Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 188/2024-T
Data da decisão: 2024-10-21  IRS  
Valor do pedido: € 3.228,29
Tema: IRS: Grau de incapacidade fiscalmente relevante; caducidade do direito à liquidação; dever de fundamentação; princípio da boa fé.
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SUMÁRIO:

 

I. O erro na indicação do grau de incapacidade não era detetável pela mera análise da declaração de rendimentos, sendo necessário encetar procedimentos de análise e cruzamento de dados com elementos constantes em cadastro e/ou na posse da Requerente e, depois, verificar e validar esses elementos, razão por que fica afastada a aplicação do prazo de caducidade do direito à liquidação de três anos, a que se refere o n.º 2 do art.º 45.º da LGT.

 

II. Sendo o IRS um imposto periódico, o prazo de caducidade do direito à liquidação conta-se a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário. Portanto, referindo-se o imposto ao ano de 2019, o prazo de caducidade começa a contar no dia 01.01.2020, terminando no dia 31.12.2023, devendo a notificação da liquidação ocorrer nesse período.

 

III. O acto tributário deve ser fundamentado. A fundamentação visa permitir o conhecimento das razões que levaram a administração a praticar o acto, possibilitando ao interessado (e lesado) optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.

 

IV. A preterição do dever formal de fundamentação do acto de liquidação não tem efeitos invalidantes.

 

V. As orientações genéricas têm eficácia vinculativa para a AT, tendo efeitos externos apenas de natureza informativa para os contribuintes. Não ofende o princípio da boa fé o comportamento da AT que se baseia numa orientação genérica, divulgada antes de terminado o período anual de tributação e antes da apresentação da declaração de rendimentos referente a esse ano.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

  1. Relatório

 

A - Geral

 

  1. A..., contribuinte fiscal n.º ..., com domicílio fiscal na ..., ... –... ...Sátão, (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou no dia 09.02.2024 um pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, que foi aceite, visando a declaração de ilegalidade da liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (de ora em diante “IRS”) do ano de 2019 com o n.º 2023... e bem assim da liquidação de juros compensatórios anexa, com o n.º 2023..., ambas com um valor de correção de €3.228,29 (três mil, duzentos e vinte e oito euros e vinte e nove cêntimos), como adiante melhor se verá.

 

  1. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído a 23.04.2024.

 

  1. No dia 29.04.2024 foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”) para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

  1. A Requerida no dia 29.05.2024 remeteu a sua resposta e junto aos autos o respetivo processo administrativo.

 

  1. Por despacho notificado no dia 07.10.2024, entendeu o tribunal dispensar a reunião do art.º 18º do RJAT, convidando-se as partes a, querendo, apresentar alegações escritas simultâneas, no prazo de 10 dias, o que nenhuma fez.

 

B – Posição da Requerente

 

  1. A Requerente foi alvo de procedimento de correção referente ao IRS de 2019, destacado do processo de reclamação graciosa n.º ...2022... (que tinha por objecto o IRS de 2020).

 

  1. A Requerente apresentou no dia 05.01.2022, reclamação graciosa relativa ao IRS de 2020, em que defendeu o seu direito à manutenção de grau de incapacidade fiscalmente relevante no valor de 60%, isto em face da entrada em vigor da Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro.

 

  1. A Requerente na sequência de doença no ano de 2012, obteve uma incapacidade temporária de 60% até ao ano de 2017, tendo essa incapacidade sido reavaliada em 2018 e reduzida para 22,1%, que se mantém.

 

  1. Desde 2012, era entendimento da AT (ofício circulado da DSIRS n.º 20161, de 11.05.2012) que a redução da percentagem de incapacidade após reavaliação não importaria perda de benefício, desde que a nova percentagem de incapacidade se referisse à mesma patologia.

 

  1. Pelo ofício circulado n.º 20215, de 03.12.2019, a AT fixou novo entendimento, que sempre levantou muitas dúvidas, o que terá dado origem à Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro, revogando o anterior ofício circulado sobre esta matéria.

 

  1. A 21.12.2022, cerca de um ano após a apresentação da reclamação graciosa referente ao IRS de 2020, veio a AT oferecer o projeto de indeferimento dessa reclamação, declarando a sua intenção de aplicar o novo entendimento, com os mesmos fundamentos, também aos anos de 2019 e 2021.

 

  1. Na sua defesa, a Requerente procurou demonstrar a ilegalidade da aplicação de tal entendimento ao IRS de 2019, em concreto, por violação do princípio da boa fé e por aplicação, ao caso, do n.º 2 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), o que implicaria a caducidade do direito à liquidação do imposto.

 

  1. Até à reclamação graciosa apresentada a 05.01.2022, nunca à Requerente foi notificada qualquer alteração das condições de acesso ao grau de incapacidade fiscalmente relevante, tendo verificado, todos os anos, que a incapacidade de 60% continuava a constar dos seus dados individuais no portal das finanças.

 

  1. A 06.11.2023, a Requerente foi notificada do projeto de decisão relativo ao processo autónomo de correção à declaração de rendimentos do ano de 2019.

