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DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO
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Pressupostos da isenção prevista nas alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS no caso de operações financeiras não localizadas em Portugal;
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O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado‑Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado‑Membro;
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Jurisprudência uniformizadora do STA.
I. RELATÓRIO
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A..., LDA., sociedade comercial com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., contribuinte número ..., abrangida pelo serviço periférico local de ... (doravante, “Requerente” ou “A...”), vem, ao abrigo dos artigos 10.º e 2.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que institui a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária (de ora em diante “RJAT”), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, prescindindo da faculdade de designar árbitro, para pronúncia arbitral sobre os atos tributários de liquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”), referentes à Verba 17.1.4 da Tabela Geral do IS (“Operações Financeiras”), e identificados com os 2018 ..., de 06.11.2018, referente ao período de tributação de 2016, no valor de € 719.291,54, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante, “AT”), e de Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2018..., 2018..., 2018 ..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., no valor total de € 62.774,11, as quais originaram um valor global a pagar de € 782.065,65.
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Contra estes actos de liquidação pela Autoridade Tributária e Aduaneira foi interposta reclamação graciosa n.º ...2019..., a qual foi objeto de decisão de indeferimento e relativamente ao qual foi interposto recurso hierárquico - procedimento de recurso hierárquico n.º ...2019... .
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 26.01.2021, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 05.03.2021, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 21.05.2021.
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Na sua Resposta, apresentada a 23.06, tendo o P.A sido junto a 25.06 a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio sustentar a improcedência do presente pedido, por não provado, e, consequentemente, absolvição da Requerida do pedido.
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Em 13.07 a Requerente apresentou requerimento declarando prescindir da realização da inquirição de testemunhas desde que o Tribunal considere suficiente a prova documental.
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O Tribunal emitiu Despacho em 13.07.2021 dispensando a prova testemunhal. Adicionalmente, em aplicação dos princípios da autonomia na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT, e não havendo outros elementos sobre que as partes se devam pronunciar, entendeu o presente tribunal dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime, fixando o prazo de 15 dias para as partes produzirem alegações escritas e podendo a Requerida usar o prazo de 15 dias sucessivos após a entrega de alegações pela Requerente. Foi fixado o dia 21 de Novembro como prazo limite para a prolação da decisão, o qual foi prorrogado.
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Em 14.09.2021 a Requerente apresentou as suas alegações e em 06.10.2021 a Requerida apresentou as suas alegações.
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No presente processo a Requerente pede a anulação daquelas liquidações, bem como das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico no âmbito do qual se discutia a legalidade das referidas liquidações, invocando, para o efeito, vício de violação de lei por erro da AT quanto aos factos e quanto ao direito, alegando, em síntese, o seguinte:
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Que as operações financeiras em causa não se encontram localizadas em Portugal, para efeitos de Imposto do Selo;
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Cumprimento dos pressupostos da isenção prevista nas alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS;
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Violação dos princípios, de direito da união europeia, da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais.
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Á data dos factos subjacentes à presente análise, a Requerente era detida pelas
seguintes entidades:
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B... S.A., sedeada em França (99,99%); e
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C..., S.A., também sedeada em França (0,01%).
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Dos autos, incluindo os elementos constantes do relatório da inspeção tributária, resulta que, em 23.02.2000, foi celebrada a “Convention d’Omnium” entre a sociedade C... e as entidades aderentes do grupo, a qual se destinava a pôr em prática um acordo de cash pooling, destinado a assegurar a gestão de tesouraria das diferentes entidades do Grupo D... localizadas em diferentes jurisdições.
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Em 08.06.2009, a sociedade C... sentiu necessidade de otimizar o acordo de cash pooling em vigor, tendo celebrado com a instituição financeira E... o “E... Cash Centralisation Agreement”, visando a gestão centralizada da tesouraria do Grupo, nivelando os saldos das diferentes contas (principal, secundárias ou intermediárias), tendo a Requerente aderido a este acordo de cash pooling em 20.07.2010.
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Em 30.12.2010, a Requerente, a C... e a B... celebraram um contrato de cessão de posição contratual/cedência de crédito, tendo a B... e a Requerente assinado um novo contrato de empréstimo com efeitos a 01.01.2011, no qual a Requerente figura como mutuante e a B... como mutuária, no qual a primeira concede um empréstimo à segunda na modalidade de crédito rotativo de um ano, no montante máximo de € 65.000.000,00, tendo sido acordado o pagamento de juros, à taxa média da Euribor a 1 mês, arredondada para 1/16 de 1% adicionada de uma margem de 0,5% ao ano, calculados no fim de cada mês com base na utilização mensal de crédito.
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A C... transferiu para a B... os direitos e obrigações resultantes da “Convention d’Omnium tendo cada uma das sociedades do grupo fiscal aceite as condições descritas naqueles documentos.
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Este contrato foi objeto de várias alterações posteriores, em particular, em 01.01.2013, a “Amendment 2 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” que visou alargar o período do contrato de 01.01.2013 para 01.01.2015; em 03.12.2013, a “Amendment 3 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alterou o montante máximo do empréstimo de € 65.000.000,00 para € 100.000.000,00, em 01.10.2014, a “Amendment 4 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alterou o montante máximo do empréstimo de € 100.000.000,00 para € 200.000.000,00 e em 31.12.2014, a “Amendment 5 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alargou o período do contrato de 01.01.2015 para 01.01.2017.
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De forma a concretizar a adesão da Requerente ao contrato de cash pooling do Grupo, foi ainda necessário introduzir alterações ao “E... Cash Centralisation Agreement”, através do “Appendix 2 – Participation form to the E... Cash Concentration Agreement”, celebrado em 15.05.2012, segundo o qual a Requerente foi incluída no acordo celebrado com o E... e o Appendix 1 – Automated Centralization of Cash Management per hierarchy”, celebrado em 23.05.2012. Mais tarde, em 12.09.2014, o “Appendix 1.1. – Description of the Hierarchy”, identificou a Master Account no contrato de cash pooling (localizada em França), bem como as Intermediate Accounts, entre elas a da aqui Requerente (localizada em Portugal).
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No âmbito da execução dos diferentes contratos acima enunciados, os excedentes de tesouraria gerados pelas diferentes entidades do Grupo D... eram transferidos para a conta da Requerente, a qual, por sua vez, os transferia para a B... a qual recebia e utilizava os mesmos em França.
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A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva de âmbito geral, desencadeada pela Ordem de Serviço N.º OI2018..., de 02.03.2018, que incidiu sobre o exercício de 2016, e no âmbito da qual se concluiu pelo apuramento do imposto em falta, a título de imposto do selo, no montante que ascendia a € 719.291,54 euros, conforme mapa demonstrativo dos cálculos que se resume no quadro seguinte:
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A Requerente apresentou Reclamação Graciosa das liquidações aqui contestadas a 12.04.2019.
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Em 26.06.2019, foi notificada, através do Ofício n.º..., de 25.06.2019, do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa.
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Em sede de projeto de indeferimento, considerou a AT que “no que respeita ao caso em apreço, que o sistema de “cash pooling”, consubstancia-se num serviço financeiro que poderá ser utilizado entre contas bancárias de uma só empresa, ou entre contas bancárias de várias empresas do mesmo grupo, o que no fundo traduz uma gestão conjunta desses capitais sob o jugo do tão propalado conceito de “rendibilidade do capital”. “O contrato de Cash Pooling tem efetivamente esse objetivo – gerir eficientemente as disponibilidade de tesouraria através de um mecanismos de compensação entre os excessos e necessidades de tesouraria dentro das empresas do grupo que participem neste sistema, ao invés de se socorrerem de financiamentos bancários propriamente ditos, salvaguardando-se assim o interesse do grupo”.
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No que se refere à localização das operações, entende a AT que resulta claro “o imposto incide sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito, nas quais comummente se incluem a “abertura de crédito, empréstimos, cessão de créditos, factoring e operações de tesouraria”.
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Mais acrescenta que “Não obstante, o princípio ser o de que o encargo do imposto (conforme alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIS) se reflete sobre a entidade utilizadora daquela concessão, uma vez que é sob esta última que reside o respetivo interesse económico, por outro lado e conforme se demonstrará, a regra geral de incidência no que concerne a estas operações é a de que as entidades concedentes de crédito têm a obrigação de promover a liquidação do imposto e respetivo pagamento, conforme resulta aliás da letra da alínea b) do artigo 2.º do CIS”.
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Conclui que “Assim, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS, são sujeitos passivos do imposto as “entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações”, ou seja, no caso em concreto a A..., LDA., ora Reclamante”.
