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SUMÁRIO:
O artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, que estabelece a isenção de IRS aplicável aos tripulantes, deve ser interpretado no sentido de exigir que os navios ou embarcações se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime de “tonnage tax” português ou por um outro regime análogo em vigor num Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra, Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído a 09.05.2024, decide o seguinte:
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RELATÓRIO
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A..., NIF..., e B..., NIF..., casados entre si, ambos residentes em Rua ..., n.º ..., ..., Póvoa do Varzim, (doravante “os Requerentes”), vieram, em 28.02.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), com vista (1) à declaração de ilegalidade e anulação do ato tributário de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), n.º 2023..., e respetivos juros compensatórios, do qual resultou um valor de imposto a pagar de €1.589,76 (mil quinhentos e oitenta e nove euros e setenta e seis cêntimos) nos termos da demonstração de acerto de contas (Cfr. Documento n.º 4 junto ao PPA), e (2) à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
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Os Requerentes juntaram 11 (onze) documentos.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 01.03.2024 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
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Os Requerentes não exerceram o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a ora signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
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A 19.04.2024 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
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Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 09.05.2024.
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Por despacho proferido pelo Tribunal Arbitral a 09.05.2024 foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar cópia do processo administrativo (“PA”) e, querendo, requerer a produção de prova adicional.
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No dia 10.06.2024, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual invocou a exceção de caducidade do direito à ação, defendeu-se por impugnação e juntou aos autos o PA.
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Por despacho de 11.06.2024, o Tribunal Arbitral notificou os Requerentes para se pronunciarem, querendo, no prazo de 10 (dez) dias, sobre a matéria de exceção contida na resposta da Autoridade Tributária.
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Em 25.06.2024, os Requerentes pronunciaram-se sobre a matéria referida em 9., tendo pugnado pela improcedência da exceção invocada pela Autoridade Tributária.
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No dia 25.06.2024, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, no qual: (i) dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT; (ii) notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias; (iii) notificou os Requerentes para, em idêntico prazo, procederem ao pagamento da taxa arbitral subsequente, dando de tal conhecimento ao processo e; (iii) indicou o prazo para proferir a decisão final arbitral.
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As Partes não apresentaram alegações finais escritas.
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Em 04.10.2024, o Tribunal proferiu despacho, no qual notificou os Requerentes para procederem à junção: (i) dos documentos que haviam protestado juntar em sede de PPA; (ii) do plano de pagamento em prestações referido no artigo 6.º do PPA e respetivos comprovativos de pagamento; (iii) do comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
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Em 15.10.2024, os Requerentes deram cumprimento ao despacho referido em 13.
I.1. ARGUMENTOS DAS PARTES
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A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IRS aqui em crise, invocam os Requerentes, em síntese, o seguinte:
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O Requerente marido logrou provar que (i) trabalhou, no ano em causa (2019), como marinheiro de 1ª classe, ao serviço de uma entidade empregadora com sede na Dinamarca; (ii) que exerceu a sua atividade profissional a bordo do navio “...”, com pelo menos 50% da tripulação europeia ou do EEE; (iii) que a embarcação onde trabalhou era, à data, elegível para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável designado “Tonnage Tax”, ao qual aderiu e; (iv) que permaneceu a bordo pelo período mínimo de 90 dias, encontrando-se, assim, preenchidos os requisitos para que o Requerente possa usufruir do regime fiscal estabelecido no artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13/11;
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Noutras situações iguais à do Requerente marido, a Autoridade Tributária aplicou o regime fiscal em causa, pelo que, por força do princípio da igualdade, que também se realiza na aplicação da lei por parte da Requerida, esta está obrigada a conceder ao Sujeito Passivo o mesmo tratamento fiscal;
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A título subsidiário, sempre se dirá que o Requerente marido não era, à data, residente em Portugal, por não se encontrarem verificadas nenhuma das condições previstas no artigo 16.º, do CIRS, pelo que não teria de apresentar qualquer declaração de IRS em Portugal nem pagar qualquer imposto, o que alegou a título subsidiário.
