SUMÁRIO
O benefício previsto no artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Benefícios Fiscais, no âmbito de medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias, é aplicável, além de outras condições, aos veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, que se encontrem registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos de IRC.
De acordo com os critérios de hermenêutica jurídica, não se justifica uma interpretação extensiva da referida norma, de modo a abranger os veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias que se encontrem registados como ativo intangível, ainda que essa qualificação resulte de normas contabilísticas específicas aplicáveis ao sujeito passivo.
Acórdão Arbitral
Os árbitros, Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Sérgio Pontes e Ana Rita do Livramento Chacim (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
I.1. A..., S. A., número único de pessoa coletiva..., com sede em...–..., ...- ... ..., (doravante “Requerente”), vem, nos termos do disposto nos artigos 95.º, n.º 1 e 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”), e ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por “RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributaria e Aduaneira (doravante designada de “Requerida” ou “AT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado (Processo n.º ...2023...) e reconhecimento à Requerente do direito ao benefício fiscal consagrado no artigo 70.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), com as inerentes consequências legais, e ser a Autoridade Tributária condenada nas custas do processo.
I.2. Tramitação processual
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 26.02.2024 pelo Presidente do CAAD e notificado à AT nos termos regulamentares.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do RJAT, o Conselho Deontológico, designou os árbitros do Tribunal Coletivo, que comunicaram a sua aceitação, nos termos legalmente previstos.
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Em 15.04.2024, as Partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
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Desta forma, o Tribunal Coletivo foi regularmente constituído em 07.05.2024, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
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Por despacho arbitral de 09.05.2023, foi cumprido o disposto no artigo 17.º do RJAT, tendo a Requerida sido notificada para apresentar a sua Resposta.
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A 12.06.2024 a AT juntou aos autos o respetivo processo administrativo e apresentou a sua Resposta, em defesa da legalidade dos atos impugnados (indeferimento do recurso hierárquico e autoliquidação de IRC subjacente), concluindo pela improcedência do pedido arbitral, pela legalidade e manutenção dos mesmos na ordem jurídica.
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Por despacho de 13.06.2024 proferido pela Presidente do presente Tribunal Arbitral, com a concordância dos Co-Árbitros, determinou-se a notificação das Partes nos seguintes termos:
«Na Resposta a Requerida protesta juntar o processo instrutor. Fixa-se o prazo de dez dias para esse efeito, sob pena de aplicação das respectiva[s] cominações legais. Deste despacho notifiquem-se as partes.»
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Por despacho de 07.07.2024, proferido pela Presidente do presente Tribunal Arbitral, com a concordância dos Co-Árbitros, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada nos termos seguintes:
«1. Não havendo lugar a produção de prova constituenda e não tendo sido suscitada matéria de excepção, o Tribunal dispensa a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, o que faz ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Vd. arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT.
2. Notifiquem-se as partes para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias a partir da notificação do presente despacho, sendo que se concede à Requerida a faculdade de, caso assim o entenda, juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pelo sujeito passivo. No mesmo prazo deverá ser processado o pagamento da taxa de arbitargem subsequente.
3. Designa-se o dia 07 de Novembro de 2024 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em formato WORD.
Do presente despacho, notifiquem-se as partes.»
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Por despacho de 19.07.2024, proferido pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, determinou-se a substituição do Professor Doutor Paulo Jorge Nogueira da Costa como árbitro no presente processo, pela Dra. Ana Rita do Livramento Chacim, a qual comunicou a sua aceitação, nos termos legalmente previstos.
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Por Requerimento de 25.07.2024, a Requerente veio apresentar alegações finais.
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Por Requerimento de 26.07.2024, a Requerida veio apresentar alegações finais.
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Por despacho de 07.09.2024, proferido pela Presidente do presente Tribunal Arbitral, com a concordância dos Co-Árbitros determinou-se a notificação das Partes nos seguintes termos:
«Nos termos do previsto no n.º 3 do art. 9.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: “No caso de se verificar a substituição de árbitro, o tribunal arbitral decide se algum acto processual deve ser repetido em face da nova composição do tribunal, tendo em conta o estado do processo”.
Cumpre, nestes termos, na sequência da substituição de árbitro verificada na presente acção, apurar se se justifica que haja lugar a repetição de actos processuais praticados.
Nos presentes autos apenas houve lugar ao oferecimento de articulados.
