Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 225/2024-T
Data da decisão: 2024-10-28  IRC  
Valor do pedido: € 11.052,95
Tema: IRC; gastos “não devidamente documentados”; e prova dos elementos da operação.
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SUMÁRIO:

 

I – Caso se verifique a falta de um dos elementos vertidos no artigo 23.º, n.º 4, do  Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), o documento comprovativo não é, em princípio, apto a sustentar a dedutibilidade do gasto contabilizado. Dizemos, em princípio, pois, como sustenta a jurisprudência, a demonstração de determinados elementos pode ser feita através de outros meios de prova, quando o documento (fatura) não contenha o padrão de detalhe exigido.

 

 

II - Se para efeitos de IVA (tributo em relação ao qual, em função das suas características, há uma superior importância no cumprimento dos requisitos exigidos às faturas), se admite  a dedução, com fonte no princípio da neutralidade,  quando, nomeadamente, são demonstradas as exigências substantivas da operação, também, por maioria de razão, a referida  posição jurisprudencial é aplicável ao IRC.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A..., lda.,   contribuinte n.º  ...,  com sede na ..., ..., ..., doravante designada por  “Requerente”,  requereu  a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a),  todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente,  relativamente às liquidações de IRC n.º 2023... (exercício de 2019), de juros compensatórios n.º 2023..., e da demonstração de acerto de contas n.º 2023  ... .

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor  Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) em 19  de fevereiro de 2024 e, de seguida, notificado à AT.

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, no artigo 6.º, n.º 1 e no artigo 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro, que, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

 

  1. Em 8  de abril de 2024, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral  foi constituído em 29  de abril de 2024, tendo a Requerida sido notificada para apresentar resposta no dia 6 de maio de 2024.

 

  1. A Requerida apresentou, em 11 de junho de 2024, resposta,  na qual  defendeu, nomeadamente,  que:   o valor de 43 690,88 euros deve ser considerado como um gasto “não devidamente documentado”, na medida em que, nomeadamente, as faturas respeitantes à  “B...” de aquisição de mercadorias (batatas) contêm, de forma manuscrita, a identificação do referido emitente e não foram declaradas no VIES.

 

  1. O  Tribunal Arbitral determinou que, por despacho de 18 de julho de 2024,  ao abrigo do princípio da autonomia (do Tribunal Arbitral) na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas (artigo 16.º, alínea c), do RJAT), a dispensa da reunião a que o artigo 18.º do RJAT alude. De igual forma, considerou  que as questões objeto do processo  estão suficientemente debatidas nas peças processuais apresentadas pelas partes, pelo que,  em sintonia com o previsto no artigo 113.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, decidiu pela desnecessidade de alegações.

 

Posição da Requerente

 

  1. A Requerente alega que as operações tituladas pelas faturas números 4, 5, 6, 7, 13 e 14 emitidas pelo fornecedor francês suprarreferido  foram efetivamente realizadas  e encontram-se devidamente documentadas.

 

  1. Vejamos, em concreto, os fundamentos:

 

  1. O princípio da tributação pelo rendimento real impede a AT de limitar a dedução de gastos efetivamente incorridos por sujeitos passivos residentes em Portugal (apenas) a aquisições de bens e serviços ocorridas no estrangeiro, cujos alienantes/prestadores de serviços cumpram os requisitos formais de faturação impostos pela legislação portuguesa;

 

  1. A pretendida limitação à dedução de gastos será ainda mais desprovida de sentido se as faturas emitidas pelo alienante cumprirem a legalidade do seu Estado, no caso sub iudice, o francês;

 

  1. A legislação francesa  legitimava, à data dos factos, o fornecedor “B...”a emitir as faturas  em papel, de modo manuscrito, desde que fossem implementados pela empresa controlos documentados e permanentes que permitissem estabelecer uma auditoria fiável ao percurso entre a fatura emitida ou recebida e a entrega de bens ou prestação de serviços que a fundamenta;

 

  1. O que é bastante para que a Requerida não conclua estarmos perante gastos “não devidamente documentados”;

 

  1. Quanto ao facto de o fornecedor francês “B...” não ter comunicado as operações no VIES não tem como consequência direta a impossibilidade de comprovação das operações em causa, até porque a Requerente juntou aos autos documentos que demonstram de forma detalhada o iter de cada uma delas;

