Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 238/2024-T
Data da decisão: 2024-10-31   Outros 
Valor do pedido: € 27.586,44
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR). Competência dos tribunais arbitrais. Legitimidade processual.
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DECISÃO ARBITRAL

 

SUMÁRIO:

 

A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) consubstancia um tributo qualificado como contribuição financeira, pelo que, sob essa qualificação, os tribunais arbitrais não têm competência para apreciar os litígios que à mesma digam respeito.

 

I.       RELATÓRIO

1. No dia 20 de fevereiro de 2024, a A... LDA., com o NIPC..., com sede na Rua..., ..., ...- ... ..., veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) cujo encargo tributário foi repercutido na sua esfera jurídica pelo fornecedor B... S.A., na sequência da aquisição de 247.527,43 (duzentos e quarenta e sete mil, quinhentos e vinte e sete vírgula quarenta e três) litros de gasóleo por referência à qual diz ter suportado € 27.475,55 (vinte e sete mil quatrocentos e setenta e cinco euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de CSR e 1.274,74 (mil duzentos e setenta e quatro vírgula setenta e quatro) litros de gasolina por referência à qual diz ter suportado € 110,89 (cento e dez euros e oitenta e nove cêntimos) de CSR.

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente comunicado à Requerida, que foi do mesmo notificada em 21 de fevereiro de 2024.

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como Árbitra do Tribunal Arbitral Singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. Em 3 de Abril de 2024, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 2 de maio de 2024.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:

4.1. A fornecedora de combustível B..., S.A., entregou ao Estado, enquanto sujeito passivo, os valores apurados nos atos de liquidação conjunta de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) e de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) com base nas Declarações de Introdução no Consumo por si submetidas.

4.2. No período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 247.527,43 (duzentos e quarenta e sete mil, quinhentos e vinte e sete vírgula quarenta e três) litros de gasóleo e 1.274,74 (mil duzentos e setenta e quatro vírgula setenta e quatro) litros de gasolina àquela fornecedora, que repercutiu nas respetivas faturas a CSR correspondente a cada um dos consumos realizados, e, assim, por força das aquisições de combustível, a Requerente suportou, a título de CSR, a quantia global de € 27.475,55.

4.3. A Requerente deduziu no dia 25 de julho de 2023, junto da Alfândega do Freixieiro um pedido de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR.

4.4. Sucede que, até à presente data, a Requerente não foi notificada de qualquer decisão referente ao mencionado pedido de revisão oficiosa, verificando-se a presunção de indeferimento tácito das suas pretensões.

4.5. A Diretiva n.º 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, veio implementar o regime geral dos impostos especiais de consumo, e do seu artigo 1.º, n.º 2, resulta que os Estados Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da Comunidade aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e controlo do imposto.

4.6. Analisando essa questão, o Tribunal de Justiça, através do despacho de 7 de Fevereiro de 2022, proferido no caso Vapo Atlantic,  Processo n.º C-460/21, concluiu que “o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118 deve ser interpretado no sentido de que não prossegue “motivos específicos”, na acepção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários”.

4.7. Assim, tal como resulta das decisões proferidas nos processos arbitrais n.º 294/2023-T, 410/2023-T e 305/2022-T, impõe-se concluir que, «a CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo especifico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental», consubstanciando, por conseguinte, todos os atos tributários praticados ao seu abrigo, designadamente os atos objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, uma violação do Direito da União Europeia.

4.8. E, consequentemente, os atos de repercussão das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário impugnados padecem de vício de ilegalidade, por erro imputável aos serviços.

4.9. Por conseguinte, deve ser declarada a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e gasolina adquiridos pela Requerente no período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022, bem como das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustíveis, determinando-se a sua anulação, com as demais consequências legais, designadamente, com o reembolso à Requerente de todas as quantias por esta suportadas a esse título, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios.

5. Em 10 de junho de 2024, após notificação à Requerida para apresentação de resposta, a mesma apresentou-a, bem como juntou o respectivo processo administrativo, invocando em síntese o seguinte:

5.1. Em primeiro lugar, a Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita as exceções dilatórias de incompetência do tribunal em razão da matéria, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, de ineptidão da petição inicial e de caducidade do direito de ação.

5.2. Quanto à matéria de fundo, considera que a Requerente não logrou fazer prova de ter adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão, sendo que, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando, no caso, estamos perante uma repercussão meramente económica.

5.3. Por outro lado, baseando-se nos considerandos 33. e 34. do despacho do TJUE proferido no Processo n.º C-460/21, a Requerida entende que o TJUE não declarou a existência de desconformidade do regime da CSR com a Diretiva Europeia, e os objetivos que lhe estão subjacentes, analisados à luz da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não são meramente orçamentais, mas visam a redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, que constituem o motivo específico da criação da contribuição.

