SUMÁRIO:
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Não procede o que sustenta a AT, quanto a não serem aplicadas normas sobre prazos, ao limite temporal dos procedimentos internos de inspeção; haverá sempre limites para os prazos da inspeção (interna ou externa), nos termos da lei e da Constituição (proporcionalidade).
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Não tendo sido verificados os requisitos, de que depende o ato administrativo discricionário, sindicável (a avaliação da necessidade, a ponderação segundo critérios de proporcionalidade, cf. requisitos do n.º 3 do art. 36.º do RCPITA), cuja eficácia se projeta externamente pela continuação do procedimento inspetivo, a que a Requerente tem de se sujeitar (e ainda mais quando está em causa, juridicamente, um procedimento externo, que suspende a caducidade do imposto), não existiu ato administrativo (que sempre teria de ser fundamentado), de prorrogação de prazo de inspeção.
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Uma vez atingido o termo do prazo de inspeção (6 meses), sem que tal prazo, em concreto, tenha sido expressamente prorrogado, a liquidação de imposto que surge como culminar de um procedimento inspetivo já caducado é ilegal (cf. Acórdão STA, proc. 01101/15, de 15/6/2016, relator: Ana Paula Lobo).
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Nuno Miguel Morujão, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 15 de maio de 2024, decide:
I- Relatório
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A... C.R.L., NIF..., com sede em ..., ..., ...-... ... (adiante designada por “Requerente”), vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º a contrario, da portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
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A Requerente solicita a pronúncia arbitral, tendo como objeto imediato a pronúncia sobre a ilegalidade da liquidação IVA n.º ... (cf. Doc. 1), a liquidação adicional e a demonstração de liquidação de IVA n.º ... (cf. Doc. 2), e os atos de demonstração de acerto de contas n.ºs 2023 ... e 2023 ... (cf. Doc. 3 e 4), e objeto mediato as correções fundamentadas do Relatório Final de Inspeção (que incide sobre o IVA de 2019), proferido ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2022..., em 9/11/2023 (cf. Doc. 5).
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 6 de março de 2024.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 24 de abril de 2024, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 15 de maio de 2024.
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Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
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A Requente alega, sumariamente, que:
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Questões prévias: A impugnação é tempestiva, é admissível a acumulação de pedidos, e as liquidações de IVA são ilegais, por resultarem de inspeção que foi concluída em 11 meses, para além do prazo limite (6 meses, prorrogável mediante decisão e notificação) que a lei permite para a inspeção fiscal;
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Foi indevidamente \retificada a taxa de tributação respeitante a produtos produzidos e comercializados, sumos “Smoothie Pera e Gengibre” 250ml e “Smoothie Manga e Chia” 250ml, de 6% para 23%, situações cujo tratamento fiscal está diretamente associado aos respetivos processos produtivos.
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São pedidos juros indemnizatórios, pelo imposto pago indevidamente.
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Por Despacho Arbitral, de 20 de maio de 2024, nos termos do previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT, notificou-se a AT para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando dever ser remetido ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta, aplicando-se, na falta de remessa, o disposto no n.º 5 do artigo 110.º do CPPT.
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A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”) ofereceu Resposta em 24 de junho de 2024, acompanhada do Processo Administrativo, alegando, em síntese:
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Questões prévias: não se verifica a intempestividade por caducidade do prazo de inspeção fiscal, já que, estando em causa um procedimento interno, não são aplicáveis as normas respeitantes aos prazos e notificações de prorrogações dos prazos de inspeção;
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Impugnação: não estão reunidas as condições para que seja aplicada a taxa de tributação reduzida de 6%, justificando-se por isso a retificação para a taxa de 23% (cf. decreto-lei n.º 225/2003, de 24 de setembro, que transpôs para a ordem jurídica interna as disposições comunitárias relativas às definições dos sumos de frutos e produtos similares que se destinem à alimentação humana e, ainda, as regras que devem reger a sua rotulagem, e à definição dos tratamentos de substâncias e matérias primas a utilizar no seu fabrico, e cf. Acórdão do STA de 2014/06/18, Processo n.º 1689/13).
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Por Despacho Arbitral, de 26 de abril de 2024, notificaram-se as partes:
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Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT) que se dispensava a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ainda que requerida prova testemunhal, por se considerar que não existe matéria de facto controvertida, relevante para decisão da causa, que possa ser esclarecida pela audição de testemunhas.