Representando, estes, actos processuais para cuja produção, eficácia e interpretação, não se revela imprescindível a manutenção em juízo dos árbitros que se encontravam em exercício de funções no processo quando tais actos foram praticados, não se justifica que se repitam quaisquer actos processuais, prosseguindo a instância os seus demais e regulares termos.
Do presente despacho, notifiquem-se as partes.»
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POSIÇÃO DAS PARTES
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REQUERENTE
A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, com vista à anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico e da autoliquidação de IRC subjacente, o seguinte:
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A Requerente é uma sociedade comercial de direito português, que tem como objeto social a exploração e a gestão de um sistema multimunicipal de tratamento e recolha seletiva de resíduos urbanos, no âmbito de um Contrato de Concessão celebrado com o Estado Português. No cumprimento das suas funções de Concessionária na região de ..., na qual se integram os municípios da Batalha, Leiria, Marinha Grande, Ourém, Pombal e Porto de Mós, as áreas de atuação da Requerente relacionam-se essencialmente com (i) a triagem de materiais recicláveis; (ii) a deposição em aterro sanitário; e (iii) o tratamento e valorização dos resíduos.
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No contexto do desenvolvimento da sua atividade, explica que, o transporte dos resíduos sólidos urbanos (RSU) provenientes da recolha indiferenciada é da responsabilidade dos municípios, cabendo à Requerente a monitorização das atividades dos referidos Aterros Sanitários após a deposição dos mencionados resíduos por parte dos municípios.
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Todavia, em situações específicas, e devido ao distanciamento entre os Aterros Sanitários e alguns dos municípios abrangidos pela presente concessão, a Requerente assegura o transporte dos RSU depositados por essas entidades nas Estações de Transferência localizadas nos concelhos da Batalha, Ourém e Pombal.
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No âmbito destes serviços de transporte de RSU prestados no período de tributação de 2019, a Requerente incorreu em gastos com a aquisição de gasóleo necessário ao funcionamento das várias vertentes da sua atividade, no montante total de €628.118,50.
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No dia 30 de julho de 2020, a Requerente procedeu à entrega da sua declaração de rendimentos “Modelo 22” do IRC, com referência ao período de tributação de 2019, da qual resultou um montante total de imposto a pagar de €6.464, 76.
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Tendo a Requerente identificado que, por manifesto erro, tal declaração não considerou, para efeitos de apuramento do lucro tributável referente a 2019, a dedução do benefício fiscal previsto no artigo 70.º, nº 4, do EBF, (Medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias) - “Os gastos suportados com a aquisição, em território português, de combustíveis para abastecimento de veículos são dedutíveis, em valor correspondente a 120 % do respetivo montante, para efeitos da determinação do lucro tributável, quando se trate de: - b) Veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5 t, registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos IRC ou alugados sem condutor por estes e que estejam licenciados pelo IMT, I. P.; (Redação do Decreto- Lei n.º 38/2016, de 15 de julho)”, apresentou a competente reclamação graciosa.
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Sobre a referida reclamação graciosa foi a Requerente notificada do projeto de decisão no sentido de indeferimento, e posteriormente, da decisão final no mesmo sentido.
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A decisão de indeferimento por parte da AT assentou, em exclusivo, na falta de preenchimento de uma das condições previstas para a aplicação do benefício fiscal em causa (artigo 70.º, n.º4, do EBF): “(…) tratando- se de um benefício fiscal, de apoio ao transporte rodoviário de mercadorias, implica o preenchimento cumulativo das suas condições, o que não se verifica neste caso concreto, dado que as viaturas afetas ao transporte, não estão registadas como elementos do ativo fixo tangível, sendo proibida a analogia nos termos do n.º 4 do artigo 11.º da LGT e do artigo 10.º do EBF.”
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Por não se conformar com a aludida decisão, a Requerente interpôs da mesma o competente Recurso Hierárquico, o qual, veio a ser expressamente indeferido através do despacho também aqui impugnado.
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A Requerente identifica como único ponto de discordância por parte da AT, o cumprimento do requisito da contabilização dos veículos nas demonstrações financeiras. Limita- se assim a remeter para um argumento estritamente formal, atinente à mera expressão “ativo fixo tangível”, sem adiantar ou densificar qualquer fundamento material suscetível de justificar, minimamente, a inaplicabilidade do benefício fiscal em causa à Requerente.