 

  1. Paralelamente, as faturas emitidas pelo referido fornecedor contêm todos os elementos descritos no artigo 23.º, n.º 4, do CIRC;

 

  1. As operações tituladas pelas faturas emitidas pelo fornecedor francês “B...” encontram-se devidamente documentadas e, como tal, são fiscalmente dedutíveis;

 

  1. A posição que a Requerida defende nestes autos é distinta da vertida na informação vinculativa n.º 23791, proferida no âmbito do processo n.º 4942/22, com despacho da  Senhora Diretora de Serviços, de 25 de outubro de 2022, com o seguinte teor: Relativamente às despesas efetuadas com combustíveis e portagens, efetuadas em países comunitários, não estamos de facto perante fornecedores ou prestadores de serviços nacionais, mas sim de outros países, pelo que não podemos determinar quais os elementos que os documentos emitidos nesses países devem conter. Esses documentos deverão obedecer à legislação do país emitente. Mas, não poderemos aceitar como gasto fiscal valores resultantes de relevações contabilísticas que tenham como suporte documentos emitidos noutro país, em que se desconheça a identificação do cliente (adquirente). Assim, os documentos em causa comprovativos da aquisição de combustíveis e pagamento de portagens em países da União Europeia, para que sejam aceites como gasto fiscal em sede de IRC, deverão conter os elementos referidos no n.º 4 do art.º 23.º do CIRC;

 

  1. As faturas  emitidas pelo fornecedor francês “B...” cumprem todos os requisitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIRC e, como tal, aplicando a referida informação vinculativa, os gastos são fiscalmente dedutíveis.

 

  1. A liquidação de juros compensatórios é ilegal, pois não é devido o montante liquidado, a título de imposto.

 

  1. Defende que, por último, se os atos tributários em crise padecem de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, não podendo a ilegalidade ser imputável à Requerente, assiste-lhe o direito ao reembolso do imposto que estima ter sido indevidamente pago  e à perceção de juros indemnizatórios.

 

Posição da Requerida

 

  1. A Requerida defende que não se verifica o erro sobre os pressupostos de facto e de direito invocado pela Requerente.

 

  1. Observa quanto à questão da qualificação dos gastos inscritos na contabilidade como “não devidamente documentados” para efeitos fiscais, o seguinte:

 

  1. As faturas respeitantes ao fornecedor “B...” (i) foram emitidas de modo manuscrito; (ii) e  não foram comunicadas no VIES;

 

  1. O Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”)  é de aplicação obrigatória para todos os Estados-Membros da União Europeia (onde Portugal e França se incluem) e, como tal, as faturas têm de ser emitidas de acordo com o previsto no artigo 36.º do referido diploma legal;

 

  1. O que está verdadeiramente em causa no autos é a divergência verificada pelos Serviços de Inspeção Tributária na análise às  CMR`s, circunstância que lança a dúvida sobre o verdadeiro fornecedor francês;

 

  1. A Requerente não consegue explicar, com a documentação junta, a referida divergência, pois da análise dos documentos entregues nos autos subsiste um desvio comum a todos eles. Em concreto,  entre o inscrito  nas CMR`s,  campo  1 (expedidor) em que está mencionado “...” e o campo 22 (assinatura e carimbo do expedidor) em que surge “...” e assinatura, coincidindo o local de carga com o do carimbo (...);

 

  1. À referida divergência acresce ainda o facto de o local de carga das mercadorias (campo 4, onde menciona “...”) ser diferente da morada que consta nas faturas emitidas à mão, embora coincidente com o carimbo do expedidor constante do campo 22;

 

  1. Conclui, por isso, que os referidos gastos não devem ser considerados como dedutíveis, por “não devidamente documentados” para a determinação do lucro tributável.

 

 

  1. Defende que são devidos juros compensatórios e que,  não existindo  qualquer “erro imputável aos serviços” na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios.

 

16. Questões a Apreciar

 

  1. Se a liquidação de IRC n.º 2023..., no segmento em que desconsidera  43 690,88 euros de gastos, por as faturas que os documentam não cumprirem com as formalidades exigidas pelo artigo 23.º, números 4 e 6, do CIRC é  ilegal, por erro nos pressupostos de facto e de direito;

 

  1. Se a liquidação de juros compensatórios (1460,61 euros) é ilegal, na medida em que não é devido o montante  liquidado adicionalmente,  a título de imposto;

 

  1. Se a Requerente tem direito ao reembolso do imposto que estima ter indevidamente pago;

 

  1. Se a Requerida deve ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, perante a existência de “erro imputável aos serviços”.