5.4. Conclui no sentido da declaração de extinção da instância com base nas exceções dilatórias e perentórias invocadas e, se assim se não entender, pela improcedência do pedido arbitral.

6. Por despacho de 4 de setembro de 2024, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório sobre as exceções, o que esta veio a fazer em 20 de setembro de 2024, tendo concluído pela improcedência de todas as exceções e questões prévias suscitadas pela Requerida.

7. A 3 de outubro de 2024, a Requerida apresentou as suas alegações, tendo mantido, no essencial, o que havia alegado anteriormente.

 

II. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação).

Para efeitos de saneamento do processo, cumpre apreciar as exceções de:

— Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria;

— Ilegitimidade processual e substantiva da Requerente;

— Ineptidão do pedido arbitral (por falta de objecto);

— Caducidade do direito de ação.

A apreciação dessas exceções será efetuada pela ordem supra identificada, a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.

 

III. FACTOS PROVADOS

Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à instalação e reparação de redes de canalização (água e esgotos) e sua ligação às redes gerais de distribuição e instalação de aparelhos e equipamentos referentes às atividades atrás descritas.
  2. No período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu, no âmbito da sua atividade comercial, 247.527,43 (duzentos e quarenta e sete mil, quinhentos e vinte e sete vírgula quarenta e três) litros de gasóleo e 1.274,74 (mil duzentos e setenta e quatro vírgula setenta e quatro) litros de gasolina à sociedade B... S.A.
  3. O preço por si pago é o constante das faturas emitidas pela sociedade B... S.A. (documentos 1 a 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral) incluindo o montante da CSR repercutido pela gasolineira.
  4. No dia 25 de julho de 2023, a Requerente remeteu, por correio registado com AR, um pedido de revisão oficiosa para a Alfândega do Freixieiro, a requerer que fossem anulados os atos de liquidação indevidamente emitidos e devolvido o valor invalidamente cobrado.
  5. O pedido de revisão oficiosa foi recebido no dia 26 de julho de 2023.

 

IV. FACTOS NÃO PROVADOS:

Não existem factos relevantes que não tenham sido considerados provados pelo Tribunal.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

O TJUE, no caso Vapo Atlantic (processo n.º C-460/21), pronunciou-se no sentido de “a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).”

No que concerne à repercussão da CSR na Requerente, considera-se que é de presumir, no caso concreto, à face das regras da experiência que os Árbitros devem aplicar na apreciação dos factos, de harmonia com o disposto no artigo 16.º, alínea c), do RJAT. Com efeito, a repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é manifestamente pretendida pela lei, ao estabelecer que o financiamento da rede rodoviária nacional «é assegurado pelos respetivos utilizadores» e que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis» ((artigos 2.º e 3.º do CIEC na redação anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro). A existência de repercussão do tributo no consumidor final numa situação em que a lei pretende que ela exista, como sucede com a CSR, tem de se presumir, à face das regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto, pois trata-se de uma situação que corresponde à normalidade do funcionamento da cadeia económica no setor de atividade concretamente em causa.

Este entendimento não é incompatível com o Direito da União, designadamente à face do Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21, na medida em que o que o Tribunal aí refere, relativamente a prova de uma situação de enriquecimento sem causa, como constituindo uma exceção ao direito ao reembolso de quantias cobradas em violação do Direito da União,  é que «o direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42)».

O que o TJUE considera incompatível com o Direito da União é, portanto, a utilização exclusiva de uma presunção de repercussão para prova de uma situação excecional de enriquecimento sem causa, derivada de omissão de repercussão, impedindo ao operador que devia fazer a repercussão a apresentação de elementos de prova destinados a demonstrar que não ocorreu. No caso presente, não está em causa a prova de uma situação de exceção, mas sim a prova da situação normal de ter existido a repercussão pretendida por lei e não há obstáculos a que seja apresentada prova de que a repercussão não ocorreu, abalando a operacionalidade da referida presunção natural. Contudo, nenhuma prova foi apresentada que permita entender que a repercussão não ocorreu de facto.

Por outro lado, nesta situação em que a Requerente apenas tem na sua posse as faturas em que se indica o preço em que se presume estar incluída a CSR, existe uma dificuldade acrescida em fazer prova da efetiva repercussão, o que, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, deve traduzir-se numa menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse.

Por outro lado, «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT), pelo que tinha o dever de diligenciar, na sequência da apresentação do pedido de revisão oficiosa, no sentido de apurar quais as liquidações que ela própria emitiu e os pagamentos que recebeu relativas ao pagamento de CSR pela fornecedora de combustíveis e confirmar ou não se foram ou não efetuados os pagamentos das faturas pela Requerente, se necessário através de exame à contabilidade da Requerente e informações bancárias.

Por fim, importa notar que as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT. «No procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar atas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspeções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte. A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.

