SUMÁRIO
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A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
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A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).
DECISÃO ARBITRAL
A..., NIPC..., com sede em ..., ... ... Alemanha, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
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O pedido
O Requerente peticiona a anulação dos atos tributários (liquidações por retenção na fonte liberatória), adiante melhor identificados, relativos a IRC, que incidiram sobre rendimentos auferidos em Portugal no ano de 2018.
Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
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O litígio
A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.
O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.
A Requerida defende a posição contrária.
Na decisão da reclamação graciosa sustentou que os mesmos (os OIC’s não residentes) não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
Na sua resposta no presente processo acrescentou outros argumentos, entendendo, nomeadamente, que os regimes fiscais em IRC aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e aos OIC constituídos noutros países (não residentes) não são diretamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros repousa sobretudo no Imposto do Selo; e que nada permite concluir que, no conjunto dos impostos suportados em Portugal e na Alemanha, a situação dos Requerentes resulte mais gravosa.
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Tramitação processual
O pedido foi aceite em 01/04/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 14/06/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
A Requerente respondeu à exceção deduzida pela Requerida.
Por despacho de 07/10/2024 foi prescindida a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT e fixado prazo para alegações. O Requerente alegou reafirmando o já afirmado no requerimento inicial.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito, salvo a exceção que a seguir se analisará.
d.1) Exceção
Diz a Requerida nos nº 4 e 5 da sua resposta: Importa salientar que a Requerente está inscrita no cadastro fiscal, em Portugal, com dois números de identificação fiscal: o NIF ... desde 2021.01.11 (cfr. fls.48 a 54 do processo administrativo de RO (ficheiro: RO_...2022....pdf), e o NIF... . A Revisão Oficiosa encontra-se instaurada no SICAT com o n.º ...2022..., com o NIF: ..., correspondente ao NIF que consta da respetiva petição. É também com este NIF que é apresentado o presente ppa.
A este propósito, invoca a Requerida os seguintes factos:
-as declarações emitidas pelo substituto tributário, o B..., relativas aos pagamentos de dividendos em causa, efetuados em 2018, referem ser o NIPC do beneficiário o ... .
- Aa pesquisas feitas a partir do NIF que a Requerente ora usa (...), relativas a 2018, não retornaram qualquer resultado.
Pelo que conclui que a Requerente, ao apresentar-se com o NIF..., não tem legitimidade para apresentar o presente pedido de anulação das liquidações de retenção na fonte de IRC, efetuada a terceiros, referente aos pagamentos de dividendos efetuados no ano de 2018, nomeadamente ao sujeito passivo com NIF português ... e, ainda, que a Requerente não é a beneficiária efetiva dos rendimentos objeto de tributação, não sendo, em consequência, titular do direito de anulação dos atos que aqui peticiona.
Contrapõe a Requerente afirmando, em suma, estar em causa a mesma entidade (quer enquanto substituída relativamente às retenções na fonte em causa, quer no presente processo arbitral e no procedimento administrativo que o precedeu) para a qual, por razões não explicitadas, terá sido pedido por duas vezes, em tempos diferentes, o NIPC português.
Apreciando:
Resulta dos factos que a seguir se darão por provados estar em causa a mesma entidade, a C..., inicialmente (aquando da atribuição do NIPC...) identificada, no tocante à sua firma, de forma abreviada e, aquando do segundo pedido de NIF, o ..., identificada de forma completa.
Assente estar em causa a mesma entidade, ainda que utilizando, em períodos temporais distintos – repete-se - dois diferentes NIPC’s, há que concluir pela improcedência da exceção alegada pela AT, pois o processo tributário acontece em obediência, entre outros, ao princípio da verdade material, cabendo ao tribunal diligenciar e concluir no sentido do seu apuramento.
Tendo o tribunal dado por provados factos que vão no sentido de que foi o ora Requerente quem suportou, na qualidade de substituído, o imposto decorrente das liquidações (retenções na fonte liberatórias), há que concluir pela sua legitimidade no presente processo.