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Facultou-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas.
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As partes apresentaram alegações escritas no prazo legal, pugnando no essencial pelas posições iniciais.
II- Saneamento
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As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, sendo beneficiárias de legitimidade processual (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.
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Em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), o tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
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O processo não enferma de nulidades.
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Foram suscitadas questões prévias, que cumpre apreciar, relativas a: i) tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, ii) cumulação de pedidos, e iii) caducidade do direito a liquidar pela AT, por ter sido ultrapassado o prazo do procedimento de inspeção. A apreciação dessas questões será prévia à apreciação do mérito da causa.
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Finda essa apreciação, estarão reunidas as condições para ser proferida decisão final.
III- Fundamentação
III.1- Matéria de facto
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Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas quanto ao mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma cooperativa, constituída de acordo com o direito português, que tem por objeto principal a produção, concentração, conservação, embalamento, transformação e comercialização de produtos produzidos nas explorações dos seus associados, quaisquer que sejam os meios e as tecnologias utilizadas.
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A Requerente é enquadrada no CAE principal “Comércio por grosso de fruta e de produtos hortícolas, exceto batata” (46311) e como CAEs secundários: “fabricação de sumos de frutos e de produtos hortícolas” (10320), “Comércio a retalho de frutas e produtos hortícolas, em estabelecimentos especializados” (47210), “Comércio por grosso não especializado” (46900) e “Comércio a retalho em outros estabelecimentos não especializados, com predominância de produtos alimentares, bebidas ou tabaco” (47112).
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No exercício da atividade desenvolvida ao abrigo do CAE 10320, “fabricação de sumos de frutos e de produtos hortícolas”, a Requerente utiliza frutas da sua produção e, quando necessário, matéria-prima que adquire a entidades terceiras.
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Neste contexto, tendo em vista a produção dos produtos denominados “Smoothie pêra gengibre” a Requerente adquire gengibre a outras entidades, sobre as quais incide IVA à taxa de 6%.
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A Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção, de âmbito parcial, em sede de IVA, sobre os meses de novembro e dezembro de 2019, tendo por base a Ordem de Serviço interna n.º OI2022..., datada de 23 de novembro de 2022, que deu origem aos atos de liquidação sob escrutínio.
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O procedimento de inspeção referido teve início em 5/12/2022 e término em 9/11/2023.
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Posteriormente, e não tendo a Requerente exercido o direito de audição prévia, foi proferido pela AT Relatório Final, datado de 9/11/2023 (cf. cit. Doc. 5), que, no essencial, manteve as considerações tecidas no Projeto de Relatório.
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No que respeita aos factos e fundamentos que implicaram as correções em crise, os serviços de inspeção concluíram nos termos infra (cf. Doc. 5):
“Recebidos todos os elementos solicitados ao SP, da análise e conferência dos mesmos, conjugada com o exame dos elementos declarados à AT pelo SP, foram detetadas irregularidades materialmente relevantes, nos meses de novembro e dezembro, referentes à liquidação de IVA à taxa reduzida de 6%, uma vez que pela Lei os produtos em causa (“Smoothie Pera e Gengibre” 250ml e “Smoothie Manga e Chia” 250ml.) não são possíveis de enquadrar na Lista I anexa ao Código do IVA, devem ser tributados pela taxa de IVA normal ou seja 23% (…)
2. Examinadas as DP’s de IVA do SP, referentes aos meses em causa, verifica-se que as mesmas apresentam no campo 1, base tributável à taxa reduzida, os seguintes valores: € 1.510.379,71 e € 1.435.075,78, para novembro e dezembro, respetivamente.
3. Os valores acima referenciados refletem o facto de mais de 90% do volume de negócios da A... se encontrar sujeito à aplicação de IVA à taxa de 6%.
4. Todavia, convergem, erradamente (…) para a formação desses 90% do volume de negócios do SP o valor das vendas dos produtos “Smoothie Pera e Gengibre” e “Smoothie Manga e Chia”, ambos em embalagem de 250ml, que são tributados com IVA à taxa de 6%.
