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DECISÃO ARBITRAL
A Árbitra Sofia Quental, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 09 de Janeiro de 2024, decide o seguinte:
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Em 23 de Outubro de 2023, a sociedade A..., Lda., pessoa colectiva n.º..., com sede no edifício ..., ..., ..., ...-... Lisboa, (doravante abreviadamente identificada por “Requerente”), requereu a constituição do Tribunal Arbitral em matéria tributária, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto tributário de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), referente ao exercício de 2018, consubstanciado na liquidação adicional de IRC n.º 2022..., no valor de €5.811,55 (cinco mil oitocentos e onze euros e cinquenta e cinco cêntimos).
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante abreviadamente identificada por “Autoridade Requerida”, “Administração Tributária” ou simplesmente por “AT”).
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular foi aceite no dia 24 de Outubro de 2023, pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, tendo as partes sido notificadas no mesmo dia.
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A Requerente não procedeu à nomeação de Árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º do RJAT, a ora signatária foi designada pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo a nomeação sido aceite no prazo e nos demais termos legalmente previstos.
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As partes foram devidamente notificadas dessa designação no dia 18 de Dezembro de 2023, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
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O Tribunal Arbitral singular ficou, assim, constituído no dia 09 de Janeiro de 2024 para apreciar e decidir o objecto do presente litígio, em conformidade com o estipulado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
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Deste modo importa ter em conta que a Requerente sustentou, em síntese, o seu pedido da seguinte forma:
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A Requerente foi notificada em 24 de Junho de 2022, do Projecto de Relatório de Inspecção Tributária (RIT), do qual resultaram propostas de correcção em sede de IRC, relativamente ao exercício de 2018.
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A inspecção tributária foi levada a cabo pela equipa 11, da Divisão I dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2021..., datada de 09 de Junho de 2022.
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Em resultado da referida acção inspectiva, foi a Requerente notificada do RIT, no qual foram efectuadas correcções em sede de IRC.
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Correcções à matéria tributável no montante de €5.811,55, sendo €5.193,46 referente ao valor das tributações autónomas alegadamente em falta, e €618,19 referentes à liquidação de juros compensatórios.
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A AT procedeu à liquidação adicional de IRC do período de 2018, com o n.º 2022..., no valor de €5.811,55.
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A Requerente procedeu ao pagamento daquele montante em 09 de Dezembro de 2022.
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Em sede de Direito de Audição, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa em 29 de Dezembro de 2022, a que foi atribuído o número de processo ...2022..., solicitando a anulação parcial da liquidação.
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A Requerente exerceu o Direito de Audição Prévia, porém a Reclamação Graciosa foi indeferida por Despacho de 21 de Julho de 2023, tendo sido a Requerente notificada do indeferimento em 25 de Julho de 2023.
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A Requerente considera que a Requerida “não se pronuncia (como deveria) sobre os factos e argumentos novos que foram levados pela Requerente à ponderação da AT na sua Reclamação Graciosa.”
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A Requerente baseia a sua alegação de que as correcções propostas pela AT foram fundamentadas em erros de facto e de direito e carecem de fundamentação adequada.
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A Requerente solicita a anulação da liquidação adicional de IRC no valor de €4.203,73, referente às despesas requalificadas como de representação.
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Além da anulação da liquidação, a Requerente pede a restituição dos valores pagos indevidamente, incluindo os juros compensatórios e o pagamento de juros indemnizatórios.
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Por Despacho de 24 de Janeiro de 2024, do Tribunal Arbitral singular, a Requerida foi devidamente notificada para apresentar resposta ao Pedido de Pronuncia Arbitral apresentado pela Requerente, o que fez no dia 28 de Fevereiro de 2024.
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Na sua Resposta, a Autoridade Requerida invocou, em síntese, o seguinte:
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A Autoridade Requerida invoca que a documentação adicional fornecida pela Requerente não comprova as alegações de contratos de prestações de serviços com os fornecedores mencionados.
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Invoca a Autoridade Requerida que os documentos apresentados não estabelecem uma relação comercial directa entre a Requerente e os fornecedores citados, mas sim com outras empresas do Grupo B... .
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A existência de contratos de prestação de serviços entre a Requerente e outras entidades, como a C... Lda., não foi comprovada, excepto por uma única factura.
