Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 267/2024-T
Data da decisão: 2024-10-28  IRC  
Valor do pedido: € 170.551,72
Tema: IRC. Benefício fiscal. Organismo de investimento colectivo não residente. Liberdade de circulação de capitais. Autoliquidação. Retenção na fonte. Ónus da Prova. Juros indemnizatórios e Direito da União.
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SUMÁRIO

  1. As retenções na fonte não podem ser comprovadas por mera facturação que a elas aluda, ou as quantifique, porque são lógica e temporalmente posteriores à emissão das facturas.
  2. A violação do Direito da União tem implicações especiais no direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A...– SUCURSAL EM PORTUGAL (anteriormente designada B...– Sucursal em Portugal), sucursal portuguesa de uma Société Civile de Placement Immobilier constituída ao abrigo do direito francês, NIPC ... (também NIF ...), doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 26 de Fevereiro de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre as decisões de deferimento parcial de Reclamações Graciosas n.º ...2023... e n.º ...2023...; e mediatamente sobre as autoliquidações de IRC (e derramas) objecto daquelas reclamações graciosas, referentes aos exercícios de 2020 e 2021, n.ºs 2021 ... e 2022...– declarações Mod. 22 n.º ..., de 14 de Julho de 2021, e n.º..., de 3 de Junho de 2022; peticionando a declaração de ilegalidade, e consequente anulação integral, daquelas decisões e daqueles actos de autoliquidação, com restituição do imposto indevidamente suportado, e demais efeitos legais.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 9 de Maio de 2024; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 9 de Maio de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 12 de Junho de 2024, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Por Despacho de 24 de Junho de 2024, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.
  10. A Requerente apresentou alegações em 5 de Julho de 2024, juntando 234 documentos.
  11. Os novos documentos foram admitidos por Despacho de 8 de Julho de 2024, por não se entender aplicável, ao processo arbitral tributário, o disposto no art. 423º, 2 do CPC, e apelando aos princípios consagrados nos arts. 16º, c) e e), 18º, 19 e 29º, 2 do RJAT; reconhecendo-se à Requerida o direito ao exercício do contraditório.
  12. A Requerida apresentou alegações em 12 de Setembro de 2024.
  13. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  14. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  15. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é a sucursal portuguesa da C... (anteriormente designada B...), um organismo de investimento colectivo, constituído em França, sob a forma de Société Civile de Placement Immobilier (“SPCI”), para o exercício da actividade de aquisição e gestão de património imobiliário destinado ao arrendamento.
  2. No exercício de 2020, a Requerente obteve em Portugal rendimentos relacionados com a sua actividade (rendimentos prediais) no valor global de € 4.655.574,91 e obteve um resultado líquido de € 3.489.565,39.
  3. Em 14 de Julho de 2021, a Requerente apresentou a sua declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2020.
  4. Na convicção de que se lhe aplica plenamente o regime previsto para os organismos de investimento colectivo no art. 22º do EBF, a Requerente inscreveu, no anexo F da modelo 22:
  1. Como resultado líquido do exercício, o montante de € 3.489.565,39;
  2. Como proveitos isentos de tributação os rendimentos prediais, no valor global de € 4.655.574,91;
  3. Como gastos não dedutíveis associados aos rendimentos isentos, o valor de € 929.299,01;
  4. Como gastos não dedutíveis nos termos previstos no artigo 23.º-A do CIRC, a quantia de € 98.598,13;
  5. Como gastos com comissões de gestão o montante de € 290.668,80.
  1. No ficheiro SAF-T consta que foi comunicada, por referência ao ano de 2020, a emissão de 131 facturas:

 

  1. Do mesmo ficheiro consta a emissão de 14 notas de crédito:

 

  1. Das declarações recebidas na AT referentes ao ano de 2020 consta imposto retido no montante de € 942.502,48:

 

