SUMÁRIO:
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A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) é um tributo que se qualifica como “imposto” e não como “contribuição”, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar matérias a ela respeitantes.
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A falta de identificação dos actos de liquidação de CSR contestados, cuja declaração de ilegalidade e anulação se requer, implica a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e a consequente absolvição da Requerida da instância.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Nina Aguiar e Raquel Franco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., LDA., NIPC ..., com sede em Rua ..., ..., ...-... ..., freguesia de ... e concelho de Santarém (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 12 de Setembro de 2023, quanto à Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) liquidada com base nas facturas emitidas à Requerente, relativamente ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2022.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 14 de Fevereiro de 2024 e automaticamente notificado à Requerida.
3. No pedido arbitral a Requerente invocou, em síntese, que a CSR é um imposto não harmonizado sobre produtos sujeitos aos impostos especiais de consumo harmonizados, que não prossegue um “motivo específico” nos termos densificados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) e que, por isso, é contrário à Directiva n.º 2020/262 do Conselho de 19 de Dezembro de 2019. Neste sentido, defendeu a Requerente que os actos de liquidação da CSR em causa no presente processo se encontram feridos do vício de violação de lei, porquanto são contrários ao Direito Europeu, o que configura um erro imputável aos serviços. Sustentou ainda a Requerente que o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa é ilegal, na medida em que não sanou aquela ilegalidade, afirmando-a ao invés.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 3 de Abril de 2024, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 23 de Abril de 2024, sendo que nesse mesmo dia foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 16 de Maio de 2024, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo-se por excepção e por impugnação. Em síntese, invocou que a CSR é uma contribuição e não um imposto, sendo o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para a sua apreciação. Referiu Também que a Requerente contesta a legalidade do regime da CSR no seu todo, pedido para o qual o Tribunal seria igualmente materialmente incompetente. Ainda em sede de competência, referiu que o nunca poderia o Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR, porque tal extravasa o âmbito material da arbitragem tributária. Prosseguiu por referir que a Requerente carecia de legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago nos termos dos artigos 15.º e 16.º do CIEC porque esta apenas assiste aos sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respectivos ISP/CSR. Referiu ainda que a falta de legitimidade decorre igualmente do artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, já que a repercussão da CSR não decorre da lei, tendo apenas natureza meramente económica ou de facto. Defendeu também a Requerida a ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto e por ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir. Por fim, no âmbito da defesa por excepção, invocou a Requerida a caducidade do direito de acção, por intempestividade da revisão oficiosa decorrente do decurso do prazo previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT e nos artigos 15.º a 20.º do CIEC. Por impugnação, alegou em primeiro lugar que a Requerente não logrou provar que pagou e suportou integralmente o encargo da CSR e que inexiste desconformidade do regime da CSR com o previsto na Directiva Europeia que confira direito ao reembolso reclamado.
7. Em 24 de Maio de 2024, a Requerente exerceu o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida. Em síntese, reiterou que a CSR é um imposto e que o Tribunal Arbitral tem competência para apreciar e julgar pretensões “relativas a impostos”. Alegou que o interesse em agir e a legitimidade activa da Requerente resulta da titularidade da relação material controvertida, de ter suportado o encargo da CSR e do direito ao reembolso de cobrados num Estado-Membro em violação do Direito da União. Defendeu ainda a Requerente que o pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a declaração de ilegalidade e anulação, a título imediato, do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, a título mediato, dos actos de liquidação visados nesse pedido de revisão, na concreta parte em que respeitam à CSR, improcedendo desse modo a ineptidão da petição inicial. Por fim, remeteu quanto à caducidade do direito de acção para o vertido no pedido de pronúncia arbitral, registando que no sem entender toda a doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores na matéria, sempre reconheceram na aplicação de lei nacional violadora do Direito Europeu uma expressão do erro de direito imputável aos serviços, capaz de abrir aos contribuintes a via do pedido de revisão contemplado no artigo 78.° da LGT.