 

  1. No dia 20.11.2023, a Requerente exerceu o seu direito de resposta relativamente ao projeto de decisão apresentado no âmbito do procedimento autónomo.

 

  1. No dia 02.01.2024, foi a Requerente notificada da decisão final referente ao processo autónomo que deu origem à liquidação oficiosa de IRS, tendo apenas nessa data conhecido os fundamentos que estiveram na base da não aceitação do direito de resposta antes remetido e que, por isso, determinaram a submissão da declaração oficiosa de IRS de correção relativa ao ano de 2019.

 

  1. Em 2020, quatro meses após a alteração do entendimento AT, ao aceder ao Portal para o preenchimento da sua declaração de rendimentos, a Requerente estava convencida de que ainda tinha direito à inclusão dessa incapacidade.

 

  1. Inexplicavelmente, a AT resolveu alterar a declaração de IRS do ano de 2019 da Requerente, quando durante muito tempo (mais de três anos), se manteve em silêncio, numa clara atitude de inércia e desinteresse.

 

  1. Ressalta assim a ideia que caso a Requerente não tivesse reclamado da liquidação de IRS do ano de 2020, em razão da entrada em vigor da Lei n.º 80/2021, de 29.11, nunca a AT teria agido sobre o ano de 2019.

 

  1. A AT, ignorando a boa fé demonstrada pela Requerente, agiu com manifesta má fé, aproveitando a oportunidade para pôr em causa o benefício relativo ao ano de 2019, que nunca esteve em discussão e em relação ao qual a Requerida nunca se havia pronunciado, embora tivesse em seu poder todos os elementos de que precisava para o fazer.

 

  1. A lei, em boa verdade, não foi alterada. O entendimento que dela faz a AT é que não tem sido nem pacífico, nem uniforme.

 

  1. Refira-se que o n.º 2 do art.º 68.º-A da LGT prescreve não serem invocáveis retroactivamente perante os contribuintes que tenham agido com base numa interpretação plausível e de boa-fé da lei as orientações genéricas que ainda não estavam em vigor no momento do facto tributário.

 

  1. Ainda que se tenha como referência para a vigência da nova orientação o dia 03.12.2019 (data do ofício circulado n.º 20215), o facto tributário para o ano de 2019 constituiu-se, na sua quase totalidade, durante a vigência da instrução anterior, pelo que é ilegal a aplicação de tal instrução aos rendimentos de 2019.

 

  1. Mas se a AT agiu no sentido de corrigir a declaração de IRS relativa ao ano de 2019, isso significa que essa mesma declaração foi, à data, submetida com um erro de preenchimento, como é dito no projeto de decisão referente à reclamação graciosa n.º ...2022... .

 

  1. Ora esse erro de preenchimento é um erro declarativo da contribuinte, evidente pela visualização da declaração, que durante quase três anos esteve ao dispor da AT, que assim o poderia ter detectado e promovido a sua correcção.

 

  1. O n.º 2 do art.º 45.º da LGT refere-se ao erro detetado pela simples análise da declaração, como é o caso, sendo nessa circunstância o prazo de caducidade do direito à liquidação reduzido para três anos.

 

  1. Contudo, ainda que fossem considerados os quatro anos previstos no n.º 1 do art.º 45.º da LGT, o direito à liquidação caducou, em virtude da invalidade da notificação efectuada à Requerente, pois a mesma foi feita após o termo do prazo legal para o efeito, não tendo sido acompanhada dos respetivos fundamentos, só tendo ficado completa no dia 02.01.2024, data em que a Requerente teve acesso à decisão final tomada no processo que esteve na origem da liquidação oficiosa de IRS.

 

  1. Não opera aqui a presunção do n.º 6 do art.º 45.º, pois estamos na presença da notificação da decisão final tomada no processo autónomo e não na presença da notificação da liquidação daí resultante.

 

  1. A requerente, por motivos profissionais, viu-se impossibilitada de levantar na estação dos correios a primeira notificação e, por outro lado, tendo-se ausentado da sua residência na última semana do ano, só na semana seguinte, lhe foi possível ter acesso à notificação enviada pela AT.

 

C – Posição da Requerida

 

  1. A Requerente, no exercício do direito de audição do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2022..., que teve por objeto a liquidação de IRS do ano 2020, conforma-se em relação à decisão que abarca o IRS de 2020.

 

  1. Por ofício n.º ..., de 02.11.2023, remetido por carta registada, foi a Requerente notificada do projeto de alteração da declaração de rendimentos do ano 2019, nos termos do artigo 65.º, n.º 4 do CIRS, tendo sido remetido despacho da mesma data com a respetiva fundamentação.

 

  1. Por requerimento recebido a 03.11.2023, veio a Requerente exercer o direito de participação na decisão.

 

  1. Analisados os factos e fundamentos invocados, foi proferida decisão final e, por despacho de 07.12.2023, no sentido da alteração da declaração de IRS do ano 2019, retirando a incapacidade preenchida pela requerente.