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No que se refere à localização das operações, entende a AT que resulta claro que “o imposto incide sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito, nas quais comummente se incluem a “abertura de crédito, empréstimos, cessão de créditos, factoring e operações de tesouraria”. Mais acrescenta que “Não obstante, o princípio ser o de que o encargo do imposto (conforme alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIS) se reflete sobre a entidade utilizadora daquela concessão, uma vez que é sob esta última que reside o respetivo interesse económico, por outro lado e conforme se demonstrará, a regra geral de incidência no que concerne a estas operações é a de que as entidades concedentes de crédito têm a obrigação de promover a liquidação do imposto e respetivo pagamento, conforme resulta aliás da letra da alínea b) do artigo 2.º do CIS”. Conclui que “Assim, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS, são sujeitos passivos do imposto as “entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações”, ou seja, no caso em concreto a A..., LDA., ora Reclamante”.
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Entende, por outro lado, “que a transferência dos excedentes de tesouraria, da conta da Reclamante para a conta da B..., junto do E..., corresponde a financiamento concedido pela Reclamante à B..., já que se trata de operações financeiras de concessão de crédito sob a forma de disponibilização de fundos e uma vez que estamos em presença de uma concessão e utilização de créditos, temos a A..., sujeito passivos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS com sede em Portugal, como entidade mutuante (Concedente) e a B..., com sede em França, como entidade mutuária (utilizadora), pelo que a realização do crédito (disponibilização dos fundos) ocorre em território nacional, tratando-se assim de uma operação sujeita a Imposto do Selo, de acordo com o princípio da territorialidade instituído no referido n.º 1 do artigo 4.º do CIS, sendo tributada pelas taxas prevista na Verba 17.1, pelo que de acordo com o n.º 1 do artigo 23.º do CIS a liquidação e o pagamento do imposto compete à entidade concedente do crédito, no caso a A... .”.
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No que respeita à aplicação da isenção previstas nas alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, entende a AT que “caso um dos intervenientes não tenha sede em território nacional, as isenções das alíneas g) e h) só prevalecem caso o credor (esta exceção, relativamente ao domicílio do credor, será aplicável apenas no caso em que o devedor tenha sede em território nacional pois quando tal não sucede, não existe nenhum elemento de conexão que permita localizar a operação em território nacional) tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação, sobre o rendimento e o capital acordada em Portugal” ,assim, “face ao sentido dos fluxos financeiros realizados entre a A... e a B... constata-se que o credor é a A..., ora Reclamante, sendo ela a entidade concedente do crédito, cuja sede se situa no território nacional, pelo que, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, não são aplicáveis as isenções das alíneas g) e h) do n.º 1do artigo 7º do CIS».
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Concluindo que, “Por fim, reiterar e reforçar que se na primeira parte do n.º 2do artigo 7.º do CIS, o legislador parece ter pretendido circunscrever o âmbito da isenção da al. g) do n.º 1 às operações financeiras efetuadas com intervenção de sociedades residentes, ao afastar as operações financeiras em que qualquer dos intervenientes – participante ou participada – não tenha a sede ou direção efetiva em território português, essa intenção acaba, a final, por não se concretizar integralmente, porquanto, como essa opção conduziria a um tratamento discriminatórios das sociedade não residentes, suscetível de ser posto em causa, quer pelo Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), quer pelas convenções para evitar a dupla tributação celebradas por Portugal, o legislador abriu a possibilidade de a isenção subsistir quando o credor tenha a sede ou direção efetiva noutro Estado membro da UE”.
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Em sede de decisão definitiva da reclamação graciosa apresentada, a AT manteve na íntegra, a posição que fez constar do projeto de indeferimento.
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A Requerente apresentou Recurso Hierárquico da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2019..., a 23.08.2019.
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Em 22.10.2020, foi notificada, através do Ofício n.º ..., de 23.10.2020, da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico.
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Considerou a AT que “a transferência dos excedentes de tesouraria da conta da recorrente, para a conta da sociedade B... corresponde a uma operação financeira de concessão de crédito (disponibilização de fundos) sob a forma de fundos, que ocorre em território nacional, uma vez que a A... tem sede em Portugal (entidade mutuante) e a B... (entidade mutuária), tem sede em França”.
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“Da análise aos extratos de conta da conta 266105 e dos movimentos de transferência entre a A... e a conta da B..., verifica-se que ocorreram, ao abrigo do contrato de cash pooling (gestão integrada de tesouraria), diversas operações de transferência de saldos (excedentes de tesouraria) entre a conta da recorrente e a conta da B... (a qual, poderia utilizá-los no auxilio a outras empresas do grupo, que necessitassem de capital), que não podem deixar de consubstanciar financiamentos concedidos através da realização de operações de tesouraria, verificando-se, assim, a concessão de crédito a que alude a referida verba 17.1.4 da TGIS. ”.
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E que“atendendo ao n.º 2 do artigo 7.º do CIS, podemos constatar que os financiamentos concedidos pela A... à B..., sociedade com a qual se encontra em
relação de domínio ou de grupo, não podem aproveitar da isenção de IS consagrada na 2.ª parte da alínea g) do artigo 7.º do mesmo diploma, porquanto, a mesma está condicionada pelo seguinte: «O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas em território nacional»”.
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Acrescenta que “Atendendo à situação aqui em apreciação, e em face dos fluxos financeiros realizados entre a A... e a B..., verifica-se que o credor é a A..., sendo ela a concedente do crédito, cuja sede se situa em Portugal, pelo que nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, não são aplicáveis as isenções das al. g) e h) do n.º 1 do mesmo artigo”.
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Concluindo a AT nesta sequência que “Do exposto, as operações de financiamento concedidas pela requerente à B..., estão assim sujeitas a IS”.
Argumentação das partes
A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos seguintes argumentos:
a) Os atos impugnados afiguram-se ilegais, por violação das normas de incidência do Código do Imposto de Selo (CIS) e, ainda, por violação dos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecidos nos artigos 18.º, 63.º e 65.º, n.º 3 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante, “TFUE”), aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”);
b) A concessão de crédito está sujeita a imposto do selo, qualquer que seja a natureza e forma, relevando, contudo, para o efeito, a efetiva utilização do crédito concedido e não o contrato que lhe é subjacente, como decorre do artigo 5.º, n.º 1, alínea g), do CIS;
c) É a utilização do crédito, e não a sua contratualização, que releva enquanto facto tributário no CIS, pois é nessa utilização, e não na contratualização da operação que a possibilita, que se encontra uma possível manifestação de capacidade contributiva;
d) A regra geral de incidência territorial, constante do artigo 4.º, n.º 1, do CIS, dispõe que “Sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional”;
e) No CIS, merece especial relevo a alteração da filosofia de tributação do crédito, que passou a recair sobre a sua utilização e não já sobre a celebração do respetivo negócio jurídico de concessão;
f) O que se sujeita a IS, ao abrigo da Verba 17.1 da TGIS, é a utilização de crédito, ou seja, o facto tributário considera-se ocorrido/verificado no momento em que o mutuário levanta (utiliza) os fundos colocados à sua disposição através do contrato de mútuo, momento em que se devem verificar os demais requisitos de que depende a incidência tributária, desde logo, no que diz respeito à incidência territorial;
g) A utilização de fundos ocorre no local onde o seu utilizador recebe o capital mutuado, i.e., no local em que a obrigação do mutuante de entregar o capital ao mutuário é cumprida, sendo que nos termos do artigo 774.º do Código Civil, aplicável por força do n.º 1, do artigo 11.º, da LGT, e, na falta de disposição em contrário, as obrigações pecuniárias devem ser cumpridas no domicílio do credor;
h) Quando a lei define o facto tributário como a “utilização de crédito” está em causa a obrigação do mutuante de entregar ao mutuário – geralmente mediante um pedido de utilização – uma determinada quantia em dinheiro, pelo que o credor dessa prestação é o mutuário e o devedor dela é o mutuante;
i) Exceto quando as partes convencionem em sentido contrário, o crédito é utilizado no domicílio do mutuário, pois é ele que é credor do direito a receber os fundos mutuados – e é ele quem beneficia do acréscimo de liquidez relevante que permite “sustentar” o ímpeto tributário do Estado em sede de IS;
j) Da conjugação da Verba 17.1 da TGIS com a norma de incidência territorial constante do n.º 1 do artigo 4.º do CIS, resulta que há incidência de IS quando o facto tributário – utilização dos fundos – ocorra em território nacional, sendo o crédito utilizado no local em que o capital é recebido pelo mutuário;