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Salienta que, no seu caso em concreto, atendendo aos termos do contrato de concessão, nomeadamente no que se refere ao modelo regulatório, foi entendido que as suas operações são enquadráveis no modelo do ativo intangível, em virtude de, essencialmente, ter o direito incondicional de cobrar aos utilizadores uma determinada tarifa e, bem assim, assumir os riscos operacionais, de investimento e de financiamento da concessão.
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Neste sentido, por aplicação da IFRIC 12, todos os ativos afetos à concessão
encontram-se registados nas demonstrações financeiras da Requerente como ativo fixo intangível (designado Direito de Utilização de Infraestruturas) onde, naturalmente, se incluem as viaturas de transporte utilizadas para a prestação do serviço de transporte que descreve.
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Refere que, na redação aplicável ao período de tributação de 2019, o próprio legislador alargou o âmbito de aplicação do benefício fiscal previsto no artigo 70.º, n.º4, do EBF, de modo a incluir os gastos com combustíveis relacionados com viaturas em regime de locação sem condutor. E isto porque o legislador terá necessariamente considerado que a medida de apoio consagrada no sobredito benefício fiscal deveria ser aplicável tanto nos casos em que o veículo de transporte (de mercadorias ou de passageiros) pertence e está afeto em permanência à atividade do sujeito passivo, como nos casos em que, embora sendo locado, tal veículo está igualmente afeto a tal atividade.
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Recorda que os benefícios fiscais correspondem “[à]s medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais re levantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem” (Cfr. n.º 1 do artigo 2.º do EBF). Ou seja, correspondem a medidas excecionais ao regime de tributação - regra que justifica que as normas que os estabelecem, pese embora não suscetíveis de integração por via de analogia, sejam passíveis de interpretação extensiva.
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A interpretação preconizada pela Autoridade Tributária sobre o artigo 70.º n.º 4.º, alínea b) do EBF, acarreta uma clara violação dos mais basilares cânones da igualdade, proporcionalidade e capacidade contributiva, e carece em absoluto de sustentação material no plano tributário. Em suma, o benefício fiscal assim apurado implica, na esfera tributária da Requerente, o aumento do prejuízo fiscal apurado no período de tributação de 2019, deixando de apurar o montante de €1 193 179 ,57 para registar um prejuízo fiscal de €1 270 025, 62.
II.2. REQUERIDA
A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua Resposta na qual, em substância, alegou o seguinte:
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Esclarece que, como o SNC não responde aos aspetos particulares dos contratos de concessão em matéria de contabilização ou de relato financeiro, as entidades tiveram de recorrer, à International Financial Reporting Interpretations Committee (IFRIC 12) que, por sua vez, remete para as normas internacionais de contabilidade (IAS) ou normas internacionais de relato financeiro (IFRS).
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As condições presentes no contrato de concessão estabelecido entre a Requerente, como concessionária e os municípios, como concedente, implicam o reconhecimento de um ativo intangível, dado que a concessionária (ora Requerente) possui o direito de cobrar serviços aos utentes do serviço público em função da utilização das infraestruturas concessionadas e construídas no âmbito do contrato da concessão (IFRIC 12, §1713) que reverterão a final do período de concessão para a concedente, sendo que, um contrato de concessão dentro do âmbito da IFRIC 12, de acordo com o parágrafo 26, deve ser classificado como um ativo intangível (IAS 38 - Activos Intangíveis) adquirido em troca de um ativo ou ativos não monetários ou de uma combinação de ativos monetários e não monetários. IFRIC 12.
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Defende assim que, tratando-se de um benefício fiscal, de apoio ao transporte rodoviário de mercadorias, o mesmo implica o preenchimento cumulativo das suas condições, o que não se verifica neste caso concreto, dado que as viaturas afetas ao transporte não estão registadas como elementos do ativo fixo tangível.
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Sublinha que se encontra proibida a analogia, nos termos do artigo 11.º, n.º 4 da LGT e do artigo 10.º do EBF, recordando aqui que o princípio da legalidade impede a administração tributária de integrar uma potencial lacuna que exista em norma tributária que preveja um benefício fiscal.
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Contrapõe a Requerente defendendo que o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), é um limite à discricionariedade legislativa, mas não exige o tratamento igual de todas as situações, ao invés, implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de modo a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante.
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O legislador não parece ter pretendido abranger todo o ativo fixo, mas apenas o ativo fixo tangível. Neste sentido, a interpretação defendida pela Requerente, para além de não ter um mínimo de correspondência com a letra da Lei, determinaria a violação do princípio da legalidade e de reserva de lei, tal como plasmados no art.º 103.º, n.º 2, da CRP.