 

  1. Foi tentada a notificação dessa decisão pelo ofício n.º ..., de 07.12.2023, remetido por carta registada com aviso de receção, que veio devolvido.

 

  1. Foi, então, remetida uma 2.ª notificação, ofício n.º..., por carta registada com aviso de receção, o qual foi assinado em 02.01.2024.

 

  1. A 18.12.2023, por notificação pessoal efetuada ao cônjuge da Requerente, foram notificados os actos tributários de liquidação de IRS do ano 2019, juros compensatórios e estorno da liquidação anterior.

 

  1. O erro na indicação do grau de incapacidade não era detetável pela mera análise da declaração de rendimentos, sendo necessário encetar procedimentos de análise e cruzamento de dados com elementos constantes em cadastro e/ou na posse da Requerente e, depois, verificar e validar esses elementos, razão por que fica afastada a aplicação do prazo de caducidade do direito à liquidação de três anos.

 

  1. O acto tributário de liquidação do IRS do ano 2019 foi notificado dentro do prazo de quatro anos contados do termo do ano (2019) em que ocorreu o facto tributário, nos termos do n.º 1 do art.º 45.º da LGT.

 

  1. Ora, a falta de notificação da fundamentação do ato tributário, a ser considerada uma irregularidade poderá, no limite, afetar a exequibilidade da dívida, não afetando a legalidade da liquidação.

 

  1. Acresce que a Requerente foi notificada do projeto de decisão, sobre o qual exerceu o direito de participação na decisão, limitando-se a questão à admissibilidade, ou não, do grau de incapacidade preenchido na declaração.

 

  1. À semelhança da impugnação judicial, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos e outros, bem como a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

 

  1. Ora, tem vindo a ser entendido pelos tribunais superiores que a falta de notificação (que no caso não é da liquidação, mas da decisão de fundamentação do ato) não constitui fundamento de impugnação, por não ser causa de ilegalidade da liquidação.

 

  1. Nestes casos, entende-se estar em causa um fundamento de eventual oposição à execução, nos termos do artigo 204.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

  1. Não há qualquer ilegalidade que afecte a liquidação de IRS do ano 2019, quanto à desconsideração do grau de deficiência declarado de 60%.

 

  1. A AT detectou, no ano 2022, que na declaração de rendimentos do ano 2019, a Requerente declarou ter um grau de deficiência de 60%, apesar da reavaliação realizada em 2018 ter resultado num grau inferior, de 22,1%.

 

  1. Então, a Requerida encetou os procedimentos tendentes à correção dos elementos declarados, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 65.º do Código do IRS.

 

  1. O n.º 5 do art.º 87.º do Código do IRS dispõe que se considera “pessoa com deficiência aquela que apresente um grau de incapacidade permanente, devidamente comprovado mediante atestado médico de incapacidade multiúso emitido nos termos da legislação aplicável, igual ou superior a 60 %”.

 

  1. Dispondo a Requerente de um atestado que lhe confere um grau de incapacidade de 22,1%, entende-se não reunir as condições para ser considerada pessoa com deficiência, para efeitos fiscais.

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

  1. O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

  1. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e do art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, estão regularmente representadas, não padecendo o processo de qualquer nulidade.

 

  1. Matéria de facto

 

2.1.    Factos provados

 

Com interesse para a prolação da presente decisão arbitral, mostram-se provados os seguintes factos:

 

2.1.1.  À Requerente, a 10.12.2012, foi emitido atestado médico de incapacidade multiuso que lhe atribuiu um grau de incapacidade de 60%, susceptível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de 2017 (documento n.º 2, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.2.  A 26.12.2018 foi reavaliado o grau de incapacidade da Requerente, tendo-lhe sido emitido atestado médico de incapacidade multiuso que lhe atribuiu um grau de incapacidade de 22,1% (documento n.º 3, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.3.  No n.º 3 do ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012, da Direção de Serviços do IRS, lê-se (documento n.º 4, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral):

 

 

2.1.4.  O ofício circulado n.º 20215, de 03.12.2019 revogou o ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012, referindo-se, nos seus n.ºs 3 e 4 o seguinte (documento n.º 5, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral):

 

 

 

2.1.5. A Requerente, no dia 05.01.2022, apresentou reclamação graciosa tendo por objecto o IRS do ano de 2020, no sentido da defesa do seu direito à manutenção de grau de incapacidade fiscalmente relevante de 60%, face à entrada em vigor da Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro (documento n.º 1, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.6.  A 21.12.2022, a AT notificou a Requerente do projecto de decisão de indeferimento da dita reclamação graciosa, expressando a intenção de aplicar, com os mesmos fundamentos, idêntico entendimento ao IRS de 2019 (documento n.º 6, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.7. No exercício do direito de audição, a 05.01.2023, a Requerente argumentou no sentido de ser ilegal aplicação de tal entendimento ao IRS de 2019, por violação do princípio da boa fé e por aplicação, ao caso, do n.º 2 do artigo 45.º da LGT, o que implicaria a caducidade do direito à liquidação do imposto (documento n.º 7, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.8.  Pelo ofício n.º ..., de 02.11.2023, do Serviço de Finanças de Sátão, Direcção de Finanças de Viseu, a Requerente foi notificada do projecto de alteração dos elementos declarados na declaração de IRS do ano de 2019, dela retirando-se a situação de incapacidade fiscalmente relevante (documento n.º 8, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.9. No dia 20.11.2023, a Requerente exerceu o seu direito de audição relativamente ao projeto de alteração dos elementos declarados na declaração de IRS do ano de 2019, referindo, nomeadamente (documento n.º 9, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral):

