Sumário:
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A invocação da indispensabilidade do custo à luz do disposto no artigo 23.º do Código do IRC depreende a comprovação prévia da efectividade desse custo.
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Para apurar a referida indispensabilidade, é necessária a análise casuística da empresa e da despesa em causa.
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Para fins de aferição da conformidade da penalidade contratual com as regras de preços de transferência, o cálculo terá de ser ajustado ao período de efectivo incumprimento.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam os árbitros que integram este Tribunal Arbitral Coletivo, José Poças Falcão (presidente), Vasco António Branco Guimarães e Miguel Patrício (vogais):
I. Relatório
1. A..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva..., e com sede social na Rua..., n.º..., ..., ...-... Lisboa (doravante, “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º do RJAT, deduzir, em 5/9/2023, pedido de pronúncia arbitral que tem como objecto imediato a decisão final de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022..., e como objecto mediato a autoliquidação de IRC relativa ao período de tributação de 2019 (com o n.º 2020..., de 18/8/2020) – a qual foi emitida em resultado da apresentação de DM22 de Substituição em 31/7/2020, na qual a Requerente declarou um prejuízo fiscal no valor de € 8.278,23.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. Nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 6.º, e nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa procedeu à designação dos árbitros que compõem o presente colectivo.
2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14/11/2023.
3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente, alega, em síntese, o seguinte nas suas alegações finais:
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«No plano fiscal, estando a Requerente sujeita ao regime geral de tributação em IRC, o seu lucro tributável é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período (que pode ser positivo ou negativo) e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do Código do IRC – cfr. resulta do n.º 2 do artigo 3.º e do n.º 1 do artigo 17.º, ambos do Código do IRC.
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Sendo indiscutível o erro incorrido pela Requerente ao não relevar para efeitos fiscais este gasto no período em questão, à corrente data, já só poderia operar pelo reconhecimento do direito à sua recuperação por via de reclamação graciosa, nos termos do n.º 1 do artigo 131.º do CPPT e do n.º 2 do artigo 137.º do Código do IRC, que foi o procedimento adotado pela Requerente.
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Em suma, a Requerente, atenta a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa, vem pelo presente meio requerer que a autoliquidação vertida na Declaração Modelo 22 de IRC, seja corrigida, por forma a considerar a dedutibilidade deste gasto, no valor de € 525.000 e, consequentemente, um aumento no montante de prejuízos fiscais a reportar para os períodos de tributação futuros i.e. € 533.278,23 ao invés de € 8.278,23, nos termos e com os fundamentos que passam a expor:
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[No que se refere à A) ‘relevância fiscal do gasto para a atividade da Requerente em cumprimento da regra geral de dedutibilidade nos termos do artigo 23.º do CIRC:’] Num primeiro momento, e para efeitos de determinação da dedutibilidade fiscal dos gastos e perdas incorridos ou suportados pela Requerente, os mesmos terão de passar pelo crivo geral de dedutibilidade previsto no artigo 23.º Código do IRC.
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Estabelece, assim, o n.º 1 do art.º 23.º do Código do IRC, na redação em vigor à data dos factos, “(…) são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC” [O excerto em sublinhado e negrito foi assim colocado pela Requerente.]
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A contrario, são de desconsiderar como custos fiscais dedutíveis para efeitos da determinação da matéria coletável, todos aqueles que não preencham este pressuposto, por extravasarem a atividade corporativa e pretendam diminuir o rendimento real a tributar.
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O n.º 2 do artigo 23.º deste Código, enumera, a título exemplificativo, quais os gastos fiscalmente dedutíveis (sublinhado da Requerente).
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O artigo 23.º do Código do IRC não confere à AT o poder discricionário de decisão quanto aos gastos suportados pelos sujeitos passivos, pelo que o julgamento subjetivo apresentado pela AT não deve ser acolhido como fundamento válido para as correções realizadas.
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A dedutibilidade fiscal dos gastos deve ser aferida, objetivamente, por referência ao interesse da entidade e à suscetibilidade do gasto para, direta ou indiretamente, gerar rendimentos tributáveis.
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Da diversa doutrina que versa sobre a questão da indispensabilidade dos gastos, acompanhamos Tomás Tavares, autor que perfilha a tese segundo a qual a correta interpretação do conceito de indispensabilidade é a que equipara gastos indispensáveis aos custos incorridos no interesse da empresa, na prossecução das atividades resultantes do seu objeto social – cfr. “Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas coletivas: algumas reflexões ao nível dos custos”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 396, 1999. [...].
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Por outro lado, no que diz respeito a jurisprudência sobre esta matéria, veja-se o vertido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), de 6 de outubro de 2009, proferido no âmbito do Processo n.º 03022/09, a este propósito: “Mas como deve aferir-se o conceito de indispensabilidade? Aceitando-se que estamos perante um conceito vago necessitado de preenchimento e aceitando-se que não estamos, quanto a tal preenchimento, perante qualquer poder discricionário (em termos de discricionariedade técnica) por parte da Administração Tributária, importa, então, atentar nos termos em que a lei enquadra tal conceito. […] Fazendo apelo ao estudo de TOMÁS TAVARES (…) diremos, como aponta o autor, parecer evidente que da noção legal de custo fornecida pelo artigo 23.º do CIRC não resulta que a Administração Tributária possa por em causa o princípio da liberdade de gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram, diretamente, proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa.” [...].
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No mesmo sentido, conforme decisão do Tribunal Arbitral, no âmbito do Processo nº 329/2019-T (página 13) “À face desta anterior redacção do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, foi-se estabilizando o entendimento doutrinal e jurisprudencial no sentido de para ser permitida a dedutibilidade de gastos (…) não era necessária uma relação de causalidade entre os gastos e a obtenção de rendimentos, bastando que aqueles fossem suportados no interesse da empresa, como foi reconhecido nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21-9-2016, processo n.º 0571/13 e de 15-11-2017, processo n.º 0372/16: I – No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar quanto à indispensabilidade como requisito para que um custo seja dedutível na determinação da matéria tributável para efeitos de IRC (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção anterior a 2009), está completamente arredada a visão finalística, segundo a qual se exigiria uma relação de causa efeito, do tipo conditio sine qua non, entre custos e proveitos. II – No mesmo entendimento, um custo será aceite fiscalmente desde que, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros e a AT apenas pode desconsiderar como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios.» [Os excertos em negrito foram assim colocados pela Requerente.]
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Com efeito, é clara a indispensabilidade desta penalização para a prossecução da atividade da Requerente, nos termos do artigo 23.º citado e da jurisprudência reproduzida, não só porque o negócio se concretizou, mas também por ser gerador de benefícios económicos futuros para a atividade desenvolvida pela Requerente.
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Em suma, a AT não pode questionar ou colocar em causa o mérito (ou demérito) dos atos de gestão das pessoas coletivas sob pena de haver uma insuportável e intolerável ingerência na gestão das empresas e por tal ser manifestamente contrário aos mais elementares princípios de direito societário (com consagração expressa, no plano societário, através da business judgement rule ínsita no n.º 2 do artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais).
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Deste modo, é por demais evidente que a AT não pode, com base no artigo 23.º do Código do IRC, pôr em causa o princípio da liberdade da gestão, sindicando a oportunidade e adequação das decisões económicas da gestão de qualquer entidade e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles gastos que se revelem convenientes para a empresa. O artigo 23.º do Código do IRC não diz respeito à necessidade nem à conveniência dos gastos, exigindo apenas que o gasto seja realizado no interesse da empresa, em ordem, direta ou indiretamente, à obtenção de lucros.
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[No que se refere ao B) ‘cumprimento do princípio da periodização económica dos gastos:’]
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De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC, “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”.
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Ora, no caso em apreço, dúvidas não restam de que o gasto com a penalidade contratual devida pela Requerente à B... imputável ao período de tributação de 2019, atento o regime de periodização económica acima referido.