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Por sua vez, a AT contra-argumenta com base nos seguintes fundamentos:
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O regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem de navios “Tonnage Tax” aplica-se, exclusivamente, a empresas sujeitas a tributação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e, consequentemente, a isenção de pagamento de IRS, aproveita somente a tripulantes de navios pertencentes a entidades em que se aplica o citado regime especial de tributação e que por ele tenham optado. O Requerente marido não demonstra, nem alega, que os navios em que foi tripulante, optaram pelo regime especial de determinação da matéria coletável previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro. Pelo contrário, não figura a entidade C..., como sujeito passivo de IRC, nem, tão pouco, terá optado/optou pelo regime previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro.
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O Requerente marido, durante o período aqui em crise (2019), figurava como residente em Portugal, na base de dados da administração fiscal; O Requerente marido não logra demonstrar a sua não residência em território português, não fornecendo qualquer elemento probatório, tendente a conferir a pretensão substantiva formulada; O Requerente marido não demonstra, à luz da CDT celebrada com a Dinamarca, a respetiva residência nesse país, nem tampouco que tenha sido tributado, pelos rendimentos em crise, nesse país.
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SANEAMENTO
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
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As partes gozam de personalidade, capacidade judiciária, legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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O processo não enferma de nulidades.
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A exceção suscitada pela Requerida será apreciada após determinada a matéria de facto.
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
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Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente marido, durante os anos de 2019, 2020 e 2021, prestou a atividade profissional de marinheiro de primeira classe ao serviço da entidade empregadora “C...”, sociedade de direito dinamarquês e com sede nesse país (Cfr. Documentos n.ºs 1 e 2 juntos ao PPA).
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A sociedade “C...” encontrava-se abrangida pelo regime especial designado de “tonnage tax” dinamarquês, ao abrigo da lei dinamarquesa, para os anos fiscais 2018, 2019 e 2020 (Cfr. Documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao PPA).
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O Requerente marido exerceu a sua atividade profissional a bordo do navio “...”, por um período superior a 90 dias em cada exercício de 2019, 2020 e 2021, em que 50% dos tripulantes tinham nacionalidade de um país da União Europeia (Cfr. Documentos n.º 2 e junto ao PPA).
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Os Requerentes entregaram a Declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano 2019, em 31 de Março de 2020, identificada no sistema pela chave ...-2019-..., acompanhada apenas dos Anexos A e H, da qual resultou a liquidação de IRS n.º 2020..., que apurou imposto a reembolsar no montante de €814,00 (oitocentos e catorze euros) (Cfr. PA junto aos autos).
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Em 04.06.2023, os Requerentes apresentaram nova declaração de rendimentos (Declaração Modelo 3 IRS), relativa ao ano de 2019, identificada no sistema pela chave ...-2019-..., acompanhada dos Anexos A, B, H e J, que deu origem à liquidação n.º 2023. ... aqui impugnada, da qual resultou um valor total de imposto a pagar de €1.589,76 (mil quinhentos e oitenta e nove euros e setenta e seis cêntimos) (Cfr. Documento n.º 4 junto ao PPA e PA junto aos autos).
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Apesar de não se conformarem com a liquidação de IRS controvertida (n.º 2023....), os Requerentes têm vindo a pagar a quantia apurada, ao abrigo do plano prestacional n.º 2023. ... (Cfr. PA junto aos autos e Documentos juntos ao requerimento apresentado pelos Requerentes, em 15.10.2024).
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Até à presente data, os Requerentes efetuaram, nos termos do plano de pagamento em prestações referido em F., o pagamento de €1.589,76 (Cfr. Documentos juntos ao requerimento apresentado pelos Requerentes, em 15.10.2024).
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Em 11.09.2023, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra o ato de liquidação referido em E. (Cfr. Documento n.º 6 junto ao PPA).
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Por ofício de 11.10.2023, n.º 2023..., os Requerentes foram notificados do projeto de indeferimento da dita reclamação graciosa (n.º ...2023...), e para, querendo, exercerem o direito de audição prévia, o que fizeram, em 30.10.2023 (Cfr. Documentos n.º s 7 e 8 juntos ao PPA).
