SUMÁRIO:
1. O artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas.
2. O Imposto do Selo liquidado sobre “comissões de gestão” de fundos não se enquadra no artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE e não é incompatível com esta norma.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Presidente), António Pragal Colaço e Martins Alfaro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 26-02-2023, acordam no seguinte:
A - RELATÓRIO
A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A...- SOCIEDADE GESTORA DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLETIVO, S.A., com o número único de matrícula e identificação fiscal..., com sede na ..., ... –..., ...-... Lisboa.
A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.
A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral:
Actos de liquidação de Imposto do Selo, respeitantes ao período compreendido entre Junho de 2019 e Maio de 2021, sobre (i) as comissões de comercialização cobradas pelas entidades comercializadoras e (ii) as comissões de gestão cobradas aos fundos de investimento geridos pela Requerente, na medida em que incorporam as comissões de comercialização.
A.4 - Pedido: A Requerente formulou os seguintes pedidos:
Que seja determinada a ilegalidade e anulada a decisão de indeferimento proferida em sede de procedimento de revisão oficiosa, e bem assim declarada a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo da Requerente, respeitantes ao período compreendido entre Junho de 2019 e Maio de 2021, sobre (i) as comissões de comercialização cobradas pelas entidades comercializadoras e (ii) as comissões de gestão cobradas aos fundos de investimento por si geridos na medida em que incorporam as comissões de comercialização e
Que seja determinado o reembolso do montante de € 1.780.361,12 a título de Imposto do Selo pago em excesso no período compreendido entre Junho de 2019 e Maio de 2021, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.
A.5 - Fundamentação do pedido:
Em virtude da sua actividade, a REQUERENTE cobra comissões de gestão a fundos de investimento, sobre as quais tem vindo a liquidar Imposto do Selo, à taxa de 4%, nos termos da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”).
A liquidação do Imposto do Selo sobre as comissões de gestão assentou no pressuposto de que as Sociedades Gestoras de Organismos de Investimento Coletivo (“SGOIC”) eram definidas como sociedades financeiras, em linha com as definições constantes do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”).
No entanto, aquele diploma sofreu alterações com efeitos a 1 de Janeiro de 2020, que levaram precisamente ao afastamento das SGOIC quer do conceito de sociedade financeira quer do conceito de instituição financeira.
Em virtude daquela alteração, a Requerente entende que as referidas comissões de gestão cobradas aos fundos de investimento por si geridos deixaram de estar sujeitas a Imposto do Selo desde 1 de Janeiro de 2020.
Até Março de 2021, as supramencionadas comissões de gestão incorporavam ainda a componente de comissão de comercialização das unidades de participação dos fundos de investimento por si geridos.
A Requerente entende que a referida sujeição a Imposto do Selo das comissões de comercialização cobradas pelas entidades comercializadoras a si (até Abril de 2020) e aos fundos por si geridos (repercutida na comissão de gestão até Abril de 2020 e a partir de Maio de 2020 cobrada directamente aos fundos) não se encontra em linha com as disposições da Directiva n.º 2008/7/CE, de 12 de Fevereiro de 2008 (“Directiva”), relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais.
Neste contexto, no período compreendido entre Junho de 2019 e Maio de 2021, foi indevidamente liquidado Imposto do Selo sobre as referidas comissões de comercialização e comissões de gestão, no montante total de € 1.780.361,12.
A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:
A Requerente apresentou, em 20-07-2023, um pedido de revisão no qual veio peticionar à AT a anulação das liquidações aqui em causa, referentes aos anos de 2019, 2020 e 2021, e o correspondente reembolso do Imposto do Selo pago, no valor de € 1.780.361,12.
No entanto, em 14-08-2023 a AT rejeitou liminarmente o pedido de revisão apresentado.
Por excepção, um dos objectos do pedido de pronúncia arbitral assenta na decisão de rejeição liminar/arquivamento do pedido de revisão oficiosa apresentado, não tendo como objecto mediato qualquer acto tributário de liquidação.