5. É factual que ocorreu transmissão dos produtos “Smoothie Pera e Gengibre” e “Smoothie Manga e Chia”, ambos em embalagem de 250ml, nos meses de novembro e dezembro do ano de 2019 à taxa de 6% (…)
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Face ao enquadramento referido supra, a AT concluiu ser devida a correção de € 3.308,20 respeitante a novembro e € 3.074,37, respeitante a dezembro, cf. apuramento do imposto em falta:
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“Smoothie para Gengibre” 250 ml: € 1.570,80 (nov.) e € 1.459,83 (dez.), totalizando € 3.030,63; e
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“Smoothie Manga e Chia” 250 ml: € 1.737,40 (nov.) e € 1.614,54 (dez.), totalizando € 3.351,94.
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As notificações e os próprios atos tributários, de correções de imposto e de acerto de contas, foram disponibilizados em 17/11/2023 e 20/11/2023 (cf. Doc. 1, 2, 3 e 4).
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Quanto à correção referente ao “smoothie de manga e chia”, que ascende a € 3.351,94, a Requerente aceita a mesma e não pretende que o Tribunal a aprecie, tal como já referiu ao delimitar o objeto do presente pedido arbitral (cf. artigo 43.º do PPA).
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No decurso do procedimento inspetivo, decorreram contactos telefónicos, unidirecionais, entre a AT e a Requerente, com pedidos de esclarecimento sobre o objeto de inspeção (cf. capítulo IV do RTI).
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A AT não verificou os requisitos de que depende a prorrogação do prazo da inspeção tributária (via confissão da AT na sequência da alegação da Requerente, cf. artigos 5.º e 6.º da Resposta da AT).
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A factualidade provada teve por base a apreciação crítica da posição assumida por cada uma das partes, bem como a análise crítica dos documentos juntos aos autos, cuja autenticidade e veracidade não foram impugnadas por nenhuma das partes.
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Inexistem outros factos, com relevo para apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.
III. 2- Matéria de Direito
III.2.1 Questões prévias:
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Da tempestividade da ação de impugnação
De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o pedido de constituição de tribunal arbitral deverá ser apresentado no prazo de 90 dias contados da notificação dos atos tributários impugnados.
Atendendo a que as notificações e os próprios atos tributários em crise foram disponibilizados em 17/11/2023 e 20/11/2023, e tendo a notificação dos atos de liquidação adicional, dos atos de demonstração de liquidação de IVA e, bem assim, dos atos de demonstração de acerto de contas, sido efetuada para o domicílio fiscal eletrónico da ora Requerente, nos termos do disposto no n.º 9 do artigo 38.º e, bem assim, no n.º 10 do artigo 39.º, ambos do CPPT, a mesma considera-se efetuada no décimo quinto dia posterior ao registo de disponibilização daquela no sistema de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital ou na caixa postal eletrónica da pessoa a notificar.
Considerando que o prazo “só se inicia no primeiro dia útil seguinte” (ou seja, em 21/11/2023), a Requerente só se considera validamente notificada em 6/12/2023, termos em que se concluiu que o presente Pedido de Pronúncia Arbitral é tempestivo (cf. artigo 20.º CPPT e 279.º Código Civil).
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Da cumulação de pedidos
Sustenta a Requerente estarem reunidas condições para a cumulação de pedidos, que requer, nos termos legalmente previstos, cf. artigo 3.º do RJAT.
A apreciação dos autos revela terem sido feitas pela AT, na inspeção, várias correções (expostas no RTI), atinentes a operações tributadas em diferentes meses (do mesmo ano), e atinentes a mais do que uma tipologia de correções (ainda que do mesmo imposto, IVA).
Atenta a circunstância de a procedência dos pedidos depender essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, estão reunidas as condições para deduzir o pedido de pronúncia arbitral, e assim, prosseguir com a análise e decisão.
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Da tempestividade: a caducidade do direito de liquidar, em razão do termo do prazo de inspeção
Sustenta a Requerente que o procedimento de inspeção prolongou-se para além do prazo legalmente admissível: o procedimento de inspeção que deu origem aos atos em crise prolongou-se por mais de 11 meses, já que se iniciou em 5/12/2022 e terminou em 9/11/2023.