  1. No exercício de 2021, a Requerente obteve em Portugal rendimentos no valor global de € 3.089.966,28 e obteve um resultado líquido de € 2.101.329,53.
  2. Nesse exercício de 2021, a Requerente sofreu retenções na fonte no montante total de € 706.551,30.
  3. Em 3 de Junho de 2022, a Requerente apresentou a sua declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2021.
  4. Na convicção de que se lhe aplica plenamente o regime previsto para os organismos de investimento colectivo no art. 22º do EBF, a Requerente inscreveu, no anexo F da modelo 22:
  1. Como resultado líquido do exercício o montante € 2.101.329,53;
  2. Como proveitos isentos de tributação os rendimentos prediais, no valor global de € 3.089.966,28;
  3. Como gastos não dedutíveis associados aos rendimentos isentos, o valor de € 922.821,78;
  4. Como gastos não dedutíveis nos termos previstos no artigo 23.º-A do CIRC, a quantia de € 55.499,35;
  5. Como gastos com comissões de gestão o montante de € 10.450,00.
  1. Em consequência, a Requerente apurou um prejuízo fiscal de € 0,00 em 2020, e de € 0,00 em 2021.
  2. Entendendo que uma simples limitação informática a privou de apurar, nas autoliquidações, um valor a receber, por não ser possível preencher os campos referentes a retenções na fonte, o que no seu entender conduziria ao cálculo de um montante a reembolsar de € 1.819.605,50, a Requerente apresentou, a 14 de Julho de 2023, Reclamação Graciosa, dividida posteriormente em dois procedimentos: n.º ...2023... e n.º ...2023... .
  3. Foi proferida, a 27 de Novembro de 2023, a decisão final de deferimento parcial das reclamações, deferindo:
    1. A dedução do valor de € 942.502,48, a título de imposto retido na fonte, na liquidação de IRC do ano de 2020;
    2. A dedução do valor de € 706.551,30, a título de imposto retido na fonte, na liquidação de IRC do ano de 2021.
  4. Ficou indeferido o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento de que não ocorreu erro imputável aos serviços; e foi parcialmente indeferido o pedido quanto àquilo que, na liquidação do exercício de 2020, excedia o valor de € 942.502,48, reconhecido pela AT como o total de imposto indevidamente retido nesse período.
  5. Isto não obstante de, no exercício do direito de audição, a Requerente ter insistido que os montantes indevidamente retidos perfizeram € 1.819.605,50, e não os € 1.649.053,78 parcialmente deferidos, tendo assim direito ao reembolso da diferença de € 170.551,72 – além dos juros indemnizatórios calculados sobre o valor de € 1.819.605,50.
  6. No dia 26 de Fevereiro de 2024 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Factos não-provados

 

Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar que, no exercício de 2020, a Requerente tenha sofrido retenções na fonte de IRC no montante total de € 1.113.054,20.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos e nos documentos juntos ao PPA.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
  6. Relativamente aos factos não-provados, há que ter em conta que a Requerente sustenta que o total de IRC indevidamente retido relativamente aos rendimentos de 2020 excede em € 170.551,72 o montante que foi deferido relativamente àquele período, e que a Requerida limitou ao montante de € 942.502,48.
  7. Procurando provar essa diferença, a Requerente juntou uma listagem de facturas, e mais tarde um conjunto de originais e duplicados de 131 facturas e 14 notas de crédito emitidas em 2020 a 4 clientes, perfazendo respectivamente as bases tributáveis de € 5.109.727,60 e de € 543.416,31 (o que coincide precisamente com o que consta do ficheiro SAF-T).
  8. Não obstante se indicar nas facturas a taxa de IRC e o montante a reter, e nas notas de crédito o montante a devolver, as facturas não provam a efectivação da retenção, que ocorrerá normalmente em momento posterior, na data do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos – como resulta da conjugação do art. 94º, 1, c) e 6 do CIRC com o art. 101º, 8 do CIRS.
  9. Especificamente, caberia à Requerente comprovar que foram efectivadas as retenções na fonte de IRC incidente sobre os débitos mensais de rendas do cliente D..., Unipessoal Lda (NIF ...), em relação aos quais as facturas estão documentadas e correspondem ao registado no SAF-T, sendo que em contrapartida está omisso o registo, junto da AT, do recebimento efectivo das correspondentes retenções.
  10. Pelo que a prova de tal efectivação, na parte não reconhecida pela Requerida através do indeferimento parcial das reclamações graciosas, é indispensável – mas não se encontra feita através dos documentos apresentados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