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente é um fundo de investimento constituído ao abrigo da lei alemã e residente para efeitos fiscais na Alemanha.
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No ano de 2018, o Requerente era detentor de participações em sociedades residentes em Portugal, tendo, nesse ano, auferido dividendos em razão dessas participações.
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Tais dividendos foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, às taxas de 25% e de 35%, então previstas no n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC.
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O montante total de imposto assim liquidado foi de euros 74 875,00.
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Os valores retidos foram entregues ao Estado através das guias de pagamento nº ..., de 30/05/2018, e ..., de 20/08/2018.
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O Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa relativamente às liquidações (retenções na fonte) que ora impugna, o qual foi expressamente indeferido em 18/12/2023 e foi notificado à Requerente por registo postal de 27/12/2023.
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Na fundamentação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa lê-se: e “(…) no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal. 9. Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado. 10. Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC´s não residentes e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado. 11. Ora, no caso em apreço, conforme informado, o Reclamante não é residente fiscal e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF.”
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O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), na forma de fundo de investimento, constituído de acordo com o direito alemão, que se encontra inscrito junto da Bundesanstal für Finanzdienstleistungsaufsicht (“BaFin”), a autoridade alemã competente para a supervisão financeira, com o número de identificação (“BaFin-Id”)... .
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As declarações emitidas pelo substituto tributário, o B..., relativas aos pagamentos de dividendos efetuados em 2018 mencionam como sendo NIF da entidade beneficiária (com denominação correspondente à da Requerente) o ... .
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O Requerente, quer no pedido de revisão oficiosa, quer do presente processo arbitral identificou-se com o NIF... .
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Relativamente a 2018, não constam das bases de dados qualquer registo de pagamentos sujeitos a retenção na fonte de que tenha sido beneficiário o contribuinte identificado pelo NIF... .
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A pesquisa por “Fornecedores” no Portal das Finanças pelo número de identificação fiscal ... permite encontrar o contribuinte com o nome “ A...”.
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A pesquisa por “Fornecedores” no Portal das Finanças pelo número de identificação fiscal ... permite encontrar o contribuinte com o nome “C...”, número atribuído em 11/01/2021.
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Os NIF´s referidos nas duas alíneas anteriores foram atribuídos à mesma entidade, o ora Requerente
A convicção do tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos, sendo que estes factos não suscitaram qualquer divergência entre as partes, com exceção do que se segue:
- a Requerida havia impugnado a qualidade de OIC da Requerente, facto que o tribunal considerou esclarecido pela documentação por esta junta com o requerimento de 07/10/2024.
- a convicção do tribunal relativamente ao facto dado por provado em n) resultou: (i) do dado por provado em l) e m); (ii) da posição assumida pela AT na sua resposta, nomeadamente no seu nº 4, acima transcrito; (iii) das regras da experiência comum, que mostram ser relativamente vulgar ser pedida por mais de uma vez a atribuição de um NIF a uma mesma entidade, especialmente estando em causa não residentes não estabelecidos no nosso país.
I.2 - Factos não provados
Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.
Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.
Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.
Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[1].
Citamos:
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 44, 45 e jurisprudência referida).
Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.
Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.
IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).
Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os árbitros em:
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Considerar improcedente a exceção de ilegitimidade invocada pela Requerida.
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Anular as retenções na fonte de IRC, liberatórias, no montante de €74.875,00, acima melhor identificadas, que incidiram sobre dividendos pagos ao Requerente em 2018 e, consequentemente, anular a decisão que versou sobre o pedido de revisão oficiosa.
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Condenar a Requerida, para além da devolução do imposto indevidamente pago, a pagar ao Requerente juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais.
Valor do processo – Fixa-se em €74.875,00, correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.
Custas, no montante de € 2.448,00 a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
28 de outubro de 2024
Rui Duarte Morais
António Alberto Franco
Maria da Graça Martins
[1] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).