 

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

17. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

17.1 A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que tem como objeto a produção, o comércio, a importação e a exportação de batatas e outros produtos agrícolas e alimentares, encontrando-se enquadrada em IRC no regime geral e, em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), no regime normal, na periodicidade mensal.

(PA e documento  junto pela Requerente, sob o número 6, com o pedido de pronúncia arbitral). 

 

17.2 A Requerente foi notificada, no dia 9 de maio de 2023, do início de uma ação de inspeção de natureza externa, relativa ao exercício de 2019, com fonte na ordem de serviço OI2022... .

(PA)

 

17.3 A Requerente contabilizou na conta #311211 – “ U.E. – Batata de Consumo” os seguintes documentos:

            i. Fatura 4, datada de 15 de março de 2019, com a seguinte informação:

a. Denominação social do fornecedor dos bens: “B...”;

                        b. Denominação social do adquirente: “A...”;

                        c. Número de IVA do fornecedor de bens: “...”;

                        d. Número de identificação fiscal do adquirente: “...”;

                        e. Quantidade dos bens adquiridos:”22 439 toneladas”;

                        f. Preço: “7 180,48 euros”;

                        g. Data em que foram adquiridos: “15 de março de 2019”;

                        h. CMR:  “...”.

 

 ii. Fatura 5, datada de 26 de março de 2019, com a seguinte informação:

a. Denominação social do fornecedor dos bens: “B...”;

                        b. Denominação social do adquirente: “A...”;

                        c. Número de IVA do fornecedor de bens: “...”;

                        d. Número de identificação fiscal do adquirente: “...”;

                        e. Quantidade dos bens adquiridos: “22 724 toneladas”;

                        f. Preço: “ 7 271,68 euros”;

                        g.Data em que foram adquiridos: “26 de março de 2019”;

                        h. CMR:  “...”.

 

iii. Fatura 6, datada de 27 de março de 2019, com a seguinte informação:

a. Denominação social do fornecedor dos bens: “B...”;

                        b. Denominação social do adquirente: “A...”;

                        c. Número de IVA do fornecedor de bens: “...”;

                        d. Número de identificação fiscal do adquirente: “...”;

                        e. Quantidade dos bens adquiridos: “22 933 toneladas”;

                        f. Preço: “7 338,56  euros”;

                        g.Data em que foram adquiridos: “27 de março de 2019”;

                        h. CMR:  “...”.

 

iv. Fatura 7, datada de 28 de março de 2019, com a seguinte informação:

a. Denominação social do fornecedor dos bens: “B...”;

                        b. Denominação social do adquirente: “A...”;

                        c. Número de IVA do fornecedor de bens: “...”;

                        d. Número de identificação fiscal do adquirente: “...”;

                        e. Quantidade dos bens adquiridos: “22 192 toneladas”;

                        f. Preço: “7 101,44  euros”;

                        g. Data em que foram adquiridos: “28 de março de 2019”;

                        h. CMR:  “...”.

 

v. Fatura 13, datada de 4 de abril de 2019, com a seguinte informação:

 

a. Denominação social do fornecedor dos bens: “B...”;

                        b. Denominação social do adquirente: “A...”;

                        c. Número de IVA do fornecedor de bens: “...”;

                        d. Número de identificação fiscal do adquirente: “...”;

                        e. Quantidade dos bens adquiridos: “22 895 toneladas”;

                        f. Preço: “7 326,40  euros”;

                        g. Data em que foram adquiridos:” 4 de abril de 2019”;

                        h. CMR:  “...”.

 

vi. Fatura 14, datada de 8 de abril de 2019, com a seguinte informação:

a. Denominação social do fornecedor dos bens: “B...”;

                        b. Denominação social do adquirente: “A...”;

                        c. Número de IVA do fornecedor de bens: “...”;

                        d. Número de identificação fiscal do adquirente: “...”;

                        e. Quantidade dos bens adquiridos: “23 351 toneladas”;

                        f. Preço: “7 472,32  euros”;

                        g.Data em que foram adquiridos: “8 de abril de 2019”;

                        h. CMR:  “...”.