 

 

2.1.10.          Foi proferida decisão final, por despacho de 07.12.2023, no sentido da alteração da declaração de IRS do ano 2019, retirando-se dela o grau de incapacidade preenchido pela Requerente (pág. 29/55 do anexo ao processo administrativo, junto aos autos com a Resposta).

 

2.1.11.          Foi tentada a notificação dessa decisão pelo ofício n.º ..., 07.12.2023, remetido por carta registada com aviso de receção, que veio devolvido (págs. 34 a 36/55 do anexo ao processo administrativo, junto aos autos com a Resposta).

 

2.1.12.          No dia 18.12.2023, a AT procedeu à notificação pessoal do cônjuge da Requerente, sujeito passivo A na declaração de rendimentos do agregado familiar, notificação essa relacionada com liquidação oficiosa de IRS e juros associados, referente ao ano de 2019 (documento n.º 10, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.13.          Foi, no dia 21.12.2023, remetida uma segunda notificação, pelo ofício n.º..., também por carta registada com aviso de receção, o qual ficou disponível para levantamento no dia 27.12.2023, tendo sido efetivamente levantado no dia 02.01.2024 (págs. 38 a 42/55 do anexo ao processo administrativo, junto aos autos com a Resposta e documento n.º 11, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.14.          Do sistema informático da AT constava, relativamente ao ano de 2018, que a Requerente era portadora de um grau de incapacidade permanente e definitiva de 60% (págs. 15 e 25/105 do processo administrativo, junto aos autos com a Resposta e documentos n.º 1 e n.º 12, juntos aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.15.          Do sistema informático da AT constava, relativamente ao ano de 2019, que a Requerente era portadora de um grau de incapacidade permanente e definitiva de 60% (documento n.º 14, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.16.          A AT, a 09.09.2019, relativamente ao IRS do ano de 2017, deferiu a reclamação graciosa apresentada pela Requerente, visando a consideração fiscal de que era portadora de um grau de incapacidade permanente e definitiva de 60% (documento n.º 15, junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.2.    Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a prolação da decisão que tenham sido dados como não provados.

 

2.3.    Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de pronunciar-se sobre tudo quanto é alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de seleccionar os factos que se mostrem relevantes para a prolação da decisão, identificando os factos que se consideram provados e os que, por seu turno, não se acham demonstrados (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

 

Assim, os factos que importam para a decisão são apurados em função do objecto do litígio, delimitado em função do pedido e da causa de pedir (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições que assumiram nos articulados por si apresentados.

 

  1. Matéria de direito

 

3.1. Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito, que o pedido e a respectiva causa de pedir impõem que se apreciem as seguintes questões:

 

  1. A de saber se a liquidação oficiosa de IRS, referente a 2019, é ilegal por ter sido realizada estando já caducado o respectivo direito de liquidação; e

 

  1. A de dilucidar se a liquidação em causa é ilegal por violação, por parte da AT, do princípio da boa fé.

 

3.2. Caducidade do direito à liquidação

 

Na sua defesa, a Requerente procurou demonstrar a ilegalidade da liquidação oficiosa de IRS referente ao ano de 2019, por entender que ela teria tido lugar em momento em que estaria já caducado o direito à liquidação do imposto.

 

Primeiro, procurou fazer valer a aplicação, ao caso, do n.º 2 do artigo 45.º da LGT.

 

O n.º 2 do artigo 45.º da LGT, cuja epígrafe é “caducidade do direito à liquidação”, prescreve o seguinte:

 

“2 - No caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.”

 

Entende a Requerente que a sua declaração de rendimentos de 2019 foi “submetida com um erro de preenchimento”, tendo esse lapso sido “cometido na total ignorância de que estaria a errar”. Um “erro declarativo da contribuinte, evidente na declaração, que durante quase três anos esteve ao dispor da Autoridade Tributária e Aduaneira para que a mesma o pudesse detetar e corrigir”. Para a Requerente “esse erro seria facilmente detetável pela simples análise da declaração e validação da mesma com os elementos em cadastro no sistema de base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira”.

 

A Requerida, por seu turno, sustenta que “o erro na indicação do grau de incapacidade não era detetável pela mera análise da declaração de rendimentos, sendo necessário encetar procedimentos de análise e cruzamento de dados com elementos constantes em cadastro e/ou na posse da requerente, sendo necessário um procedimento de verificação e validação dos mesmos”.