8. Após notificação e resposta da Requerente sobre o real e concreto valor da utilidade económica do pedido, relativamente ao qual veio a ser exercido o contraditório pela Requerida, foi fixado por despacho de 19 de Junho de 2024 o valor do processo em € 804.070,74 e consequentemente liquidada a taxa inicial remanescente.
9. Em 15 de Julho de 2024, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, remetendo-se para a decisão final a apreciação da matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.
II. SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, encontrando-se verificados os pressupostos da coligação de autores e da cumulação de pedidos, em conformidade com o disposto nos artigos 3.º, 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria de Vinculação.
11. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as excepções de (i) incompetência do Tribunal Arbitral, (ii) ineptidão do pedido de pronúncia arbitral (iii) ilegitimidade da Requerente e (v) caducidade do direito de acção por intempestividade do pedido de revisão oficiosa, o que será feito por esta ordem lógica, a título prévio, no âmbito da análise do mérito da causa, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.
II. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
12. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade comercial cujo objecto social reside, entre outras actividades, no transporte rodoviário de mercadorias;
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Entre 1 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu gasóleo nas quantidades e pelos valores titulados nas facturas emitidas pelas sociedades B..., S.A. e C..., Lda. (“fornecedoras de combustível”);
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Em 12 de Setembro de 2023, a Requerente apresentou, nos termos da 2.ª parte, do n.º 1, do artigo 78.º, da LGT, pedido de revisão dos actos tributários de liquidação de CSR emitidos com base nas facturas mencionadas na alínea anterior;
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Até à presente data, não foi proferida decisão expressa de indeferimento do referido pedido de revisão oficiosa;
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Em 9 de Fevereiro de 2024, a Requerente apresentou o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos.
§2 – Factos não provados
13. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:
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Que a B..., S.A. e a C..., Lda., entregaram ao Estado, enquanto sujeitos passivos da relação jurídico‐tributária, qualquer montante a título de CSR;
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Que as fornecedoras de combustível, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2022, repercutiram nas facturas emitidas à Requerente a CSR correspondente a cada um desses consumos, tendo a Requerente, por conseguinte, suportado a título de CSR, a quantia global de € 804.070,74.
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A Requerente é a consumidora final do gasóleo adquirido às fornecedoras de combustível, não tendo repercutido o encargo económico da CSR que alegou ter suportado no preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
14. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
15. O Tribunal formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
16. Os factos assentes nas alíneas a) e d), foram invocados pela Requerente e não impugnados pela Requerida, motivo pelo qual foram dados como provados. Os factos assentes na alínea b) foram dados como provados com base nos documentos 2 a 9 juntos com o PPA e o facto assente na alínea c) foi dado como provado com base no documento 1 junto com o PPA. O facto assente na alínea e) encontra-se certificado pelo sistema de gestão processual do CAAD.
17. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto 1), considerou este Tribunal Arbitral que a falta de junção aos autos das DIC globalizadas submetidas pelas fornecedoras de combustível, dos consequentes actos de liquidação emitidos pela AT e dos respectivos comprovativos de pagamento, que não foram também associados às facturas juntas aos autos, não permitem certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo do gasóleo adquirido pela Requerente.
18. O que é ainda agravado pelo facto de a qualificação da B..., S.A. como sujeito passivo de CSR ser controvertida nos autos, dada a alegação da Requerida de que esta é titular de estatuto fiscal em sede de ISP (destinatário registado a partir de 15.07.2021), ainda que a respectiva autorização não inclua nem a gasolina nem o gasóleo (sobre os quais a Requerente alega ter incidido CSR até 31.12.2022). Significa isto que esta sociedade não poderia ter sido a responsável pela introdução daqueles produtos no consumo e pelo pagamento das respectivas liquidações de CSR, actuando tão só como mera intermediária na cadeia de abastecimento, a quem podia ou não ter sido repercutido o encargo deste imposto.
19. Quanto ao facto dado como não provado no ponto 2) supra, impõe-se desde logo registar que a prova da repercussão pressupõe inevitavelmente como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que, conforme se viu, não foi demonstrado pela Requerente.
20. Acresce que a Requerente não cumpriu o critério a observar na prova da repercussão da CSR, tal qual fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C‑460/21. Ao que aqui importa, referiu aquele Tribunal o seguinte:
“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).