 

(Documentos  juntos pela Requerente, sob os números 8, 9, 10, 11, 12 e 13, com o pedido de pronúncia arbitral). 

 

17.4 As transferências bancárias associadas às sobreditas faturas realizaram-se para o IBAN FR ..., ao qual corresponde uma  conta (bancária) titulada em nome da “B...”.

(Documentos juntos pela Requerente, sob os números 8, 9, 10, 11, 12, 13, 19, 20 e 36, com o pedido de pronúncia arbitral)

 

17.5 No dia 23 de  agosto de 2023 foi a Requerente notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, no qual se concluiu, nomeadamente,  efetuar uma correção ao resultado tributável em IRC, no montante de 43 690,88 euros, em consequência do facto de existirem  gastos “não devidamente documentados”.

(PA)

 

17.6 O projeto de Relatório de Inspeção Tributária continha, nomeadamente, a seguinte fundamentação:

 

1.1.2 — Gastos não devidamente documentados

(…)

 

As faturas são todas manuscritas inclusive o nome do operador francês (cfr. Anexo 2).

O valor de cada uma das faturas registadas não corresponde aos lançamentos contabilizados através de cada uma das Guias de Entrada de Mercadorias na conta  #311211  - “U.E. – Batata de Consumo”. Todavia, o total das faturas (43 690,88 euros) é igual ao valor das Guias de Entrada de Mercadorias após os acertos de mercadorias (46 977,80 euros - 2288,72 euros = 43 690,88 euros).

O valor dos acertos de mercadorias corresponde  a 5% do valor contabilizado na conta #311211 – “U.E. – Batata de Consumo” titulado pelas Guias de Entrada de Mercadorias (2 288,72 €/46977,80 euros = 5%).

A entidade francesa B... não declarou ter realizado qualquer transmissão intracomunitária para a A... .

As operações em causa não se encontram devidamente documentadas nos termos dos números 4  e 6 do artigo 23.º do Código do IRC, conjugado com a alínea c) do número 1 do artigo 23.º-A do mesmo diploma legal, uma vez que os documentos de suporte, nomeadamente as faturas têm manuscrito a identificação do emitente das mesmas e não foram tais operações declaradas no VIES. Nesta conformidade, os gastos, supra descritos, não são aceites como gasto fiscal, nos termos do citado normativo legal.

Deste modo, propõe-se um acréscimo ao Resultado Tributável, no valor de 43 690, 88 euros.

 

(PA)

 

17.7 A Requerente exerceu o direito de audição prévia, no qual dissentiu quanto à correção de  43 690,88 euros como gastos “não devidamente documentados”.

(PA)

 

17.8 O Relatório Final de Inspeção Tributária manteve a correção quanto aos gastos “não devidamente documentados”, tendo sido aditado à fundamentação o seguinte:

           

No PR foi proposto uma correção ao lucro tributável, no valor de 43.690,88 euros, com o fundamento de nas faturas subjacentes, a identificação do emitente ser manuscrita, acrescendo o facto de tais faturas não terem sido comunicadas no VIES. Ou seja, qualquer pessoa poderia emitir tais faturas, encontrando-se colocada em causa a segurança da veracidade do emitente. O Código do IVA é de aplicação obrigatória para todos os membros da União Europeia, na qual se incluem Portugal e França.

Considerando que estamos numa operação B2B (business to business) a fatura tem de ser emitida de acordo com o previsto no Código do IVA (art.º 36.º do Código do IVA). Pois, só assim se pode assegurar que não é outra entidade a utilizar o nome/identificação de terceiro para fins indevidos. Deste modo, as operações em causa não se encontram devidamente documentadas nos termos dos n.ºs 4 e 6 do art.º 23.º do Código do IRC, conjugado com a alínea c) do nº 1 do artigo 23.º-A do mesmo diploma legal, uma vez que os documentos de suporte, nomeadamente as faturas tem manuscrito a identificação do emitente das mesmas e não foram tais operações declaradas no VIES. Nos CMR´s enviados pelo SP, em sede de direito de audição, verificamos que na casa 22 do CMR O “FORNECEDOR” da mercadoria é “C...” o que suscita ainda mais dúvidas sobre qual foi a entidade que forneceu e vendeu a mercadoria.