k) Para se evitar a facilidade de contornar um critério meramente formal, as regras de incidência do CIS são completadas por regras de extensão da territorialidade, que, no caso do CIS, constam das várias alíneas do n.º 2, do artigo 4.º, sendo especialmente relevante, no caso, a alínea b), que determina a incidência do IS sobre todas as operações de crédito em que o mutuário – e não o mutuante – é entidade domiciliada em território nacional, independentemente do local da utilização dos fundos, referindo-se a lei expressamente “a quaisquer entidades (…) domiciliadas neste território” (e não “por quaisquer entidades (…) domiciliadas neste território”);
l) As operações em causa não estão abrangidas pelas normas de incidência do artigo 4.º do CIS, porquanto o único elemento de conexão que apresenta com o território português é a residência do concedente do crédito;
m) O beneficiário do alegado crédito é residente fora de Portugal, a concessão do crédito ocorre fora de Portugal, os fundos mutuados encontram-se fora de Portugal e são utilizados por esse beneficiário igualmente fora de Portugal;
n) As operações financeiras aqui em causa não se encontram localizadas em Portugal para efeitos de IS, porque a entidade financiada, a B..., sendo gestora dos excedentes de tesouraria das demais empresas do Grupo D..., tem sede em França;
o) Considerar que as operações não se encontram isentas porque um dos intervenientes não tem sede em Portugal e a Requerente tem sede em território português é incorreto, por ser manifestamente restritivo da liberdade de circulação de capitais, assim como discriminatório, sendo que este, ademais, representaria um obstáculo real e injustificado à internacionalização das empresas portuguesas;
p) O artigo 63.º do TFUE (antigo artigo 56.º do TCE, anterior artigo 73.º-B) estabelece que “[N]o âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros (…)”. 135º., conforme expressamente definido pela Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24.06.88, para execução do artigo 67.º do Tratado, os empréstimos, designadamente os de curto prazo, são considerados movimentos de capitais;
q) Perante uma vantagem fiscal cujo benefício seja recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação, na aceção do TFUE, quando não exista qualquer diferença objetiva de situação suscetível de justificar diferenças de tratamento, quanto a este aspeto, entre as duas categorias de contribuintes;
r) A exclusão de aplicação da isenção a entidades devedoras residentes na União Europeia constitui uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais e um tratamento discriminatório dos não residentes, devendo por isso tal norma ser considerada ilegal por incompatível com o artigo 63.º do TFUE;
s) No caso, estaríamos perante um imposto de obrigação única, cobrado sobre o valor de um ato, pelo que se teria de concluir, necessariamente, pela comparabilidade das situações entre residentes e não residentes;
t) Verificam-se, no caso, os seguintes pressupostos para que à Requerente seja reconhecido o direito a receber juros indemnizatórios: i) erro imputável aos serviços no apuramento do imposto devido; ii) que do referido erro resulte o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido; e iii) que o erro dos serviços, seja analisado em sede de reclamação graciosa ou impugnação judicial.
u) A Requerente vem pedir que:
i. sejam a. anulados os atos tributários de liquidação de Imposto do Selo, identificados com os n.ºs 2018..., de 06.11.2018, referente ao período de tributação de 2016, no valor de € 719.291,54, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante, “AT”), e de Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., no valor total de € 62.774,11, as quais originaram um valor global a pagar de € 782.065,65;
ii. anulada a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada (procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019...);
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anulada a decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado (procedimento de recurso hierárquico n.º ...2019...; e
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condenada a AT no pagamento de juros indemnizatórios,
A Requerida respondeu, por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos:
a) Considerando os elementos tempo, risco, confiança e juro, os fundos cedidos pela Requerente à B... (sedeada na França), no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, preenchem o conceito de crédito, consubstanciando operações financeiras sujeitas e não isentas de IS, para efeitos da Verba 17 da TGIS;
b) Uma vez que estamos em presença de uma concessão e utilização de crédito, temos a A... Lda., sujeito passivo nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do CIS, com sede em Portugal, como entidade mutuante (concedente) e a B..., com sede em França, como entidade mutuária (utilizadora), pelo que a realização do crédito (disponibilização dos fundos) ocorre em território nacional, tratando-se assim de uma operação sujeita a Imposto do Selo, de acordo com o princípio da territorialidade instituído no referido n.º 1 do artigo 4.º do CIS, tributada pelas taxas previstas na verba 17.1;
c) As partes não definiram uma data específica do calendário para o reembolso dos empréstimos concedidos, tendo ficado estipulada a renovação automática por períodos de um ano (na ausência de notificação das partes em contrário), podendo o reembolso do crédito utilizado ocorrer em qualquer um dos dias de calendário até ao dia 1 de janeiro de 2017, devendo proceder-se à tributação pela verba 17.1.4;
d) O imposto de selo incide sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito, nas quais comummente se incluem a abertura de crédito, empréstimos, cessão de créditos, factoring e operações de tesouraria;
e) Não obstante, o princípio ser o de que o encargo do imposto (conforme alínea f), do n.º 3, do artigo 3.º do CIS) se reflete sobre a entidade utilizadora daquela concessão, uma vez que é sob esta última que reside o respetivo interesse económico, a regra geral de incidência no que concerne a estas operações é a de que as entidades concedentes de crédito têm a obrigação de promover a liquidação do imposto e respetivo pagamento, conforme resulta da letra da alínea b), do n.º1, do artigo 2.º do CIS;
f) Caso um dos intervenientes não tenha sede em território nacional, as isenções constantes das alíneas g) e h), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, lidas em conjunto com o n.º 2 deste artigo, só prevalecem caso o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação, sobre o rendimento e o capital, acordada com Portugal;
g) A isenção constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 7.º do CIS, referindo que este não é aplicável ao caso em apreço, dado que, não existindo qualquer participação da Requerente na B..., os fundos não têm caráter de suprimentos na medida em que não são efetuados por sócios às sociedades suas participadas;
h) De acordo com a alínea b), do n.º 1, do artigo 2.º do CIS, são sujeitos passivos do imposto as “entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações”, abrangendo assim a Requerente;
i) Se na primeira parte do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, o legislador parece ter pretendido circunscrever o âmbito da isenção da alínea g) do n.º 1 às operações financeiras efetuadas com intervenção de sociedades residentes, ao afastar as operações financeiras em que qualquer dos intervenientes – participante ou participada – não tenha a sede ou direção efetiva em território português, essa intenção acaba, a final, por não se concretizar integralmente, porquanto, como essa opção conduziria a um tratamento discriminatório das sociedade não residentes, suscetível se ser posto em causa, quer pelo TFUE, quer pelas convenções para evitar a dupla tributação celebradas por Portugal, o legislador abriu a possibilidade de a isenção subsistir quando o credor tenha a sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia.
II. SANEAMENTO
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. art.s 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
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Em 20.10.2021 a Requerente veio solicitar ao Tribunal a admissão de junção aos presentes autos do acórdão do Caad no processo 57/2021-T aplicável em matéria em tudo idêntica à dos presentes autos, considerando o princípio da colaboração e a prossecução pelo tribunal da descoberta da verdade material.
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A Requerida, notificada em 22.10.2021 pelo Tribunal para se pronunciar sobre o requerimento referido no anterior ponto, respondeu em 03.11.2021 considerando que, por um lado, estaria ultrapassado o prazo para junção de novos elementos ao processo para além do referido acórdão do Caad não estar ainda transitado em julgado; por outro lado, cita e junta o acórdão no processo 279/2020-T alegando que esta decisão do Caad foi objecto de recurso junto do Supremo Tribunal Administrativo em 15.02.2021 tendo dado origem ao processo nº 2/21.3BALSB. Termina solicitando a suspensão desta instância até à decisão do STA no suscitado processo de uniformização de jurisprudência cujo prazo se encontra a decorrer.
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Em 14.02.2022 a Requerente pronunciou-se sobre o pedido da Requerida de suspensão da instância até à decisão do STA de uniformização de jurisprudência considerando que razões de celeridade processual e informalidade prejudicariam esta suspensão e que não se encontram assim verificadas as condições que justificam e legitimam a suspensão da presente instância.
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O Tribunal, ponderando as razões das partes, decidiu pela suspensão da instância tendo notificado em 15.02.2022 as partes da decisão de suspensão da instância até à prolação da decisão do STA, que recair sobre a decisão arbitral relativa ao processo n.º 279/2020-T.
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Em 07.07.2023 a Requerente apresentou requerimento informando o Tribunal que em 24.05.2023 foi proferido Acórdão pelo STA, no âmbito do Processo supra identificado, que juntou como Documento n.º 1. No que respeita à admissibilidade do recurso, o STA entendeu encontrarem-se preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, concluindo que “existe oposição quanto à mesma questão fundamental de direito, e não existindo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo sobre a matéria, há que conhecer do mérito do recurso”.