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As despesas reivindicadas pela Requerente não foram demonstradas como sendo realizadas no âmbito da actividade normal da empresa, faltando a comprovação de contratos formais com os fornecedores.
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A Autoridade Requerida destaca que a ausência de provas deve ser considerada contra a Requerente, que tem a obrigação legal de comprovar as suas alegações.
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Termos em que considera dever a Autoridade Requerida ser absolvida da instância, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA e nos artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT.
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No dia 03 de Junho de 2024, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com inquirição das testemunhas e declarações de parte, atenta a respectiva utilidade para apuramento da verdade material, na qual foram ouvidas três testemunhas.
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No dia 18 de Junho de 2024, a Requerente juntou documentação, em cumprimento do Despacho Arbitral proferido a 03 de Junho de 2024, em sede de reunião arbitral prevista no nº 21, nº 2 do RJAT.
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No dia 25 de Junho de 2024, a Requerida ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”) aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT exerceu o seu direito ao contraditório relativamente aos documentos 11, 12 e 13 argumentando o seguinte:
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Os documentos fornecidos não comprovam os contratos de prestação de serviços entre a Requerente e os seus fornecedores, como a D..., Lda. e outras empresas mencionadas, uma vez que não há documentação que evidencie as alegadas relações comerciais ou contratos.
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Não foi comprovada a existência de contratos de prestação de serviços entre a Requerente e a C..., Lda., ou outros fornecedores, conforme alegado pela Requerente, sendo a única evidência apresentada uma factura isolada de 2018.
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A Autoridade Requerida reconhece que foram prestados serviços, mas questiona se ocorreram no âmbito de contratos legais com a Requerente, uma vez que a correspondência apresentada menciona o "Grupo B..." sem referir directamente a Requerente.
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A Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações, respectivamente, nos dias 04 e 05 de Julho de 2024, mantendo as posições anteriormente assumidas.
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O Tribunal Arbitral singular é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, do RJAT.
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As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
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Não se verificam nulidades e questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que cumpre decidir.
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Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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A Requerente é uma sociedade de direito comercial português, sujeita ao regime geral de tributação em IRC, que prossegue a actividade de comércio geral, importação e exportação, comissões e representações de firmas nacionais e estrangeiras, e opera essencialmente no mercado africano (cf. p. 7 e 8 do RIT).
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Em 2018 declarou um volume de negócios de €1.612.169,20, resultado líquido de €136.798,95 apurando um prejuízo fiscal de €19.329,02 (cf. RIT junto com o Processo Administrativo).
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A Requerente foi objecto de uma acção de inspecção interna, de âmbito parcial, com incidência no Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), efectuada para análise da situação tributária do sujeito passivo em sede de IRC, relativamente ao exercício de 2018, levada a cabo pela Direcção de Finanças de ..., credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2021..., com início em 29 de Dezembro de 2021.
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No âmbito do procedimento de inspecção, foram propostas as seguintes correcções (cf. p. 5 do RIT):
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A Requerente foi notificada do Projecto do RIT no dia 31 de Maio de 2022, dando o devido prazo para exercer o seu Direito de Audição Prévia, que exerceu, contestando que o acto tributário projectado não deve prosseguir, sob pena de violação de lei e vicio de fundamentação (cfr. RIT junto com o Processo Administrativo).
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Na sequência do procedimento inspectivo, a Autoridade Requerida emitiu a liquidação adicional de IRC n.º 2022..., de 07 de Julho de 0222, no valor de €5.811,55, a título de tributação autónoma sobre despesas de representação que inclui juros compensatórios no valor de €618,09 (cf. “RIT junto com o Processo Administrativo e Demonstração de Liquidação de IRC”).
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As correcções propostas no RIT foram fundamentadas nos seguintes termos: “Estamos perante terceiros não remunerados pela A..., que pertencem ao quadro de outras empresas do grupo, que beneficiaram de viagens e/ou alojamentos pagos pela referida sociedade, em que os gastos suportados assumem a característica de despesas de representação.
Assim, a verba de 25.967,29€, relativa a gastos suportados pela A... com viagens e alojamentos de terceiros, está sujeita a tributação autónoma à taxa de 20%, de acordo com o disposto no nº 7 e nº 14, do artigo 88.º, do Código do IRC, sendo o valor do imposto correspondente a esta tributação de 5.193,46€.