Com efeito, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º do decreto-lei n.º 413/98, de 31 dezembro, que consagra o Regime Complementar de Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), os procedimentos de inspeção podem prolongar-se até ao termo do prazo de caducidade, sendo esse procedimento contínuo e devendo “ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início”.
Sustenta a AT que este procedimento inspetivo, que tem por base a ordem de serviço interna OI2022..., datada de 23 de novembro de 2022, teve como objetivo o “controlo declarativo” que consubstancia cumprimento de obrigações acessórias em sede de IVA, pela Requerente, quanto aos meses de novembro e dezembro do ano de 2019.
Ou seja, nos termos do RIT, “o procedimento inspetivo foi exclusivamente desenvolvido de forma interna em conexão com os pressupostos da ordem de serviço.
Assim, no âmbito da preparação, programação e planeamento do procedimento inspetivo nos termos do artigo 44.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) foram consultadas as aplicações de acesso às bases de dados do sistema informático da AT, analisadas as declarações periódicas de IVA (DP’s), bem como foram examinados os elementos solicitados ao SP através das notificações expedidas por ViaCTT, a todos estes documentos foi verificado a sua coerência e conteúdo formal.
Ao exposto há que acrescentar o contato telefónico unidirecional, praticado com o objetivo de clarificar o conteúdo de alguns documentos/procedimentos” (cf. capítulo IV do RIT).
Sustenta a AT, que neste contexto, não são aplicáveis as normas do RCPITA relativas a prazos e à notificação de prorrogações de prazos de inspeção (cf. artigo 5.º e 6.º da Resposta da AT), cf. artigos 13.º e 36.º a contrario, concluindo-se assim que a duração de aproximadamente 11 meses do procedimento inspetivo, não é ilegal.
A Requerente refere, quanto à possibilidade de ampliar o prazo de inspeção, por mais dois períodos de três meses, do referido prazo (até 12 meses, cf. artigo 36.º n.º 3 RCPITA), que tal depende de requisitos jurídicos, acrescentando que nenhum dos quais se verificou (artigo 48.º PPA), tais como:
“a) Situações tributárias de especial complexidade resultante, nomeadamente, do volume de operações, da dispersão geográfica ou da integração em grupos económicos nacionais ou internacionais das entidades inspeccionadas;
b) Quando, na acção de inspecção, se apure ocultação dolosa de factos ou rendimentos;
d) Quando seja necessário realizar novas diligências em resultado de o sujeito passivo
apresentar factos novos durante a audição prévia;
e) Outros motivos de natureza excecional, mediante autorização fundamentada do diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira”.
Vejamos.
De acordo com o RIT, “o procedimento inspetivo foi exclusivamente desenvolvido de forma interna em conexão com os pressupostos da ordem de serviço”, sendo ainda referido (cf. último parágrafo do capítulo IV do RIT), por outro lado, que ocorreram contactos telefónicos undirecionais com a Requerente, visando clarificar o conteúdo de documentos e procedimentos (durante o procedimento, para esclarecer conteúdos e procedimentos, não consubstanciando a audição prévia).
Neste contexto, surge desde logo a dúvida quanto a se ter tratado, de facto, de um “procedimento interno”, “exclusivamente” baseado em procedimentos internos, como prevê expressamente o artigo 13.º al. a) RCPITA.
O sentido útil do artigo 13.º do RCPITA, mais do que um critério eminentemente geográfico, é o de distinguir os procedimentos inspetivos consoante impliquem ou não, a disponibilidade do sujeito passivo para interações, presenciais ou telefónicas (por exemplo), entre a AT e o sujeito passivo. Sem prejuízo, em qualquer caso, da devida colaboração recíproca, cf. artigo 59.º LGT, compatível com o tipo de procedimento inspetivo adotado, que não é indiferente para a disponibilidade interativa, do sujeito passivo.
Aliás, só assim se percebe o que sustenta a AT, no sentido de as notificações de as prorrogações de prazo serem dispensáveis, na medida em que, nesse “pressuposto procedimento interno”, nos termos que a lei consagra, não haver interferência com o normal exercício da atividade económica pelo sujeito passivo.
Ora, mesmo que o pressuposto da ordem de serviço da AT seja a de promover um “procedimento interno”, o procedimento que vier a ocorrer apenas será interno se, efetivamente, vier a preencher as previsões das normas que qualificam juridicamente os tipos de procedimentos.