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Por outro lado, o STA entendeu que, em face da particularidade do caso, existiriam dúvidas na interpretação do Direito da União Europeia, o que levou a entendimentos opostos, pelo que decidiu no Acórdão em questão(i) submeter à apreciação do TJUE a questão prejudicial acima enunciada; e (ii) suspender a instância de recurso, nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
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Em 24.06.2024 a Requerente requereu a junção aos autos do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido, em 20.06.2024, Processo C-420/23, na sequência do pedido de reenvio prejudicial efetuado pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), no âmbito do Processo n.º 2/21.3BALSB, referente ao recurso para uniformização de jurisprudência interposto da decisão arbitral proferida no processo n.º 279/2020-T.
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Instada a pronunciar-se a Requerida defendeu que a instância deveria manter-se suspensa até à notificação do acórdão do STA, tendo designadamente em consideração o ponto 35. do acórdão do TJUE, o qual remete para o órgão jurisdicional de reenvio a verificação de diferenças de situações objetivas que justifiquem a restrição da regulamentação nacional.
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O Tribunal emitiu Despacho em 08.08.2024 determinando que, uma vez que se tinha ordenado a suspensão da instância até à prolação da decisão do recurso para uniformização de jurisprudência, interposto da decisão proferida na ação arbitral n.º 279/2020-T, que corria termos no STA sob o processo n.º 2/21.3BALSB e não tendo ainda havido decisão de uniformização do STA não estava verificada a condição de termo dessa suspensão da instância, a qual se deveria manter.
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Em 21.10.2024 o Requerente vem requerer a junção aos autos do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (adiante "STA") proferido em 17.10.2024, no âmbito do Processo n.º 2/21.3BALSB, referente ao recurso para uniformização de jurisprudência interposto da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (adiante “CAAD”) no processo n.º 279/2020-T.
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Em 29.10.2024 o Tribunal, tendo emitido despacho de suspensão da instância, no dia 15 de Fevereiro de 2022, até à prolação da decisão do STA que recaisse sobre a decisão arbitral relativa ao processo n.º 279/2020-T, tendo sido notificado do referido acórdão, determinou o prosseguimento da instância para prolação da decisão arbitral, no prazo máximo de 15 dias.
III. DO MÉRITO
III.1.1. Factos provados
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Com base nos elementos documentais constantes dos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de produção e comercialização de capas, espumas, estofos e estruturas metálicas para assentos de automóveis (C.A.E. 29320 – R3);
b) À data dos factos a Requerente era detida pelas sociedades B... S.A., sedeada em França (99,99%) e C..., S.A., também sedeada em França (0,01%);
c) Em 23.02.2000, foi celebrada a “Convention d’Omnium” entre a sociedade C... e as entidades aderentes do grupo, consistindo num acordo de cash pooling; (cfr. Documento n.º 4)
d) Em 08.06.2009, a sociedade C... celebrou com a instituição financeira E... S.A., o “E… Cash Centralisation Agreement” (Documento n.º 5)
e) A Requerente aderiu a este acordo de cash pooling do grupo em 20.07.2010, através do “Bulletin d’Adhèsion”; (Documento n.º 6)
f) Em 30.12.2010, a Requerente, a C... e a B... celebram um contrato de cessão de posição contratual/cedência de crédito em que a B... e a Requerente assinaram um novo contrato de empréstimo com efeitos a 01.01.2011, no qual a Requerente figura como mutuante e a B... como mutuária – no qual a primeira concede um empréstimo à segunda na modalidade de crédito rotativo de um ano, no montante máximo de € 65.000.000,00, contra o pagamento de juros, à taxa média da Euribor a 1 mês, arredondada para 1/16 de 1% adicionada de uma margem de 0,5% ao ano, calculados no fim de cada mês com base na utilização mensal de crédito –, tendo a C... transferido para a B... os direitos e obrigações8resultantes da “Convention d’Omnium”. (cfr. Documentos n.º 7 e n.º 7)
g) Em 01.01.2013, a “Amendment 2 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” alargou o período do contrato de 01.01.2013 para 01.01.2015; (cfr. Documento n.º 9)
h) Em 03.12.2013, a “Amendment 3 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” alterou o montante máximo do empréstimo de € 65.000.000,00 para € 100.000.000,00; (cfr. Documento n.º 10)
i) Em 01.10.2014, a “Amendment 4 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, alterou o montante máximo do empréstimo de € 100.000.000,00 para € 200.000.000,00; (cfr. Documento n.º 11)
j) Em 31.12.2014, a “Amendment 5 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” alargou o período do contrato de 01.01.2015 para 01.01.2017; (cfr. Documento n.º 12)
k) Em 15.05.2012 foi celebado o “Appendix 2 – Participation form to the E... Cash Concentration Agreement”, segundo o qual a Requerente foi incluída no acordo celebrado com o E... ; (cfr. Documento n.º 13),
l) Em 23.05.2012 foi celebrado o Appendix 1 – Automated Centralization of Cash Management per hierarchy”, (cfr. Documento n.º 14);
m) Em 12.09.2014, o “Appendiz 1.1. – Description of the Hierarchy”, é identificada a Master Account no contrato de cash pooling (localizada em França), e as Intermediate Accounts, entre elas a da Requerente (localizada em Portugal);
n) A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva de âmbito geral, desencadeada pela Ordem de Serviço N.º OI2018..., de 02.03.2018, que incidiu sobre o exercício de 2016, e no âmbito da qual se concluiu pelo apuramento do imposto em falta, a título de imposto do selo, no montante que ascendia a € 719.291,54 acrescido do montante de juros compensatórios de € 62. 774,11, no montante global liquidado de € 782,065,65 (cfr. Documento nº 1);
o) A Requerente apresentou Reclamação Graciosa das liquidações aqui contestadas a 12.04.2019 objecto de indeferimento em 25.07.2019.
p) Em 26.07.2019, foi notificada, através do Ofício n.º..., de 25.06.2019, do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa (cfr. Documento 2)
q) A Requerente apresentou em 23.08.2019 Recurso Hierárquico da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa - (procedimento de recurso hierárquico n.º ..2019...).
r) Em 22.10.2020, foi notificada, através do Ofício n.º..., de 23.10.2020, da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico (cfr. Documento nº 3).
s) A Requerente vem impugnar o acto tributário n.º: 2018..., de 06.11.2018, referente ao período de tributação de 2016, no valor de € 719.291,54, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira e a Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2018 ..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018 ..., no valor total de € 62.774,11, as quais originaram um valor global a pagar de € 782.065,65 (Documento n.º 1).
t) Tendo por base as conclusões do Relatório de Inspeção Tributária (RIT), conforme processo administrativo junto ao processo foi efetuada a seguinte liquidação adicional de imposto do selo:
Liquidação n.º 2018...-
Imposto de Selo: € 712.291,54-
Juros Compensatórios: € 62.774,11-
Total: € 782.065,65-
Pago em 12.12.2018
III.1.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
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Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, as provas apresentadas, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
Questão decidenda
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A questão central no presente processo consiste em saber se se aplica, ou não, a Verba 17.1.4, da TGIS, às operações financeiras em presença, mais concretamente aos saldos médios mensais dos depósitos resultantes de excedentes de tesouraria apurados no âmbito de um contrato denominado de cash pooling celebrado em 08.06.2009 entre a sociedade C... sedeada em França e o Banco E... SA, a que Requerente aderiu em 20.07.2010, na sequência do qual a Requerente e as sociedades C... S.A e B... SA, ambas sedeadas em França, celebraram contrato de cedência de crédito que a final permitia a cada uma das empresas do Grupo D... ver colmatadas as necessidades de tesouraria por via dos excedentes gerados também pelas diferentes entidades daquele Grupo de empresas, sendo gestora desses fluxos monetários a empresa B... SA.
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Em causa está a decisão de indeferimento, com fundamento em ilegalidade, da Reclamação Graciosa nº ...2019... apresentada pela Requerente e tendo por objecto os actos tributários de liquidação de IS referente ao período de tributação de 2016, no valor de € 719.291,54, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira e a Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., no valor total de € 62.774,11, as quais originaram um valor global a pagar de € 782.065,65
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A questão decidenda, foi já objecto de algumas decisões de tribunais arbitrais, constituídos sob a égide do CAAD, inclusive relativas às mesmas partes da presente acção arbitral, e em sentido divergente.