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Assim, ainda que o montante de tais gastos esteja refletido enquanto variações patrimoniais do ano de 2020, por reexpressão dos saldos de 2019, este gasto deverá ser considerado como gasto dedutível, para efeitos de apuramento do prejuízo fiscal, do período de tributação de 2019.
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A este respeito, atente-se ao conteúdo do Ofício-Circulado 14, de 23 de novembro de 1993 - Direcção de Serviços do IRC, nos termos do qual se estabelece que “(…) competindo aos Serviços de Fiscalização no âmbito de análise interna ou externa o controlo da matéria colectável, determinada com base em declaração do contribuinte, devem os mesmos, sem prejuízo da penalidade ao caso aplicável, fazer as correcções adequadas ao resultado líquido do exercício a que os custos digam respeito, quando, nos termos do art.º 18.º do CIRC, não sejam consideradas componentes negativas ou positivas do lucro tributável do exercício da sua contabilização”, que deverá ter plena aplicação ao caso em apreço.
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[No que se refere ao C) ‘cumprimento das regras de preços de transferência entre entidades relacionadas:’]
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Conforme resulta da factualidade acima descrita, devemos igualmente analisar a presente situação à luz da regulamentação portuguesa em matéria de preços de transferência, de forma a assegurar a conformidade com o princípio de plena concorrência, conforme resulta do artigo 63.º do Código do IRC.
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Com efeito, a Requerente juntou à reclamação graciosa e aos presentes autos, um estudo que assegura que o valor, termos e condições da compensação não eram distintos dos que seriam normalmente contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.
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Para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, foi utilizado o método tradicional do preço comparável de mercado (“MPCM”), que é geralmente a metodologia mais adequada e fiável para as transações de natureza idêntica e que tenham um elevado grau de equiparabilidade.
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No que diz respeito à operação em questão e dada a sua especificidade (sanção/indemnização pelo atraso na concretização da transmissão de bem imobiliário), a análise consistiu na identificação da rentabilidade que a Vendedora poderia ter obtido caso tivesse recebido os fundos relativos ao pagamento do valor de venda do imóvel e tivesse aplicado os referidos fundos, durante o período de tempo do atraso no qual a B... se viu privada dos referidos fundos, em veículos de investimento imobiliário alternativos. Essa estimativa da rentabilidade potencial que a Vendedora poderia ter obtido assentou na identificação de cenários alternativos de investimento em ativos imobiliários.
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Considerou-se que a alternativa mais viável e realisticamente disponível, atendendo ao intervalo temporal, para efeitos comparativos, consiste no investimento em Organismos de Investimento Imobiliário (“OII”), onde se incluem especificamente os Fundos de Investimento Imobiliário e cujas informações sobre rendimentos no período a que a operação diz respeito (novembro de 2019) se encontravam divulgadas pela Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios (“APFIPP”).
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Assim, na análise económica de preços de transferência desenvolvida por aplicação do MPCM, foram extraídos do portal da APFIPP as rendibilidades obtidas pelos OII durante o período de 2019 e calculado o intervalo de remuneração de plena concorrência que poderia ter sido auferido pela Vendedora, caso a Requerente tivesse procedido à alienação do imóvel nos prazos inicialmente acordados.
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Considerando os fatores e circunstâncias acima descritos e tendo por base uma amostra de 48 OII, a análise económica dos preços de transferência concluiu pela conformidade do valor da compensação estabelecido entre a Requerente e a B... (e que corresponde a 7% do preço de venda) com o princípio de plena concorrência, dado que essa remuneração se enquadra no intervalo de plena concorrência computado.
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Face ao exposto, é manifesto que a Requerente e a B... adotaram procedimentos de razoabilidade económica na determinação dos termos e condições praticados no contexto da sanção pecuniária acordada, os quais refletem práticas de mercado e, como tal, cumprem o princípio de plena concorrência. Assim, a penalidade contratual aplicada não deve ser considerada excessiva à luz das regras de preços de transferência, conforme detalhado supra. Conforme mencionado supra, a penalidade contratual acordada cumpre a regulamentação portuguesa em matéria de preços de transferência.»
3.1. A Requerente termina as suas alegações finais pedindo que se dê «como provada a presente ação arbitral nos termos do Pedido formulado nos presentes autos», i.e.: «a) Anular a decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2022..., proferida pela Direção de Finanças de Lisboa, e consequentemente anular os atos tributários em sede de IRC, referentes ao ano de 2019, que constituem o objeto da reclamação graciosa indeferida; b) Ordenar a correção do ato tributário de autoliquidação vertido na Declaração Modelo 22 de IRC de substituição, do período de tributação de 2019, aceitando, por consequência, a dedutibilidade do montante pago pela Requerente nesse período a título de penalização no valor de € 525.000,00 (quinhentos e vinte e cinco mil euros); c) Ordenar a correção do ato de (auto)liquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2019, vertido na Demonstração de Liquidação n.º 2020..., ou seja, o reconhecimento de um prejuízo fiscal de € 533.278,23 ao invés de € 8.278,23, com todas as demais consequências legais.»
4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “Requerida” ou “AT”) invocou, nas suas alegações finais, o seguinte:
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«Refere o n.º 1 do art.º 17.º do CIRC, que o apuramento do lucro tributável é obtido a partir do resultado contabilístico, porém, para o efeito, a contabilidade deve “estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste código” (alínea a) do n.º 3 do art.º 17.º do CIRC).
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Também nesse sentido, temos o preâmbulo do Código do IRC, republicado pela Lei n.º 2/2014 de 16 de janeiro, que refere: “As relações entre contabilidade e fiscalidade são, no entanto, um domínio que tem sido marcado por uma certa controvérsia e onde, por isso, são possíveis diferentes modos de conceber essas relações. Afastadas uma separação absoluta ou uma identificação total, continua a privilegiar-se uma solução marcada pelo realismo e que, no essencial, consiste em fazer reportar, na origem, o lucro tributável ao resultado contabilístico ao qual se introduzem, extra contabilisticamente, as correções – positivas ou negativas - enunciadas na lei para tomar em consideração os objetivos e condicionalismos próprios da fiscalidade”. [O excerto em negrito e sublinhado foi assim colocado pela Requerida.]
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Acresce notar que, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º do CIRC, os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, por força do princípio da especialização dos exercícios.
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Nos termos do art.º 23.º do CIRC, “Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.”, seguindo-se, uma enumeração meramente exemplificativa dos gastos com relevância fiscal para efeitos de apuramento do rendimento tributável em sede de IRC, devendo ainda estar devidamente comprovados documentalmente nos termos expressamente exigidos pelos números 3, 4 e 6 do art.º 23.º do CIRC.
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Em suma, e tal como já ocorria com a redação anterior deste artigo, a relevância de um gasto para efeitos fiscais depende da prova da sua necessidade, adequação, normalidade ou da produção do resultado, sendo que a falta dessas características poderá gerar a dúvida sobre se a causa é ou não empresarial, se é um gasto efetivamente incorrido no interesse da própria empresa que o suporta ou se respeita a um qualquer outro interesse, à satisfação de interesses alheios, designadamente dos seus sócios, ou seja, se estamos perante um gasto aceite fiscalmente ou não.
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No caso em apreço e em resumo, vem a Requerente alegar a existência de um erro na autoliquidação de IRC referente ao período de tributação de 2019 pois considera que o montante de € 525.000,00 alegadamente devido pela Requerente à entidade relacionada, sociedade B..., S.A. – atualmente designada por C..., Lda., a título de penalização por incumprimento contratual do contrato promessa de compra e venda de um imóvel, valor considerado contabilisticamente em 2020 enquanto variação patrimonial negativa mas sem relevância fiscal, configurará um gasto fiscal imputável ao período de tributação de 2019, ano em que alega ter pago a referida penalização, para efeitos de apuramento do resultado tributável desse mesmo período de tributação, nos termos do referido art.º 23.º do CIRC, do n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC e Ofício-Circulado 14, de 23.11.1993 - Direção de Serviços do IRC.