 

Resulta da posição assumida pelas Partes nas peças por si apresentadas que ambas conhecem bem “a melhor doutrina sobre a matéria”, como sugestivamente a ela se refere a Requerente, e que vai no sentido de considerar que o “erro” referido no n.º 2 do art.º 45.º da LGT é o que se mostra susceptível de detecção pela simples análise da declaração. 

 

Na verdade, tudo está em saber se o “erro” em causa nos presentes autos seria, ou não, detectável pela mera análise da declaração de rendimentos da Requerente. Esta matéria tem sido já apreciada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, não pretendendo o presente Tribunal afastar-se do entendimento que vem sendo, e bem, acolhido.

 

Vale a pena respigar a argumentação, não especialmente original, vertida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24.05.2016, prolatado no processo n.º 0991/15. O critério para a redução para três anos do prazo de caducidade, ao invés do prazo regra, que é de quatro, é o de se tratar de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo, detectável pela simples análise dessa declaração. Portanto, para que essa redução possa ocorrer é preciso que a AT pudesse detectar o erro na declaração por mero exame da coerência dos seus elementos, sem recurso a qualquer outra documentação externa, mesmo quando esta estivesse em poder da Administração Tributária e Aduaneira.

 

Ora, parece que o erro evidenciado na declaração da Requerente não é detectável pela simples análise do seu conteúdo. Não se extrai imediatamente da dita declaração se a Requerente é, efectivamente, portadora de um grau de incapacidade, para efeitos de tributação em sede de IRS, de 60% ou de qualquer outra percentagem. Essa conclusão só se alcança com recurso a elementos que não constam da própria declaração nem que a partir dela se tornam evidentes. Assim, o prazo de caducidade do direito à liquidação é de quatro anos, como fixado pelo n.º 1 do art.º 45.º da LGT e não o de três anos a que faz apelo o n.º 2 dessa disposição.

 

Subsidiariamente, entende a Requerente que, mesmo que se admitisse que viesse a ser este o entendimento do Tribunal, forçoso seria concluir, ainda assim, que o direito da AT promover a respetiva liquidação havia precludido, porquanto a notificação da liquidação adicional “só ficou completa em 02 de janeiro de 2024”, data em que a Requerente ”conheceu as razões que determinaram a submissão da declaração de rendimentos oficiosa”, não operando “aqui a presunção do n.º 6 do artigo 45.º, pois estamos na presença da notificação da decisão final tomada no processo autónomo e não na presença da notificação da liquidação daí resultante”.

 

A Requerente, como se viu, impugna, nos presentes autos, a liquidação oficiosa de IRS do ano de 2019 com o n.º 2023..., promovida pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 12.12.2023, bem como a liquidação de juros compensatórios com o n.º 2023..., que foram objeto de notificação pessoal[1], na pessoa do cônjuge da Requerente, sujeito passivo A, no dia 18.12.2023. Esta liquidação oficiosa surge na sequência lógica, que deve ser também cronológica, de um procedimento administrativo que visou retirar da declaração de rendimentos da Requerente a situação de incapacidade fiscalmente relevante por ela declarada.

 

Convém recordar, apenas no que se refere ao IRS de 2019, que é o que nos ocupa, as sucessivas etapas que marcaram o procedimento conducente à liquidação oficiosa. A 02.11.2023, pelo ofício n.º ... do Serviço de Finanças de Sátão, a Requerente foi notificada do projecto de alteração dos elementos declarados na declaração de IRS do ano de 2019. No dia 20.11.2023, a Requerente exerceu o seu direito de audição. A 07.12.2023 foi proferida decisão final, no sentido de se retirar da declaração de IRS do ano 2019 a incapacidade preenchida pela Requerente. No dia 12.12.2023, a AT promove a liquidação oficiosa de IRS do ano de 2019, que é notificada pessoalmente ao cônjuge da Requerente no dia 18.12.2023.

 

Entende a Requerida que a liquidação adicional de IRS é ilegal, extemporânea, por ter sido realizada depois de expirado o prazo de quatro anos de que a AT dispunha para poder liquidar o imposto em falta.

 

O artigo 45.º, nos seus n.º 1 e n.º 4 da LGT, prescreve o seguinte:

 

“1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.

(…)

4 - O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.”

 

Sendo o IRS um imposto periódico, o prazo de caducidade conta-se a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário. Portanto, referindo-se o imposto ao ano de 2019, o prazo de caducidade começa a contar no dia 01.01.2020, terminando no dia 31.12.2023.

 

Ora, a liquidação adicional em causa nos presentes autos foi notificada pessoalmente ao cônjuge da Requerente no dia 18.12.2023. Antes, portanto, do termo do prazo em que a liquidação poderia ter lugar. Assim, não assiste razão à Requerente quando advoga a caducidade do direito à liquidação do imposto.

 

Diz a Requerente que só no dia 02.01.2024 tomou conhecimento dos fundamentos que estiveram na base da não aceitação do direito de resposta antes remetido, uma vez que a notificação pessoal da liquidação não foi acompanhada dos respetivos fundamentos, competindo à AT “fazer essa notificação em conformidade já que esse é um ónus que sobre a mesma impende e que consiste em notificar, dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT, quer a liquidação, quer os respectivos fundamentos”.