Assim, estamos perante um acto administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade de um acto de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial ou arbitral, como pretende o Requerente.
Não estando preenchido um dos pressupostos de que depende a admissibilidade de um qualquer pedido gracioso (ou contencioso) – tempestividade –, deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser rejeitado por manifesta intempestividade da revisão oficiosa, o que determina a inimpugnabilidade das autoliquidações contestadas, no valor de € 1.780.361,12, impedindo relativamente às mesmas o conhecimento do mérito da causa.
Com efeito, o tribunal arbitral é materialmente incompetente para a apreciação de pedidos que derivem de procedimentos tributários considerados intempestivos.
O meio judicial adequado para contestar a decisão sub judice era, não o presente pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.º do RJAMT – disposição legal que legitima a impugnação de actos de liquidação e subsequentes indeferimentos sobre os meios de reacção administrativa eventualmente accionados sobre eles – mas antes a acção administrativa, a que se referem os artigos 50.º e 58.º do CPTA, conforme constava expressamente da notificação da decisão da revisão oficiosa remetida à Requerente.
Deve o tribunal arbitral declarar-se materialmente incompetente para a apreciação do pedido referente à revisão oficiosa, o que constitui uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da Requerida na instância, sendo a mesma de conhecimento oficioso (Cf. ex vi artigo 29.º do RJAMT, alínea a) do n.º 1 do artigo 278.º, n. os 1 e 2 do artigo 576.º, alínea a) do artigo 577.º, artigo 578.º, todos do CPC; artigo 16.º do CPPT).
Por impugnação, refere que a questão a decidir consiste em saber se os atos de autoliquidação de Imposto do Selo (IS) supra referidas, atos que incidiram sobre (i) a comissão de comercialização cobrada pelas entidades comercializadoras a si e aos fundos de investimento por si geridos e (ii) a comissão de Gestão na medida em que repercute aquele encargo sofrido pelo Requerente na esfera dos fundos por si geridos, devem, ou não, ser sujeitos a Imposto do Selo por aplicação da norma de incidência consagrada na verba 17.3.4 da TGIS, e se tal incidência viola o direito comunitário, na medida em que está desconforme com as disposições da Diretiva n.º 2008/7/CE, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, em particular com a alínea a) do n.º 2 do seu artigo 5.º, como demonstra a decisão do TJUE sobre esta questão no acórdão C-656/21, e, bem assim, a decisão 88/2021-T do CAAD que a aplicou e confirmou.
No caso em apreço, dos segmentos citados decorre com mediana clareza que nem todas as liquidações de Imposto do Selo, efectuadas nos termos da verba 17.3.4 da TGIS, cabem no escopo da jurisprudência que emana do Acórdão C-656/21 do TJUE
No que se refere ao imposto do selo liquidado sobre comissões de gestão cobradas pela Requerente aos fundos por si geridos, em sítio nenhum da p.i., nem dos documentos que a acompanham, é possível extrair com total certeza e clareza qual o valor do Imposto do Selo conexo com as comissões de comercialização que, alegadamente, estará incluído nas comissões de gestão relativas àqueles períodos de imposto.
Conforme resulta com clareza do aresto do TJUE, a liquidação de Imposto do Selo sobre comissões de gestão não só não é proibida como é permitida pela Diretiva 2008/7/CE.
A Requerente não consegue demonstrar de forma cabal e inequívoca se há e qual o valor incluído nas comissões de gestão que alegadamente corresponde a imposto incidente sobre comissões de comercialização, pois só quanto a este, que deve ser expurgado do imposto relativo à comissão de gestão, mantendo-se quanto ao restante da dita comissão (de gestão), o TJUE proíbe que haja a liquidação e cobrança de imposto.
Incumbe, assim, ao Requerente, nos termos das regras do ónus da prova, demonstrar a existência dos factos tributários que alega como fundamento do seu direito à não sujeição a Imposto do Selo
Demonstração essa que, no caso concreto, não consegue fazer, porquanto não resulta inequivocamente claro que as comissões de gestão por si cobradas aos fundos por si geridos tenham nelas incluídas o redébito dos valores a si cobrados pelo Banco B... pelos serviços de comercialização.
