Requerente enquanto proprietário do imóvel está legalmente obrigado a esses encargos. Precise-se que o Requerente (terceiro proprietário do bem hipotecado e penhorado) não é o devedor dos mútuos nem das dívidas, nem é necessária qualquer assunção ou transmissão contratual da dívida, mas enquanto proprietário do imóvel, tais valores são encargos a que está legalmente obrigado. Aliás o legislador prevê o art. 721º do CC a forma de um terceiro proprietário de um bem hipotecado, que não é pessoalmente responsável pelas obrigações garantidas, poder expurgar a hipoteca (art. 721º do CC), o que significa que se trata de um encargo que o Requerente assumiu com a anterior aquisição.
Sendo assim, é evidente que o valor das hipotecas e das penhoras registadas sobre o imóvel são encargos a que o Requerente fica legalmente obrigado, por ser proprietário do imóvel, e por isso devem se incluídos no valor tributável nos termos do art. 12º, n.º5, al. h) do CIMT.
Neste mesmo sentido veja-se Silvério Mateus e Corvelo Freitas na anotação ao art. 12, n.º5, al. h) do CIMT: “ Da mesma forma, integram o referido conceito eventuais encargos hipotecários que incidem sobre os prédios transmitidos e que, conjuntamente com estes se transmitam ao adquirente.” In Os Impostos sobre o Património Imobiliário, o Imposto de Selo, Engifisco, 2005, pág. 428
No mesmo sentido veja-se igualmente a decisão do CAAD, de 04.12.2020, no processo n.º175/2020.
Prossegue o Requerente alegando que, ainda assim, a matéria tributável deve ser apurada de acordo com os valores em dívida garantidos pelas hipotecas e penhoras registas à data da escritura (15.1.2015), valor esse que o Requerente desconhece qual é.
À data da aquisição do imóvel objeto do ato tributário controvertido, este estava onerado com hipotecas e penhoras devidamente registadas, para pagamento de quantias em dívida.
A constituição [nascimento] da obrigação tributária referente ao Imposto do Selo devido no âmbito das transações vertentes reporta-se ao momento da celebração da escritura de compra e venda do imóvel, atento o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea a) do Código do Imposto do Selo. E na correspondente data impendiam sobre o Requerente, por via das obrigações propter rem, as obrigações prestativas inerentes, não tendo resultado do adquirido processual quaisquer factos que infirmem a existência e validade dessas obrigações ou traduzam o cancelamento das hipotecas e das penhoras e a subsequente extinção das dívidas por estas garantidas.
Nestes termos, improcede a pretensão da Requerente, por não provada, não se julgando verificado o invocado vício material, em relação ao ato de liquidação de IMT.
Por fim, resta analisar o alegado abuso de direito da AT por ter incluído no valor tributável, para efeitos de IMT, os encargos relacionados com as penhoras por si efetuadas e registadas sobre o imóvel.
Tal como foi referido atrás, tendo ocorrido uma isenção automática, não tinha a AT como incluir os valores que lhe eram devidos no valor tributável para efeitos de IMT.
Tendo a situação ab initio sido criada por força da declaração apresentada pelo Requerente, que assentava em pressupostos legais errados por este declarados, a emissão da liquidação impugnada não se afigura atentatória do princípio da boa-fé nem um abuso de direito.
Mais, o art. 12, n.º5, al. h) do CIMT refere que na determinação do valor tributável deve-se incluir quaisquer encargos a que o comprador seja legalmente obrigado.
Realça-se que o legislador refere que se incluem quaisquer encargos – um entre muitos, sem qualquer distinção. O legislador não distingue os encargos que devem, ou não, ser incluídos. Assim, aplicando o brocardo latino ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus (“onde a lei não distingue, não deve o intérprete fazê-lo”).
Destarte, no valor tributável devem incluir-se os encargos relacionados com as hipotecas e as penhoras registadas, mesmo que estas últimas estejam relacionadas com a Requerida.
Estando a AT sujeita a princípios como o da legalidade e da prossecução do interesse público (art. 266º, nº 2, da CRP), não pode deixar, dentro dos prazos legais, de repor a legalidade sempre que verifique que a algum contribuinte foi liquidado imposto inferior ao devido.
Face ao exposto improcede igualmente o vício de abuso de direito.
III) Juros indemnizatórios
A apreciação da condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios fica prejudicada pela solução atrás alcançada.
Mantendo-se o ato tributário sindicado, em consequência, o pedido de juros indemnizatórios deverá também ser julgado improcedente.
VI) DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar integralmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IMT n.º ..., DUC..., no montante de 15.584,22€, e em consequência absolver a Requerida do pedido;
b) Condenar o Requerente nas custas do processo face ao decaimento.
Fixa-se o valor do processo em €15.584,22 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n. º1 do artigo 29.º do RJAT e do n. º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelo Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de novembro de 2024
O Árbitro
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(André Festas da Silva)
[1] Cf. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, 1979, pag. 367, Oliveira Ascensão, Direto Civil-Reais, Coimbra Editora, 5º Ed., pág. 52 e Luis Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, 10º Ed., pág. 81
[2] Cf. Henrique Mesquita, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXII, 1976, pág. 151, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3º Ed., Almeida, pág. 75
[3] In Obrigações Reais e Ónus Reais, Henrique Mesquita, pág. 333
[4] In Ac. do STJ de 08/07/2003, proc. n.º 03A531
[5] In Obrigações Reais e Ónus Reais, Henrique Mesquita, pág. 334
[6] In Obrigações Reais e Ónus Reais, Henrique Mesquita, pág. 335
[7] In Obrigações Reais e Ónus Reais, Henrique Mesquita, pág. 336
[8] Cf. Luis Menezes Leitão, Direito Reais, Almedina, 10ª Ed., pág.496
[9] Cf. Luis Menezes Leitão, Direito Reais, Almedina, 10ª Ed., pág.522
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