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Conclui, pois, pela total improcedência do pedido e pela legalidade dos atos impugnados, entendendo, em consequência, e, consequentemente, ser a Requerida absolvida de todos os pedidos.
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ALEGAÇÕES FINAIS
As Partes pronunciaram-se no prazo concedido para a apresentação das alegações finais escritas, reiterando os respetivos entendimentos anteriormente expostos.
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SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído, é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1 e artigo 5.º, nºs. 1 e 3 ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
Não foi suscitada matéria de exceção.
O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar e decidir.
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MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal, cumpre atender aos seguintes factos que se julgam provados:
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A Requerente é a uma sociedade comercial de direito português, constituída sob o tipo de sociedade anónima pelo Decreto-Lei n.º 116/96, de 6 de agosto, e que tem como objeto social principal as atividades de recolha seletiva, triagem, tratamento e valorização de resíduos sólidos, no âmbito de um Contrato de Concessão celebrado com o Estado Português.
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O Contrato de Concessão é regido pelo Decreto-Lei n.º 96/2014, de 25 de junho, que consagra o regime jurídico da concessão da exploração e da gestão, em regime de serviço público, dos sistemas multimunicipais de tratamento e de recolha seletiva de resíduos urbanos, cuja responsabilidade pela gestão é assegurada pelos municípios, atribuída a entidades de capitais exclusiva ou maioritariamente privados - facto não controvertido.
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No cumprimento das suas funções de Concessionária na região de ... na qual se integram os municípios da Batalha, Leiria, Marinha Grande, Ourém, Pombal e Porto de Mós, as áreas de atuação da Requerente relacionam- se essencialmente com (i) a triagem de materiais recicláveis; (ii) a deposição em aterro sanitário; e (iii) o tratamento e valorização dos resíduos - facto não controvertido.
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No âmbito dos serviços de transporte de RSU prestados no período de tributação de 2019, a Requerente logrou provar que incorreu em gastos com a aquisição de gasóleo necessário ao funcionamento das várias vertentes da sua atividade, no montante total de €628.118,50 [cf, quadro constante do PPA - facto não controvertido]:
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A 30 de julho de 2020, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 22 do IRC, com referência ao período de tributação de 2019, da qual resultou um montante a pagar correspondente a €6 464,76 [cf. cópia da declaração de rendimentos com a identificação ... junta como documento n.º 2], apurando um montante de prejuízos fiscais de € 1.193.179,57 [cf. demonstração de liquidação n.º 2020... constante do processo administrativo (PA) como documento n.º 3].
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A 01 de agosto de 2022, foi rececionada pela AT a respetiva reclamação graciosa apresentada pela Requerente, por discordar da autoliquidação efetuada (Processo n.º ...2022...) - [cf. cópia da reclamação que se junta como Parte 4 do PA].
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A 10 de março de 2023 a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento sobre a reclamação graciosa apresentada [cópia da notificação de Decisão Final, pelo ofício n.º..., de 08-03-2023, junta como documento n.º 6].
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Em 06.04.2023, apresentação de recurso hierárquico com o n.º ...2023... contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022..., referente ao ato de autoliquidação de IRC n.º 2020..., respeitante ao período de tributação de 2019 [cf. Parte 1 do PA].
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Data de 13.12.2023 a Notificação da Decisão Final contendo o despacho de indeferimento sobre o procedimento de recurso hierárquico com o n.º ...2023... cópia da notificação de Decisão Final, pelo ofício n.º ..., de 08-03-2023, junta como documento n.º 6, Parte 7 do PA e cópia junta aos autos como RH ...2023... DECISÃO FINAL.pdf].
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A Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral para impugnação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico e, mediatamente, da autoliquidação de IRC em causa nos presentes autos, o qual foi aceite em 26.02.2024.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não há factos não provados que relevem para a decisão da causa.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção, quanto à factualidade dada como provada, com base nos documentos juntos ao Pedido e no processo administrativo junto pela Autoridade tributária com a Resposta. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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MATÉRIA DE DIREITO
A Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral peticionando a anulação do despacho de indeferimento do procedimento de Recurso Hierárquico identificado, com as respetivas consequências legais, solicitando que seja reconhecido à Requerente o direito ao benefício fiscal consagrado no artigo 70.º, n.º 4, alínea b) do EBF, com referência ao período de tributação de 2019.