(PA)

 

17.9 A Requerente foi, assim, notificada da liquidação de IRC n.º 2023 ..., da liquidação de juros compensatórios n.º  2023 ..., e da demonstração de acerto de contas  n.º 2023..., das quais resultaram um montante a pagar de  11 052,95 euros. 

(Documentos juntos pela Requerente, sob os números 1, 2 e 3, com o pedido de pronúncia arbitral)

 

17.10 A Requerente procedeu ao pagamento, no dia 20 de dezembro de 2023, do valor constante da demonstração de acerto de contas (11 052,95 euros), com prazo de pagamento voluntário, até 26 de dezembro de 2023.

(Documento apresentado pela Requerente, sob o n.º 41, com o pedido de pronúncia arbitral)

 

17.11 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 16 de fevereiro de 2024.

(Sistema informático do CAAD).

 

18. Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão.

 

19. Fundamentação dos factos provados e não provados

 

O Tribunal Arbitral, quanto à matéria de facto, não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (artigo 123.º, n.º 2,  do  CPPT, artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

20.MATÉRIA DE DIREITO

 

20.1 Questão da ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito

 

A questão central dos autos consiste na qualificação do valor  pago (43 690,88 euros), ao fornecedor “B...”. Se para a Requerente os gastos estão devidamente documentados, já para a Requerida são gastos  “não devidamente documentados”.  Destaca-se que não vem colocada em causa a efetividade dos gastos, mas a sua documentação, pelo não cumprimento do previsto no artigo 23.º, números 4 e 6, do CIRC: i) as faturas do fornecedor “B...” foram emitidas de modo manuscrito; e (ii) pela circunstância de a entidade francesa não ter declarado as operações no VIES.

O artigo 23.º do CIRC dispunha, em 2019, o seguinte:

 

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

a) Os relativos à produção ou aquisição de quaisquer bens ou serviços, tais como matérias utilizadas, mão-de-obra, energia e outros gastos gerais de produção, conservação e reparação;

b) Os relativos à distribuição e venda, abrangendo os de transportes, publicidade e colocação de mercadorias e produtos;

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;

d) De natureza administrativa, tais como remunerações, incluindo as atribuídas a título de participação nos lucros, ajudas de custo, material de consumo corrente, transportes e comunicações, rendas, contencioso, seguros, incluindo os de vida, doença ou saúde, e operações do ramo 'Vida', contribuições para fundos de poupança-reforma, contribuições para fundos de pensões e para quaisquer regimes complementares da segurança social, bem como gastos com benefícios de cessação de emprego e outros benefícios pós-emprego ou a longo prazo dos empregados;

e) Os relativos a análises, racionalização, investigação, consulta e projetos de desenvolvimento

                          f) De natureza fiscal e parafiscal;

                          g) Depreciações e amortizações;

                          h) Perdas por imparidade;

                          i) Provisões;

                          j) Perdas por reduções de justo valor em instrumentos financeiros;

k) Perdas por reduções de justo valor em ativos biológicos consumíveis que não sejam explorações silvícolas plurianuais; 

                          l) Menos-valias realizadas;

                          m) Indemnizações resultantes de eventos cujo risco não seja segurável.

3 — Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.

4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos:

a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;

b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;

c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;

                          d) Valor da contraprestação, designadamente o preço;

e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados.

                          (…)

6 - Quando o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços esteja obrigado à emissão de fatura ou documento legalmente equiparado nos termos do Código do IVA, o documento comprovativo das aquisições de bens ou serviços previsto no n.º 4 deve obrigatoriamente assumir essa forma.

7 - Os gastos respeitantes a ações preferenciais sem voto classificadas como passivo financeiro de acordo com a normalização contabilística em vigor, incluindo os gastos com a emissão destes títulos, são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável da entidade emitente.