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Por ofício de 01.12.2023, n.º 2023..., foram os Requerentes notificados, em 02.01.2024, da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2023... (Cfr. Documento n.º 9 junto ao PPA).
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Os Requerentes apresentaram o PPA que deu origem ao presente processo arbitral, em 28.02.2024 (Cfr. Sistema informático do CAAD).
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
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Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
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Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante “CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
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Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e, a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1 DA CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO
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Invoca, a Requerida, na sua resposta, a exceção da caducidade do direito de ação.
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Para tanto, alega que a contagem do prazo para a propositura do PPA teria de iniciar-se com referência à data limite de pagamento voluntário da liquidação aqui sindicada – 24.07.2023 –, tendo em conta que os Requerentes deduziram a pretensão anulatória do ato de liquidação, mas não da decisão de indeferimento da reclamação graciosa. Assim, na perspetiva da AT, infere-se que para os Requerentes poderem beneficiar da contagem do prazo nas condições previstas na alínea e), do n.º 1, do artigo 102.º, do CPPT (por remissão do artigo 10.º, n.º 1, do RJAT), ou seja, a partir da notificação de indeferimento expresso da reclamação graciosa ocorrida em 02.01.2024, em vez da alínea a), teria de deduzir um específico pedido de anulação do ato de segundo grau que visou a (re)apreciação do ato tributário impugnado.
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Diga-se, desde já, que não assiste razão à Requerida.
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Decorre do artigo 10.º, n.º 1, da alínea a), do RJAT, em conjugação com o disposto no artigo 102.º, n.º 1, do CPPT, que o prazo para impugnar, nas situações em que houve reclamação graciosa seguida de decisão expressa, se conta da notificação desta última decisão e não do termo do prazo para pagamento voluntário da liquidação.
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É, pois, da data da notificação do ato decisório de segundo grau – in casu da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa – que, de acordo com a lei, se conta o prazo para a propositura do PPA. Solução idêntica é sufragada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31.05.2017, processo n.º 01609/13: “Sempre que o contribuinte opte por deduzir reclamação graciosa contra o ato de liquidação, o prazo para impugnar judicialmente deixa de se contar da data limite para pagamento voluntário do tributo, passando a relevar a data do indeferimento EXPRESSO ou silente dessa reclamação.”
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Considerando que a decisão final de indeferimento da reclamação graciosa foi notificada ao Requerente em 02.01.2024 e que o pedido de constituição do tribunal e de pronúncia arbitral foi apresentado em 28.02.2024, não foi ultrapassado o prazo de 90 dias consagrado no citado artigo – 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT –, pelo que a ação arbitral é tempestiva.
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Como fundamenta a decisão arbitral proferida no processo do CAAD n.º 336/2018-T, de 25.06.2019, que decidiu no sentido aqui preconizado, o objeto do ato de segundo grau reporta-se à liquidação impugnada. Assim, a reação à decisão final de indeferimento da reclamação toma esta decisão por objeto imediato, mas o objeto mediato é, justamente, a própria liquidação.
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Deste modo, sem prejuízo de poderem ser expressamente impugnados, em simultâneo, ambos os atos – de liquidação (mediatamente) e o de indeferimento da reclamação graciosa (imediatamente), não se afigura que tal seja devido.
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Em bom rigor, e em conformidade com o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a jurisdição arbitral só tem competência material para apreciar a ilegalidade da liquidação, não os vícios do indeferimento de reclamações ou recursos.
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Nas palavras de CARLA CASTELO TRINDADE[1]: “não são arbitráveis os vícios próprios dos atos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do ato tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária. Por outras palavras, esses atos de indeferimento só poderão ser “trazidos” para a jurisdição arbitral, na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do ato tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efetivamente, pretende impugnar pela via arbitral.” Ou seja, “O objeto do pedido de pronúncia arbitral será, então, a (i)legalidade do ato tributário de primeiro grau, independentemente de o sujeito passivo apontar como objeto da sua ação arbitral este (o ato de primeiro grau), ou o de segundo, isto sempre, desde que o segundo aprecie a (i)legalidade do ato de primeiro grau.”