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Assim, nos processos arbitrais n.º 277/2020-T, nº 280/2020-T e 57/2021-T , conclui-se pela procedência integral do pedido arbitral, enquanto que no processo arbitral 279/2020-T concluiu-se, precisamente, em sentido oposto.
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Ressalvado o muito respeito por outras opiniões, tende-se a subscrever a primeira linha de decisões, concluindo pela procedência do pedido, com fundamentação similar á produzida no Acórdão nº 57/2021-T
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Efectivamente, e desde logo, a decisão do processo 279/2020-T, assenta, essencialmente no entendimento de que “não o entendeu assim o STA, que sustentou, a este propósito, que com a verba 17.1.4. da TGIS pretende-se tributar as transferências de saldos entre uma empresa nacional e a entidade centralizadora, ainda que sediada noutro Estado-Membro da União Europeia, devendo tais transferências de saldos ser qualificadas como financiamentos concedidos também para efeitos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do CIS. O facto tributário seria assim a concessão do crédito, pressuposto da posterior utilização, sendo o sujeito passivo o concedente do crédito, nos termos dos artigos 2.º, 23.º, n.os 1 e 2, e 41.º do CIS. O elemento de conexão relevante para aferir a incidência territorial do IS é o local da concessão do crédito, que determina o dever de liquidar do concedente. Incumbiria à Requerente a liquidação do IS, na qualidade de concedente do crédito, que seguidamente o deveria debitar à E..., não residente. O STA entendeu estar-se perante uma tributação que tem previsão legal e um elemento de conexão territorial com Portugal, validando assim a interpretação adotada pela AT.”.
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Este decisão sustenta-se na alegada jurisprudência do STA que, segundo o disposto na decisão do CAAD nº 279/20202 assenta no seguinte:
“….como sublinhou o STA , que nos casos de cash pooling o facto tributário é a concessão de crédito (e não a posterior utilização) e o sujeito passivo é o credor (mutuante) com sede e direção efetiva no território nacional, nos termos dos artigos 2.º, 4.º, n.º 1, 23.º, n.os 1 e 2, e 41.º do CIS. Ora, e este é o segundo ponto, os sujeitos passivos (credores, mutuantes) residentes em Portugal não são objeto de qualquer tratamento fiscal diferenciado, pelas normas de IS em análise, em função da nacionalidade ou residência dos seus mutuários. Em qualquer dos casos aplica-se ao credor residente o imposto previsto na verba 17.1.4.
Em terceiro lugar, tão pouco são os mutuários de um credor ou mutuante residente em território nacional tratados de forma diferente, enquanto titulares do interesse económico na qualidade de utilizadores do crédito concedido , em função da sua concreta nacionalidade ou residência. Em ambos os casos, os mesmos podem ser demandados no caso de incumprimento do sujeito passivo mutuante, por via da substituição fiscal imprópria.
Finalmente, também os devedores residentes em Portugal não são tributados de forma mais agravada, em IS, se decidirem celebrar contratos de mútuo com credores sediados noutro Estado-Membro da União Europeia, em termos que os impeçam ou dissuadam de celebrar esses contratos . Por outras palavras, em momento algum são os devedores residentes em Portugal penalizados em IS pelo simples facto contraírem um crédito junto de um mutuante não residente e não junto de um mutuante residente. Recorde-se, mais uma vez, que o IS em análise, nos contratos de cash pooling recai diretamente sobre os credores, e não sobre os devedores, não estando uns e outros em situação objetivamente comparável, nem havendo lugar à aplicação de normas idênticas a situações diferentes ou de normas diferentes a situações idênticas.
Deve ser, assim, acolhida a orientação do STA, já mencionada , ao considerar que as transferências de saldos, tanto são tributadas quando ocorrem entre empresas nacionais, entre empresas de Estados-Membros ou até entre empresas de Estados-Membros e de países terceiros, aplicando-se sempre as normas constantes dos artigos 1º. n º 1, 2º, b), 3º, n.º 1, f), 4º, n.º 1, 23º, n.º 1, 41º e 44º, todos do CIS, e ao não vislumbrar que sejam ofendidas as normas do artigo 63.º do TFUE e 40.º do Acordo EEE, que consagram a livre circulação de capitais, uma vez que estas normas relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações económicas legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade ou do território, quando duas empresas operem nas mesmas condições e sujeitas aos mesmos acordos.”
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Não nos parece que esta jurisprudência seja conclusiva no sentido de corroborar a leitura da mesma feita naquela decisão arbitral proferida no processo arbitral 279/2020-T, essecialmente por duas ordens de razão.
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Por um lado, sempre ressalvada melhor opinião, crê-se que a questão da territorialidade da incidência não foi objecto directo de apreciação e decisão pelo STA.
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Por outro lado, lendo a fundamentação de alguns dos arestos daquele Supremo Tribunal, corroboramos fundamentos para concluir no sentido contrário ao decidido naquele referido processo arbitral 279/2020-T.
ENQUADRAMENTO DAS OPERAÇÕES EM SEDE DE IS
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O sistema de "Cash Pooling" consubstancia-se num serviço financeiro que poderá ser utilizado entre contas bancárias de uma só empresa, ou entre contas bancárias de várias empresas do mesmo grupo, tratando-se da gestão conjunta desses capitais na vertente da rendibilidade do capital. Ou seja, mediante excedentes de tesouraria que existam de forma dispersa em várias contas, e/ou carências de tesouraria noutras contas, poderá proceder-se à sua gestão conjunta e possibilitar a concessão de créditos entre empresas.
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Ora, as operações financeiras, nas quais se inclui a concessão e utilização de crédito a qualquer título, estão sujeitas a IS.
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De acordo com o princípio da territorialidade estabelecido pelo n.º 1 do art.º 4.º do Código do Imposto do Selo (CIS) "o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo Io ocorridos em Território Nacional.
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Por sua vez o n.º1 do art.º 1 do CIS, refere que "O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis, e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as Transmissões gratuitas de bens".
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O Código do Imposto do Selo tributa a "utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, de acordo com as taxas referidas no ponto 17.1 da Tabela Geral, anexa ao Código do Imposto do Selo "sobre o respectivo valor em função do prazo".
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A taxa a aplicar ao referido crédito é a referida na Tabela Geral do Imposto do Selo no ponto 17.1.4 ou seja 0,04% "sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente durante o mês, divididos por 30".
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A transferência dos excedentes de tesouraria da conta da Requerente, para a conta da sociedade B... corresponde a uma operação financeira de concessão de crédito (disponibilização de fundos) sob a forma de fundos, que ocorre em território nacional, uma vez que a Requerente tem sede em Portugal (entidade mutuante) e a B... (entidade mutuária), tem sede em França.
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As entidades responsáveis pela liquidação e entrega do imposto serão sempre, em qualquer dos casos, as entidades domiciliadas em território nacional.
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Assim, a realização do crédito (sob a forma de conta corrente), é uma situação sujeita a Imposto do Selo de acordo com o nº. 1 do artigo 4.º do CIS e em que a obrigação do imposto se considera constituída no último dia de cada mês, de acordo com a alínea g) do artigo 5.º do mesmo diploma.
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Verifica-se que ocorreram, ao abrigo do contrato de cash pooling (gestão integrada de tesouraria), diversas operações de transferência de saldos (excedentes de tesouraria) entre a conta da Requerente e a conta da B..., a qual, poderia utilizá-los no auxílio a outras empresas do grupo, que necessitassem de capital, que não podem deixar de consubstanciar financiamentos concedidos através da realização de operações de tesouraria, verificando-se, assim, a concessão de crédito a que alude a referida verba 17.1.4 da TGIS.
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O n.º 2 do artigo 7.º do CIS, que estabelece uma isenção nos financiamentos concedidos entre sociedades que se encontram em relação de domínio ou de grupo, não podem aproveitar neste caso à Requerente dado que esta isenção está condicionada pelo seguinte:
'O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional".
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Ou seja, caso um dos intervenientes não tenha sede em território nacional, as isenções da al. g) e h) apenas prevalecem se o credor (esta exceção, relativamente ao domicílio do credor, apenas se aplica quando o devedor esteja sedeado em território nacional, uma vez que quando tal não sucede, não existe nenhum elemento de conexão, que permita localizar a operação em Portugal) tenha sede ou direção efetiva noutro Estado Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação, sobre o rendimento e o capital, acordada com Portugal.
QUANTO À QUALIFICAÇÃO DAS OPERAÇÕES EM CAUSA COMO OPERAÇÕES DE CRÉDITO
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No caso dos autos os fundos cedidos pela Requerente excedem os fundos obtidos por esta a partir da B... e esta diferença reveste a forma de crédito concedido pela Requerente à B... .