Assim, devem os actos tributários de liquidação de Imposto do Selo da verba 17.3.4 da TGIS, relativos ao período compreendido entre junho/2019 e dezembro de 2020, no valor total de 1 453 173,63 €[1] ser considerados compatíveis com a alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, não padecendo por isso os mesmos de qualquer ilegalidade que os inquine.
No que se refere às comissões de comercialização cobradas pelo banco B... directamente aos fundos entre Janeiro e Maio de 2021:
Não há evidência concreta de que o imposto mencionado nas facturas emitidas em nome dos Fundos pelo Banco B..., na qualidade de sujeito passivo, alguma vez tenha entrado nos cofres do Estado.
Não resulta inequivocamente claro que o Imposto do Selo alegadamente liquidado sobre as comissões de comercialização cobradas pelo Banco B... aos Fundos por si geridos entre janeiro e maio de 2021 alguma vez tenha sido integralmente declarado e entregue nos cofres do Estado.
Não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido ao Requerente qualquer indemnização, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT.
Termina, requerendo nos seguintes termos:
- Ser julgada a excepção dilatória do erro parcial na forma de processo, que se traduz na incompetência do tribunal para conhecer parcialmente o pedido e absolvida a Requerida da instância, ou, assim não se entendendo, o que não se concede,
- Ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.
A Requerida juntou o processo administrativo.
Por despacho de 11-04-2024, foi a Requerente notificada para exercer, querendo, contraditório em relação à matéria de excepção suscitada pela Requerida, tendo-se pronunciado nos seguintes termos:
O teor dos artigos 66 a 77 do despacho de rejeição do pedido de revisão oficiosa, junto como Documento n.º 6 ao pedido de pronúncia arbitral, incide sobre a legalidade das liquidações controvertidas.
É inequívoco concluir que a AT apreciou de forma notória a legalidade das liquidações contestadas no âmbito do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (“STA”) tem vindo a seguir uma linha de raciocínio assente na ideia de que é irrelevante para a questão do meio processual adequado, saber se a decisão administrativa chegou ou não a pronunciar-se sobre as ilegalidades imputadas à liquidação.
O que releva é, unicamente, saber se a petição do contribuinte tem por objecto a apreciação da legalidade de uma liquidação de imposto, caso em que o meio processual de reacção a um indeferimento pela AT não é a acção administrativa, mas sim, a impugnação judicial (ou, conforme se referiu, a arbitragem tributária).
O que releva assim para que o meio próprio de reacção à rejeição liminar seja a arbitragem tributária, é que a pretensão do contribuinte se dirija, e se continue a dirigir agora, a um acto de liquidação, sendo que a decisão de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa com fundamento na inexistência de erro imputável aos serviços para efeitos de aplicação do artigo 78.º da Lei Geral Tributária comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.
O Imposto do Selo liquidado por entidades bancárias e repercutido nos contribuintes pode, por estes, ser contestado no prazo de quatro anos conforme previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Na directiva que é para o caso relevante - Directiva 2008/7/CE - cujo escopo é referente a sociedades de capitais ou, por equiparação, a sociedades, associações ou pessoas colectivas com fins lucrativos, não se verifica a sua não abrangência a FIA.
No que toca à alegação de falta de prova, a Requerente apresentou nesta sede, como Documento n.º 1, uma declaração relativa às liquidações de Imposto do Selo, emitida por parte do banco comercializador, que comprovam os actos de liquidação do imposto, identificando o número das Guias de Retenção na Fonte de Imposto do Selo e das Declarações Mensais de Imposto do Selo (“DMIS”), bem como o período e a data de pagamento das mesmas, que estiveram na origem da entrega, por parte do banco comercializador, enquanto sujeito passivo, do imposto junto dos cofres do Estado.