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Vejamos. Contabilisticamente, os erros contabilísticos considerados materialmente relevantes, que afetam os resultados de períodos anteriores e que devem ser objeto de correção, são tratados de acordo com o previsto na Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) n.º 4 – “Políticas contabilísticas, alterações nas estimativas contabilísticas e erros”.
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Referindo-se, no § 37 dessa NCRF 4, que: “Sem prejuízo do disposto no § 38, uma entidade deve corrigir os erros materiais de períodos anteriores retrospetivamente ao primeiro conjunto de demonstrações financeiras aprovadas após a sua descoberta: a) reexpressando as quantias comparativas para o(s) período(s) anterior(es) apresentado(s) em que tenha ocorrido o erro; (…).”
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A requerente, no Anexo às “Demonstrações Financeiras – Políticas contabilísticas, alterações nas estimativas contabilísticas e erros”, referente a 2020, devia indicar a natureza do erro que diz ter ocorrido no período anterior, as quantias das correspondentes correções e a reexpressão retrospetiva, contudo, tal não foi demonstrado, como se referiu em sede da já citada apreciação à reclamação graciosa. Assim sendo, a mera movimentação contabilística efetuada no exercício de 2020, tendo-se debitado a conta 561 – Resultados transitados por contrapartida da conta de Outros Devedores e Credores, no montante de 525.000,00 €, não comprova, por si só, a existência de um erro que tenha de ser corrigido.
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Quanto à alegação de que esta penalização contratual no montante de 525.000,00 € se mostrava indispensável para obtenção dos proveitos da requerente no exercício de 2019, devemos referir que não se concorda com esta apreciação dos factos.
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Com efeito, diz a Requerente, no Pedido Arbitral (vide art. 17.º), que desde o ano de 2018 que tentava angariar o referido imóvel, contudo, e tal como referido anteriormente, o que se verifica é que esta sociedade promitente compradora (a Requerente) apenas foi criada em 2019-10-09 (conforme certidão permanente constante dos autos de reclamação graciosa), tendo iniciado a atividade somente em 01.11.2019.
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Ora, de acordo com o mencionado no contrato promessa de compra e venda, celebrado em 11.12.2019, a Requerente comprometeu-se a adquirir o imóvel até 20.12.2019, data em que seria outorgada a escritura de compra e venda do imóvel (cfr. cláusula quinta, n.º 1, do contrato promessa de compra e venda). No entanto, a referida aquisição veio a realizar-se em 31.01.2020, com a celebração da escritura definitiva de compra e venda do imóvel.
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Acresce que, não obstante o antes disposto, a requerente, logo no ano de 2019, já registava na contabilidade como seu, a propriedade do imóvel (vide conta 4521 – Propriedades de Investimento).
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Como se viu, à data da celebração do contrato de promessa e da “Side Letter”, 11.12.2019, verifica-se que os órgãos sociais, à data dos factos (2019-12-11 e 2020-01-31), nomeadamente, o conselho de administração (D..., E... e F...) são elementos comuns às duas sociedades intervenientes no negócio, conforme resulta da consulta às Certidões Permanentes de ambas as sociedades.
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O estudo de preços de transferência junto pela Requerente que, em seu entender, comprova que o montante de € 525.000,00 não é significativamente distinto do valor, dos termos ou das condições que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis (vide arts. 39.º a 44.º do P.P.A) contempla critérios divergentes das condições acordadas no contrato de promessa de compra e venda celebrado entre as partes.
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Com efeito, na cláusula 5.ª, n.º 1, do contrato promessa de compra e venda celebrado em 11 de dezembro de 2019 entre a Requerente e a sociedade “ B..., SA”, é acordado que “A escritura pública de compra e venda do prédio deverá ser outorgada até 20 de dezembro de 2019”, ou seja, 9 dias depois da celebração do contrato promessa de compra e venda, sendo que o estudo em questão refere logo no seu início, em Background, que “The Companies had agreed that the purchase and sale public deed of the property should have been granted by January, 31 st, 2020.”.
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Note-se, ainda, que vem a Requerente defender a conformidade do valor da alegada compensação estabelecido entre a Requerente e a B... pelo atraso na celebração da escritura pública de compra e venda, escritura esta que veio a realizar-se no dia 31 de janeiro de 2020 e não até 20 de dezembro de 2019, e que corresponde a 7% do preço de venda (7% de € 7.500.000,00), com o princípio de plena concorrência, dado que, insiste a Requerente, essa remuneração se enquadra no intervalo de plena concorrência computado no referido estudo.
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Ora, desde logo e sem mais exames aprofundados ao referido estudo, não podemos acordar com o defendido pela Requerente pois constata-se que o intervalo de remuneração de plena concorrência apurado no referido estudo, quando refere “Using the external CUPM, i.e., the annualized return from real estate investment funds obtained through the information extracted from APFIPP regarding the selected funds (a total of 48 funds)” tem por referência a rentabilidade obtida correspondente a um ano, e não, como ocorre nos presente autos, um alegado atraso na realização da escritura correspondente a apenas 42 dias (entre 21-12-2019 e 31-01-2020).
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Note-se que nem sequer este retardamento corresponde ao atraso no pagamento do imóvel transacionado pois, conforme resulta da escritura de compra e venda, o pagamento do referido imóvel foi efetuado, em datas anteriores à da escritura e em duas tranches: € 4.500.000,00 em 14-01-2020 e € 3.000.000,00 em 27-01-2020.
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Factos que lançam sérias dúvidas sobre a razoabilidade, necessidade, adequação, normalidade desta alegada penalização acordada entre partes relacionadas, para efeitos de eventual dedutibilidade fiscal, dúvidas essas que a requerente não logrou explicar.
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Assim, e a exemplo do já referido na apreciação à petição de reclamação graciosa interposta pela requerente, estamos perante um “estudo” ou “parecer” sobre a aquisição de um prédio urbano que se funda em pressupostos não aplicáveis ao caso em apreço. Pelo que se considera que o mesmo não tem qualquer utilidade para a apreciação em apreço.
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[Em conclusão:] De acordo com o n.º 1 do artigo 74.º da LGT, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. E ainda nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC, “Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.”
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Ora, na situação subjacente ao presente Pedido Arbitral, a requerente continua a não remeter documentos justificativos que comprovem, sequer, que efetivamente incorreu naquela despesa no montante de € 525.000,00, sendo que, contrariamente ao argumentado, os elementos contabilísticos juntos pela Requerente aos autos evidenciam exatamente o oposto, mantendo-se em 31-12-2020 uma dívida a Credores Diversos (não identificados) exatamente naquele montante.
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Face ao exposto, conclui-se pela inexistência de qualquer erro na autoliquidação de IRC de 2019 ora mediatamente controvertida, pois, além de não existir qualquer evidência de a Requerente ter efetivamente suportado o encargo da penalidade em 2019, também não resulta que esse encargo tenha sido suportado no interesse societário estrito da sociedade ora Requerente e não de interesses terceiros, tendo por objetivo obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC como exige o normativo fiscal (n.º 1 do art.º 23.º do CIRC).
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Também se verificou que a quantificação da eventual penalização devida mostra-se inexplicavelmente desproporcionada face aos elementos carreados aos autos pela própria Requerente, mormente o estudo denominado “C..., Lda. – Transfer Pricing Economic Analysis Report / Indemnity Fee”), o que configura também clara violação da regulamentação existente sobre preços de transferência.