O montante total das Tributações Autónomas do exercício é de 37.466,81€.”
(cfr. RIT junto com o Processo Administrativo).
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O valor liquidado oficiosamente pela AT (€5.811,55) foi pago pela Requerente na totalidade no dia 09 de Dezembro de 2022. (cfr. Documento 3 junto com o PPA).
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Relativamente à liquidação de IRC com o n.º 2022..., a Requerente apresentou Reclamação Graciosa, datada de 29 de Dezembro de 2022, a que foi atribuído o número de processo ...2022... . (cfr. Documento 4 junto com o PPA).
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A Autoridade Tributária indeferiu a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente através de Despacho de 21 de Julho de 2023, notificado à Requerente em 25 de Julho de 2023, com os seguintes fundamentos:
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Em 23 de Outubro de 2023, a Requerente apresentou o PPA.
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As despesas controvertidas ascendem a um total de €25.967,29, que se referem essencialmente a despesas de deslocação e estadas de fornecedores e funcionários de outras sociedades do grupo empresarial a que pertence a Requerente, sendo a discriminação a seguinte:
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Metade da despesa no montante de €1.746,00 (€873,00) com o E..., colaborador do fornecedor da Requerente, F..., Unipessoal Lda..
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Metade da despesa no montante de €1.746,00 (€873,00) com o colaborador G... .
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1 despesa no montante de €698,00 com o fornecedor H... .
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3 despesas no montante de €1.849,89 com o colaborador I... .
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5 despesas no montante de €4.777,91, metade da despesa de €1.342,00 (€671,00) e metade da despesa de €756,48 (€378,24), com a colaboradora J... .
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1 despesa no montante de €1.643,89 e metade da despesa de €3.216,20 (€1.608,10) com o colaborador K... .
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2 despesas no montante de €2.153,28 e metade de uma despesa de €3.216,20 (€1.608,10) com a colaboradora L... .
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1 despesa no montante de €2.835,00, metade da despesa de €1.342,00 (€671,00) e metade da despesa €756,48 (€378,24) com a colaboradora M... .
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2 despesas no valor de €4.701,11 com N... .
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2 despesa no montante de €247,53 com O... .
(cfr. Alegado pela Requerente no artigo 43 do PPA e não impugnação especificada apreciada nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT).
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Sobre o montante de despesas incidiu tributação autónoma, à taxa de 20% no valor de €5.811,55.
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Em 2018, a Requerente, no exercício do seu papel de central de compras do grupo para o mercado angolano, contratou a sociedade F..., Unipessoal Lda. para a colocação de alcatifas no hotel do grupo, P... Luanda (cfr. depoimento das testemunhas A, B e C e documentos 5 e 11 da PI).
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No âmbito do referido contrato, a Requerente pagou metade da despesa com a deslocação do trabalhador do fornecedor, E..., no âmbito da instalação/colocação da alcatifa, no valor de €873,00 (cfr. depoimento das testemunhas A, B e C e documento 11 junto com a PI).
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A Requerente facturou os serviços de instalação de alcatifa no hotel P... Luanda, à sociedade do grupo D..., Lda., que explora o referido hotel em Luanda (cfr. depoimento das testemunhas A, B e C e documento 5 junto com a PI).
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Em 2018, os serviços de gestão e administração, logística, comerciais, financeiros e de recursos humanos da Requerente eram assegurados pela C... Lda., sociedade esta que integrava o mesmo grupo de sociedades da Requerente, e que facturava os referidos serviços como prestações de serviços à Requerente (cfr. depoimentos das testemunhas A, B e C e factura emitida com referência aos serviços prestados em 2018, junta com a PI como documento 8 e que não foi impugnado pela AT).
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Em 2018, a Requerente assumia directamente as despesas de deslocação e estada dos colaboradores da C... Lda., quando incorridas na prossecução da actividade da Requerente (cfr. depoimento das testemunhas A, B e C).
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Em 2018, a J..., o K..., a M..., a L... e o G... eram colaboradores da sociedade C... Lda., e prestavam serviços logísticos e comerciais à Requerente (cfr. depoimento das testemunhas A, B e C, e documento 9 junto com a PI).