Notificada da pronúncia da Requerente, a Requerida veio aos autos requerer nos seguintes termos:
Deverá ser ordenado o desentranhamento do requerimento apresentado pelo Requerente, convidando-se a mesma a reapresentar novo articulado expurgado do excesso de contraditório, bem como do documento ao mesmo junto.
Caso assim não se entenda, deve ser ordenado o desentranhamento do requerimento apresentado no tocante aos artigos 61.º a 85.º, bem como do documento junto ao mesmo.
Caso ainda assim não se entenda, devem considerar-se como não escritos os artigos 61.º a 85.º, os quais, de modo algum, poderão sustentar a decisão a proferir nos presentes autos.
B - SANEAMENTO:
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo nenhuma delas manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral colectivo foi regularmente constituído em 26-02-2023.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.
Em 27-04-2024, o Tribunal proferiu despacho considerando que, não havendo lugar a produção de prova constituenda e tendo sido exercido contraditório em matéria de excepção, fica dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAMT e que, mostrando-se que a questão central a dirimir é essencialmente de direito e encontra-se determinada com precisão e desenvolvimento nas peças processuais, é dispensada a produção de alegações, prosseguindo o processo para decisão arbitral.
Deste despacho, foram notificadas ambas as partes.
O processo não enferma de nulidades.
C - FUNDAMENTAÇÃO:
Previamente à fixação da matéria de facto relevante para a decisão e dada as suas manifestas relevância e utilidade para a boa decisão da causa, o Tribunal conhecerá da admissibilidade do requerimento e do documento juntos aos autos pela Requerente, em 26-04-2024, requerimento e documento esses cuja junção a Requerida entende não dever ser aceite pelo Tribunal.
Sendo certo que o requerimento apresentado pela Requerente, em 26-04-2024, contém, no respectivo arrazoado, alegações de direito que extravasam a finalidade da notificação para exercer o contraditório quanto às excepções invocadas pela Requerida,[2] o Tribunal considera tais alegações inócuas para a finalidade pretendida, pelo que decide admitir a junção do referido requerimento, atenta a utilidade que dele resulta, no que toca ao exercício do direito ao contraditório.
E quanto à admissibilidade do documento junto com aquele requerimento?
Nos termos do artigo 10.º, n.º2, als. c) e d), do RJAMT, os documentos devem ser juntos aos articulados que contenham as circunstâncias de facto objecto de prova.
Em conformidade com o constante do artigo 29.º, n.º 1, e), do mesmo diploma, é, contudo, subsidiariamente aplicável, ao processo tributário, o regime processual civil, sendo que, como decorre do n.º 2 de tal preceito, tal aplicação deve ser realizada em termos devidamente adaptados à realidade do processo tributário e às especificidades de cada acção.
Resulta do artigo 423.º, n.º 1, do CPC (cujo teor se revela em consonância com o disposto no mencionado artigo 29.º do RJAMT), que os documentos devem ser juntos aos articulados em que é invocada a factualidade a que tais documentos se reportam.
O preceito ressalva expressamente duas excepções.
Uma delas corresponde à prevista no n.º 3 daquele preceito, nos termos do qual pode haver lugar a junção tardia de documentos (em momento posterior à fase dos articulados e mesmo após a audiência de julgamento), em caso de superveniência objectiva ou subjectiva da prova.
A outra excepção acima referida refere-se à contemplada no n.º 2 do referido preceito, nos termos do qual os documentos poderão ser juntos ao processo até 20 dias antes da audiência de julgamento, ainda que sob cominação de multa.
É esta a situação dos autos.
A aplicação, devidamente adaptada, desta norma, ao processo tributário arbitral conduz a que, nos casos em que não haja audiência de julgamento, a referência processual a tomar em consideração seja o momento das alegações e não o da audiência. Assim se decidiu, por exemplo, no seguimento de corrente jurisprudencial que se corrobora, nos procs. n.º 308/2015-T,[3] 258/2016-T[4] e 699/2019-T[5].
