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SUMÁRIO
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A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
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A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).
DECISÃO ARBITRAL
A... S.A., NIPC º..., com sede em..., ..., ..., Grão-Ducado do Luxemburgo, na qualidade de entidade gestora do Organismo de Investimento Coletivo ("OIC") B... (Requerente), NIPC ..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
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O pedido
O Requerente peticiona a anulação dos atos tributários (liquidações por retenção na fonte liberatória), adiante melhor identificados, relativos a IRC, que incidiram sobre rendimentos auferidos em Portugal nos anos de 2015, 2016 e 2017.
Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por si apresentado.
Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
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O litígio
A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.
O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.
A Requerida defende a posição contrária, com fundamentos que adiante serão resumidos.
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Tramitação processual
O pedido foi aceite em 03/07/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 10/09/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 14/10/2024 foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não foram alegadas nem detetadas exceções ou outras questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito.
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente é um fundo de investimento que reveste a forma jurídica de Société d’Investissement à Capital Variable (“SICAV”) constituído ao abrigo da lei luxemburguesa e residente para efeitos fiscais nesse país.
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Tal fundo está sujeito ao disposto na lei do Luxemburgo que procedeu à transposição da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC.
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Nos anos de 2015, 2016 e 2017, o Requerente era detentor de participações em sociedades residentes em Portugal, tendo auferido dividendos em razão dessas participações, os quais foram sujeitos a tributação. por retenção na fonte liberatória. conforme quadro que a seguir se reproduz.
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O Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa relativamente às liquidações (retenções na fonte) que ora impugna, ao qual foi atribuído o nº ...2019..., o qual foi expressamente indeferido em 20/02/2024.
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A fundamentação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa assenta em diferentes linhas argumentos, assim ora resumidos:
- que os OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português) não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal;
- que a AT não tem competência legal para recusar a aplicação de normas do direito interno com fundamento na sua incompatibilidade com princípios ou normas do Direito da União, mesmo quando tal incompatibilidade haja sido reconhecida pelo TJUE;
– que, relativamente aos impostos diretos, a situação dos residentes e não residentes não é comparável, desde logo porquanto os OIC’s residentes estão sujeitos a tributação em Imposto do Selo, o que não acontece relativamente aos não residentes;
– que a coerência do sistema fiscal português impõe uma tal diferenciação relativamente à dispensa de retenção na fonte.
II.2- Factos não provados
Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.
Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.
Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.
Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[1].
Citamos:
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 44, 45 e jurisprudência referida).
Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.
Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.
IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).
Só que existe na lei uma disposição especial relativa ao cálculo dos juros indemnizatórios quando o meio gracioso utilizado foi o pedido de revisão oficiosa, norma esta expressamente invocada pelo Requerente
Nos termos da al. c) do nº3 do art. 43º da LGT 3, são também devidos juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
Assim, são devidos juros ndemnizatórios contados desde um ano após o pedido de revisão oficiosa.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os árbitros em:
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Anular as retenções na fonte de IRC, liberatórias, no montante de € 215.193,14, acima melhor identificadas, que incidiram sobre dividendos pagos ao Requerente em 2015, 2016 e 2017, e, consequentemente, anular a decisão que versou sobre o pedido de revisão oficiosa.
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Condenar a Requerida, para além da devolução do imposto indevidamente pago, a pagar ao Requerente juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais (artigo 43.º, n.º 3, alínea d), e 100.º da LGT).
Valor do processo – Fixa-se em € 215.193,14, correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.
Custas, no montante de € 4.284,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
11 de novembro de 2024
Rui Duarte Morais (relator)
António Pragal Colaço
Vasco António Branco Guimarães
[1] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).