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Acresce notar que, a contrário do que o sujeito passivo quer fazer crer, a participação da AT no presente ato não consubstancia uma situação de ingerência nos atos de gestão da Requerente mas antes uma apreciação se o “gasto” em questão obedece às normas legais (Código do IRC), para ser aceite fiscalmente.
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Em face do exposto, fica demonstrada a legalidade das correções, pelo que devem os atos impugnados manter-se na ordem jurídica.»
4.1. A Requerida conclui as suas alegações finais pedindo que o pedido de pronúncia arbitral seja «julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica o acto tributário de liquidação impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.»
5. Por despacho de 23/3/2024, o Tribunal arbitral decidiu dar sem efeito a data designada no despacho de 26/2/2024 e reagendar para 8/5/2024 a reunião com as partes nos termos e para os fins previstos no artigo 18.º do RJAT e a inquirição da testemunha e a prestação de depoimento de parte. Por despacho de 30/4/2024, foi decidida a prorrogação do prazo para a decisão por mais dois meses a partir do seu termo final, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 21.º do RJAT.
6. Na sequência de despacho de 31/5/2024, o Tribunal decidiu o reagendamento da reunião do artigo 18.º do RJAT para 28/6/2024. Como se pode observar pela respectiva acta, a referida reunião contemplou o depoimento do Senhor H..., administrador da Requerente desde 2/7/2020, tendo o Tribunal designado o dia 18/9/2024 para a prestação de depoimento pelo Senhor G... .
7. Por despacho de 25/6/2024, o Tribunal decidiu que, considerando os atrasos na tramitação de processo causados por sucessivos pedidos de adiamento (que inviabilizaram a reunião que estava inicialmente agendada para 8/5/2024 e, depois, para 4/6/2024), se justificava prorrogar o prazo do art. 21.º do RJAT por dois meses a partir do seu termo final, no uso da faculdade prevista no n.º 2 do referido artigo.
8. Por despacho arbitral de 9/9/2024, admite-se que, devido a “diversas vicissitudes e atrasos processuais melhor espelhados nos autos, decorrentes, designadamente, da dificuldade na fixação de data para inquirir testemunhas considerando que uma delas é residente no estrangeiro e que terá de ser ouvida presencialmente e considerando também a oposição da AT à prestação de depoimento por meios de comunicação à distância”, o Tribunal se viu “«obrigado» a sucessivas transferências de datas para a conclusão dessa diligência de prova de modo a só ter sido possível fixar o [...] dia 18-9-2024 para a conclusão da produção de prova testemunhal”. Assim, e considerando que “o Tribunal foi constituído em 14-11-2023 e [que,] pese embora a prorrogação do prazo decretada em 25-6-2024, revela-se impossível cumprir o prazo para a conclusão do processo, previsto no artigo 21.º do RJAT, decide-se, por ser inevitável, prorrogar por dois meses a partir do seu termo final, o citado prazo, no uso da faculdade prevista no n.º 2 daquele artigo 21.º do RJAT.”
9. A 18/9/2024 foi realizada a referida reunião para fins de inquirição do Senhor G..., na qualidade de Managing Director da Requerente (desde 23/8/2023). O depoimento foi prestado em inglês, contando com tradução simultânea para português pela intérprete Sra. Dra. I... (que também realizou a tradução para inglês das questões que foram colocadas ao depoente). Como se pode ler na acta desta reunião de inquirição, o Tribunal decidiu, em cumprimento do disposto no artigo 18.º, n.º 2, do RJAT, proferir a decisão final até ao dia 24/10/2024.
II. Saneamento
10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.
11. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
12. Pelo exposto, e não havendo nulidades, impõe-se o conhecimento do mérito do pedido.
III. Questões a decidir
13. Na petição arbitral e, de igual modo, nas alegações finais, a Requerente alega, em síntese, o seguinte:
i) Que “é clara a indispensabilidade desta penalização [contratual, sob a forma de uma sanção pecuniária no valor de € 525.000,00 a pagar pela Requerente] para a prossecução da atividade da Requerente, nos termos do artigo 23.º [do Código do IRC] e da jurisprudência reproduzida, não só porque o negócio se concretizou, mas também por ser gerador de benefícios económicos futuros para a atividade desenvolvida pela Requerente”;
ii) Que, “no caso em apreço, dúvidas não restam de que o gasto com a penalidade contratual devida pela Requerente à B... é imputável ao período de tributação de 2019, atento o regime de periodização económica [constante do art. 18.º, n.º 1, do CIRC]”, e que, “ainda que o montante de tais gastos esteja refletido enquanto variações patrimoniais do ano de 2020, por reexpressão dos saldos de 2019, este gasto deverá ser considerado como gasto dedutível, para efeitos de apuramento do prejuízo fiscal, do período de tributação de 2019.”;
iii) Que, à luz do estudo junto aos presentes autos pela Requerente (intitulado “ C..., Lda. – Transfer Pricing Economic Analysis Report / Indemnity Fee” (vd. Doc. 14 apenso aos autos), “considerando os fatores e circunstâncias [dele constantes] e tendo por base uma amostra de 48 OII, a análise económica dos preços de transferência [que nesse estudo foi desenvolvida com recurso ao MPCM {Método do Preço Comparável de Mercado} / CUPM {Comparable Uncontrolled Price Method}] concluiu pela conformidade do valor da compensação estabelecido entre a Requerente e a B... (e que corresponde a 7% do preço de venda) com o princípio de plena concorrência, dado que essa remuneração se enquadra no intervalo de plena concorrência computado” – o que, por essa razão, confirma, no entender da Requerente, “que a Requerente e a B... adotaram procedimentos de razoabilidade económica na determinação dos termos e condições praticados no contexto da sanção pecuniária acordada, os quais refletem práticas de mercado e, como tal, cumprem o princípio de plena concorrência” e que “penalidade contratual aplicada não deve ser considerada excessiva à luz das regras de preços de transferência”.
14. Pelo exposto, a ora Requerente pede que se dê como provada a presente acção arbitral e, consequentemente, “a) [se] anul[e] a decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2022..., proferida pela Direção de Finanças de Lisboa, e consequentemente anular os atos tributários em sede de IRC, referentes ao ano de 2019, que constituem o objeto da reclamação graciosa indeferida; b) [se] Orden[e] a correção do ato tributário de autoliquidação vertido na Declaração Modelo 22 de IRC de substituição, do período de tributação de 2019, aceitando, por consequência, a dedutibilidade do montante pago pela Requerente nesse período a título de penalização no valor de € 525.000,00 (quinhentos e vinte e cinco mil euros); [e] c) [se] Orden[e] a correção do ato de (auto)liquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2019, vertido na Demonstração de Liquidação n.º 2020..., ou seja, o reconhecimento de um prejuízo fiscal de € 533.278,23 ao invés de € 8.278,23, com todas as demais consequências legais.”