Não podem aplicar-se as regras do ónus da prova contra o sujeito passivo, valorando contra ele as dúvidas sobre a matéria de facto, em situação em que não foi cumprido adequadamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira o princípio do inquisitório: se houve omissão absoluta de diligências no procedimento que tinham potencialidade para esclarecer os factos relevantes para a apreciação da causa, a falta de prova tem de ser valorada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira. De sublinhar ainda que é apenas nas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

Regista-se, ainda, que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

VI. MATÉRIA DE DIREITO

— Questão prévia: incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria

Quanto à competência deste Tribunal, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pela Requerente é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.

A competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)

Este âmbito material é, por sua vez, circunscrito na Portaria de Vinculação, nos seguintes termos:

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.” (negrito nosso)

Ainda que a conjugação das referidas normas jurídicas não apresente uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de atos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação, o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria, o certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito da competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de atos de liquidação de impostos.

Para o efeito de se responder a esta questão, torna-se necessário qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.

Nas decisões arbitrais proferidas, entre outras, nos processos n.ºs 508/2023-T e 520/2023-T, a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a exceção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:

(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011”.

Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Para o efeito, o acórdão proferido no âmbito do processo n.º 644/2022-T, de 24 de Outubro de 2023, decidiu no seguinte sentido:

“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto. Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT. Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.

Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”.

Cabendo tomar posição sobre a discussão jurídica, este Tribunal Arbitral entende que a CSR pode ser qualificada como contribuição financeira De facto, entende-se que o regime jurídico da CSR, ao criar um tributo de cuja receita é titular a Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), entidade responsável pela conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, sendo os respetivos sujeitos passivos as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários (e independentemente, agora, da questão da repercussão se presumir ou não), não permite concluir simplesmente que os sujeitos passivos não são, de forma alguma, destinatários da atividade do sujeito ativo. De facto, é o sujeito ativo (Infraestruturas de Portugal) que garante as condições necessárias a que a atividade das empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, no que toca à venda desses bens, possa existir e manter-se. Sem a rede rodoviária nacional, que interesse existiria da parte dos consumidores pela aquisição de gasolina e gasóleo rodoviários que adquirem àquelas empresas? A conclusão de que inexistem as caraterísticas da bilateralidade difusa e da responsabilidade de grupo parece assentar no pressuposto – que não se acompanha – de que teriam que ser os utilizadores/consumidores da rede rodoviária nacional os respetivos sujeitos passivos para que estivéssemos perante uma contribuição financeira. Contudo, ignora que os seus sujeitos passivos são igualmente beneficiários da rede rodoviária nacional, não porque a utilizem para consumo, mas porque dela tiram partido enquanto infraestrutura essencial para a oferta que aportam ao mercado – ao ponto de se poder dizer que, sem essa infraestrutura, a sua atividade, no que toca à venda de produtos que abastecem o transporte rodoviário, não teria interesse para o mercado. Nesse sentido, considera-se a CSR como um exemplo das “taxas coletivas”, na expressão de Gomes Canotilho/Vital Moreira, aquelas que “(…) assentam em prestações cuja provocação ou aproveitamento se podem dizer seguros quando referidos ao grupo mas apenas prováveis quando referidos aos indivíduos que o integram”  ou, nas palavras de Filipe de Vasconcelos Fernandes como um tributo bilateral “(…) alicerçados numa lógica de equivalência de grupo (…)”, uma “(…) estrutura de incidência sustentada na utilização presumida de um serviço ou na obtenção de um benefício presumido (…)” . De acordo com o mesmo Autor, nas “(…) contribuições financeiras visa retribuir-se ou ressarcir-se o custo ou benefício inerentes ao serviço prestado por uma entidade pública, neste caso a um conjunto homogéneo de interessados, que o aproveitam (…) [como membros] num dado grupo” .

Por estes motivos, entende-se estar verificada a incompetência do Tribunal, por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT. A falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de atos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT. Estamos, isso sim, perante uma incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação prevista no artigo 4.º do RJAT.

Portanto, há que declarar o presente Tribunal Arbitral incompetente, em razão da matéria, para conhecer o pedido de apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR, impondo-se a absolvição da Requerida da instância quanto a este concreto pedido, em conformidade com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) todos do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Sendo de julgar procedente a exceção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo.

 

VII. DECISÃO

 

Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide:

– julgar procedente a exceção da incompetência deste Tribunal Arbitral invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT;

– absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância.

 

VIII. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se ao processo o valor de € 27.586,44[1] (vinte e sete mil quinhentos e oitenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos), de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.

 

 

XIX. CUSTAS

Custas no montante de € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros) de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT, as quais constituem encargo da Requerente.

Notifique-se.

Lisboa, 31 de outubro de 2024

A Árbitra

 

Raquel Franco

 

 

 



[1] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-11-08