  1. A Requerente admite estar de acordo com as motivações que levaram ao deferimento em resposta às reclamações graciosas – e não se conformar somente com o carácter parcial desse deferimento: com o facto de os € 1.113.054,20 de retenções indevidas que ela entende estarem reconhecidos pela AT apenas no montante de € 942.502,48, recusando-se o reembolso de € 170.551,72.
  2. Lembra a Requerente que as retenções na fonte envolvem uma obrigação declarativa de terceiros, e por isso não é de excluir a possibilidade de estas entidades terem pago ao Estado Português um montante inferior ao peticionado, mas que isso não significa que a Requerente não tenha sofrido retenções na fonte no montante requerido, sem que a Requerente possa ser responsabilizada pelo eventual incumprimentos de uma obrigação a que é alheia – não devendo esquecer-se que, como resulta do art. 75.º, n.º 1 da LGT, se presumem verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes.
  3. Infere a Requerente que a Requerida violou repetidamente o dever de colaboração.
  4. E insiste a Requerente que a não inclusão dos montantes retidos na autoliquidação não se deveu a uma interpretação sua da lei aplicável, mas a uma impossibilidade fáctica de registar tais valores, porque o sistema informático da Administração Tributária não o permitiu – nomeadamente porque a aplicação informática de submissão das declarações modelo 22 de IRC não permitiu preencher os campos referentes às retenções na fonte sofridas.
  5. Isto, no entender da Requerente, porque, ainda que a Administração Tributária tenha alterado o seu entendimento relativamente à interpretação dos preceitos legais aplicáveis, essa alteração de entendimento ocorreu após a conclusão dos exercícios de 2020 e 2021 e não foi transposta para o sistema informático que suporta as autoliquidações.
  6. Por esta razão, nas autoliquidações submetidas eletronicamente, a Requerente não apurou qualquer valor a receber, embora, se a aplicação informática tivesse admitido a inscrição das retenções na fonte, teria sido apurado um montante a reembolsar de € 1.819.605,50.
  7. Daí, conclui a Requerente, existir erro imputável aos serviços que não é determinado pela autoliquidação, mas sim pela aplicação informática disponibilizada pela Administração Tributária para o seu preenchimento.
  8. Existindo erro imputável aos serviços do qual resultou um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 43º da LGT, inferindo a Requerente que tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
  9. Às alegações, a Requerente junta as facturas que sofreram as retenções na fonte – o que, no seu entender, remataria a comprovação dos valores invocados por ela.

 

III. B. Posição da Requerida

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por reconhecer que o benefício fiscal do art. 22º, 10 do EBF se refere também, sem discriminação, aos OIC não residentes que operem em Portugal através de estabelecimento estável aqui situado.
  2. Contudo, insiste que, das declarações recebidas na AT referentes ao ano de 2020, apenas consta imposto retido no montante de € 942.502,48, assim discriminado:

 

  1. E que não foi apresentada, pela Requerente, qualquer prova de que o montante retido tenha sido superior a € 942.502,48 – sendo que é a ela que compete fazer tal comprovação, nos termos do art. 74º, 1 da LGT.
  2. Enquanto que, pelo contrário, está inteiramente confirmado o valor de imposto retido em 2021, no montante de € 706.551,30.
  3. Entende a Requerida, por isso, que não está em causa qualquer erro imputável aos serviços, até porque o que é impugnado nasce de uma autoliquidação – a que acresce que, sendo a Requerente um OIC, não lhe caber efectuar a retenção na fonte de IRC relativo aos rendimentos que obtém, nos termos do art. 22º, 10 do EBF.
  4. Em alegações, a Requerida assinala que a Requerente anexou aos autos cópias de facturas e notas de crédito emitidas em 2020, que perfazem valores coincidentes com o declarado no SAFT-T.
  5. Contudo, insiste a Requerida, a efectiva retenção de IRC, a ter tido lugar, terá ocorrido no momento do respectivo pagamento, e não na data de emissão das facturas, como parece entender a Requerente: retenção essa que, a ter sido efectuada pelo devedor dos rendimentos, deveria por esse ter sido entregue nos cofres do Estado.
  6. Sendo assim, as facturas juntas aos autos não comprovam, por si mesmas, o pagamento dos valores nelas inscritos, nem comprovam a data em que terá sido efectuada, e por que montantes, a retenção na fonte de IRC que a Requerente alega ter suportado relativamente aos rendimentos de 2020.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV. 1. A divergência subsistente e a falta de prova

 

Como vimos, com o deferimento parcial das reclamações graciosas, em 27 de Novembro de 2023, foi inteiramente reconhecido o montante peticionado pela Requerente que se refere ao IRC indevidamente retido na fonte, relativo ao exercício de 2021.