15. Por seu lado, a Requerida considera, em síntese, o seguinte:
i) Que, “nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC, ‘Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.’ [Contudo,] na situação subjacente ao presente Pedido Arbitral, a requerente continua a não remeter documentos justificativos que comprovem, sequer, que efetivamente incorreu naquela despesa no montante de € 525.000,00, sendo que, contrariamente ao argumentado, os elementos contabilísticos juntos pela Requerente aos autos evidenciam exatamente o oposto, mantendo-se em 31-12-2020 uma dívida a Credores Diversos (não identificados) exatamente naquele montante.”
ii) Que, “[q]uanto à alegação de que [a] penalização contratual no montante de 525.000,00 € se mostrava indispensável para obtenção dos proveitos da requerente no exercício de 2019, [...] não se concorda com [a mesma porque] [...] de acordo com o mencionado no contrato promessa de compra e venda, celebrado em 11.12.2019, a Requerente comprometeu-se a adquirir o imóvel até 20.12.2019, data em que seria outorgada a escritura de compra e venda do imóvel (cfr. cláusula quinta, n.º 1, do contrato promessa de compra e venda). No entanto, a referida aquisição veio a realizar-se em 31.01.2020, com a celebração da escritura definitiva de compra e venda do imóvel. Acresce que, não obstante o antes disposto, a requerente, logo no ano de 2019, já registava na contabilidade como seu, a propriedade do imóvel (vide conta 4521 – Propriedades de Investimento). [E,] à data da celebração do contrato de promessa e da “Side Letter”, 11.12.2019, verifica-se que os órgãos sociais, à data dos factos (2019-12-11 e 2020-01-31), nomeadamente, o conselho de administração (D..., E... e F...) são elementos comuns às duas sociedades intervenientes no negócio, conforme resulta da consulta às Certidões Permanentes de ambas as sociedades.”
iii) Que, quanto ao estudo junto aos presentes autos pela Requerente, “a quantificação da eventual penalização devida mostra-se inexplicavelmente desproporcionada face aos elementos carreadas aos autos pela própria Requerente [nesse] estudo denominado “C..., Lda. – Transfer Pricing Economic Analysis Report / Indemnity Fee”), o que configura também clara violação da regulamentação existente sobre preços de transferência.”
16. Pelo exposto, a Requerida pede que o presente pedido de pronúncia arbitral seja «julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica o acto tributário de liquidação impugnado».
17. Atendendo ao acima referido, conclui-se que a questão essencial a decidir nos presentes autos diz respeito à avaliação da razoabilidade, necessidade, adequação e normalidade, bem como da conformidade legal, da referida penalização contratual acordada entre a Requerente e a sociedade B..., S.A., para efeitos de eventual dedutibilidade fiscal da mesma.
IV. Mérito
IV.1. Matéria de facto
18. Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
A. A Requerente é uma sociedade anónima, com sede fiscal na Rua ... n.º ..., ... –...-... Lisboa, registada para a actividade de “Hotéis com restaurante” (CAE 55111) desde 11/1/2019, e para atividade secundária de “Compra e venda de bens imobiliários” (CAE 068100), estando enquadrada no Regime Geral, em sede de IRC, desde 1/1/2019, e no Regime Normal Trimestral, em sede de IVA, desde 1/10/2020.
B. A Requerente foi constituída a 9/10/2019 (vd. Insc. 1 - AP.39/20191009 no Portal do Ministério da Justiça), com um capital social de €50.000,00, com sede no Porto, e tendo por objecto social as actividades de “gestão de unidades hoteleiras e de quaisquer outras atividades de hotelaria ou turismo, incluindo o desenvolvimento de atividades auxiliares ou complementares. Compra, venda, arrendamento e reabilitação de bens imóveis, incluindo a gestão e exploração de quaisquer imóveis detidos pela sociedade ou por terceiros, e bem assim a promoção e desenvolvimento de projetos imobiliários de qualquer natureza.” Para o biénio de 2019/2020 foram nomeados como administradores da Requerente, F..., D... (ambos residindo em..., ..., Áustria) e E... (com residência em ..., ... Frankfurt, Alemanha).
C. A 31/7/2020, a Requerente submeteu e entregou a declaração de rendimentos modelo ...-2020-... (na qual foi declarado um resultado líquido do exercício no montante de € 8.278,23, e se apurou prejuízo fiscal no valor de € 8.278,23). A referida declaração foi liquidada e transferida para cobrança, tendo sido emitida a Nota de Reembolso (Nula) n.º 2020 ..., no montante de € 17,39.
D. A 11/12/2019, a Requerente celebrou com a sociedade B..., S.A., um contrato de promessa de compra e venda para aquisição, até dia 20/12/2019, do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.º ..., localizado na freguesia de ... e ...– Vila Nova de Gaia – Porto (...), pelo preço de € 7.500.000,00.
E. Na mesma data (11/12/2019), a Requerente celebrou com a sociedade vendedora (a B..., S.A.) uma “Side Letter”, i.e., um complemento contratual ao supra referido contrato de promessa de compra e venda, para estabelecer uma penalização/sanção pecuniária a pagar pela reclamante (A..., a aqui Requerente), no montante de € 525.000,00, pelo atraso na concretização da transmissão do mencionado prédio (vd. cláusulas primeira e segunda da referida “Side Letter”).
F. À data da celebração do contrato de promessa de compra e venda e da “Side Letter” (11/12/2019 e 31/1/2020), verifica-se que o conselho de administração (composto por D..., E... e F...) é elemento comum às duas sociedades intervenientes no negócio, conforme resulta da consulta às Certidões Permanentes de ambas as Sociedades (vd. certidão a pp. 106 ss. do PA da reclamação graciosa apenso a estes autos). No referido contrato promessa de compra e venda (vd. Doc. 3 junto com a petição de reclamação graciosa) intervieram, precisamente nessa qualidade, os acima referidos D..., da parte do promitente vendedor, e E... e F..., da parte do promitente comprador.
G. O Senhor G..., que foi apresentado para depor como parte e ouvido na reunião que teve lugar no dia 18/9/2024 (na qual afirmou ser, desde 23/8/2023, um dos Directores Executivos da Requerente), só consta como administrador da C..., Lda. (vd. certidão permanente a fls. 114 e ss. do PA da reclamação graciosa apenso aos presentes autos) à data de 17/03/2023 (data em que foi feita a consulta pelos serviços da AT) – não constando como administrador ou tendo outro cargo de direcção relativamente à Requerente.
H. Em 20/12/2019, a Requerente liquidou e pagou o IMT (vd. documento de cobrança n.º..., no montante de € 450.000,00), por consequência do contrato de promessa de compra e venda celebrado com tradição.
I. Em 31/1/2020, a Requerente celebrou escritura pública de compra e venda com a sociedade vendedora (B..., S.A.), para aquisição do prédio acima identificado, pelo valor de € 7.500.000,00, conforme consta da declaração “Modelo 11” – montante esse que foi pago em duas tranches/transferências bancárias, conforme contratualizado no respectivo contrato de promessa de compra e venda (€ 4.500.000,00 em 14/1/2020 e € 3.000.000,00 em 27/1/2020).
J. Da análise dos elementos contabilísticos apresentados pela Requerente (vd. Docs. 1 a 9 juntos aos presentes autos), nomeadamente dos “Balancetes Analíticos” (vd. Docs. 6 e 7), verificaram os serviços da Requerida que, quanto ao exercício de 2019, a sociedade reclamante (A..., aqui Requerente) reconheceu na sua contabilidade, nomeadamente na “Conta 4521 – Propriedades de Investimento em Curso”, a débito, a aquisição do referido prédio, na “Conta 2443 – IMT” a liquidação do IMT respectivo, e na “Conta 27832 – Credores Diversos” o valor global de € 7.950.000,00 (= € 7.500.000,00 + € 450.000,00) da “propriedade de investimento” adquirida. Contudo, o registo na referida Conta 4521 do montante de € 7.977.000,00 € não condiz com o valor acordado entre as partes para venda do referido imóvel, que foi de € 7.500.000,00 acrescido do IMT pago pela Requerente (€ 450.000,00), pelo que daqui resulta uma diferença não esclarecida no valor de € 27.000,00. E a dívida ao alienante do imóvel deveria ascender a €7.500.000,00 e não a 7.950.000,00, porquanto o valor referente ao IMT deveria encontrar-se registado na Conta 2443 – IMT e não na Conta 27832 – Credores Diversos.
L. No exercício de 2020, verifica-se que a sociedade reclamante (A..., aqui Requerente) reconheceu na sua contabilidade, mais especificamente na Conta 561 – Resultados Transitados, a débito, o montante de € 533.278,23, valor que é superior ao montante da sanção pecuniária acordada, e na Conta 27832 – Credores Diversos, a crédito, o montante de € 525.000,00. E não se verifica nem se demonstra a existência de qualquer movimento contabilístico em Contas de disponibilidades que demonstrem ou comprovem qualquer fluxo financeiro associado à aquisição do bem e pagamento da referida sanção pecuniária.