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Neste enquadramento, ao apreciar o indeferimento de um ato de segundo ou de terceiro grau que manteve uma liquidação, cuja legalidade se contesta, o que materialmente se aprecia são os vícios da liquidação cuja anulação foi indeferida.
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Conforme refere o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03.07.2019, processo n.º 02957/16.0BELRS 070/18, “o objeto real da impugnação é o ato de liquidação e não o ato que decidiu a reclamação graciosa, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise.”
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Em síntese, o artigo 10.º, do RJAT, não confere aos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD a competência para apreciação direta dos atos de segundo ou de terceiro grau; é uma norma que, referindo embora esses atos, respeita exclusivamente ao termo inicial do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral. A tempestividade afere-se, portanto, em relação a esses atos (de segundo ou de terceiro grau), mas a materialidade do litígio reporta-se a uma liquidação que aqueles atos se limitaram a confirmar, não consubstanciando pedidos distintos ou causas de pedir diferenciadas. (Cfr. decisão arbitral proferida no processo do CAAD n.º 336/2018-T, de 25.06.2019)
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Face a todo o exposto, improcede a exceção aduzida pela Requerida.
IV.2 DA QUESTÃO DE FUNDO
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Considerando a factualidade exposta, bem como as pretensões e posições dos Requerentes e da Requerida constantes das suas peças processuais, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar as seguintes questões:
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Se estão verificados os pressupostos para que seja aplicado ao Requerente marido o regime fiscal instituído pelo artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, que institui o Regime do Registo de navios e embarcações simplificado e de determinação da matéria coletável;
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A título subsidiário, se o Requerente marido é residente em Portugal;
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Se os Requerentes têm direito à restituição do imposto pago e a juros indemnizatórios.
IV.2.1. APRECIAÇÃO
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A questão que cabe apreciar e decidir prende-se em determinar se o Requerente marido preenchia, para o período de 2019, os requisitos para beneficiar da aplicação do benefício fiscal do IRS, aplicável aos tripulantes dos navios ou embarcações, ao abrigo do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro (“Registo de Navios e Embarcações Simplificado – Determinação da Matéria Coletável”).
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O preâmbulo do citado diploma, que institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios e embarcações, um regime fiscal e contributivo aplicável aos tripulantes e um registo simplificado de navios e embarcações[2] (denominado por “Tonnage Tax”), refere que este regime visa “(...) promover a marinha mercante nacional, com vista a potenciar o alargamento do mercado português de transporte marítimo e o desenvolvimento dos portos nacionais e da indústria naval, a criação de emprego, a inovação e o aumento da frota de navios que arvoram a bandeira portuguesa, com o consequente aumento da receita fiscal.”
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Destaca-se, ainda, no aludido preâmbulo, que “A criação de um regime fiscal especial (“tonnage tax”) para as empresas detentoras de navios que sejam estratégica e comercialmente geridos a partir de um Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu e estejam afetos ao exercício da atividade de transporte marítimo de mercadorias e pessoas incide num aspecto essencial da decisão dos agentes económicos e incentiva de forma direta o investimento, potenciando o alargamento do mercado português de transporte marítimo, a inovação, a criação de emprego e o aumento da receita fiscal e da frota de navios que arvoram a bandeira portuguesa, contribuindo igualmente para o aumento da competitividade do transporte marítimo europeu.
O regime fiscal proposto para os tripulantes e a fixação de uma taxa contributiva global reduzida visam incentivar o investimento e promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades para os jovens e fomentando a formação de um número suficiente de marítimos que obste à atual escassez de recursos humanos com as habilitações necessárias, devido em parte à inexistência de saídas profissionais.”