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Assim, os fundos cedidos pela Requerente à B..., no âmbito do contrato de gestão centralizada de tesouraria, consubstanciam financiamentos concedidos e utilizados pela B..., nomeadamente, para sucessivos financiamentos a outras entidades do grupo, por forma a otimizar a gestão de tesouraria no âmbito de um grupo económico.
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A transferência dos excedentes de tesouraria da conta da Requerente para a conta da B..., junto do E..., corresponde a um financiamento concedido pela primeira, à segunda, na medida em que estamos no domínio das operações financeiras de concessão de crédito sob a forma de disponibilização de fundos.
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De facto, os saldos bancários credores e devedores de cada uma das empresas aderentes ao acordo são efetivamente transferidos numa base diária para uma única conta bancária global constituída junto do Banco e a quem cabe a gestão e, na prática vários saldos bancários da tesouraria de cada empresa são colocados a zero (Zero Balancing), por via da transferência de montantes excedentários para a conta centralizadora, sendo os saldos deficitários cobertos por um movimento de transferência em sentido inverso, da conta bancária centralizadora a favor da conta bancária da empresa deficitária de fundos.
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Da aglomeração de saldos, resulta um único saldo global, que corresponde à tesouraria consolidada do grupo e depois são calculados juros, que são creditados às sociedades aderentes ao acordo que transfiram os seus excedentes de tesouraria para a conta centralizadora, e que, pelo contrário, são debitados quando se verifique a situação inversa, ou seja, quando há transferência de saldos da conta centralizadora para as contas bancárias das sociedades participantes para cobertura de saldos deficitários.
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Pelo que é evidente que estes fluxos financeiros entre as empresas de um mesmo grupo económico configuram movimentos de concessão e obtenção de crédito, por forma a que no grupo se permita haver uma gestão de necessidades de fundos, verificando-se uma compensação diária com os excedentes e assim evitam a necessidade de socorrerem de outro método para satisfazer as necessidades de tesouraria do grupo e, consequentemente, suportar os respetivos custos de financiamento externo, porquanto, o contrato de «Cash Pooling» tem efetivamente esse objetivo gerir eficientemente as disponibilidades de tesouraria através de um mecanismo de compensação entre os excessos e necessidades de tesouraria dentro das empresas do grupo que participem neste sistema, ao invés de se socorrerem de financiamentos bancários propriamente ditos, salvaguardando-se assim o interesse do grupo.
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Como se escreveu na decisão 279/2020-T, «em causa não está saber se este tipo de transferências de excedentes de tesouraria são operações enquadráveis na verba 17.1. Sobre essa questão há consenso na jurisprudência do STA, que entende que “as operações de cash pooling estão sujeitas à tributação em imposto de selo nos termos do disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS e verba 17.1.4 da TGIS”.
QUANTO Á TERRITORIALIDADE
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O n.º 1 do artigo 4.º do CIS estabelece, sob a epígrafe territorialidade, que «sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional.»
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A Requerente alega que não estão abrangidas pelo campo de incidência do imposto do selo as utilizações de crédito que ocorram fora de Portugal por um mutuário que não seja aqui residente, como no caso sob apreço; ou por outras palavras, para a Requerente só há incidência de imposto do selo quando a utilização de crédito ocorra em território nacional.
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Mas a própria Requerente reconhece nas suas alegações de recurso (juntas ao seu PPA como doc. 18.º), mais concretamente no seu artigo 49.º, o qual transcrevemos, que: «a jurisprudência maioritária considera que as operações de cash pooling que envolvam a transferência de saldos de uma entidade residente (mutuante) para uma entidade não residente (mutuária) encontram-se sujeitas a Imposto do Selo.»
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Segundo a jurisprudência que emerge do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 28.11.2018, no âmbito do processo n.º 06/11.4BESNT 0436/16, aplicável a uma situação em que o concedente de crédito é uma entidade com sede em Portugal e o utilizador do crédito uma entidade ( que não a casa Mãe) sedeada na Suécia:
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Ocorreu, portanto, uma ou mais operações de transferência de saldos entre a(s) conta(s) da impugnante e a(s) conta(s) da entidade centralizadora, a A’…………, que não podem deixar de consubstanciar financiamentos concedidos através da realização de operações de tesouraria, verificando-se, assim, a concessão de crédito a que alude a referida verba 17.1.4 da TGIS.
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Com esta verba do IS pretende-se tributar as transferências de saldos entre a impugnante, enquanto empresa nacional, e a entidade centralizadora, sedeada na Suécia, devendo tais transferências de saldos ser qualificadas como financiamentos concedidos também para efeitos do disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS. Portanto, no caso concreto, incumbiria à impugnante a liquidação do imposto de selo, na qualidade de concedente do crédito, que seguidamente o deveria debitar à A’………… não residente.”
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Nos presentes autos a realização do crédito (disponibilização dos fundos) ocorre em território nacional, tratando-se assim de uma operação sujeita a Imposto do Selo, de acordo com o princípio da territorialidade plasmado no n.º 1 do artigo 4. ° do CIS, sendo tributada pelas taxas previstas na Verba 17.1. e ainda, de acordo com o n.º 1 do artigo 23. ° do CIS a liquidação e o pagamento do imposto compete a entidade concedente do crédito, no caso a Requerente.
QUANTO Á APLICAÇÃO DA ISENÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 7º Nº 1 ALÍNEA G) CONFRONTADA COM O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
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Afigura-se incontestável que, no âmbito da execução do cash pooling denominado «Convention d’Omnium», houve uma efetiva utilização de crédito pela B... (sediada em França), em virtude da sua concessão pela Requerente que, como tal, tiveram enquadramento no âmbito da incidência objetiva do imposto do selo, por força do n.º 1 do artigo 1.º do CIS e da verba 17.1.4 da TGIS.
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Diz a Requerida que: Ora, não se retira da conjugação das regras de incidência objetiva, previstas na verba 17.1 da TGIS, nem territorial prevista no artigo 4.º do CIS, em especial do seu n.º 1, ou até da alínea b) do seu n.º 2, que o legislador tenha alguma vez desejado que os empréstimos concedidos por uma sociedade residente em território nacional em favor da sua sociedade-mãe não residente, constituíssem operações financeiras não sujeitas a imposto do selo pelo simples facto de esta ter o seu domicílio fiscal no estrangeiro.
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Se acolhêssemos o entendimento da Requerente distinguindo, para efeitos de sujeição, os fluxos financeiros (concessão/utilização de crédito) realizados exclusivamente entre sociedades com sede ou direção efetiva em território nacional e entre estas e sociedades com sede ou direção efetiva no estrangeiro estaríamos a discriminar fiscalmente umas em favor de outras, ofendendo o princípio da igualdade de tratamento, da capacidade contributiva e a provocar, por essa via, uma distorção da concorrência, desconsiderando o princípio da neutralidade fiscal.
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Efetivamente, perante fluxos financeiros materialmente idênticos aos aqui contestados, as sociedades residentes beneficiárias de crédito estariam sempre sujeitas ao pagamento de imposto do selo, ao passo que as não residentes beneficiárias de crédito, como no presente caso, não estariam sequer sujeitas, independentemente do local de utilização efetiva desses fundos que poderia até ocorrer em território nacional.
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E citando a conclusão do Acórdão supra identificado: “A A………… tem sede em Portugal e a A’………… tem sede na Suécia. Não há dúvida, porque está provado documentalmente, que a impugnante e a referida A’………… fazem parte de um acordo de gestão integrada de tesouraria em que perante a existência de excedentes de tesouraria, no caso da impugnante, tais excedentes foram remetidos à A’………… que os utilizou no auxílio a outras empresas que necessitavam de capital e em contrapartida pagou juros à impugnante pela disponibilização desses excedentes com os quais contribuiu para a o referido acordo de gestão integrada. Ocorreu, portanto, uma ou mais operações de transferência de saldos entre a(s) conta(s) da impugnante e a(s) conta(s) da entidade centralizadora, a A’…………, que não podem deixar de consubstanciar financiamentos concedidos através da realização de operações de tesouraria, verificando-se, assim, a concessão de crédito a que alude a referida verba 17.1.4 da TGIS. Com esta verba do IS pretende-se tributar as transferências de saldos entre a impugnante, enquanto empresa nacional, e a entidade centralizadora, sedeada na Suécia, devendo tais transferências de saldos ser qualificadas como financiamentos concedidos também para efeitos do disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS. Portanto, no caso concreto, incumbiria à impugnante a liquidação do imposto de selo, na qualidade de concedente do crédito, que seguidamente o deveria debitar à A’………… não residente. E tais transferências de saldos, tanto são tributadas quando ocorrem entre empresas nacionais, entre empresas de estados-membros ou até entre empresas de estados-membros e de países terceiros, aplicando-se sempre as normas constantes dos artigos 1º. n º 1, 2º, b), 3º, n.º 1, f), 4º, n.º 1, 23º, n.º 1, 41º e 44º, todos do CIS. Nesta medida, não se vislumbra que sejam ofendidas as normas do artigo 63º do TFUE e 40º do Acordo EEE, que consagram a livre circulação de capitais, uma vez que estas normas relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações económicas legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade ou do território, quando duas empresas operem nas mesmas condições e sujeitas aos mesmos acordos que a impugnante e a A’………., em sentido coincidente, onde se decidiu que o direito da União era ofendido por haver um tratamento diferente em razão do território, pode ver-se o acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-439/97.