Considero que, nos termos da al. a) e b) do artigo 13.º, não terá ocorrido, de facto, um procedimento “exclusivamente interno”, na relação jus-tributária subjacente à inspeção, em razão da interação entre os sujeitos da relação jurídica contextualizada no procedimento, e que se concretizou em pedidos de esclarecimentos quanto a documentos e procedimentos, antes mesmo de ter sido concedido período de audição prévia.
Por outro lado, não procede o que sustenta a AT, no sentido de não serem aplicadas normas sobre prazos, aos procedimentos internos (cf. artigo 5.º da resposta); haverá sempre, naturalmente, limites para os prazos da inspeção (interna ou externa), nos termos da lei[1] e da proporcionalidade consagrada na Constituição (cf. artigo 266.º n.º2 da CRP).
Admite-se (com dúvidas) que, nos procedimentos internos (com o significado que a lei confere esses procedimentos), não seja essencial a formalidade de notificar a prorrogação do prazo ao sujeito passivo, para além dos 6 meses (prorrogável mais 3 meses, duas vezes, até ao prazo máximo de 12 meses, nos termos do nº. 3 do artigo 36.º), mas isso não significa que, nesse procedimento, os requisitos para decidir/autorizar (de forma sindicável), fundadamente, a prorrogação do prazo, sejam facultativos ou deixem de ser aplicáveis. Antes, mantém-se o vínculo aos requisitos no n.º 3 do artigo 36.º RCPITA.
A Requerente sustenta que nenhum dos requisitos do nº. 3 do artigo 36.º RCPITA se verificou, e a AT – sem contestar a ausência de verificação desses requisitos – limita-se referir que essa norma não é aplicável, em razão de estar em causa, pretensamente, um procedimento interno (algo que não procede; como já referimos haverá sempre limites para os prazos das inspeções, internas ou externas, nos termos da lei, cf. artigo 36.º n.º 2 e 3 do RCPITA).
O que importa salientar é que, mesmo admitindo, em abstrato, a possibilidade de prescindir da notificação de prorrogação do prazo (sendo tida como não essencial, algo que parece muito duvidoso), a decisão/autorização (interna) de prorrogar o prazo, terá de ser fundamentada na concreta verificação dos requisitos previstos na lei. Ou seja, essa decisão terá de ser sindicável, sendo certo que não existe um ato tácito, de prorrogação automática, considerando os requisitos que devem ser verificados, cf. artigo 130.º CPA.
Termos em que, se conclui – via confissão da AT na sequência da alegação da Requerente, cf. n.º 2 do artigo 574.º CPC (aplicável ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT) – que, não foram verificados pela AT os requisitos de que depende a possibilidade de prorrogar o prazo da inspeção tributária.
Assim, não tendo sido verificados os requisitos, de que depende o ato administrativo discricionário, sindicável (a avaliação da necessidade, a ponderação segundo critérios de proporcionalidade, quanto a prorrogar o prazo de inspeção nos termos dos requisitos do n.º 3 do artigo 36.º do RCPITA), cuja eficácia se projeta externamente, pela continuação do procedimento inspetivo, a que a Requerente tem de se sujeitar (e ainda mais quando está em causa, juridicamente, um procedimento externo, que suspende a caducidade do imposto), não existiu asse administrativo, que sempre teria de ser fundamentado, de prorrogação de prazo de inspeção.
Assim, considerando os pressupostos da ordem de serviço da realização do procedimento de inspeção e a realidade descrita, em que foi ultrapassado o prazo limite para a inspeção, as subsequentes liquidações de imposto que vieram a ser emitidas pela AT são ilegais, cf. artigo 268.º n.º 2 e 3 CRP e Acórdão STA, proc. 01101/15, de 15/6/2016, relator: Ana Paula Lobo:
“I - Na pendência do procedimento de inspeção podem ser alterados os fins e a extensão daquele, posto que tal conste de despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, o art.º 15.º, n.º 1 do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (aprovado pelo art.º 1.º do Dec-Lei n.º 413/98, de 31 de Dezembro).