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Em 2018, a Requerente incorreu em despesas com os colaboradores da sociedade C... Lda., supra identificados, no montante total de €17.597,76, sendo a discriminação a seguinte:
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€5.827,15, valor correspondente a cinco despesas no montante de €4.777,91, metade da despesa de €1.342,00 (€671,00) e metade da despesa de €756,48 (€378,24), com a colaboradora J... .
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€3.251,99, valor correspondente a uma despesa no montante de €1.643,89 e metade da despesa de €3.216,20 (€1.608,10) com o colaborador K... .
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€3.884,24, valor correspondente a uma despesa no montante de €2.835,00, metade da despesa de €1.342,00 (€671,00) e metade da despesa €756,48 (€378,24) com a colaboradora M... .
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€3.761,38, valor correspondente a duas despesas no montante de €2.153,28 e metade de uma despesa de €3.216,20 (€1.608,10) com a colaboradora L... .
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€873,00, valor correspondente a metade de uma despesa no montante de €1.746,00, com o colaborador G... .
(cfr. alegado pela Requerente no artigo 43 da PI e referido no RIT junto com o Processo Administrativo).
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Sobre o montante de despesas de €17.597,76 incidiu tributação autónoma, à taxa de 20%, no valor de €3.519,55 (cfr. Relatório de Inspecção Tributária junto como documento 1 da PI).
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Factos dados como não provados:
Não se considera provada com relevância para a decisão arbitral:
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Que as despesas incorridas com o H..., funcionário da fornecedora da Requerente Q..., S.A., estejam relacionadas com o normal desenvolvimento do objecto social da Requerente.
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Que as despesas incorridas com I..., colaborador da R..., Lda., estejam relacionadas com o normal desenvolvimento do objecto social da Requerente.
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Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada e produzida nos autos, nos factos admitidos nas declarações prestadas na reunião de 03 de Junho de 2024.
A prova testemunhal produzida nesta reunião consistiu na inquirição das seguintes testemunhas arroladas pela Requerente:
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S..., Director Financeiro do Grupo B...
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T..., Director de Logistica da C... Lda.
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L..., Product Manager
As três testemunhas referidas supra demonstraram ter conhecimento directo dos factos sobre os quais foram inquiridas, e o Tribunal considera que as mesmas prestaram os seus depoimentos com isenção.
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral singular e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais apresentadas pelas Partes, nos documentos juntos aos autos e a prova testemunhal.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pela Requerente, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei [e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil (CC) e havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam, conforme artigo 393.º do CC], é que não domina o princípio da livre apreciação da prova.
IV-A) Delimitação do objecto
Atenta as posições das partes assumidas nos argumentos apresentados, constitui questão central dirimida, a qual cumpre, pois, apreciar e decidir:
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A determinação da legalidade e consequente anulação parcial do acto tributário de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), referente ao exercício de 2018, consubstanciado na liquidação adicional de IRC n.º 2022 ..., de 07.07.2022, no valor de €5.811,55, na parte relativa à tributação autónoma, no valor de €4.203,73.
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Da condenação da AT no reembolso do imposto pago e no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, nos termos legais, e das custas de arbitragem.
Encontrando-se fixada a matéria de facto dada como provada, de seguida importa determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões a decidir.
IV-B) Do mérito da causa
Em síntese, a pretensão da Requerente subsume-se à declaração de ilegalidade parcial das correcções (tributações autónomas) efectuadas pelos serviços de inspecção tributária no âmbito da acção inspectiva externa de âmbito parcial, em sede de IRC e ao exercício de 2018, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2021... .
A liquidação adicional de IRC objecto dos presentes autos resultou de correcções realizadas em sede inspectiva, no âmbito da qual se qualificaram como despesas de representação montantes suportados pela Requerente com deslocações e estadas, no montante total de €25.967,29, e que resultaram num montante de imposto a pagar de €5.811,55.
As referidas despesas, suportadas pela Requerente, diziam respeito a:
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Metade da despesa no montante de €1.746,00 (€873,00) com o E..., colaborador do fornecedor da Requerente, F..., Unipessoal Lda..
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Metade da despesa no montante de €1.746,00 (€873,00) com o colaborador G....
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1 despesa no montante de €698,00 com o fornecedor H... .
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3 despesas no montante de €1.849,89 com o colaborador I... .