 

Retira-se destas passagens do pedido de pronúncia arbitral que a Requerida, ainda que o não tenha verbalizado nestes exactos termos, entende haver um vício de fundamentação que inquina a validade da própria liquidação.

 

Diga-se, desde já, que todas as decisões de liquidação administrativa de impostos devem conter a respectiva fundamentação, quaisquer que sejam as formas utilizadas nessa liquidação e independentemente da modalidade de notificação. É o que resulta do n.º 1 do art.º 77.º da LGT. Todos os actos tributários, por imposição do n.º 2 do mesmo preceito, devem incluir na sua fundamentação, obrigatoriamente, as disposições legais aplicáveis, a qualificação e a quantificação, os factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

 

Como vem sendo entendido, a exigência, constitucional (art.º 268.º) e também legal, de fundamentação visa permitir o conhecimento das razões que levaram a administração a adoptar determinado comportamento, possibilitando ao interessado (e lesado) optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa. A fundamentação deve, pois, proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo respectivo autor[2].

 

Ainda que se admita, como cumpre reconhecer, que a liquidação oficiosa pessoalmente notificada não se encontra especialmente fundamentada, não é razoável concluir que a Requerente ignorava o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela AT até à prática do acto ora impugnado. A Requerente conhecia bem as razões que levaram a AT a considerar que devia ser retirada da declaração de rendimentos referente a 2019 a situação de incapacidade fiscalmente relevante. A Requerente conhecia esse itinerário e, com toda a legitimidade, com ele não concordava. De resto, as razões da AT foram apresentadas no âmbito do projecto de decisão administrativa relativa ao IRS de 2019 e na reclamação graciosa do IRS de 2020 apresentada pela Requerente. Em todo o caso, esse conhecimento, que é manifesto, não dispensa a AT de fundamentar a liquidação oficiosa. Mas é preciso cautela nas ilações que podem ser extraídas desta constatação.

 

A convalidação de actos que enfermem de vício de falta de fundamentação tem vindo a ser admitida pelos tribunais superiores, nomeadamente pelo Supremo Tribunal Administrativo, sendo reforçada pela previsão genérica da possibilidade de ratificação dos actos anuláveis, prevista no art.º 164.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”). Contudo, esta possibilidade só deve ser admitida quando estiverem satisfeitos os objectivos que se visam alcançar com a imposição legal da fundamentação dos actos administrativos. Ou seja, quando estiverem salvaguardadas as garantias de defesa do destinatário do acto[3].

 

Em regra, a fundamentação dos actos é uma formalidade instrumental dirigida à defesa dos direitos de conteúdo material, não podendo ser considerada como um elemento essencial do acto administrativo. Assim, a falta de fundamentação afigura-se um vício relacionado com a legalidade externa do acto, que nada tem a ver com a sua legalidade interna[4]. Parece claro, portanto, que a preterição do dever formal de fundamentação do acto de liquidação não tem, per se, efeitos invalidantes (cfr. o n.º 5 do artigo 163.º do CPA)[5].

 

Se fosse concebível, e no caso presente essa possibilidade parece totalmente descabida, que a Requerente aquando da notificação da liquidação oficiosa, a 18.12.2023, de todo ignorava as razões que conduziram a AT à prática desse acto de liquidação, imperioso seria conceder que no dia 02.01.2024 já estaria na posse de todos os elementos que as revelariam, não estando de forma alguma coarctado o direito de defesa e de impugnação judicial de quem é destinatário de um acto tributário considerado ilegal.

 

Assim, entende o Tribunal que a liquidação oficiosa ora posta em crise não padece do vício de violação de lei que lhe aponta a Requerente.

 

3.3. Da violação do princípio da boa fé

 

A Requerente apresentou, no dia 05.01.2022, reclamação graciosa em que defendeu, para o ano de 2020, o seu direito à manutenção de grau de incapacidade fiscalmente relevante, de 60%, isto em face da entrada em vigor da Lei n.º 80/2021, de 29 de Novembro. A 21.12.2022, cerca de um ano após a apresentação da dita reclamação graciosa, veio a AT oferecer o projeto de indeferimento dessa reclamação, declarando ser sua intenção não considerar o referido grau de incapacidade, não apenas no que se refere ao IRS de 2020, mas também, com os mesmos fundamentos, ao IRS do ano de 2019.

 

Entende a Requerente que a AT agiu com manifesta má fé, aproveitando a oportunidade da reclamação graciosa que teve por objecto o IRS de 2020 para pôr em causa o benefício relativo ao ano de 2019, que nunca esteve em discussão e em relação ao qual a Requerida nunca se havia pronunciado, embora tivesse em seu poder todos os elementos de que precisava para o fazer. E até à reclamação graciosa apresentada já em 2022, relativamente ao IRS de 2020, nunca a Requerente foi notificada de qualquer alteração das condições de acesso ao grau de incapacidade fiscalmente relevante, tendo aliás verificado, todos os anos, que a incapacidade de 60% continuava a constar dos seus dados individuais.