Atentas as posições assumidas pelas Partes, pelos argumentos apresentados e a matéria de facto dada como assente, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em saber se a norma do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, que prevê, para efeitos da determinação do lucro tributável, uma majoração de 20% relativamente a gastos suportados com a aquisição de combustíveis para abastecimento de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias, quando estejam registados como elementos do ativo fixo tangível, pode ser objeto de uma interpretação extensiva, de modo a entender-se que o benefício fiscal é aplicável quando os veículos se encontram registados na contabilidade do sujeito passivo como ativo fixo intangível.
Cumpre analisar.
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Admissibilidade de interpretação extensiva do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF
Para o que releva, o artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, sob a epígrafe “Medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias”, dispõe que: «(…) 4 - Os gastos suportados com a aquisição, em território português, de combustíveis para abastecimento de veículos são dedutíveis, em valor correspondente a 120 % do respetivo montante, para efeitos da determinação do lucro tributável, quando se trate de: (…) b) Veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5 t, registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos IRC ou alugados sem condutor por estes e que estejam licenciados pelo IMT, I.P.; […].» [nosso sublinhado]
Resulta assim da referida norma, a obrigatoriedade de verificação cumulativa das condições identificadas, a saber: (i) ser sujeito passivo de IRC; (ii) as aquisições de combustíveis serem realizadas em território português; (iii) os veículos sejam afetos ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem; (iv) o peso bruto dos veículos seja igual ou superior a 3,5 t; (v) os veículos estejam registados como elementos do ativo fixo tangível; (vi) os veículos estejam licenciados pelo IMT, IP.
Não tendo sido controvertidas pelas Partes as restantes condições de que depende a concessão do referido benefício fiscal, salienta-se a centralidade da discussão na admissibilidade de interpretação extensiva da norma, no sentido de se entender se o benefício fiscal é aplicável quando os veículos se encontram registados na contabilidade do sujeito passivo como ativo fixo intangível.
De referir que a condição de registo contabilístico como ativo fixo tangível encontra-se igualmente presente no artigo 70.º n.º 4, alínea a) do EBF, relativamente aos gastos incorridos com combustíveis para abastecimento de veículos afetos ao transporte público de passageiros.
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No que concerne ao juízo de interpretação legal em questão, encontra-se desde logo assente o entendimento de que nada obsta à aplicação das regras gerais (de interpretação) (artigo 11.º da LGT e artigo 9.º do Código Civil), ressalvando-se, nos termos do artigo 10.º do EBF (“Interpretação e integração das lacunas da lei”) que: «As normas que estabeleçam benefícios fiscais não são susceptíveis de integração analógica, mas admitem interpretação extensiva.»
A matéria controvertida nos presentes autos já foi objeto de análise na decisão proferida no Processo n.º 1022/2023-T (CAAD), destacando-se aqui, em proveito da presente, que:
«Segundo o disposto no artigo 9.º do Código Civil, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1), mas “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2).
Em anotação a esta disposição, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA referem que não é possível prescindir por completo da letra da lei, para atender apenas à vontade do legislador, “quando no n.º 2 se afasta a possibilidade de qualquer pensamento legislativo valer como sentido decisivo da lei, se no texto desta não encontrar um mínimo de correspondência verbal” (Código Civil Anotado, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 58).
Dentro da mesma linha de entendimento, BAPTISTA MACHADO, referindo-se ao elemento gramatical de interpretação, sublinha o seguinte:
O texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos. Primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma, com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador. [nosso sublinhado]
Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e direto das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exato) de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 182).» [nosso sublinhado]
Decorre do referido enquadramento, que as normas legais não devem ser interpretadas e aplicadas com um conteúdo que não tenha o mínimo de correspondência com a letra da lei.
No que concerne ao artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, e estando em causa a abrangência de um conceito contabilístico incorporado pelo Código do IRC - ativo fixo intangível –importa notar que o mesmo possui um significado específico (de base contabilística, com respetivo enquadramento fiscal), preciso e inequívoco, diferenciando-se totalmente do conceito presente na norma legal em referência - ativo fixo tangível.
Nestes termos, se ao ativo fixo tangível correspondem itens que (a) sejam detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento a outros, ou fins administrativos; e (b) se espera que sejam usados durante mais do que um período (cf. Norma Contabilística e de Relato Financeiro 7[1]), o ativo fixo intangível, é descrito como um ativo não monetário, identificável sem substância económica, do qual se espera que fluam benefícios económicos para a entidade (cf. Norma Contabilística e de Relato Financeiro 6[2]).