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5 despesas no montante de €4.777,91, metade da despesa de €1.342,00 (€671,00) e metade da despesa de €756,48 (€378,24), com a colaboradora J... .
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1 despesa no montante de €1.643,89 e metade da despesa de €3.216,20 (€1.608,10) com o colaborador K... .
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2 despesas no montante de €2.153,28 e metade de uma despesa de €3.216,20 (€1.608,10) com a colaboradora L... .
-
1 despesa no montante de €2.835,00, metade da despesa de €1.342,00 (€671,00) e metade da despesa €756,48 (€378,24) com a colaboradora M... .
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2 despesas no valor de €4.701,11 com N... .
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2 despesa no montante de €247,53 com O... .
A Requerente apenas contestou a consideração do montante de €21.018,65, que resultou numa correcção à tributação autónoma de €4.203,73, conformando-se com a correcção à tributação autónoma das despesas suportadas com N... e com O... .
De acordo com a tese da Requerente, as correcções objecto do presente pedido de pronúncia arbitral resultaram da qualificação como despesas de representação de montantes suportados pela Requerente com deslocação e estada de fornecedores (E... e H...) e funcionários de outras sociedades do grupo empresarial a que pertence a Requerente (G... , I..., J..., K..., L... e M...), tendo as despesas sido incorridas ao serviço da Requerente no quadro da execução de um contrato de prestação de serviços.
Para o efeito, a Requerente alega violação de lei por erro de facto e de direito e, bem assim, de vício da fundamentação legalmente exigida, por insuficiência, mas também por erro, omissão, obscuridade e contradição, quer do acto de liquidação, quer do acto de indeferimento da Reclamação Graciosa tempestivamente apresentada.
A Requerida, sinteticamente, considera que as despesas incorridas se reportam a viagens e alojamentos de terceiros/fornecedores, na medida em que os beneficiários de tais despesas são pessoas que não detêm qualquer vínculo laboral com a Requerente, enquadrando-se, por esse motivo, no n.º 7 do artigo 88.º do Código do IRC.
Perante o exposto, cabe ao Tribunal Arbitral decidir, com base na matéria de facto e de direito.
IV-C) Ilegalidade do acto tributário por falta de fundamentação
No que concerne ao vicio da falta de fundamentação, alega a Requerente que os actos tributários controvertidos (de primeiro e de segundo grau) padecem de vicio de falta de fundamentação, exigida nos artigos 268.º, n.º 3 da CRP e 77.º da Lei Geral Tributária, uma vez que a fundamentação dos Serviços de Inspecção “(…) não permite compreender qual o vício ou erro que é concretamente imputável à metodologia adotada pelo sujeito passivo no tratamento das variações cambiais” e, relativamente à consideração das despesas de deslocação e estada, “(…) a AT ignora a matéria de facto explicada em sede de Reclamação, não a analisa, nem sobre ela se pronuncia”, não se pronunciando igualmente “(…) sobre a matéria de direito, nem apresenta qualquer fundamentação de direito para a desconsideração das despesas de representação”. Por esse motivo, entende a Requerente que a fundamentação apresentada com o acto tributário em discussão é omissa ou, ao menos, manifestamente insuficiente.
Ora, desde logo refira-se que inexiste no Relatório de Inspecção Tributária qualquer correcção efectuada pelos Serviços de Inspecção Tributária relativa a variações cambiais, não sendo tal matéria controvertida nos presentes autos. Por esse motivo, apenas se equacionará o alegado vicio por respeito às despesas de deslocação e estada.
Quanto a estas, resulta expressamente do RIT que a decisão proferida pelos serviços assentou no facto das despesas em crise serem todas relativas a terceiros à Requerente (cfr. pp. 12 a 15 do Relatório de Inspecção Tributária), cabendo a esta, para efeitos do artigo 74.º da LGT, oferecer prova de que, não obstante tal circunstância, as referidas despesas foram incorridas no âmbito da prossecução da actividade normal da Requerente, não sendo, por esse motivo, caracterizadas como “despesas de representação”, o que não sucedeu no âmbito do procedimento de inspecção.