 

Por outro lado, o artigo 23.º-A do CIRC, em 2019, tinha o seguinte teor:

 

1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

a) O IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros; 

                          b) As despesas não documentadas;

c) Os encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos números 3 e 4 do artigo 23.º, bem como os encargos evidenciados em documentos emitidos por sujeitos passivos com número de identificação fiscal inexistente ou inválido, por sujeitos passivos cuja cessação de atividade tenha sido declarada oficiosamente nos termos do n.º 6 do artigo 8.º ou por sujeitos passivos que não tenham entregue a declaração de inscrição, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 117.º; 

d) As despesas ilícitas, designadamente as que decorram de comportamentos que fundadamente indiciem a violação da legislação penal portuguesa, mesmo que ocorridos fora do alcance territorial da sua aplicação;

   e) As multas, coimas e demais encargos, incluindo os juros compensatórios e moratórios, pela prática de infrações de qualquer natureza que não tenham origem contratual, bem como por comportamentos contrários a qualquer regulamentação sobre o exercício da atividade;

   f) Os impostos, taxas e outros tributos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente obrigado a suportar;

                          g) As indemnizações pela verificação de eventos cujo risco seja segurável;

h) As ajudas de custo e os encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, sempre que a entidade patronal não possua, por cada pagamento efetuado, um mapa através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respetivos locais, tempo de permanência, objetivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respetivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário;

i) Os encargos com o aluguer sem condutor de viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, na parte correspondente ao valor das depreciações dessas viaturas que, nos termos das alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 34.º, não sejam aceites como gastos;

j) Os encargos com combustíveis na parte em que o sujeito passivo não faça prova de que os mesmos respeitam a bens pertencentes ao seu ativo ou por ele utilizados em regime de locação e de que não são ultrapassados os consumos normais;

k) Os encargos relativos a barcos de recreio e aeronaves de passageiros que não estejam afetos à exploração do serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo;

l) As menos-valias realizadas relativas a barcos de recreio, aviões de turismo e viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, que não estejam afetos à exploração de serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo, exceto na parte em que correspondam ao valor fiscalmente depreciável nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º ainda não aceite como gasto;

m) Os juros e outras formas de remuneração de suprimentos e empréstimos feitos pelos sócios à sociedade, na parte em que excedam a taxa definida por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, salvo no caso de se aplicar o regime estabelecido no artigo 63.º; 

n) Os gastos relativos à participação nos lucros por membros de órgãos sociais e trabalhadores da empresa, quando as respetivas importâncias não sejam pagas ou colocadas à disposição dos beneficiários até ao fim do período de tributação seguinte;

o) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, os gastos relativos à participação nos lucros por membros de órgãos sociais, quando os beneficiários sejam titulares, direta ou indiretamente, de partes representativas de, pelo menos, 1 % do capital social, na parte em que exceda o dobro da remuneração mensal auferida no período de tributação a que respeita o resultado em que participam;

                          p) A contribuição sobre o setor bancário;

                          q) A contribuição extraordinária sobre o setor energético;

r) As importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal a que se referem os números 1 ou 5 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, ou cujo pagamento seja efetuado em contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado;

                          s) A contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica

 

2 - Não concorrem para a formação do lucro tributável as menos-valias e outras perdas relativas a instrumentos de capital próprio, na parte do valor que corresponda aos lucros ou reservas distribuídos ou às mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de partes sociais da mesma entidade que tenham beneficiado, no próprio período de tributação ou nos quatro períodos anteriores, da dedução prevista no artigo 51.º, do crédito por dupla tributação económica internacional prevista no artigo 91.º-A ou da dedução prevista no artigo 51.º-C.

3 - Não são aceites como gastos do período de tributação os suportados com a transmissão onerosa de instrumentos de capital próprio, qualquer que seja o título por que se opere, de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

4 - A Autoridade Tributária e Aduaneira deve disponibilizar a informação relativa à situação cadastral dos sujeitos passivos, que seja considerada relevante para efeitos do disposto na segunda parte da alínea c) do n.º 1.

5 - No caso de não se verificar o requisito enunciado na alínea n) do n.º 1, ao valor do IRC liquidado relativamente ao período de tributação seguinte adiciona-se o IRC que deixou de ser liquidado em resultado da dedução das importâncias que não tenham sido pagas ou colocadas à disposição dos interessados no prazo indicado, acrescido dos juros compensatórios correspondentes.

6 - Para efeitos da verificação da percentagem fixada na alínea o) do n.º 1, considera-se que o beneficiário detém indiretamente as partes do capital da sociedade quando as mesmas sejam da titularidade do cônjuge, respetivos ascendentes ou descendentes até ao 2.º grau, sendo igualmente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras sobre a equiparação da titularidade estabelecidas no Código das Sociedades Comerciais.