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O artigo 2.º, n.º s 1 e 2, do referido Decreto-Lei, estipula o seguinte: “1 – O capítulo II é aplicável aos navios e embarcações que exerçam atividades previstas no regime especial de determinação da matéria coletável, constante do anexo ao presente decreto-lei e que dele faz parte integrante. 2 – O capítulo III é aplicável aos tripulantes de navios e embarcações registadas no registo convencional português ou num Estado Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime.” (negrito e sublinhado nosso)
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O capítulo II, a que alude o artigo 2.º, n.º 1, respeita e tem por epígrafe “Disposições relativas à fiscalidade da atividade de transporte marítimo”, estabelecendo o n.º 3, do artigo 3.º que “a tripulação dos navios ou embarcações considerados para efeitos de aplicação do regime especial de determinação de matéria coletável deve ser composta por, pelo menos 50 /prct. de tripulantes com nacionalidade portuguesa, de um país da União Europeia, do Espaço Económico Europeu ou de um país de língua oficial portuguesa, (...)”.
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Já o capítulo III, a que se refere o citado artigo 2.º, n.º 2, respeita e tem por epígrafe os “benefícios fiscais e contributivos dos tripulantes”, dispondo o n.º 1, do artigo 4.º, aí inserido que: “Estão isentas do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) as remunerações auferidas, nessa qualidade, pelos tripulantes dos navios ou embarcações considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável.”
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Clarificando o n.º 3 que: “A isenção prevista (...) está condicionada à permanência do tripulante a bordo pelo período mínimo de 90 dias em cada período de tributação”.
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Ora, resulta da factualidade dada como provada, que o Requerente marido, de nacionalidade Portuguesa, foi tripulante de um navio (composto por pelo menos 50% de tripulantes de nacionalidade de um país da União Europeia), no período de 2019, tendo permanecido a bordo, naquele período de tributação, pelo período igual ou superior a 90 (noventa) dias (Cfr. Pontos A. e C. dos Factos Provados).
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Por sua vez, o navio, no qual o Requerente marido permaneceu durante aquele período e exerceu a atividade de marinheiro de 1ª classe, é elegível para efeitos do regime de “tonnage tax”, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei, e encontrava-se, à data, abrangido por tal regime na Dinamarca, tendo por ele optado, como se infere dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao PPA.
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Como é bom de ver, o Requerente marido preenche todos os pressupostos necessários para que lhe seja aplicado o regime fiscal instituído pelo artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro.
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E, ao contrário do que alega a Requerida, da leitura conjugada do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro com o preâmbulo do mesmo diploma, não resulta a obrigatoriedade de sujeição a imposto em Portugal, por parte das entidades responsáveis pelas atividades elegíveis.
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Pois, conforme afirma a Decisão Arbitral, de 24 de Abril de 2024, proferida no processo n.º 667/2023-T:
“(...) no que ao regime fiscal especial para tripulantes diz respeito, o objetivo da sua aprovação foi o de promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades de trabalho, para os sujeitos passivos residentes em território nacional, independentemente de as entidades exercerem essas atividades se encontrarem, ou não, estabelecidas em Portugal ou serem aqui sujeitas a imposto.
Por outro lado, importa destacar que o artigo 4.º, n.º 1 do DL 92/2018, que prevê a isenção de IRS aplicável aos tripulantes, exige, apenas, que os navios ou embarcações se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável.
Deste modo, não especificando aquela disposição legal que as referidas entidades têm de ter exercido a opção pelo regime de tonnage tax português, o artigo 4.º, n.º 1 do DL 92/2018 deverá ser interpretado no sentido de o mesmo ser aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações que se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime de tonnage tax português ou por um outro regime análogo em vigor num Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.
(...).”
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Neste sentido, veja-se, ainda, a Decisão Arbitral, de 23.01.2024, proferida no processo n.º 355/2023-T:
“(...), o que se conclui é que o regime de isenção estipulado no n.º 1 do art.º 4 do DL 92/2018 se aplica, por força do n.º 2 do art.º 2.º, tanto os navios e embarcações registadas no registo convencional português como num outro Estado Membro da União Europeia ou do espaço Económico Europeu. A Dinamarca é um Estado Membro da União Europeia, logo, neste tocante, a situação fáctica é qualificável para a aplicação do regime.