Pelo contrário, somente em sede de Reclamação Graciosa veio a Requerente aportar novos meios de prova. Face à prova carreada pela Requerente, entenderam os serviços em sede de Reclamação Graciosa que “(…) não foram trazidos aos autos argumentos, nem oferecidos documentos, que permitam determinar diferente apreciação do pedido, propondo-se que seja convertida em definitiva a proposta efetuada no referido projeto, no sentido do INDEFERIMENTO, nos termos e com os fundamentos aí vertidos.”
Ora, a este respeito, atente-se ao referido pelo CAAD no Processo Arbitral n.º 575/2022-T, com decisão de 08.08.2023, o qual teve por objecto os mesmos factos e direito: «A atuação da AT no decorrer do procedimento da reclamação graciosa (…) é relevante para aferir da legalidade da decisão de indeferimento que concluiu o mesmo. Os vícios procedimentais verificados apenas nesta fase (como sejam a violação do dever de audição prévia, de fundamentação, ou de descoberta da verdade material) não resultam na anulação da liquidação de imposto, mas apenas na anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contestada e na emissão de nova decisão por parte da AT que supra os ditos vícios procedimentais (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 30 de outubro de 2019, processo n.º 02453/05.1BEPRT 0402/18; de 12 de outubro de 2016, processo n.º 0427/16; de 16 de novembro de 2011, processo n.º 0723/11). No sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 4 de junho de 2020, processo n.º 74/07.3BESNT, pode ler-se o seguinte:
(…) V. Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário.”»
Termos em que se segue a análise e apreciação dos vícios invocados pela Requerente relativamente à liquidação adicional de IRC controvertida. Ora vejamos.
IV-D) Ilegalidade do acto tributário por erro de facto e de direito
As Partes contendem sobre se os custos incorridos pela Requerente constituem despesas incorridas no exercício da actividade empresarial directa da Requerente, não sujeitas a tributação autónoma - como sustenta a Requerente; ou se estão em causa “despesas de representação” para efeitos dos n.ºs 7 e 14 do artigo 88.º do Código do IRC, caso em que estão sujeitas a tributação autónoma à taxa de 20% - como sustenta a Requerida.
Ora, “despesas de representação”, na acepção dos n.º 7 do artigo 88.º do Código do IRC, constituem, entre outras, “despesas suportadas com recepções, refeições, viagens, passeios e espectáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades”.
Consistindo uma excepção ao princípio da tributação pelo rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), a tributação autónoma, no que aqui releva, incide sobre despesas destinadas a representar o sujeito passivo junto de terceiros, e não a assegurar o normal desenvolvimento do seu objecto social – despesas estas que são dedutíveis nos termos do artigo 23.º do Código do IRC (cfr. RUI MARQUES, “Código do IRC anotado e comentado”, Almedina, 2019).
De onde se retira que as despesas de representação são aquelas que, ainda que “motivados por razões empresariais”, aproveitam “a terceiros externos à sociedade ou ao grupo de sociedades” (cfr. Decisão Arbitral proferida no processo n.º 161/2018-T, de 3 de Janeiro de 2019).
O objectivo da sujeição destas despesas a tributação autónoma é tentar dissuadir as empresas de utilizar, para fins não empresariais, bens e serviços que geram custos fiscalmente dedutíveis, e de pagar remunerações a terceiros com evasão aos impostos que seriam devidos por estes.
Assim, tal como decidido pelo Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 12.01.2017, proferido no âmbito do Processo n.º 9894/16, “Se do exame da factualidade provada se conclui que estamos perante despesas que se destinam, não a representar a sociedade impugnante onde esta não se encontra presente (portanto, fora da sua actividade principal), mas a assegurar o normal desenvolvimento do seu objecto social, dentro do circuito económico onde este naturalmente se manifesta, não se podem qualificar tais custos como despesas de representação, mas antes como custos inerentes ao normal desenvolvimento da actividade principal da sociedade impugnante/recorrida (…) ” (no mesmo sentido e mais recentemente, vide, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27 de Outubro de 2022, proferido no processo n.º 979/12.0BESNT).
No caso em analise, resultou demonstrado que em 2018 os serviços de gestão e administração, logística, comerciais, financeiros e de recursos humanos da Requerente eram assegurados pela C... Lda., sociedade esta que integrava o mesmo grupo de sociedades da Requerente, e que facturava os referidos serviços como prestações de serviços à Requerente.