M. Lendo o “Documento n.º 9 – Cópia da análise em sede de preços de transferência da sanção pecuniária paga pela Reclamante à B...”, mostra-se que o referido estudo foi efectuado para o montante de € 7.500.000,00 a pagar pela venda de um prédio urbano pela sociedade C... à sociedade A..., e que acordaram que a escritura pública de compra e venda deveria estar concretizada até à data de 31/1/2020, conforme se vê no seguinte excerto: “[...] had previous reached an agreement for the sale of an urban building («Property») by C... to A... [...] The Companies had agreed that the purchase and sale public deed of the Property should have been granted by january 31st, 2020” – sendo que tal não corresponde às condições contratuais acordadas no contrato promessa de compra e venda celebrado a 11/12/2019 (aquisição do imóvel até 20/12/2019, conforme disposto na cláusula quinta do referido contrato promessa: vd. Doc. 3 do PA apenso aos autos).
N. Por despacho de 8/5/2023 do Diretor Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa foi indeferida a reclamação graciosa interposta pela Requerente.
IV.2. Factos não provados
19. Não se encontra provado que a sociedade B..., S.A., vendedora do imóvel aqui em causa, tenha registado na sua contabilidade o pagamento da penalidade no referido valor de € 525.000,00 e tenha pago o imposto correspondente durante o ano/exercício de 2019 ou outro; e também não foi apresentada prova do fluxo financeiro associado ao pagamento da alegada penalização – pelo que não é possível validar se uma tal despesa ocorreu efectivamente ou se a mesma foi suportada pela ora Requerente.
IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
20. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
21. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
22. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes e dos depoimentos prestados pelas testemunhas, bem como dos documentos que foram juntos aos autos, não contestados.
IV.4. Matéria de direito
23. Como se disse acima, a questão essencial a decidir nestes autos diz respeito à avaliação da razoabilidade, necessidade, adequação e normalidade, bem como da conformidade legal, da penalização contratual acordada entre a Requerente e a sociedade B..., S.A., para efeitos de eventual dedutibilidade fiscal da mesma.
24. No entender da ora Requerente, a razoabilidade, necessidade, adequação e normalidade da penalização contratual, bem como a sua conformidade legal, encontram-se demonstradas e justificadas por três ordens de razões:
i) Porque, no que se refere à “relevância fiscal do gasto para a atividade da Requerente em cumprimento da regra geral de dedutibilidade nos termos do artigo 23.º do CIRC”, se considera que é “clara a indispensabilidade desta penalização para a prossecução da atividade da Requerente, nos termos do artigo 23.º citado e da jurisprudência reproduzida, não só porque o negócio se concretizou, mas também por ser gerador de benefícios económicos futuros para a atividade desenvolvida pela Requerente.”;
ii) Porque, no que se refere ao “cumprimento do princípio da periodização económica dos gastos”, no caso aqui em apreço, “dúvidas não restam de que o gasto com a penalidade contratual devida pela Requerente à B... é imputável ao período de tributação de 2019, atento o regime de periodização económica [constante do n.º 1 do art. 18.º do CIRC]”; e
iii) Porque, quanto ao “cumprimento das regras de preços de transferência entre entidades relacionadas”, tal cumprimento foi demonstrado através da “análise económica de preços de transferência desenvolvida por aplicação do MPCM” – a qual “concluiu pela conformidade do valor da compensação estabelecido entre a Requerente e a B... (e que corresponde a 7% do preço de venda) com o princípio de plena concorrência, dado que essa remuneração se enquadra no intervalo de plena concorrência computado” – razão pela qual se considera que “a penalidade contratual aplicada não deve ser considerada excessiva à luz das regras de preços de transferência” visto que “cumpre a regulamentação portuguesa em matéria de preços de transferência.”
25. Por seu lado, alega a Requerida, em síntese, o seguinte:
i) Que, “não obstante [...] a Requerente, logo no ano de 2019, já regista[r] na contabilidade como seu, a propriedade do imóvel (vide conta 4521 – Propriedades de Investimento)”, “a [...] aquisição [do referido imóvel só] veio a realizar-se em 31.01.2020, com a celebração da escritura definitiva de compra e venda do imóvel” – sendo que, “de acordo com o [...] contrato promessa de compra e venda [desse imóvel], [o qual foi] celebrado em 11.12.2019, a Requerente [se tinha] compromet[ido] a adquirir o imóvel até 20.12.2019”. Assinala, ainda, que “à data da celebração do contrato de promessa e da ‘Side Letter’, 11.12.2019, verifica-se que os órgãos sociais, à data dos factos (2019-12-11 e 2020-01-31), nomeadamente, o conselho de administração (D..., E... e F...) são elementos comuns às duas sociedades intervenientes no negócio, conforme resulta da consulta às Certidões Permanentes de ambas as sociedades.”
ii) Que, “nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC, ‘Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.’ [Contudo,] na situação subjacente ao presente Pedido Arbitral, a requerente continua a não remeter documentos justificativos que comprovem, sequer, que efetivamente incorreu naquela despesa no montante de € 525.000,00, sendo que, contrariamente ao argumentado, os elementos contabilísticos juntos pela Requerente aos autos evidenciam exatamente o oposto, mantendo-se em 31-12-2020 uma dívida a Credores Diversos (não identificados) exatamente naquele montante.”;
iii) Que, no que diz respeito ao estudo de preços de transferência junto aos autos pela Requerente, “a quantificação da eventual penalização devida mostra-se inexplicavelmente desproporcionada face aos elementos carreadas aos autos pela própria Requerente [nesse] estudo denominado “C..., Lda. – Transfer Pricing Economic Analysis Report / Indemnity Fee”), o que configura também clara violação da regulamentação existente sobre preços de transferência.” – pelo que se conclui “esta[r]mos perante um ‘estudo’ ou ‘parecer’ [...] que se funda em pressupostos não aplicáveis ao caso”.
26. Vejamos, então.
27. Ainda que a Requerida coloque em causa não apenas a indispensabilidade do custo em causa – mas, ainda antes do debate sobre esta, a comprovação da efectividade desse custo –, convém ter presente o que se deve entender por indispensabilidade e a forma pela qual ela deve ser aferida.