No mesmo sentido, ficou consignado, no processo arbitral n.º 753/2014-T,[6] que “Não contendo o processo arbitral tributário a realização imperativa de uma audiência final, a esta há-de, naturalmente, equiparar-se a realização da última reunião do processo, havendo-a, ou o momento imediatamente anterior à notificação para apresentação de alegações escritas, ou de fixação de prazo para a decisão final, sem realização daquelas.”
Ora, no presente caso, não tendo havido lugar a audiência de julgamento, o momento relevante da contagem do prazo de 20 dias seria o da apresentação das alegações, que no caso foram dispensadas.
Nada obstaria, por outro lado, a que, em conformidade com o previsto no n.º 2 do art. 29.º do RJAMT e ao abrigo dos princípios da celeridade e adequação processuais, se reduzisse o prazo de antecedência de junção de documentos previsto na lei adjectiva, de 20 dias, para período inferior.
No caso dos autos, o requerimento de junção de documentos, porque apresentado em 26-04-2024, foi anterior ao despacho de dispensa de alegações - produzido em 27-04-2024 e notificado pelo CAAD às partes em 29-04-2024 -, termos em que procede o referido requerimento de junção.
Por fim, releve-se que o documento em causa tem a natureza de prova complementar da apresentada com o pedido arbitral e que contribui, além do mais, decisivamente para a descoberta da verdade material, objectivo que enforma a actividade deste Tribunal e igualmente da Requerida, esta enquanto órgão da Administração Pública central.
Nestes termos, o Tribunal delibera aceitar como meio de prova o documento junto aos autos pela Requerente, em 26-04-2024.
C.1 - Matéria de facto - Factos provados: Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
A Requerente tem por objecto social o exercício da actividade das sociedades gestoras de
organismos de investimento colectivo, no âmbito da qual gere diversos fundos de
investimento mobiliário e imobiliário (“fundos de investimento”) - Facto constante do requerimento de constituição do Tribunal arbitral, não impugnado, e Resposta da Requerida.
Em virtude da sua actividade, a Requerente cobra comissões de gestão e comissões de comercialização àqueles fundos de investimento, sobre as quais tem vindo a liquidar Imposto do Selo, à taxa de 4%, nos termos da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”) - Facto constante do requerimento de constituição do Tribunal arbitral, não impugnado, e Resposta da Requerida.
No período compreendido entre Junho de 2019 e Maio de 2021, ambos inclusivé, a Requerente liquidou imposto do selo sobre as referidas comissões de comercialização e comissões de gestão - Facto constante do requerimento de constituição do Tribunal arbitral, não impugnado, e Resposta da Requerida.
No ano de 2019, no período compreendido entre 1 de Junho e 31 de Dezembro daquele ano, foi liquidado aos fundos de investimento Imposto do Selo sobre as comissões de comercialização e de gestão de unidades de participação as quais ascenderam ao valor de € 19.832.914,60 - Documento junto aos autos em 26-04-2024, quadros II e VI.
No ano de 2020, foi liquidado aos fundos de investimento Imposto do Selo sobre as comissões de comercialização de unidades de participação as quais ascenderam ao valor de € 16.496.427,61 - Documento junto aos autos em 26-04-2024, quadros III, IV e VII.
No ano de 2021, no período compreendido entre 1 de Janeiro e 31 de Maio daquele ano, foi liquidado aos fundos de investimento Imposto do Selo sobre as comissões de comercialização de unidades de participação as quais ascenderam ao valor de € 8.189.401,88 - Documento junto aos autos em 26-04-2024, quadros V e VIII.
A Requerente requereu a abertura de procedimento de revisão oficiosa em 20-07-2023 - Processo Administrativo.
No procedimento de revisão oficiosa, referente aos actos objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, foi proferida decisão final de indeferimento, em 14-08-2023 - Processo Administrativo.
Desta decisão, foi a Requerente notificada por carta, com registo postal efectivado em 11-09-2023 - Processo Administrativo.