É certo que a mesma disposição acrescenta que é necessário que os navios ou embarcações sejam “utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável” e estejam “afetos às atividades previstas neste regime”.
Mas tendo atenção que os navios e embarcações podem ficar abrangidos pelo regime quer estejam registadas em Portugal, quer estejam registadas noutro país que seja estado membro da União Europeia ou que se situe no Espaço Económico Europeu, tendo ainda em atenção que o regime fiscal designado “tonnage tax” foi criado, como se diz no preâmbulo do diploma para as empresas detentoras de navios que sejam estratégica e comercialmente geridos a partir de um Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, o que leva a concluir que o regime fiscal “tonnage tax” tem origem e dimensões europeias (...).” (negrito nosso)
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Face a todo o exposto, há que considerar verificados todos os requisitos legais para a aplicação do regime de isenção previsto no artigo 4.º, n.º 1, do DL 92/2018 às remunerações auferidas pelo Requerente marido na sua atividade de marinheiro de 1ª classe, no ano de 2019, sendo, assim, ilegal a liquidação impugnada, ficando, além disso, prejudicado o conhecimento das restantes questões submetidas à apreciação deste Tribunal, designadamente, as formuladas a título subsidiário, ao abrigo da proibição da prática de atos no processo inúteis e desnecessários, prevista no artigo 130.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
IV.3 DO DIREITO AO REEMBOLSO DO IMPOSTO PAGO E A JUROS INDEMNIZATÓRIOS
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Peticionam, ainda, os Requerentes que lhes seja reconhecido o direito ao reembolso do imposto indevidamente pago e a juros indemnizatórios.
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Determina a alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º, do RJAT, que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários”, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” (Cfr. n.º 5, do artigo 24.º, do RJAT).
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De igual modo, o n.º 1, do artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (“LGT”), aplicável ao processo arbitral tributário, por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
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O restabelecimento da situação, que existiria se o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral não enfermasse de ilegalidade, obriga, por um lado, à restituição do imposto pago indevidamente pelos Requerentes, no valor total de €1.589,76, e, por outro lado, ao pagamento de juros indemnizatórios.
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O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
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No caso em apreço, encontram-se preenchidos os pressupostos constantes do citado artigo (artigo 43.º, n.º 1, da LGT), uma vez que, no procedimento de reclamação graciosa, a AT teve a oportunidade de proceder à análise e avaliação da matéria controvertida e podia ter efetuado o correto enquadramento jurídico-tributário dos factos e, consequentemente, ter efetuado a plena reconstituição da legalidade dos atos ou da situação objeto do litígio. Não tendo feito, os serviços da AT cometeram um erro que lhes é imputável, do qual resultou a manutenção de um imposto por montante superior ao devido.
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Face ao exposto, deverá proceder o pedido dos Requerentes, i.e., ser-lhes reconhecido o direito a juros indemnizatórios e condenar a AT ao reembolso do imposto indevidamente pago, nos termos dos artigos 43.º e 100.º, da LGT e artigo 61.º, do CPPT.
V. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
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Declarar ilegal e anular o ato de liquidação de IRS n.º 2023 ..., referente ao ano de 2019, no montante global de €1.589,76 (mil e quinhentos e oitenta e nove euros e setenta e seis cêntimos);
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Condenar a AT a reembolsar aos Requerentes o montante de €1.589,76 e ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esse valor, a contar do dia 03.01.2024 (dia seguinte à data em que os Requerentes foram notificados da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa) até à data do processamento do reembolso (Cfr. artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT).
VI. VALOR DA CAUSA
Fixa-se ao processo o valor de €1.589,76 (mil quinhentos e oitenta nove euros e setenta e seis cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.]
Lisboa, 29 de outubro de 2024
A Árbitra,
Susana Mercês de Carvalho
[1] In Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – Anotado, Almedina, 2014, p. 70.
[2] Cfr. artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro.
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