Estamos assim perante conceitos contabilísticos distintos, que perpassam de forma diferenciada a legislação fiscal e, como tal, o Código do IRC, no contexto de apuramento do lucro tributável das pessoas coletivas (e outras entidades abrangidas) com base na respetiva base contabilística – cf. artigo 17.º do Código do IRC (“Determinação do lucro tributável”).
Veja-se, neste sentido, o disposto nos artigos 29.º e 45.º-A do Código de IRC.
Entendeu igualmente o Douto Tribunal no Processo n.º 1022/2023-T (CAAD), salientando a distinção entre essas diferentes categorias de ativos: «De facto, o Código do IRC refere-se distintamente a ativos fixos tangíveis e a ativos intangíveis para definir o regime fiscal aplicável. Como ativos fixos tangíveis devem entender-se os que sejam detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento ou para fins administrativos e se espera que sejam usados durante mais do que um período, e que poderá incluir a aquisição de equipamentos, as reparações e beneficiações e as benfeitorias que possam ser reconhecidos como elementos do ativo. Os ativos fixos intangíveis ou incorpóreos consistem em bens ou direitos sem substância física, como sejam as marcas registadas, patentes, direitos autorais, licenças e autorizações.»
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Acresce considerar que estamos perante os termos de aplicação de um benefício fiscal, pelo que importa atender ao conceito jurídico subjacente (artigo 5.º, n.º 1 e 2 do EBF): «medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem». Desta forma, são benefícios fiscais «as isenções, as reduções de taxas, as deduções à matéria colectável e à colecta, as amortizações e reintegrações aceleradas e outras medidas fiscais que obedeçam às características enunciadas».
Como é sabido, o princípio da legalidade fiscal assenta numa atribuição à Assembleia da República da respetiva competência para a aprovação das leis fiscais, salvo autorização ao Governo (cf. artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), ambos da CRP); «Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes» (Sanches, JL Saldanha, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2ª Ed., 2002, pp. 32).
A reserva de lei em matéria fiscal desdobra-se assim em dois vetores: horizontal e vertical: o primeiro respeitante a que figuras tributárias se aplica (apenas aos impostos ou também a outras figuras próximas destes (como as contribuições) e o segundo sobre a que elementos do imposto (ou de outras figuras) diz respeito e a extensão da sua disciplina.
É, no entanto, certo que a decisão sobre todos os aspetos essenciais da norma fiscal, em defesa de um princípio-garantia da tipicidade legal, maxime sobre a distribuição dos encargos tributários, deverá caber à Assembleia da República, mesmo quando delega no Governo a competência para criar impostos.
A LGT estabelece ainda que «a criação de benefícios fiscais depende de clara definição dos seus objetivos e da própria quantificação da despesa fiscal». Ora, estes objetivos (de carácter extrafiscal) terão de ser assumidos pelo legislador «como de relevância superior ao da própria tributação, e, por isso, capazes de justificar as derrogações, em que se traduzem, ao princípio da igualdade que deve moldar o sistema fiscal» (artigo 14.º, n.º 3 da LGT).
Em particular, importa ainda considerar que estamos perante o juízo de interpretação legal de um benefício fiscal que opera automaticamente na esfera jurídica do sujeito passivo, uma vez verificados objetivamente os respetivos pressupostos[3] [artigo 5.º, n.º 1 do EBF], mantendo-se naturalmente os poderes de fiscalização da AT e das demais entidades competentes, para controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais respetivos e do cumprimento das obrigações impostas aos titulares do direito aos benefícios (artigo 7.º do EBF).
A respeito dos benefícios fiscais automáticos, Nuno de Sá Gomes[4] explica que «(…) o automatismo dos benefícios fiscais, quando tem lugar, não tem por fundamento, necessariamente, uma especial intensidade do interesse público com eles tutelado, que determina a dispensa de reconhecimento oficial, mas antes uma particular conformação legal, pelo que, nesses, tendo em vista uma certa economia processual, a lei julga aconselhável dispensar a respectiva apreciação casuística e correspondente reconhecimento pela Administração Fiscal, concedendo, assim, automática e genericamente, os benefícios, nas hipóteses previstas, sem necessidade de controlo da respectiva despesa fiscal, daí resultante.