28. Para tal finalidade, e por entre uma miríade de outras fontes doutrinárias e jurisprudenciais passíveis de serem aqui avocadas, pode recorrer-se, por ex., ao seguinte excerto do acórdão do STA de 24/9/2014 (processo n.º 0779/12): “Impõe-se-nos, pois, indagar em que consiste essa indispensabilidade, uma vez que a lei, não obstante a enunciação exemplificativa das várias categorias concretas de encargos dedutíveis, constantes das diversas alíneas do referido art. 23.º, exige a comprovação da indispensabilidade do custo na obtenção dos proveitos e não apenas a comprovação da possibilidade de obtenção desses proveitos. Mas como deve aferir-se o conceito de indispensabilidade? Consideramos definitivamente arredada uma visão finalística da indispensabilidade (enquanto requisito para que os custos sejam aceites como custos fiscais), segundo a qual se exigiria uma relação de causa efeito, do tipo conditio sine qua non, entre custos e proveitos, de modo que apenas possam ser considerados dedutíveis os custos em relação aos quais seja possível estabelecer uma conexão objectiva com os proveitos (Criticando esse entendimento restritivo da indispensabilidade, ANTÓNIO MOURA PORTUGAL, A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa, pág. 243 e segs., e TOMÁS CASTRO TAVARES, ‘Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito Fiscal Na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Colectivas: Algumas Reflexões ao Nível dos Custos’, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 396, págs. 131 a 133, e ‘A Dedutibilidade dos Custos em Sede de IRC’, Fisco, n.º 101/102, Janeiro de 2002, pág. 40.). Entendemos a indispensabilidade como referida à ligação dos custos à actividade desenvolvida pelo contribuinte. ‘Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo. [...] O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção dos ingressos e que represente um decaimento económico para a empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa’ (TOMÁS CASTRO TAVARES, ‘Da Relação...’, loc. cit., pág. 136.). Dito de outro modo, só não serão indispensáveis os custos que não tenham relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa. É este o entendimento que vem sendo seguido por esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (Entre muitos outros, fazendo um exaustivo tratamento do tema, vide o acórdão de 30 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 107/11 [...]. Assim, o controlo a efectuar pela AT sobre a verificação deste requisito da indispensabilidade tem de ser pela negativa, ou seja, a AT só deverá desconsiderar como custos fiscais os que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos, não podendo «o agente administrativo competente para determinar a matéria colectável arvorar-se a gestor e qualificar a indispensabilidade ao nível da boa e da má gestão, segundo o seu sentimento ou sentido pessoal; basta que se trate de operação realizada como acto de gestão, sem se entrar na apreciação dos seus efeitos, positivos ou negativos, do gasto ou encargo assumido para os resultados da realização de proveitos ou para a manutenção da fonte produtora» (VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, volume II, página 601.). Ou seja, sendo a regra a liberdade de iniciativa económica e devendo a tributação das empresas incidir fundamentalmente sobre o seu rendimento real (cfr. o já referido art. 104.º, n.º 2, da CRP), a norma do n.º 1 do art. 23.º do CIRC, na redacção vigente em 2001, ao limitar a relevância dos custos aos «que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora» tem de ser entendida como permitindo a relevância fiscal de todas as despesas efectivamente concretizadas que sejam potencialmente adequadas a proporcionar proveitos ou ganhos, independentemente do resultado (êxito ou inêxito) que em concreto proporcionaram. ‘A própria letra daquele n.º 1 do art. 23.º aponta decisivamente nesse sentido com a utilização do tempo verbal futuro «forem», em vez do tempo passado «foram»: a perspectiva adequada para apreciar a indispensabilidade das despesas para a obtenção dos proveitos é do agente económico no momento em que agiu, quando apenas há a possibilidade de as opções empresariais a tomar virem a produzir proveitos e não a da fiscalização tributária, agindo na presença dos resultados obtidos, apreciando a relevância que as despesas tiveram efectivamente para eles serem atingidos. A esta luz, é de concluir que são de considerar indispensáveis para a realização dos proveitos as despesas que, no momento em que são realizadas, se afigurem como potencialmente geradoras de proveitos, o que tem como corolário só poder ser eliminada a relevância fiscal de um custo quando for de concluir, à face das regras da experiência comum, que não tinha potencialidade para gerar proveitos, isto é, quando se demonstrar que o acto que gera os custos não pode ser considerado como um acto de gestão, por não poder esperar-se, com probabilidade aceitável, que da despesa efectuada possa resultar um proveito’ (Cfr. acórdão de 15 de Junho de 2012 do Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD, proferido no processo n.º 29/2012-T [...]). Ou seja, a AT não se pode intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa. Um custo será aceite fiscalmente caso seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação economicamente infrutífera ou até ruinosa. O que significa que, nos termos do citado art. 23.º do CIRC, serão considerados gastos fiscais todos aqueles encargos que sejam assumidos de acordo com um propósito empresarial, ou seja, no interesse da empresa e tendo em vista a prossecução do respectivo objecto social. A utilização daquele preceito legal para desconsiderar fiscalmente um custo efectivamente suportado circunscreve-se às situações de confusão entre o património empresarial e o património pessoal dos sócios, bem como àquelas em que a empresa, em detrimento do seu património, pretende beneficiar terceiros. Dito de outro modo, «se o encargo foi determinado por outras motivações (interesse pessoal dos sócios, administradores, credores, outras sociedades do mesmo grupo, parceiros comerciais, etc.), então tal custo não deve ser havido por indispensável» (RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Coimbra, 2007, pág. 87.). A aferição da indispensabilidade deverá, pois, assentar numa análise casuística da empresa e de cada uma das despesas ou tipos de despesas em causa.” (Sublinhados nossos.)
29. Partilhando-se aqui do entendimento expresso no aresto supra citado, mostra-se necessária a mencionada análise casuística (da empresa e da despesa em causa), para fins de aferição da alegada indispensabilidade.
30. Decorre da factualidade provada (vd., nomeadamente, pontos A, B, D e E) que a despesa aqui em causa, relativa a gasto com a penalidade contratual devida pela ora Requerente à sociedade B..., S.A., por atraso na concretização da transmissão do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.º ..., localizado na freguesia de ... e ...– Vila Nova de Gaia – Porto (...), não se afasta do propósito empresarial que um tal encargo deve ter para fins do disposto no art. 23.º do CIRC – i.e., pode, à partida, com inteira razoabilidade, ser considerado um encargo assumido no interesse da empresa e tendo em vista a prossecução do respectivo objecto social.
31. Há, contudo, outros elementos, constantes do presente processo, que permitem colocar-se em questão a alegada razoabilidade, necessidade, adequação e normalidade desse encargo.
32. Desde logo, porque, como se sublinhou acima citando o aresto do STA, “a utilização d[o] [artigo 23.º do CIRC] para desconsiderar fiscalmente um custo efectivamente suportado circunscreve-se às situações de confusão entre o património empresarial e o património pessoal dos sócios, bem como àquelas em que a empresa, em detrimento do seu património, pretende beneficiar terceiros.” Ora, como decorre do cotejo dos pontos B e F da factualidade provada, à data da celebração do contrato de promessa de compra e venda e da “Side Letter” (11/12/2019 e 31/1/2020), verifica-se que o conselho de administração da Requerente (composto, no biénio 2019/2020, por D..., E... e F...) é elemento comum às duas sociedades intervenientes no negócio, conforme resulta da consulta às Certidões Permanentes de ambas as Sociedades (vd. certidão a pp. 106 e segs. do PA da reclamação graciosa apenso aos presentes autos). Nesse contrato promessa de compra e venda intervieram, precisamente nessa qualidade, os acima referidos D..., da parte do promitente vendedor, e E... e F..., da parte do promitente comprador.
33. Assim sendo, parece evidente chegar-se à conclusão de que, dada a confusão que é gerada pela qualidade em que intervieram os elementos do conselho de administração da Requerente – nos dois lados do negócio que envolve o contrato promessa de compra e venda (e do qual decorre a respectiva “Side Letter”) –, é inteiramente razoável considerar-se que o encargo em causa foi determinado por (ou que tinha em vista) outras motivações (as quais, ainda que não inteiramente descortináveis, se mostram) alheias ao interesse da empresa aqui Requerente.
34. Mas, para lá da já analisada questão relativa à indispensabilidade, a Requerida coloca em questão, nestes autos, a própria comprovação da efectividade do custo em causa.
35. Isto porque, no entender da Requerida, “nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC, ‘Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.’ [E contudo,] na situação subjacente ao presente Pedido Arbitral, a requerente continua a não remeter documentos justificativos que comprovem, sequer, que efetivamente incorreu naquela despesa no montante de € 525.000,00, sendo que, contrariamente ao argumentado, os elementos contabilísticos juntos pela Requerente aos autos evidenciam exatamente o oposto, mantendo-se em 31-12-2020 uma dívida a Credores Diversos (não identificados) exatamente naquele montante.”