 

Sustenta ainda a Requerente que vinha usufruindo do benefício permitido pelo seu grau de incapacidade, abertamente e por indicação expressa da própria AT, pelo que não devia agora ser confrontada com a sua eliminação, ainda por cima devido a uma alteração do entendimento administrativo de um regime legal que, desde há muitos anos, tem revelado a sua complexidade.

 

Na verdade, à Requerente foi-lhe averbada a incapacidade de 60%, em 2019, num momento em que o ofício circulado n.º 20161, datado de 11.05.2012, ainda estava em vigor. Esse entendimento administrativo só foi revogado pelo ofício circulado n.º 20215, de 03.12.2019. Sublinha a Requerente que a lei não se alterou. O que se modificou, sim, foi a leitura que a AT fez da legislação aplicável, não tendo procedido, em tempo útil, às alterações decorrentes dessa mesma mudança de posicionamento. Conclui a Requerente que só com manifesta falta de boa fé pode, agora, vir a Requerida gorar legítimas expectativas criadas na convicção da Requerente, em violação do n.º 2 do art.º 68.º-A da LGT, que expressamente dispõe a não invocação retroactiva de orientações genéricas perante contribuintes que, no cumprimento das suas obrigações fiscais, tenham agido com boa fé relativamente à interpretação da lei.

 

Advoga, por fim, a Requerente que mesmo que se tenha como referência para a vigência da nova orientação o dia 03.12.2019 (data do ofício circulado n.º 20215), há que considerar que o facto tributário para o ano de 2019 se constituiu, na sua quase totalidade, durante a vigência da instrução anterior.

 

A Requerida recorda que o ofício circulado n.º 20215, revogando o anterior, prescreve que “o entendimento agora sancionado deve ser imediatamente aplicado em todos os

processos/procedimentos pendentes, nomeadamente em sede de reclamação graciosa e recurso hierárquico ou em sede de análise de divergências da modelo 3, entendendo-se por processos ou procedimentos pendentes aqueles em que ainda não tenha sido emitida decisão da AT”. Assim, o entendimento divulgado por aquele ofício circulado aplica-se a todos os procedimentos em que venha a ser discutida a questão, inclusivamente aos processos e procedimentos pendentes de decisão à data da divulgação do mesmo. 

 

Cumpre apreciar. À Requerente, a 10.12.2012, foi emitido atestado médico de incapacidade multiuso que lhe atribuiu um grau de incapacidade de 60%, susceptível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de 2017. A 26.12.2018 foi reavaliado o grau de incapacidade da Requerente, tendo-lhe sido emitido atestado médico de incapacidade multiuso que lhe atribuiu um grau de incapacidade de 22,1%. É sabido qual o entendimento da Requerida vertido no ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012, sendo igualmente conhecido que o ofício circulado n.º 20215, de 03.12.2019, revogando o ofício circulado anterior, fixou novo entendimento sobre essa complexa matéria.

 

Na decisão arbitral prolatada no Processo n.º 379/2017-T, a cuja fundamentação se adere, lê-se o seguinte:

 

“Como resulta do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT e tem sido pacificamente entendido, as circulares apenas têm eficácia vinculativa para a Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo efeitos externos apenas de natureza informativa para os contribuintes, que podem saber antecipadamente qual o entendimento que será por aquela adoptado.

 

Nesta linha, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014, de 09-01-2014, proferido no processo n.º 564/12, na esteira de Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª edição, página 201, em que se refere:

 

Trata-se «de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos.

 

Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de atuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).

 

É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos atos a praticar pela administração tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de validade dos atos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos atos da administração tributária deve ser efetuada através do confronto direto com a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs entre a norma e o ato”.

 

Esses atos, em que avultam as “circulares”, emanam do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços.

 

Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.

 

Não sendo ilegal a emissão de circulares que interpretem diplomas legislativos com eficácia interna, a ilegalidade de actos em matéria tributária que apliquem os entendimentos nelas perfilhados não pode derivar da sua aplicação, em si mesma, mas, apenas, da ilegalidade desse entendimento em face do regime legal aplicável previsto no diploma legislativo interpretado.”

  

As orientações genéricas, como se diz, têm eficácia vinculativa para a AT, tendo efeitos externos apenas de natureza informativa para os contribuintes, que podem saber antecipadamente qual o entendimento que será por aquela adoptado.

 

Portanto, até à divulgação do ofício circulado n.º 20215, de 03.12.2019, a AT (que não os contribuintes) tinha de ater-se à interpretação que da lei fazia o ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012. Quer isto dizer que os contribuintes poderiam opor-se a comportamentos da AT contrários às orientações genéricas em vigor. Mas não ficariam vinculados por elas, no sentido em que poderiam fazer valer o entendimento de que essas orientações administrativas são ilegais por imporem uma interpretação que a lei interpretada não pode consentir.