45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).
46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).
(…)
48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)
21. Da aplicação da jurisprudência do TJUE ao presente caso resulta que a repercussão da CSR sobre terceiros – que não decorre de qualquer imposição legal prevista na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que instituiu a CSR, sendo tão só “expectável” perante o regime e funcionamento deste tributo –, não pode ser em qualquer caso presumida.
22. O que é compreensível, se se tiver em consideração que a repercussão opera aqui como um fenómeno económico, com uma configuração e amplitude variáveis. Como explica Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399:
“A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.
A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”.
23. Portanto, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida por mais que tenha sido querida na lógica de funcionamento do tributo. Pelo contrário, impõe-se uma análise do contexto e dos vários factores que conformam cada transacção comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final.
24. Esta conclusão é, de resto, assumida pela própria Requerente, ao reconhecer reiteradamente no PPA que a repercussão da CSR não pode em caso algum ser presumida, tendo antes de ser demonstrada no caso concreto. Veja-se a título de exemplo o artigo 79.º do PPA onde a Requerente afirma que “Para que a mesma proceda [excepção de enriquecimento sem causa que permite recusar o reembolso de impostos cobrados em violação do Direito Europeu], é necessário que se demonstre a repercussão do imposto, não podendo esta ser presumida pela administração tributária, mesmo quando um imposto indireto seja concebido pelo legislador com o objetivo de ser repercutido ou quando o contribuinte esteja legalmente obrigado a incorporá-lo no preço dos bens.”.
25. Não se compreende, porém, em que medida invoca a Requerente no artigo 81.º do PPA que “que cabe à administração tributária o ónus de provar, 1º a repercussão do imposto, e, 2º o enriquecimento sem causa do contribuinte, atendendo aos particularismos económicos que rodeiam as transações, não se podendo voltar o ónus da prova da repercussão e do enriquecimento sem causa contra o contribuinte.”. É que se é a Requerente que alega a repercussão para justificar o direito ao reembolso do imposto que considera ilegal e indevidamente cobrado, então logicamente que é sobre a Requerente que recai o ónus de provar os factos constitutivos dos direitos que invoca, em conformidade com o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT.
26. Dito isto, certo é que o exercício de prova da repercussão não foi realizado pela Requerente, que se limitou a juntar facturas aos autos, como se daí decorresse sem mais a prova da repercussão da CSR. Certo é que apenas com base nas facturas não é possível fazer a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados; não é possível estabelecer a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não é possível demonstrar a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de gasóleo à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida tal incorporação se processou. Na verdade, não ficou sequer provado que uma das fornecedoras de combustível, quando actuou como mera intermediária na cadeia de abastecimento/distribuição, suportou ela própria o encargo da CSR que a Requerente alega ter sido repercutido na sua esfera.
27. Acresce que mesmo que a Requerente tivesse demonstrado que suportou o encargo da CSR por repercussão, não logrou esta demonstrar que esse encargo se cristalizou na sua esfera jurídica. Dito de outro modo, não provou a Requerente que em última instância foi a entidade onerada com o tributo em causa, porquanto não incorporou o seu custo no preço do serviços de transporte rodoviário de mercadorias prestados aos seus clientes, que no circuito ou cadeia económico-comercial podem situar‑se como os verdadeiros consumidores finais. Foi por isso que não se deu como provado o facto constante do ponto 3) supra.
28. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1. Questões prévias – saneamento
§1 – Incompetência do Tribunal Arbitral
29. Quanto à apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos formulados pelas Requerentes, seguem-se aqui de perto as conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 29 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 467/2023‑T.
30. Assim, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pelas Requerentes é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.
31. Ao que aqui importa, a competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)
32. Âmbito material este que é por sua vez circunscrito na Portaria de Vinculação, da seguinte forma:
“Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”
33. Apesar de a concatenação das referidas normas jurídicas não apresentar uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de actos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação – o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria –, certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos.
34. Revela-se, assim, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
35. Nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a excepção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:
“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.
36. Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita‑se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:
“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.
Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.
Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).
Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.
Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)
Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.
Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”
37. Cabendo tomar posição, e evitando repetições desnecessárias e contrárias à economia processual que se exige, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, já que este é um tributo que efectivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Por conseguinte, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos.
38. Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar o concreto pedido formulado pelas Requerentes com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.
39. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente concluiu com a formulação dos seguintes pedidos:
“Termos em que se requer a V. Exa. que o presente pedido de pronúncia arbitral seja julgado procedente e, em consequência:
1) Seja declarada a ilegalidade do ato de indeferimento tácito do pedido de Revisão Oficiosa referente aos atos de liquidação acima melhor identificados;
2) E, bem assim, seja declarada a ilegalidade dos atos de liquidação impugnados no presente pedido no que respeita ao montante liquidado a título de CSR;
3) E, consequentemente, seja a AT condenada a reembolsar a Requerente pelo valor total de CSR indevidamente pago, relativamente aos atos de liquidação juntos aos autos, no montante de € 733 498,37 (setecentos e trinta e três mil, quatrocentos e noventa e oito euros e trinta e sete cêntimos) acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor, até integral e efetivo pagamento.”.
40. Constata-se, portanto, que a Requerente não peticionou a declaração de ilegalidade do regime da CSR como um todo, conforme invocou a Requerida, mas sim a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de CSR, o que integra o âmbito material da arbitragem tributária previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º da Portaria de Vinculação.
41. Em face do exposto, julga-se improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral invocada pela Requerida.
§2 – Ineptidão do pedido de pronúncia arbitral
42. Invocou também a Requerida a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto e por ininteligibilidade do pedido e a contradição entre este e a causa de pedir.
43. Quanto a este tema, pronunciaram-se já de forma extensa e cuidada os Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência cumpre aqui considerar em respeito do já mencionado artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil. Em concreto, adere-se aqui às seguintes considerações do Tribunal Arbitral, proferidas no acórdão de 18 de Abril de 2024, referentes ao processo n.º 604/2023-T:
“ ii) Questão da ineptidão da petição inicial
A Requerida invoca ainda, a título de exceção, a ineptidão da petição inicial, alegando que a Requerente não identifica, em nenhum lado do seu pedido de pronúncia arbitral, qualquer ato ributário que a Requerente pretenda ver apreciado. Suscita apenas a declaração da “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela requerente no decurso do período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis (…), limitando-se a identificar as faturas de aquisição de combustíveis ao seu fornecedor, sem identificar qualquer ato tributário”.
Vejamos:
O artigo 98º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29º, n.º 1, alínea d) do RJAT, indica com uma das nulidades insanáveis do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.
Por seu turno, sobre o que se considera ser ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC, também subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se diz inepta a petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
No caso vertente estão à partida excluídas as causas das alíneas b) e c), pelo que haverá que averiguar se se verifica a situação prevista na al. a): falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir
O pedido existe. A Requerente pede que o Tribunal arbitral declare a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente no período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022, bem como das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis.
Contudo, o pedido compreende vários elementos.
Em primeiro lugar pede-se a anulação dos atos de repercussão consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo adquirido pela Requerente às suas fornecedoras. Como ficou já evidenciado através da exposição das posições das partes, é controverso se existem verdadeiros atos de repercussão. Mas esta é uma questão de qualificação jurídica, suscetível de ser debatida e analisada, não sendo, certamente, causadora de ininteligibilidade do pedido.
Em segundo lugar pede-se a anulação das liquidações de CSR “praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis”.
A causa de pedir de ambos os pedidos é a ilegalidade da própria CSR, por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, por não prosseguir “motivos específicos”. A causa de pedir é, pois, claramente inteligível.
O problema de inteligibilidade do pedido pode residir, no entender do Tribunal, no pedido de anulação das liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis”. Isto porque não basta que o pedido seja claro em abstrato na sua formulação, mas é ainda necessário que ele seja suficientemente concretizado para poder servir de base ao processo, ie, para que o Tribunal possa efetivamente conhecer o objeto do processo.
Concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de atos administrativos, significa necessariamente identificar os atos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.