7 - O disposto na alínea r) do n.º 1 aplica-se igualmente às importâncias indiretamente pagas ou devidas, a qualquer título, às pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável a que se referem os números 1 ou 5 do artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento do seu destino, presumindo-se esse conhecimento quando existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º, entre o sujeito passivo e as referidas pessoas singulares ou coletivas, ou entre o sujeito passivo e o mandatário, fiduciário ou interposta pessoa que procede ao pagamento às pessoas singulares ou coletivas.

8 - A Autoridade Tributária e Aduaneira notifica o sujeito passivo para produção da prova referida na alínea r) do n.º 1, devendo, para o efeito, ser fixado um prazo não inferior a 30 dias.

 

A dedução de gastos (contabilísticos) em IRC exige, assim, o cumprimento de quatro requisitos cumulativos: (i) contabilização; (ii) licitude; (iii) documentação; e (iv) manutenção da fonte produtora[1].

O referido artigo 23.º do CIRC impõe  o registo contabilístico da despesa para que, subsequentemente, se apliquem as regras fiscais de gastos;  a renúncia à relevância fiscal de gastos, tipificados como juridicamente censuráveis noutras esferas normativas (por exemplo, contraordenacional); em terceiro lugar, o(s) documentos(s) que suportam o gasto têm de permitir conhecer a operação realizada com vista ao seu controlo e; por último, a evidência da  relação entre o gasto e a atividade societária.

Um dos requisitos para a dedução fiscal dos gastos suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços é, como vimos, a sua documentação, independentemente da natureza ou suporte, esta tem de obedecer a um conteúdo mínimo.

Caso se verifique a falta de um dos elementos vertidos no artigo 23.º, n.º 4, do CIRC, o documento comprovativo não é, em princípio, apto a fundar ou sustentar a dedutibilidade do gasto contabilizado. Dizemos, em princípio, pois, como sustenta a jurisprudência[2], a demonstração de determinados elementos pode ser feita através de outros meios de prova, quando o documento (fatura) não contenha o padrão de detalhe exigido.

Destaca-se a circunstância de ser possível, para efeitos de IVA, a demonstração das exigências de fundo do direito à dedução com recurso a outros meios de prova, caso as faturas contenham algumas irregularidades, como sustenta a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) nos acórdãos de 08 de maio de 2008, Ecotrade, C-95/07 e C-96/07, EU:C:2008:267, de 1 de março de 2012, Polski Trawertyn, C-280/10, EU:C:2012:107, e de 15 de setembro de 2016, Barlis, C-516/14, EU:C:2016:690.

A  jurisprudência admite, com fonte no princípio da neutralidade fiscal, a dedução do IVA suportado a montante, quando sejam observadas as exigências de fundo, ainda que os sujeitos passivos tenham negligenciado determinadas exigências formais.

Deste modo, se para efeitos de IVA (tributo em relação ao qual, em função das suas características, há uma superior importância no cumprimento dos requisitos exigidos às faturas), se admite  a dedução, com fonte no princípio da neutralidade,  quando, nomeadamente, são demonstradas as exigências substantivas da operação, também, por maioria de razão, a referida  posição jurisprudencial é aplicável ao IRC.

A posição é reforçada pela injunção constitucional que obriga à tributação das empresas segundo o rendimento real – artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

Importa perceber, por isso, se a Requerente aportou para os autos prova documental que permita verificar se a mesma tem aptidão para dar relevância fiscal aos gastos contabilísticos.

No caso sub iudice,  a materialidade dos gastos não é colocada em crise, mas, repete-se, o cumprimento dos requisitos vertidos no artigo 23.º, números 4 e 6, do CIRC e a não comunicação no VIES.

Um dos elementos que a Requerida destaca para a correção que empreendeu encontra-se na divergência entre o expedidor (campo 1 da CMR) e carimbo constante no campo 22 da CMR, alegadamente de outro fornecedor. Circunstância que, no seu juízo, colocaria em causa o conhecimento quanto ao fornecedor do produto titulado em cada uma das faturas, apesar de não dissentir, repete-se,  quanto à materialidade das operações contabilizadas.

A Requerente juntou aos autos  os comprovativos de transferência bancária para pagamento das faturas emitidas e, paralelamente, um documento no qual consta o IBAN da “B...”. Ora, as transferências bancárias associadas às  faturas objeto das correções realizaram-se para o IBAN..., ou seja, para uma conta (bancária) titulada em nome da “B...”.