 

Pretende a Requerente, no presente processo, opor à Requerida, para o IRS de 2019, o ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012. Ora, o IRS é um imposto anual, a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeite, como resulta do n.º 8 do art.º 13.º do Código do IRS e, quando não haja dispensa, a declaração de rendimentos deve ser apresentada no ano seguinte àquele a que os rendimentos respeitam, nos termos dos artigos 57.º e 60.º do mesmo Código.

 

Tendo o ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012, sido revogado no dia 03.12.2019 pelo ofício circulado n.º 20215, não se pode sustentar que a AT, relativamente ao IRS do ano de 2019, estava vinculada a outra orientação que não fosse a de 03.12.2019. Note-se que afirmar isto não significa, insista-se, que os contribuintes a esse entendimento fiquem adstritos. Na verdade, se os contribuintes entenderem que essa orientação genérica é ilegal e que, por isso, a liquidação de imposto nela baseada padece do mesmo vício, podem arguir essa invalidade, pugnado pela anulação de um acto de liquidação que consideram contrário à lei. Contudo, entende o presente tribunal não ofender o princípio da boa fé o comportamento da AT que se baseia nessa orientação genérica, divulgada antes de terminado o período anual de tributação (2019) e antes da apresentação da declaração de rendimentos desse mesmo ano.

 

A vinculação da AT às orientações genéricas que divulgue é corolário dos princípios da igualdade e da boa fé, que devem nortear a sua actividade, princípios cuja violação implica que os actos praticados em dissonância com orientações genéricas em vigor enferme de vício de violação de lei. Mas o que vem de se dizer não significa que a AT se veja na circunstância de ver cristalizada indefinidamente uma mesma interpretação das normas tributárias. Se a AT se convencer de que, afinal, a correcta interpretação é outra, distinta da que vinha seguindo, deve aplicar o novo entendimento de forma não discriminatória, sem pôr em causa a aplicação das anteriores orientações a todos os factos ocorridos (e não aos que estejam ainda em curso) no período em que elas estiveram em vigor[6]. Ora, como se disse já, entende este Tribunal que a orientação genérica plasmada no ofício circulado n.º 20161, de 11.05.2012 não estava já em vigor quando ocorreu, na sua plenitude, integralidade, o facto tributário referente ao IRS de 2019.

 

Também não parece ser violador do princípio da boa fé o procedimento tendente à alteração dos elementos declarados na declaração de IRS do ano de 2019, dela retirando-se a situação de incapacidade fiscalmente relevante da Requerente. Enquanto não expirar o direito de liquidar o imposto, pode a AT promover uma liquidação adicional, sempre que entenda que dessa liquidação adicional depende o estrito cumprimento da lei, não havendo na ordem jurídica regra alguma que impeça a actuação da AT quando o conhecimento da ilegalidade de uma liquidação anterior lhe venha por um ou outro meio. Importante é que esse conhecimento venha à AT. De resto, na posse desse conhecimento, nem se admite que outro possa ser o comportamento da AT, em obediência aos princípios da legalidade, da igualdade, da não discriminação e da indisponibilidade do imposto.   

 

Uma das decorrências do princípio da boa fé é a tutela da confiança dos contribuintes. Uma confiança que se mostre legítima e, nessa medida, merecedora de tutela. Contudo, só haverá lugar à tutela da confiança do contribuinte na actuação da Administração de acordo com os ditames da boa fé quando o princípio da legalidade seja assegurado. Ou seja, não será merecedora de tutela a confiança suscitada nos contribuintes de uma determinada actuação ilegal da Administração[7].

 

  1. Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente absolvição da Requerida;

 

  1. Condenar a Requerente nas custas.

 

  1. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 4 do art.º 299.º e no n.º 2 do art.º 306.º, ambos do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.228,29 (três mil, duzentos e vinte e oito euros e vinte e nove cêntimos).

 

  1. Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 5 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar, como se disse, integralmente pela Requerente.

 

 

Lisboa, 21 de Outubro de 2024 

 

 

 

 

 

 

O Árbitro

 

 

 

 

 

Nuno Pombo

 

 

Texto elaborado em computador, e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.

 

 



[1] A “possibilidade de optar pela notificação pessoal se aplica mesmo nos casos em que a lei prevê a utilização de outros meios de notificação”, designadamente os previstos no n.º 1 do art.º 38.º do CPPT, “apesar de aí se referir que a «as notificações são efectuadas obrigatoriamente por carta registada». Com efeito, a razão de ser de tal obrigatoriedade é, manifestamente, impedir a utilização de meios menos idóneos de efectuar as notificações, pelo que a razão de ser dessa imposição não abrange as situações em que se optar por uma forma de comunicação que, na perspectiva legislativa, é tanto ou mais eficiente de comunicação.” JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Áreas Editora, 6.ª edição, 2011, pág. 374.

[2] DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária – anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4.ª ed., 2012, pág. 675.

[3] Idem, ibidem, pág. 678.

[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 04.10.2007 (proc. 0523/07).

[5] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08.02.2023 (proc. 0373/17.6BEPNF).

[6] DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária – anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4.ª ed., 2012, pág. 626.

[7] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 31.01.2019 (Proc. 266/14.9BEFUN).