A Requerente propõe-se identificar os atos de liquidação a partir das faturas.
A Requerente começa por dizer no início do seu ppa que pretende a apreciação das “liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário («CSR») praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas Declarações de Introdução no Consumo («DIC») submetidas pelas B..., S.A., C..., S.A. e D..., S.A. (doravante, abreviadamente designadas, em conjunto, por «fornecedoras de combustíveis») e, bem assim, relativo aos consequentes4 atos de repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário àquelas adquiridos pela Requerente no período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022.
No final do ppa, a Requerente pede que se declare a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela requerente no decurso do período compreendido entre fevereiro de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes5 liquidações de CSR.
É clara e compreensível a intenção da Requerente de identificar as liquidações de CSR impugnadas através da sua correspondência com os atos de repercussão da mesma CSR no preço das aquisições de combustível efetuadas pela Requerente às suas fornecedoras. O que seria, aliás, perfeitamente viável se estivéssemos perante uma repercussão formal, como existe no IVA.
O problema está em que uma tal correspondência, entre a liquidação de CSR e a repercussão da mesma no preço das aquisições a jusante, não é suscetível de ser realizada. Ao contrário do que acontece no IVA, em que são os atos de repercussão do IVA (no preço cobrado ao adquirente), efetuados anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, que determinam esta, quanto ao seu montante e quanto ao seu período temporal, existindo uma correspondência exata entre o ato de repercussão e a liquidação de IVA, na CSR (mesmo admitindo, a priori, que existem atos de repercussão, estes não estão formalmente ligados ao ato de liquidação. Pelo que é teoricamente possível a um fornecedor de combustível entregar uma declaração de introdução no consumo (DIC), dando origem a uma liquidação de CSR, no dia 1 de março, e no final desse mês ainda estar a vender combustível adquirido em fevereiro, “repercutindo” nessas vendas a CSR que suportou em fevereiro. Acresce que, como também ficou demonstrado na matéria de facto, nem sempre as entidades fornecedoras de combustível são sujeitos passivos da CSR liquidada relativamente à introdução do combustível no consumo, o que torna virtualmente impossível estabelecer um nexo seguro entre uma determinada venda de combustível e uma liquidação de CSR.
Como se assinalou quanto à matéria de facto considerada provada, só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efetuar a correspondência entre as faturas emitidas e as liquidações de CSR. Mas tal correspondência não foi realizada.
Assim sendo, verifica-se efetivamente uma falta de concretização de uma parte do pedido, por falta de identificação dos atos de liquidação da CSR.
No entanto, só existe ineptidão da petição inicial quando a ininteligibilidade do pedido (ou da causa de pedir) for absoluta, o que não é o caso. Pois, como vimos, uma parte do pedido é perfeitamente inteligível, mesmo no que diz respeito à sua concretização: a Requerente pretende a anulação dos atos de repercussão da CSR em cada uma das faturas que identifica pelos seus números. A Requerente, além de identificar as faturas pelo seu emitente e pelo seu número, aplica a taxa da CSR e calcula o montante da repercussão. Pelo que se considera improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.”.