II - Verifica-se falta de fundamentação da decisão que determinou o alargamento da acção inspectiva quando foi alargado o âmbito da acção inspectiva, sem que disso fosse dado conhecimento ao contribuinte, pois diz-se «houve necessidade de alargar o seu âmbito» quando o art.º 42.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária apenas prevê que a notificação dos actos de inspecção possa ser efectuada ou no momento da prática dos actos de inspecção ou em momento anterior e nunca em momento posterior, como aqui ocorreu.
III - Tendo em conta, que o sujeito passivo, não foi devidamente notificado através de despacho fundamentado, da alteração dos fins, do âmbito e da extensão do procedimento inspectivo pela entidade que o ordenou, todas as conclusões referentes ao relatório de inspecção, relativas a tal alargamento são ilegais e, não poderão ter validade fiscal, nem fundamentar qualquer acto de liquidação.
IV - São impugnáveis os actos lesivos praticados no procedimento inspectivo, por desconformes com a lei, ofendendo, em consequência disso, os princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade, ao causar transtornos superiores aos que a realização do direito à tributação implicava, da imparcialidade na aplicação do princípio da proporcionalidade e da garantia do sujeito passivo em ser constrangido a um procedimento inspectivo confinado aos limites fixados na lei.
V - A falta de credenciação dos inspectores tributários permite a oposição aos actos de inspecção, mas esta só pode exercer-se contra concretos actos de inspecção e não contra actos de inspecção que se desconhecem.
VI - O direito de audição é um direito de exercício facultativo para os contribuintes, cujo não exercício não importa a perda de direitos nomeadamente de contenciosamente reagirem contra os actos tributários ou em matéria tributária que sejam lesivos dos seus interesses patrimoniais e não hajam sido praticados com observância estrita da lei”.
Perante a ilegalidade dos atos de liquidação, deverão estes atos tributários ser anulados, removidos da ordem jurídica, com correção ao valor constante na conta corrente de IVA.
A solução da questão prévia prejudica a apreciação das questões de impugnação suscitadas pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 2, primeiro segmento, do CPC, aplicável ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT[2].
III.2.2 Juros indemnizatórios
Como resulta das demonstrações de acertos de contas referidas, a Requerente suportou a totalidade do imposto corrigido, mediante dedução dos montantes liquidados da sua conta-corrente de IVA.
Nos termos do disposto no artigo 100.º, n.º 1 da LGT, sempre que proceda o pedido do sujeito passivo, designadamente em processo, a AT está obrigada “à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
Considerando o n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determina, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, condição que se verifica, face ao exposto quanto à omissão de controlo de requisitos atinentes à prorrogação do prazo de procedimento inspetivo.
Pelo que, além da anulação dos atos tributários de liquidação, o IVA indevidamente pago deverá ser restituído à Requerente, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor, calculados desde a data do pagamento e até ao efetivo e integral reembolso dos montantes em causa, com as devidas e necessárias consequências legais.
IV. Decisão
Considerando as diversas razões vindas de expor em sede de fundamentação, decide o Tribunal julgar:
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Procedente, o pedido de a anulação dos atos tributários, de liquidação adicional de IVA (atos de demonstração de liquidação de IVA n.ºs 2023 ... e 2023 ... e os atos de demonstração de acerto de contas n.ºs 2023 ... e 2023...), com as devidas e necessárias consequências legais,
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Procedente, o pedido de reembolso à Requerente do imposto indevidamente pago, e
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Procedente, o pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º n.º 1 da LGT.
V. Valor do Processo
A Requerente indicou como valor da causa o montante de 3.030,63 €, que não foi contestado pela Requerida, pelo que, atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 3.030,63 €.
VI. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no montante de € 612,00, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de novembro de 2024.
O Árbitro,
Nuno Miguel Morujão.
[1] Cf. artigo 36.º RCPITA e anotação n.º 3 ao artigo 36.º in RCPITA – Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira – Guia do Procedimento de Inspeção Tributária, 2018, Centro de Estudos Dantas Rodrigues, Rodrigues, J., Conchinha, M., Assunção, F., Monteiro, V., Garcia, L., e Miguel, J..
[2] Neste sentido, embora quanto à intempestividade, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 7-12-2011, processo n.º 0241/11, onde se concluiu que «a intempestividade do meio impugnatório implica a não pronúncia do tribunal sobre as questões suscitadas na petição inicial, ainda que de conhecimento oficioso, na medida em que a lide impugnatória não chega a ter o seu início».