Nestes casos, verificados os pressupostos, estabelecidos diretamente na lei, nasce automaticamente o direito subjetivo ao benefício correspondente – cf. artigo 11.º do EBF. Não sendo aqui atribuídos quaisquer poderes discricionários à administração fiscal (ou outra entidade pública, como não raras vezes surge através dos benefícios fiscais dependentes de reconhecimento), e não existindo um qualquer conceito jurídico indeterminado, tal circunstância agrava os imperativos de certeza e segurança jurídica no que respeita à objetividade dos pressupostos, para efeitos de garantia de atribuição igualitária do benefício fiscal.
Desta forma, e com respeito à admissibilidade da interpretação extensiva, explica BAPTISTA MACHADO que tal implica que, «(…) o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto da lei fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adotada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que queria dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe o alcance conforma ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se trata de uma lacuna da lei, porque os casos não diretamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei[5].
Importa reter, em todo o caso, que o critério teleológico de interpretação, que poderá justificar uma interpretação extensiva da lei, só é decisivo quando os termos usados no seu sentido literal e no seu contexto possam deixar alguma dúvida quanto à finalidade da lei.
Como se deixou entrever, a norma do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, ao conferir um benefício fiscal de majoração de 20% relativamente a gastos suportados com o abastecimento de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias, quando estejam registados como elementos do ativo fixo tangível, não coloca qualquer dúvida quanto ao significado técnico jurídico da expressão verbal utilizada, permitindo distinguir essa situação dos ativos intangíveis. Isto é, está a referir-se a equipamentos detidos pelo sujeito passivo para fornecimento de serviços de transporte, que se enquadram no conceito de ativo tangível, e que se não confundem com outros recursos, tais como conhecimentos científicos ou técnicos, conceção e implementação de novos processos ou sistemas, licenças, propriedade intelectual, conhecimento de mercado e marcas comerciais, que correspondem à definição de um ativo intangível e que poderão gerar benefícios económicos futuros.» [nosso sublinhado]
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Defende a Requerente que deverá haver lugar a uma interpretação extensiva da disposição do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), do EBF, explicando que os veículos que utiliza na atividade económica descrita, são registados como ativo fixo intangível devido à aplicação da IFRIC 12. Desta forma, a abrangência do ativo fixo intangível para efeitos da presente norma, não coloca em causa o interesse extrafiscal que a lei pretendeu salvaguardar com a aprovação do benefício fiscal em causa (a majoração de encargos com combustíveis incorridos por veículos de transporte de mercadorias).
Pela sua relevância ao caso em análise, recorremos ao entendimento exposto na decisão prolatada no Processo n.º 1022/2023-T (CAAD):
«Conforme resulta dos seus §§ 4 e 5, que definem o respetivo âmbito de aplicação, a interpretação “proporciona orientações quanto à contabilização pelos concessionários dos acordos de concessão de serviços pelo setor público ao privado”, aplicando-se aos acordos de concessão de serviços pelo setor público ao privado, designadamente “se a entidade concedente controla ou regulamenta os serviços que o concessionário deve prestar com as infraestruturas, a quem os deve prestar e a que preço (§ 5, alínea a)). (…)
Acrescenta o § 17 que “[o] concessionário deve reconhecer um ativo intangível na medida em que lhe seja conferido o direito (licença) de cobrar um preço aos utentes do serviço público. O direito de impor um pagamento aos utentes do serviço público não é um direito incondicional de receber dinheiro, dado que as quantias dependem da medida em que o público utiliza o serviço”.
Como estatui a Norma Internacional de Contabilidade 38, para que remete o § 26 da Interpretação IFRIC 22, “[u]m ativo intangível é um ativo não monetário identificável sem substância física.
Depreende-se das regras interpretativas da IFRIC 12 acabadas de transcrever, e, especialmente, dos seus §§ 15 e 17, que a retribuição do concessionário corresponde a direitos sobre um ativo financeiro ou um ativo intangível, e o concessionário deve reconhecer um ativo intangível na medida em que lhe seja conferido o direito de cobrar um preço aos utentes do serviço público.
Sendo assim, é de concluir que qualificação dos veículos de transporte, utilizados no âmbito da atividade da Requerente, como ativo intangível resulta de a retribuição a auferir pelo concessionário se traduzir no direito de cobrar um preço aos utentes do serviço público, na medida em que um tal direito pressupõe o reconhecimento pelo concessionário de um ativo intangível, sendo essa, de resto, uma das formas de retribuição da concessão.