44. Ora, no presente processo o pedido da Requerente não compreende vários elementos, sendo unicamente dirigido à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de CSR. Para identificar as referidas liquidações, a Requerente limita-se a juntar aos autos as facturas emitidas pelas sociedades fornecedoras de combustíveis. Acontece que, pelas razões enunciadas no referido acórdão às quais se adere e dão por reproduzidas, não resulta da mera junção de facturas e cálculo da CSR alegadamente repercutida, a suficiente identificação das liquidações contestadas. O que significa que, neste caso, a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial opera em termos absolutos, o implica consequentemente a absolvição da Requerida da instância nos termos conjugados dos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
45. Em face do decidido, fica prejudicada, porque inútil, a apreciação das demais questões suscitadas no processo.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
-
Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar actos de liquidação de CSR;
-
Julgar procedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
-
Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 804.070,74.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 11.628,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de Outubro de 2024
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente e Relatora)
Nina Aguiar
Raquel Franco
(vencida nos termos da declaração de voto anexa)
Declaração de voto
Votei vencida neste processo por ter um entendimento diferente acerca da questão da competência do Tribunal, não acompanhando a jurisprudência que tem vindo a formar-se no âmbito dos tribunais arbitrais formados junto do CAAD, e que é seguida no presente acórdão, quanto à qualificação da CSR como imposto, por estarem ausentes as características da bilateralidade difusa e da responsabilidade de grupo inerente às contribuições. De facto, entendo que o regime jurídico da CSR, ao criar um tributo de cuja receita é titular a Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), entidade responsável pela conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, sendo os respetivos sujeitos passivos as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários (e independentemente, agora, da questão da repercussão se presumir ou não), não se pode concluir simplesmente que os sujeitos passivos não são, de forma alguma, destinatários da atividade do sujeito ativo. De facto, é o sujeito ativo (Infraestruturas de Portugal) que garante as condições necessárias a que a atividade das empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, no que toca à venda desses bens, possa existir e manter-se. Sem a rede rodoviária nacional, que interesse existiria da parte dos consumidores pela aquisição de gasolina e gasóleo rodoviários que adquirem àquelas empresas? A conclusão de que inexistem as caraterísticas da bilateralidade difusa e da responsabilidade de grupo parece assentar no pressuposto – que não acompanho – de que teriam que ser os utilizadores/consumidores da rede rodoviária nacional os respetivos sujeitos passivos para que estivéssemos perante uma contribuição financeira. Contudo, ignora, a meu ver, que os seus sujeitos passivos são igualmente beneficiários da rede rodoviária nacional, não porque a utilizem para consumo, mas porque dela tiram partido enquanto infraestrutura essencial para a oferta que aportam ao mercado – ao ponto de se poder dizer que, sem essa infraestrutura, a sua atividade, no que toca à venda de produtos que abastecem o transporte rodoviário, não teria interesse para o mercado. Nesse sentido, entendo a CSR como um exemplo das “taxas coletivas”, na expressão de Gomes Canotilho/Vital Moreira, aquelas que “(…) assentam em prestações cuja provocação ou aproveitamento se podem dizer seguros quando referidos ao grupo mas apenas prováveis quando referidos aos indivíduos que o integram”[1] ou, nas palavras de Filipe de Vasconcelos Fernandes como um tributo bilateral “(…) alicerçados numa lógica de equivalência de grupo (…)”, uma “(…) estrutura de incidência sustentada na utilização presumida de um serviço ou na obtenção de um benefício presumido (…)”[2]. De acordo com o mesmo Autor, nas “(…) contribuições financeiras visa retribuir-se ou ressarcir-se o custo ou benefício inerentes ao serviço prestado por uma entidade pública, neste caso a um conjunto homogéneo de interessados, que o aproveitam (…) [como membros] num dado grupo”[3].
Por estes motivos, teria decidido pela incompetência do Tribunal por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT. A falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de atos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT. Estamos, isso sim, perante uma incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação prevista no artigo 4.º do RJAT.
Por outro lado, e uma vez que o tribunal se considerou, por maioria, competente para julgar o caso, votei também vencida a questão da ineptidão da petição inicial, por entender que não era exigível à Requerente que identificasse as liquidações que a AT emitiu com base nas vendas de combustíveis em causa, nem essa identificação seria necessária para se apurar a legalidade da cobrança de CSR implicada nas faturas em causa. Considero que a exigência de identificação das liquidações nesta situação não é compatível com a leitura que faço dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do direito à tutela judicial efetiva, por tornar impossível, na prática, a impugnação contenciosa destes atos por parte dos repercutidos.
Lisboa, 22 de outubro de 2024.
Raquel Franco
[1] Cf. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 1095.
[2] Cf. “As “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” no sistema fiscal português – conceito, pressupostos e regime jurídico-constitucional (incluindo a analogia com as Sonderabgaben alemãs)”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, nº 1, 2, 3 e 4 (2021), p. 88.
[3] Cf. As Contribuições Financeiras no Sistema Fiscal Português: Uma Introdução. 1ª edição, Coimbra: GESTLEGAL, 2020, p. 39.