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Ora, de acordo com a alínea g) do n.º 1 do artigo 7.° do CIS estão isentas de imposto do selo «as operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas a cobertura de carência de tesouraria e efetuadas par sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por outras sociedades a favor de sociedades por estas dominadas ou a sociedades em que detenham uma participação de, pelo menos, 10% do capital com direito de voto ou cujo valor de aquisição não seja inferior a € 5 000 000, de acordo com o último balanço acordado e, bem assim, efetuadas em beneficio de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo.»
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Por sua vez, o n.º 2 do art.º 7.º do CIS estabelece que: «O disposto nas alíneas g) e h), do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h), do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional».
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A B... com sede em França detém 99% do capital social da A... Requerente. De um ponto de vista do CIS, uma vez que o credor tem sede em Portugal e o devedor sede em França esta isenção não se aplica.
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Então termos que aferir se existe uma norma de hierarquia superior que afaste este tratamento diferenciado entre devedores com sede em Portugal e devedores com sede fora de Portugal, nomeadamente neste caso em França.
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No caso do Acórdão do STA citado a conclusão foi a de que não se deveria sobrepor o direito comunitário pois todas as empresas são tratadas exactamente da mesma forma, uma vez que não há qualquer referência nesse acórdão (pelo menos na parte citada pela Requerida e pelo acórdão do CAAD nº 57/2021 à existência de uma relação de domínio ou grupo entre a credora portuguesa e a devedora sueca.
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No presente caso essa relação existe, bem como estão verificados os requisitos da isenção da alínea g) do nº 1 do artigo 7º do CIS.
QUANTO Á INCOMPATIBILIDADE DO REGIME DO ARTIGO 7º DO CIS COM O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
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Seguimos neste ponto final a jurisprudência já citada plasmada no Acórdão do CAAD no processo nº 57/2021-T.
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A Requerente defende que deve ser aplicada a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, por, em suma, o afastamento da sua aplicação na situações em que o devedor tem sede ou direcção efectiva num Estado Membro da União Europeia não poder ser aplicado, por ser incompatível com os artigos 63.º e 65.º do Tribunal de Justiça da União Europeia (TFUE) e ser discriminatório.
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O artigo 8.º, n.º 4, da CRP estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
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Desta norma decorre a primazia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, quando não está em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
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Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia ( ).
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Os artigos 63.º e 65.º do TJUE estabelecem o seguinte:
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
Artigo 65.º
(ex-artigo 58.º TCE)
1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
4. Na ausência de medidas ao abrigo do n.º 3 do artigo 64.º, a Comissão, ou, na ausência de decisão da Comissão no prazo de três meses a contar da data do pedido do Estado-Membro em causa, o Conselho, pode adotar uma decisão segundo a qual as medidas fiscais restritivas tomadas por um Estado-Membro em relação a um ou mais países terceiros são consideradas compatíveis com os Tratados, desde que sejam justificadas por um dos objetivos da União e compatíveis com o bom funcionamento do mercado interno. O Conselho delibera por unanimidade, a pedido de um Estado-Membro.
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Os empréstimos de curto prazo são movimentos de capitais, como resulta da Directiva n.º 88/361/CEE, do Conselho de 24-06-1988, o que não é objecto de controvérsia.
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O TJUE, no acórdão 14-10-1999, proferido no processo n.º C-439/97, Sandoz GmbH, concluiu o seguinte (com actualização dos números dos artigos), em suma:
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a proibição do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE (anteriores artigo 73.º-B, n.º 1, e 56.º do Tratado CE) abrange quaisquer restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros e entre os Estados-Membros e países terceiros (n.º 18);
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uma legislação que priva os residentes num Estado-Membro da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos fora do território nacional, é um medida de molde a dissuadi-los de contraírem mútuos com pessoas estabelecidas noutros Estados-Membros (n.º 19 daquele acórdão, citando o acórdão de 14 de Novembro de 1995, Svensson e Gustavsson, C-484/93, Colect., p. I-3955, n.º 10)
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tal legislação constitui por isso uma restrição aos movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE (anteriores artigos 73.º-B, e 56.º) (n.º 20).
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Na verdade, à face deste regime, os residentes num Estado-Membro (França, neste caso) são privados da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos fora do seu território nacional.
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O facto de o sujeito passivo do imposto ser o credor (a Requerente) e não o devedor não afasta esta conclusão.
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Na verdade, embora não se esteja perante uma situação de substituição tributária em sentido próprio (que se efectua através de retenção na fonte do imposto liquidado pelo substituto, nos termos do artigo 20.º da LGT), está-se perante uma situação em que se admite (e legalmente se pretende) a repercussão económica do imposto em relação ao titular do interesse económico, que é o utilizador do crédito, que deve suportar o encargo do imposto, nos termos dos n.ºs 1 e 3, alínea f), do artigo 3.º do CIS.
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Aliás, nestas situações de substituição fiscal imprópria, no caso de não pagamento do imposto pelo sujeito passivo (credor), o imposto até poderá ser exigido directamente ao titular do interesse económico, designadamente nos casos de operações de cash pooling, como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 19-02-2020, proferido no processo n.º 2244/12.3BEPRT 0898/17. ( )
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Por isso, este regime legal reconduz-se a que, na perspectiva legislativa, é sempre o utilizador do crédito que acaba por pagar o Imposto do Selo, seja por ele lhe ser repercutido pela entidade concedente, seja por ele lhe ser directamente exigido.
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Assim, o afastamento da isenção nas situações em que devedor tenha sede ou direcção efectiva num Estado Membro constitui uma restrição aos movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, que só pode ser admitida nas situações previstas no artigo 65.º do mesmo diploma.
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Na alínea a) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, permite-se aos Estados-Membros «aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido».
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Na interpretação deste artigo 65.º o TJUE entendeu o seguinte, no acórdão de 22-11-2018, proferido no processo n.º C-575/17 - Sofina SA: “Esta disposição, na medida em que constitui uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objeto de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado Membro onde invistam os seus capitais será automaticamente compatível com o Tratado. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.o, n. o 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no n.º 3 desse mesmo artigo, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.o [TFUE]» (Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C 10/14, C 14/14 e C 17/14, EU:C:2015:608, n.º 63).»
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Assim, há que distinguir as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65º n.3, TFUE. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento que daí resulta respeite a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por uma razão imperativa de interesse geral (Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C 10/14, C 14/14 e C 17/14, EU:C:2015:608, n. o 64).
COMPARABILIDADE DE SITUAÇÕES
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No caso em apreço, está-se perante um imposto de obrigação única, devido relativamente a cada acto de concessão de crédito, e os intervenientes num contrato de cash pooling encontram-se em situações idênticas, independentemente do local da sua residência ou do local onde o capital é investido, havendo mesmo possibilidade de frequentes inversões das posições de credor e devedor no âmbito do mesmo contrato, em função das disponibilidades e necessidades de tesouraria de cada um dos intervenientes.
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Assim, tem de se concluir pela comparabilidade das situações entre residentes e não residentes, para efeitos da isenção em causa, em contratos do tipo do dos autos.
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Neste contexto, a atribuição de uma vantagem fiscal aos devedores residentes em Portugal que é recusada aos devedores não residentes constitui, como defende a Requerente, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes, que é de qualificar como discriminação, na acepção do Tratado, por não existir qualquer diferença objectiva de situação susceptível de justificar tratamento diferenciado.
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Assim, a alínea a) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 65.º do TFUE não permitem o regime consubstanciado nas referidas normas do CIS, pois a diferença de tratamento não é justificada por uma diferença de situação objetiva.