Em segundo lugar, da conjugação de todos os documentos juntos pela Requerente (documentos estes que atestam as transferências bancárias e o  beneficiário) é possível identificar o “fornecedor” dos bens, ainda que as faturas sejam manuscritas.

O Tribunal Arbitral entende que os referidos elementos são suficientes para demonstrar “as exigências de fundo” do direito à dedução do gasto, isto é, que a correção empreendida por “falta de documentação”  não pode subsistir na ordem jurídica. As operações societárias colocadas em causa são passíveis de controlo com a documentação que a Requerente juntou aos autos.

A conclusão é reforçada pela circunstância de a Requerente ter junto aos autos documento com a consulta ao VIES do fornecedor em causa nas correções e da  própria AT concluir, quanto à documentação de gastos suportados no estrangeiro[3], que:

Relativamente às despesas efetuadas com combustíveis e portagens, efetuadas em países comunitários, não estamos de facto perante fornecedores ou prestadores de serviços nacionais, mas sim de outros países, pelo que não podemos determinar quais os elementos que os documentos emitidos nesses países devem conter. Esses documentos deverão obedecer à legislação do país emitente.

Os documentos juntos pela Requerente para suportar os gastos permitem identificar o fornecedor e a natureza dos bens adquiridos, pelo que, definitivamente, as despesas foram contabilizadas com um suporte documental que permitia identificar o fornecedor. Deste modo,  não estamos perante “despesas não  devidamente documentadas” e, como tal, a liquidação de IRC (segmento impugnando) e a (liquidação) de  juros compensatórios são ilegais e, como tal,  vão expurgadas da ordem jurídica.

 

20.2 Questão da restituição do imposto que a Requerente considera indevidamente pago e da condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios

 

A  Requerente pediu ainda a restituição do imposto e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

O que significa que, na execução do julgado anulatório, a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.

Uma vez anulada parte da liquidação de IRC impugnada e, bem assim, dos juros compensatórios inerentes, cabe à Requerida, em observância do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, restituir as importâncias de imposto e de juros compensatórios necessárias ao restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário, no aludido fragmento, não tivesse sido praticado.

Sobre o direito aos  juros indemnizatórios rege o disposto no artigo 43.º da LGT que, no seu número 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida.

 Na situação vertente, está em causa a errada interpretação do artigo 23.º, números 4 e 6, do CIRC, tendo ficado demonstrado que a liquidação de IRC em discussão padece, em parte, de erro substantivo imputável à AT, para o qual a Requerente não contribuiu, verificando-se o pressuposto de erro imputável aos serviços. A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias emergentes do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), e n.º 5, do RJAT, 43.º e 100.º da LGT.

Deste modo, a anulação parcial da liquidação de IRC e de juros compensatórios é passível de constituir, na esfera da Requerente, o direito ao recebimento de juros indemnizatórios que a visa ressarcir da ilegal privação da quantia indevidamente paga pelo período de tempo que perdurar.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IRC n.º 2023..., segmento da desconsideração de  43 690,88 euros, como   gastos “não devidamente documentados”,  anulando-se, por isso, a correção;

 

  1. Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de juros compensatórios n.º 2023 ... e demonstração de acerto de contas, expurgando-se, por isso, as mesmas da ordem jurídica;

 

  1. Julgar  procedente o pedido de restituição de imposto, com as legais consequências;

 

  1. Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;

 

  1. Condenar a Requerida no pagamento integral de custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em  11 052,95 euros, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas  a cargo da Requerida, no montante de 918  euros, em conformidade com o RCPAT e a Tabela I a este anexa e com os artigos 12.º, n.º 2,  22.º, n.º 4, do RJAT, e 527.º do CPC,  aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 28   de outubro de 2024

 

O árbitro,

                                                                                                                  

 

Francisco Nicolau Domingos

 



[1] Gustavo Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas,  Almedina, 2019, pp. 103-109.

[2] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19 de dezembro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 1357/16.7 BELRA, cuja fundamentação seguiremos de perto.

[3] Informação vinculativa n.º 23791, proferida no âmbito do processo n.º 4942/22, com despacho da  Senhora Diretora de Serviços, de 25 de outubro de 2022.