Na referida decisão final, escreveu-se o seguinte:
As comissões são relativas a todos os serviços, indicados no art. 66.°, n.° 1, al. b), subalínea i) do regime Geral dos Organismos de Investimento coletivo (RGOIC) não são autónomos dos serviços de administração, são auxiliares do serviço de administração e diretamente dele dependentes. Os serviços da subalínea i) estão enunciados na al. b), o que indica que são realizados no âmbito da administração dos organismos de investimento coletivo, desde gestão de contabilidade, de esclarecimento e análise das questões e das reclamações dos participantes, de avaliação da carteira e determinação do valor das unidades de participação, da emissão de declarações fiscais aos participantes, de controlo da observância das normas aplicáveis, de registo e conservação dos documentos, de direitos com carater remuneratório entre outros serviços.
Bem como, nos termos do art.° 67.° RGOIC, o exercício da atividade de gestão de organismo de investimento coletivo é remunerado através de uma comissão de gestão, podendo esta incluir uma componente variável calculada em função do desempenho do organismo de investimento coletivo, nos termos previstos em regulamento da CMVM.
A Requerente vem alegar a incompatibilidade com o direito europeu, designadamente com a Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008 e identifica o processo C-656/21 que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD, no âmbito do processo 88/2021-T. Esta Diretiva, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, visa eliminar fatores suscetíveis de distorção de concorrência ou obstar à livre circulação de capitais. No preâmbulo deste instrumento comunitário, esclarece-se que "[njão deverão ser aplicados impostos indiretos às reuniões de capitais, exceto o imposto sobre as entradas de capital. Em especial, não deve ser aplicado imposto de selo sobre os títulos, quer estes sejam representativos de capitais próprios das sociedades quer de capitais de empréstimo, e qualquer que seja a sua proveniência".
Na Diretiva ora em análise, a al. a) do n.° 1 do art.° 5.° estipula que os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto as entradas de capital, especificando na al. a) do seu n? 2 a proibição do estabelecimento destes impostos sobre a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu. Por sua vez, a al. a) do n.° 1 do art.0 6.° da Diretiva dispõe que, em derrogação ao estabelecido no art.° 5.°, os Estados-Membros podem cobrar impostos sobre a transmissão de valores mobiliários, cobrados forfetariamente ou não.
Cumprindo clarificar que, não obstante o art.° 6.° da Diretiva permitir a tributação da transmissão de valores mobiliários, no caso de uma aquisição de UP's no contexto de um aumento de capital não está em causa a transmissão de valores mobiliários ou partes sociais, mas antes a entrada de capital por via da emissão de unidades de participação. E, a Diretiva não só não proíbe como permite, no artigo 6.°, que os Estados-Membros cobrem impostos sobre a transmissão de valores mobiliários (cf. alíneas a) do n.° 1 do art.° 6.° da Diretiva, pelo que tal argumentação não nos parece sustentável.
Assim, todos os encargos decorrentes dos contratos de intermediação financeira, nas várias operações de emissão de valores mobiliários, sob a forma de títulos negociáveis, prestaram o serviço de colocação dos títulos em mercado, tendo por isso cobrado as ditas comissões de gestão/colocação/comercialização, são tributados em sede de imposto uma vez que preenchem cumulativamente os elementos de natureza objetiva e subjetiva previstos na Verba 17.3.410 da TGIS, e, em conformidade, estão sujeitas a imposto do selo por força do disposto no n° 1 do artigo 1o do CIS
É, assim, manifesto não existir um “qualquer erro imputável aos serviços" nos termos do disposto no art.° 78.° da LGT, que possa ser invocado como fundamento do pedido de revisão oficiosa, nem tão pouco o Requerente logrou provar tal erro.
Concluímos que o caso em apreço não estamos perante qualquer tipo de erro imputável aos serviços e não tem aplicação na jurisprudência do TJUE, pelo que a verba 17.3.4. da TGIS, que prevê a sujeição a imposto do selo de comissões e contraprestações por serviços financeiros não é ilegal, e desse modo, as liquidações de imposto do selo impugnadas, tendo tido por base aquela disposição da TGIS, não enfermam de vício de violação de lei, por erros nos pressupostos de direito.