RAZÕES IMPERIOSAS DE INTERESSE GERAL
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A alínea b) do n.º 1 deste artigo 65.º do TFUE admite que os Estrados Membros tomem «todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública».
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Como se vê pelo n.º 46 do citado acórdão proferido no processo n.º C-575/17, o TJUE entende que, relativamente a situações comparáveis, a diferença de tratamento só pode ser justificada «por uma razão imperativa de interesse geral».
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No caso em apreço, afigura-se ser manifesto que não existe qualquer razão de interesse geral que possa justificar a referida discriminação, o que nem sequer é aventado pela Administração Tributária.
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Na verdade, está-se perante uma situação que não há dificuldades de eficaz controlo fiscal, pois há possibilidade de a Administração Tributária fazer uso das trocas de informações previstas na generalidade das Convenções para evitar Dupla Tributação.
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Por outro lado, não se vislumbra qualquer outra razão de interesse público que possa justificar o tratamento discriminatório referido, designadamente uma hipotética intenção legislativa de evitar fraudes e abusos no âmbito das operações de tesouraria de curto prazo entre empresas do mesmo grupo, pois a intenção geral que está ínsita na atribuição dos benefícios fiscais previstos nas alíneas g) a i) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, não pode ser a de «impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, cujo objetivo é beneficiar indevidamente de uma vantagem fiscal», que podem justificam restrições à livre circulação de capitais (Acórdãos do TJUE de 05-07-2012, SIAT, processo C-318/16, EU:C:2017:415, n.º 40; de 07-09-2017, Eqiom e Enka, processo C-6/16, EU:C:2017:641, n.º 30; e de 20-09-2018, EV, processo C-685/16, n.º 95), mas, será, pelo contrário, de admitir ou mesmo incentivar esses comportamentos, concedendo benefícios fiscais.
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Pelo exposto, conclui-se que o afastamento da aplicação da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS que se prevê no n.º 2 do mesmo artigo, nas situações em que o devedor não tem sede ou direcção efectiva em Portugal, mas a tem num Estado Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE, pelo que esta restrição não pode ser aplicada, por forma do preceituado no n.º 4 do artigo 8.º da CRP.
PEDIDO DE REENVIO PREJUDICIAL
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A Requerente formulou subsidiariamente um pedido de reenvio prejudicial para o TJUE para apreciação da questão de saber « É conforme ao disposto no n.º 1, do artigo 63.º do TFUE e aos princípio basilares da livre circulação de capitais e da não discriminação, a interpretação do artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo segundo a qual a isenção de IS prevista para as operações de tesouraria de curto prazo é aplicável quando nesta intervêm duas entidades residentes ou quando o mutuário (devedor) se encontra em Portugal estando o mutuante (credor) na União Europeia mas já não é aplicável quando o mutuário (devedor) é residente num Estado-Membro União Europeia e o mutuante (credor) residente em Portugal?”».
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Na decorrência do processo e conforme supra a Requerida veio alegar que a decisão do CAAD no processo 279/2020-T foi objecto de recurso junto do Supremo Tribunal Administrativo em 15.02.2021 tendo dado origem ao processo nº 2/21.3BALSB.
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O Tribunal, decidiu pela suspensão da instância até à prolação da decisão do STA, que recair sobre a decisão arbitral relativa ao processo n.º 279/2020-T.
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Em 07.07.2023 a Requerente apresentou requerimento informando o Tribunal que em 24.05.2023 foi proferido Acórdão pelo STA, no âmbito do Processo supra identificado.
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No que respeita à admissibilidade do recurso, o STA entendeu encontrarem-se preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, concluindo que “existe oposição quanto à mesma questão fundamental de direito, e não existindo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo sobre a matéria, há que conhecer do mérito do recurso”.
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Por outro lado, o STA entendeu que existiriam dúvidas na interpretação do Direito da União Europeia, o que levou a entendimentos opostos, pelo que decidiu no Acórdão em questão(i) submeter à apreciação do TJUE a questão prejudicial acima enunciada; e (ii) suspender a instância de recurso, nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
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O STA entendeu que caberia ao Tribunal de Justiça da União Europeia ( adiante “TJUE”) dar resposta à questão de "saber se a norma constante do artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo (CIS), segundo a qual a isenção de Imposto do Selo (IS) prevista para as operações de tesouraria de curto prazo é aplicável quando nestas intervêm duas entidades residentes em Portugal ou quando o mutuário é aqui residente (sendo o credor residente na União Europeia) mas já não é aplicável quando o mutuário (devedor) é residente num Estado-Membro da União Europeia e o mutuante (credor) é residente em Portugal, é conforme aos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecidos nos artigos 18.º, 63.º e 65.º, n.º 3 do TFUE, aplicáveis na ordem jurídica interna por força do disposto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP".
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A Requerente requereu a junção aos autos do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido, em 20.06.2024, Processo C-420/23, na sequência do pedido de reenvio prejudicial efetuado pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), no âmbito do Processo n.º 2/21.3BALSB, referente ao recurso para uniformização de jurisprudência interposto da decisão arbitral proferida no processo n.º 279/2020-T.
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O TJUE conclui declarando que: “O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado‑Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado‑Membro”.
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O Requerente veio juntar aos autos o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 17.10.2024, no âmbito do Processo n.º 2/21.3BALSB, referente ao recurso para uniformização de jurisprudência interposto da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa no processo n.º 279/2020-T.
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O STA conclui que, “Perante a clarificação feita pelo TJUE somos levados a concluir que na decisão recorrida foi aplicada legislação desconforme com o Direito da União Europeia, devendo entender-se, diversamente do que decorre dessa decisão, e Uniformizando Jurisprudência, que o n.º 2 do artigo 7.º do CIS (nas redações anteriores à da Lei n.º 12/2022, de 27 de junho – OE 2022), ao limitar a subsistência das isenções previstas nas alíneas h) e g) desse artigo aos casos em que o credor (e não o devedor) tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, traduz-se numa violação da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE. 4. Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, conhecendo do mérito do recurso, em conceder-lhe provimento e anular a decisão arbitral recorrida, uniformizando jurisprudência no sentido fixado no ponto 3.3;
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Dispõe o ponto 3.3: Perante a clarificação feita pelo TJUE somos levados a concluir que na decisão recorrida foi aplicada legislação desconforme com o Direito da União Europeia, devendo entender-se, diversamente do que decorre dessa decisão, e Uniformizando Jurisprudência, que o n.º 2 do artigo 7.º do CIS (nas redações anteriores à da Lei n.º 12/2022, de 27 de junho – OE 2022), ao limitar a subsistência das isenções previstas nas alíneas h) e g) desse artigo aos casos em que o credor (e não o devedor) tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, traduz-se numa violação da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
CONCLUSÃO
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Conclui-se, assim, que as liquidações impugnadas e decisão da reclamação graciosa e do recurso hierárquico que as manteve são ilegais, por enfermarem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, ao basearem-se numa norma (n.º 2 do artigo 7.º do CIS) que é ilegal, por ser incompatível com o Direito da União Europeia.
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Este vício justifica a anulação das liquidações e das decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
IV. REEMBOLSO DE QUANTIAS PAGAS E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
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Em12.12.2018 a Requerente pagou a quantia liquidada e formula pedido de juros indemnizatórios.
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O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 2013-04-18, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere:
“21. Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
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No entanto, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.
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O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
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No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
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Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
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O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
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Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
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Na sequência da anulação das liquidações e das decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico em que pediu a devolução das quantias pagas, no montante total de € 782.065,65, a Requerente tem direito a ser delas reembolsada, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
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A ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo e juros compensatórios é imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira que as emitiu por sua iniciativa.
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Assim, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, calculados com base na quantia de € 782.065,65 devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
V. DECISÃO
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Anular a liquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”), referentes à Verba 17.1.4 da Tabela Geral do IS (“Operações Financeiras”), e identificados com os 2018..., de 06.11.2018, referente ao período de tributação de 2016, no valor de € 719.291,54, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante, “AT”), e de Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios identificados com os n.ºs 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., no valor total de € 62.774,11, as quais originaram um valor global a pagar de € 782.065,65;
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Anular as decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico impugnadas;
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Julgar procedentes os pedidos de reembolso da quantia paga e de juros indemnizatórios e condenar a Administração Tributária a pagar à Requerente a quantia de € 782.065,65, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto IV do presente acórdão.
VI. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 782.065,65.
VII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 11.322,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Administração Tributária.
Lisboa, 12 de novembro de 2024
O Tribunal Coletivo
(Fernanda Maçãs )
(Fernando Borges Araújo)
(Ana Teixeira de Sousa)
(Relatora)
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