No que respeita ao exercício de 2020, contudo, a AT reconheceu somente € 942.502,48 dos € 1.113.054,20 peticionados pela Requerente, a título de IRC indevidamente retido na fonte.

Subsiste, portanto, uma divergência de € 170.551,72.

Do exame da documentação junta aos autos, afigura-se que essa divergência se deve ao facto de terem sido facturados os débitos mensais de rendas de um cliente da Requerente (D..., Unipessoal Lda, NIF...), mas não ter ocorrido, ou não ter sido devidamente registada, a retenção na fonte – retenção que ocorreu, e está registada, relativamente aos demais clientes da Requerente.

Demos por não-provado que, no exercício de 2020, a Requerente tenha sofrido retenções na fonte de IRC no montante total de € 1.113.054,20.

E fundamentámos:

  • não obstante a Requerente ter apresentado uma listagem de facturas relativas ao exercício de 2020, e depois as próprias facturas por ela emitidas nesse período (juntamente com algumas notas de crédito);
  • não obstante as facturas (e notas de crédito) especificarem a taxa de IRC e o montante a reter (ou devolver)
  • as facturas não provam a efectivação da retenção, dado que, nos termos dos n.os 1, c) e 6 do art. 94º do CIRC, conjugados com o art. 101º, 8 do CIRS, a retenção é um acto subsequente, que ocorre na data do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos – a reclamar, por isso, uma prova suplementar.

Estando omissa nos registos da AT a referência às retenções na fonte de IRC incidente sobre os débitos mensais de rendas do referido cliente da Requerente (NIF...), em relação aos quais as facturas estão documentadas e correspondem ao registado no SAF-T, tornava-se crucial que fosse feita a prova da efectivação de tais retenções, e essa prova não foi feita.

Impendia sobre a Requerente o ónus de provar o que alegou, nos termos do art. 74º, 1 da LGT.

O art. 74.º, 1 da LGT estabelece que “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, em consonância com o art. 342.º, n.º 1 do Código Civil.

Na falta de corroboração do alegado pelos meios de prova carreados, os factos necessariamente terão de ser valorados contra a Requerente, por força do aludido regime de repartição do ónus da prova – reforçado pelo estabelecido no art. 414.º do CPC (ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT), que determina que “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.

 

IV. 2. Juros indemnizatórios

 

IV. 2. A. Tese geral

 

A Requerente solicitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios.

Decorre do art. 43º, 1 da LGT que são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".

O tribunal arbitral não é apenas competente para apreciar a legalidade de actos de liquidação de impostos, cabendo-lhe ainda algumas atribuições que se enquadram no âmbito da execução de sentença - porque constitui um efeito da decisão arbitral de procedência que a AT deva praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto impugnado, e restabelecer a situação que existiria se esse acto não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).

Essa é, por outro lado, a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (art. 179º do CPTA), que se torna extensivo, nos mesmos exactos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da Administração, ou a requerimento do particular (art. 172º do CPA).

No caso, a Requerente veio deduzir um pedido de reembolso do imposto indevidamente retido, mas esse é um pedido meramente acessório, e condicionado à declaração de ilegalidade dos actos tributários impugnados, não assumindo a natureza de um pedido autónomo de condenação na prática de acto devido, ou de reconhecimento de direitos legalmente protegidos que extravase o âmbito de competência material do tribunal arbitral. 

Por conseguinte, o tribunal arbitral não está impedido de incluir, no dispositivo, as cominações meramente consequenciais da declaração de ilegalidade do acto tributário.

De harmonia com o disposto no art. 24º, 1, b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT.

Nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

Tudo isso condicionado pela existência, ou não, de erro imputável aos serviços.

A improcedência do pedido na parte respeitante à aludida “divergência subsistente” não significa que não tenha existido erro imputável aos serviços na parte restante, ou seja, nos montantes de imposto indevidamente retidos, e que a Requerida reconheceu terem sido indevidamente retidos, ao deferir o respectivo reembolso.

Em tese geral, dir-se-ia que os erros que afectam as autoliquidações não são imputáveis à Requerida, pois não foram por ela praticados, pelo que, consequentemente, não haveria direito a juros indemnizatórios derivados da sua prática, em face do preceituado no art. 43.º da LGT; sendo que o erro imputável à Requerida só nasceria caso a pretensão da Requerente tivesse sido ilegalmente indeferida, e na parte em que o tivesse sido – tendo este Tribunal já concluído que o segmento das reclamações graciosas que foi indeferido não o foi ilegalmente, e deve ser mantido na ordem jurídica: ou seja, não há, em consequência do deferimento parcial, qualquer subsistência de um pagamento indevido, nem qualquer omissão de reposição da legalidade.

A referida “tese geral” encontra eco no Acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 7/4/2021:

afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.”

No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STA proferido em 29-06-2022, no âmbito do processo n.º 093/21.7BALSB:

“Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.”.

Não tendo ocorrido nenhum indeferimento ilegal, dir-se-ia, prima facie, não existir, nem a partir da apresentação das reclamações graciosas, nem a partir da data do seu deferimento parcial, o direito a quaisquer juros indemnizatórios: no caso sub judice, o deferimento parcial removeu da ordem jurídica os actos de liquidação ilegais, e manteve na ordem jurídica actos de liquidação não-ilegais.

 

IV. 2. B. O caso particular da violação do Direito da União

 

Em contraponto à “tese geral”, dá-se o caso de as retenções na fonte serem tidas por indevidas e ilegais por incompatibilidade do art. 22º, 1 e 10 do EBF com o art. 63º do TFUE.

Na sua Resposta, a Requerida reconhece não somente essa circunstância, como alude (no art. 16) a um Despacho do SE dos Assuntos Fiscais determinando a necessidade de compatibilização do regime do art. 22º, 1 e 10 do EBF com as liberdades salvaguardadas pelo TFUE.

Dá-se a circunstância especial de o TJUE ter vindo a firmar jurisprudência no sentido de que a liquidação e cobrança de impostos em violação do Direito da União tem como consequência não apenas o direito ao reembolso, mas também o direito ao pagamento de juros.

Veja-se o acórdão de 18 de Abril de 2013, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere que:

21. Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).

22. Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).

23. A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida)”.

Nestes termos, e no caso dos autos, esta violação directa do Direito da União, em concreto do art. 63.º do TFUE, consubstancia, pelas razões já aduzidas, um erro de direito imputável aos serviços ou organismos do Estado português, logo, in casu, também aos serviços da AT.

Tem assim a Requerente, por essa circunstância especial, direito a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43º, 1 da LGT e do art. 61º, 5 do CPPT, calculados sobre o montante total de € 1.649.053,78 (que a própria Requerida reconheceu terem sido indevidamente retidos na fonte, aquando do deferimento parcial das reclamações graciosas), e contados desde a data da retenção indevida do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar parcialmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo na ordem jurídica a autoliquidação impugnada referente ao exercício de 2020, na parte indeferida pelo Despacho de 27 de Novembro de 2023, e mantendo na ordem jurídica também esse Despacho;
  2. Absolver, dessa parte do pedido, a Autoridade Tributária e Aduaneira;
  3. Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios calculados sobre o montante total de € 1.649.053,78, contados desde a data da retenção indevida do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito;
  4. Condenar a Requerente e a Requerida no pagamento das custas do processo, na proporção dos respectivos decaimentos.

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €170.551,72 (cento e setenta mil, quinhentos e cinquenta e um euros e setenta e dois cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

 

Custas no montante de € 3.672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euros), € 1.468,80 a cargo da Requerente, € 2.203,20 a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 28 de Outubro de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Clotilde Celorico Palma

 

Sónia Martins Reis