Resultou igualmente provado que ao abrigo da relação de grupo existente, em 2018, a Requerente assumia directamente as despesas de deslocação e estada dos colaboradores da C... Lda., quando incorridas na prossecução da actividade da Requerente, sendo que, em 2018, a J..., o K..., a M..., a L... e o G... eram colaboradores da sociedade C... Lda., e prestavam serviços logísticos e comerciais à Requerente.
Termos em que, as despesas incorridas em 2018 pela Requerente com as deslocações e estadas dos colaboradores da sociedade C... Lda., supra identificados, no montante total de €17.597,76, não devem ser qualificados como “despesas de representação” para efeitos de aplicação do artigo 88.º, n.º 7 e n.º 14 do Código do IRC, porquanto não revestem as características aí inerentes, nomeadamente, porquanto directamente relacionadas com a prossecução da actividade normal e objecto social da Requerente, não se destinando a assegurar a representação da Requerente junto de terceiros.
Já relativamente à parte da despesa de deslocação e estada suportada pela Requerente com o trabalhador do seu fornecedor F..., Unipessoal Lda., E..., resultou evidenciado nos autos que a referida despesa se encontrava abrangida por um contrato de prestação de serviços entre a Requerente e o seu fornecedor com vista à colocação de alcatifas no hotel do grupo, P... Luanda, tendo estes serviços sido posteriormente facturados pela Requerente à D..., Lda., entidade que explora o hotel, termos em que a despesa suportada, no valor de €873,00, não assume a natureza de “despesa de representação”, porquanto directamente relacionada à prossecução da actividade da Requerente, procedendo o presente pedido de pronúncia arbitral, nesta parte.
No que concerne às despesas suportadas com o trabalhador do seu fornecedor Q..., S.A., H..., bem como com o colaborador da R... Lda., I..., não resultou provado nos autos que as mesmas se relacionassem com despesas directamente relacionadas com a prossecução da actividade normal da Requerente.
Sendo os referidos colaboradores terceiros à Requerente, preenchem-se os requisitos do artigo 88.º, n.º 7 e n.º 14 do Código do IRC, considerando-se o pedido de pronúncia arbitral improcedente, nesta parte.
Atento o exposto, o Tribunal Arbitral considera parcialmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, na parte relativa à tributação autónoma sobre as despesas de representação, no montante de €18.470,76 e que resultou num montante de imposto a pagar de €3.694,15, acrescido dos correspondentes juros compensatórios.
Dispõe o artigo 35.º da LGT que os juros compensatórios são devidos quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido, e integram-se na própria dívida do imposto. Estes juros são aplicáveis por ocasião da omissão de declarações ou de apresentação de documentos, ou da falta de autoliquidação ou insuficiente liquidação, bem como da falta de participação em qualquer ocorrência ou situação que teve como consequência o atraso da liquidação.
A liquidação de IRC n.º 2022 ... no valor de €5.811,55, inclui tributação autónoma sobre despesas de representação no montante de €5.193,46 e juros compensatórios no montante de €618.19.
Resulta da presente Decisão Arbitral a anulação da tributação autónoma no montante de €3.694,15 e, consequentemente, dos juros compensatórios liquidados sobre este montante.
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DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT "é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário".
Nos termos do artigo 43.º. n.º 1, da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
O direito do sujeito passivo a juros indemnizatórios decorre do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º, n.º 1, da LGT, implicando o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
Julgando-se parcialmente procedente o pedido, procede o pedido de juros indemnizatórios, nessa parte.
Em face do exposto, o Tribunal Arbitral decide:
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Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Condenar a Autoridade Requerida a restituir à Requerente o montante de imposto e de juros compensatórios indevidamente pago;
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Condenar a Autoridade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios contados desde o pagamento do imposto pela Requerente, até ao seu integral pagamento, à taxa legal em vigor;
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Condenar a Autoridade Requerida e a Requerente no pagamento das custas do presente processo, em função do respectivo decaimento.
Fixa-se o valor da acção em €4.821,92 (quatro mil oitocentos e vinte um euros e noventa e dois cêntimos), correspondente ao valor da liquidação impugnada pela Requerente, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, cujo pagamento fica a cargo da Requerente (12%) e da Requerida (88%), na proporção do respectivo decaimento.
Notifique-se.
Lisboa, 08 de Novembro de 2024
A Árbitra
Sofia Quental
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