36. Com efeito, e como se pode ler acima, no ponto J da factualidade provada, da análise dos elementos contabilísticos apresentados pela Requerente (vd. Docs. 1 a 9 juntos aos presentes autos), nomeadamente dos “Balancetes Analíticos” (vd. Docs. 6 e 7), verificaram os serviços da Requerida que, quanto ao exercício de 2019, a sociedade reclamante (A..., aqui Requerente) reconheceu na sua contabilidade, nomeadamente na “Conta 4521 – Propriedades de Investimento em Curso”, a débito, a aquisição do referido prédio, na “Conta 2443 – IMT” a liquidação do IMT respectivo, e na “Conta 27832 – Credores Diversos” o valor global de € 7.950.000,00 (= € 7.500.000,00 + € 450.000,00) da “propriedade de investimento” adquirida. Contudo, o registo na referida Conta 4521 do montante de € 7.977.000,00 € não condiz com o valor acordado entre as partes para venda do referido imóvel, que foi de € 7.500.000,00 acrescido do IMT pago pela Requerente (€ 450.000,00), pelo que daqui resulta uma diferença não esclarecida no valor de € 27.000,00. Acresce, ainda, que a dívida ao alienante do imóvel deveria ascender a €7.500.000,00 e não a 7.950.000,00, porquanto o valor referente ao IMT deveria estar registado na Conta 2443 – IMT e não na Conta 27832 – Credores Diversos.
37. Por outro lado, e como também se refere supra, no ponto L da factualidade provada, no exercício de 2020, verifica-se que a sociedade reclamante (A..., aqui Requerente) reconheceu na sua contabilidade, especificamente na Conta 561 – Resultados Transitados, a débito, o montante de € 533.278,23, valor que é superior ao montante da sanção pecuniária acordada (o que não permite presumir, sem margem para dúvidas, a inclusão nesta Conta do montante da sanção pecuniária), e na Conta 27832 – Credores Diversos, a crédito, o montante de € 525.000,00. Acresce que não se verificou nem se demonstrou a existência de qualquer movimento contabilístico em “Contas” de disponibilidades que demonstrasse ou comprovasse qualquer fluxo financeiro associado à aquisição do bem e pagamento da referida sanção pecuniária.
38. O depoente Senhor G..., actual Managing Director da Requerente, afirmaria que tal montante foi pago. Contudo, é necessário notar que, como se refere no ponto G da factualidade provada, o depoente só consta como administrador da C..., Lda. (vd. certidão permanente a fls. 114 e ss. do PA da reclamação graciosa apenso a estes autos) à data de 17/03/2023 (a data em que foi feita a consulta pelos serviços da AT) – não constando como administrador ou tendo outro cargo de direcção na Requerente, nomeadamente à data dos factos aqui em causa (2019/2020). Provavelmente por essa razão, o depoente não soube explicar por que razão o pagamento desse montante foi, alegadamente, registado na contabilidade da Requerente em 2020 e não em 2019. Acresce que, como refere a Requerida nas suas alegações finais, a Requerente, no Anexo às “Demonstrações Financeiras – Políticas contabilísticas, alterações nas estimativas contabilísticas e erros”, referente a 2020, deveria ter indicado a natureza do erro que disse ter ocorrido no período anterior, as quantias das correspondentes correções e a reexpressão retrospetiva – o que, contudo, não sucedeu, razão pela qual não será sequer possível presumir que a mera movimentação contabilística efectuada no exercício de 2020, tendo-se debitado a conta 561 – Resultados transitados por contrapartida da conta de Outros Devedores e Credores, no montante de 525.000,00 €, seja a demonstração cabal de que terá existido um erro merecedor de correcção, ou de que, pelas razões já acima expostas, tal montante diz respeito à referida sanção pecuniária.
39. Por último, e no que se refere ao “cumprimento das regras de preços de transferência entre entidades relacionadas”, a Requerente afirma que tal cumprimento foi demonstrado através da “análise económica de preços de transferência desenvolvida por aplicação do MPCM” – a qual “concluiu pela conformidade do valor da compensação estabelecido entre a Requerente e a B... (e que corresponde a 7% do preço de venda) com o princípio de plena concorrência, dado que essa remuneração se enquadra no intervalo de plena concorrência computado” – razão pela qual se considera que “a penalidade contratual aplicada não deve ser considerada excessiva à luz das regras de preços de transferência” visto que “cumpre a regulamentação portuguesa em matéria de preços de transferência.”
40. Não obstante a improcedência dos anteriores argumentos da Requerente, vejamos se estas conclusões são válidas, dada a factualidade provada e os elementos trazidos aos autos.
41. A Requerente apoia as suas conclusões num estudo técnico constante de Doc. 9 apenso aos autos. Contudo, lendo o referido “Documento n.º 9 – Cópia da análise em sede de preços de transferência da sanção pecuniária paga pela Reclamante à B...”, mostra-se que o citado estudo foi efectuado para o montante de € 7.500.000,00 a pagar pela venda de um prédio urbano pela sociedade C... à sociedade A..., e que acordaram que a escritura pública de compra e venda deveria estar concretizada até à data de 31/1/2020, conforme se vê no seguinte excerto: “[...] had previous reached an agreement for the sale of an urban building («Property») by C... to A... [...] The Companies had agreed that the purchase and sale public deed of the Property should have been granted by january 31st, 2020” – sendo que tal não corresponde às condições contratuais acordadas no contrato promessa de compra e venda celebrado a 11/12/2019 (aquisição do imóvel até 20/12/2019, conforme disposto na cláusula quinta do referido contrato promessa: vd. Doc. 3 do PA apenso aos autos).
42. Com efeito, na cláusula 5.ª, n.º 1, do contrato promessa de compra e venda celebrado em 11/12/2019 entre a Requerente e a sociedade B..., S.A., é acordado que “A escritura pública de compra e venda do prédio deverá ser outorgada até 20 de dezembro de 2019”, ou seja, somente 9 dias depois da celebração do contrato promessa de compra e venda, sendo que, por contraste, o estudo em questão refere, logo no seu início, em Background, que “The Companies had agreed that the purchase and sale public deed of the property should have been granted by January, 31 st, 2020.”.
43. Assim sendo, não se pode extrair do referido estudo nenhuma conclusão relevante para efeitos de aferição do cumprimento da regulamentação portuguesa em matéria de preços de transferência porque, como bem assinala a Requerida, “o intervalo de remuneração de plena concorrência apurado no referido estudo, quando refere ‘Using the external CUPM, i.e., the annualized return from real estate investment funds obtained through the information extracted from APFIPP regarding the selected funds (a total of 48 funds)’, tem por referência a rentabilidade obtida correspondente a um ano, e não, como ocorre nos presente autos, um alegado atraso na realização da escritura correspondente a apenas 42 dias (entre 21-12-2019 e 31-01-2020).”
44. No mesmo sentido, reafirma o mencionado estudo, mais adiante, e de forma que não deixa margem para dúvidas, que “Bearing in mind the tipology of the controlled transactions in hands (penalty/indemnity fee for a one-year delay), for the comparable funds selected, a 1-year annualized return criteria was considered” (sublinhados nossos). Ou seja: no estudo foi calculada e aplicada uma percentagem por atraso anual (“penalty/indemnity fee for the one-year delay: 7,00%”) ao valor de € 7.500.000,00 (da qual resultariam os € 525.000,00 aqui em causa) quando, na verdade, o atraso foi, apenas, de 42 dias (pelo que, ajustando o cálculo para este pequeno intervalo temporal, tal daria certamente como resultado um valor muito inferior aos alegados € 525.000,00).
V. DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar o presente pedido arbitral improcedente, mantendo-se na ordem jurídica o acto de indeferimento da reclamação graciosa e o acto tributário de liquidação impugnado, e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 525.000,00 (quinhentos e vinte cinco mil euros), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 7.956,00 (sete mil novecentos e cinquenta e seis euros), a pagar pela Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de Outubro de 2024.
Os Árbitros
(José Poças Falcão)
(Vasco António Branco Guimarães)
(Miguel Patrício)