Estando em causa um ativo intangível, por efeito das normas contabilísticas que são especificamente aplicadas à Requerente em função da sua condição de concessionária de serviços públicos, não se descortina por que razão os veículos de transporte afetos à sua atividade deveriam ter um tratamento idêntico à dos veículos de transporte que se encontram registados como ativo tangível.
Não se aplica aqui o argumento de identidade de razão, visto que a distinta qualificação jurídica do ativo se deve regras contabilísticas que visam a concessão de serviços públicos, e que não se tornam extensíveis a outros operadores económicos que se dedicam a outro tipo de atividades. E, por conseguinte, não é invocável uma igualdade de tratamento que pudesse justificar uma interpretação teleológica em função dos objetivos da lei.»
Decorre do exposto que, não só o legislador expressou especifica e literalmente a natureza de ativo fixo a ser abrangido na definição do benefício fiscal em questão, como também que, uma interpretação extensiva como a aqui pretendida pela Requerente, contunde com o dispositivo constitucional e legal subjacente, por implicar uma alteração (alargamento) substantiva nos pressupostos de atribuição do benefício fiscal.
Entendendo-se que, a interpretação extensiva permite que, dentro dos critérios gerais de interpretação, se estenda as palavras da lei de modo a atribuir-lhe um alcance conforme o pensamento legislativo, não se identifica fundamento jurídico para efetuar uma interpretação extensiva da lei. Estamos perante conceitos distintos e inequívocos - ativos fixos tangíveis e intangíveis -, de acordo com a classificação conceptual definida pelo normativo contabilístico, aos quais é expressa e direta a aplicação da legislação fiscal. Afasta, desta forma, qualquer interpretação que pretenda nela incluir, como sentido literal possível, a referência a ativos fixos intangíveis.
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Questões de inconstitucionalidade
Alega ainda a Requerente que a interpretação preconizada pela Autoridade Tributária sobre o artigo 70.º, n.º 4.º, alínea b) do EBF, acarreta uma clara violação dos mais basilares cânones da igualdade, proporcionalidade e capacidade contributiva, e carece em absoluto de sustentação material no plano tributário.
Entendeu bem o Douto Tribunal no Processo n.º 1022/2023-T (CAAD), quando explica que: «(…) o controlo difuso da constitucionalidade pelos tribunais é normativo, incidindo sobre uma norma ou interpretação normativa que tenha sido aplicada em decisão judicial ou em ato administrativo, competindo à parte suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional, cabendo ao recorrente identificar expressamente essa interpretação ou dimensão normativa (acórdãos n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08), não bastando a imputação da inconstitucionalidade aos próprios atos jurídicos que são objeto de impugnação judicial ou à interpretação que tenha sido formulada pela Autoridade Tributária (cfr. LOPES DO REGO, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, pág. 33).»
Tendo-se limitado a Requerente a imputar os vícios de inconstitucionalidade à interpretação efetuada pela AT, e não à norma ou interpretação normativa que entende terem sido aplicadas em violação da Constituição da República Portuguesa, entende igualmente este Tribunal que não há que tomar conhecimento de qualquer das questões de constitucionalidade suscitadas.
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DECISÃO
Termos em que se julga neste tribunal coletivo:
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Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica o ato de autoliquidação em IRC, referente ao período de tributação de 2019, bem como a decisão de indeferimento do recurso hierárquico contra ela deduzido;
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Não tomar conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas.
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Valor da Causa
Fixa-se o valor do processo em €78.846,05, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A,
n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC). 7
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CUSTAS
O valor das custas é fixado em € 2.448,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a cargo da Requerente, de acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e no artigo 4.º, n.º 5 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de outubro de 2024
O Tribunal Coletivo,
Fernanda Maçãs
(Árbitro presidente)
Sérgio Pontes
(Árbitro vogal)
Ana Rita Chacim
(Árbitro vogal - Relatora)
[3] Cfr. Carlos Paiva, Mário Januário, Os Benefícios Fiscais nos Impostos sobre o Património, Almedina, 2014, p. 73, referindo no mesmo sentido, Nuno de Sá Gomes, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, CTF, n.º 362, 1991, pp. 277, 278.
[4] Nuno de Sá Gomes, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, CTF, n.º 359, Julho-Setembro 1990, p. 99.
[5] Processo n.º 1022/2023-T (CAAD)