E estamos perante imposto do selo autoliquidado pelo sujeito passivo, nos termos do art° 2.° e 23.° do CIS, deve lançar-se mão do disposto no artigo 131.° do CPPT, quanto há necessidade de reclamação graciosa prévia e necessária, dado ser o meio mais adequado de reação, o que agora afigura-se-nos como um ato processual totalmente inútil, dado já ter sido ultrapassado o término do prazo para o
efeito.
A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 13-12-2023 - Sistema de Gestão Processual do CAAD.
Por despacho do Tribunal, devidamente notificado às partes, o prazo para a prolação da decisão arbitral foi prorrogado por dois meses.
C.2 - Factos dados como não provados;
Não existem factos relevantes para a decisão que não devam considerar-se provados.
C.3 - Fundamentação da matéria de facto:
Relativamente à matéria de facto, importa salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAMT.
Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT).
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do CPC).
No que se refere aos factos provados e não provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e na posição assumida por ambas as Partes, em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.
C.4 - Matéria de direito:
C.4.1 - Questão prévia - Excepções invocadas pela Requerida:
O artigo 124.º, do CPPT, não faz alusão às questões processuais, diversamente do que sucede no CPC, no artigo 608.º, n.º 1, o qual estabelece um critério de precedência lógica, que impõe ao tribunal a apreciação prioritária das questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
Com efeito, nos termos do artigo 608, n.º 1, do CPC, «sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica».
Considera-se aplicável ao processo arbitral o estabelecido no artigo 608, n.º 1, do CPC, ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT.
E o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do RJAMT, refere-se expressamente às «excepções que seja necessário apreciar e decidir antes de conhecer do pedido».
Assim, apreciar-se-ão primeiramente as excepções invocadas pela Requerida, a saber:
C.4.1.1 - 1.ª excepção invocada - Incompetência material do Tribunal arbitral:
A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a respectiva apreciação, previamente à verificação dos demais pressupostos processuais - artigos 16.º, do CPPT e 13.º, do CPTA, ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAMT.
A Requerida excepcionou a incompetência material do Tribunal arbitral, uma vez que, na decisão final do procedimento de revisão oficiosa, não teria sido apreciada a legalidade das liquidações em causa, pronunciando-se a AT apenas pela intempestividade do pedido administrativo.
Deste modo, não seria possível à Requerente, em sede da presente acção arbitral, ver discutida a legalidade da decisão de indeferimento por intempestividade da revisão oficiosa, porquanto o meio processual adequado para discutir a legalidade daquela decisão é a acção administrativa, a qual constitui o meio processual adequado quando o acto impugnado é relativo a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.
Daí concluindo que este Tribunal é materialmente incompetente para a apreciação do presente pedido de pronúncia arbitral.
Apreciando:
A competência dos tribunais arbitrais é delimitada pelo disposto no artigo 2.º do RJAMT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
Dali resulta que a competência dos Tribunais arbitrais compreende exclusivamente a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de actos de fixação da matéria tributável que não dêem origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.
A definição assim efectuada normativamente em razão da matéria, corresponde, genericamente, às pretensões sindicáveis por via da impugnação judicial - cfr. o artigo 97.º, n.º 1, do CPPT.
A Requerida excepcionou com a incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, alegando que a AT não apreciou, em sede de procedimento de revisão oficiosa, a legalidade das liquidações em causa, pelo que, em consequência, tais actos tributários não são sindicáveis por via de impugnação judicial ou por via arbitral, sendo-o, antes, por acção administrativa.
Ora, a verdade é que a Requerida, na apreciação do pedido de revisão oficiosa, não apreciou apenas a questão da tempestividade do pedido de abertura daquele procedimento, tendo-se pronunciado também sobre o mérito, embora acabe por concluir pela rejeição liminar com base naquele fundamento. - cfr. factos provados.
Acresce que, para concluir pela extemporaneidade do pedido, a Requerida teve de aferir a existência do pressuposto de “erro imputável aos serviços” o que, em rigor, encerra a análise de argumentos pertinentes ao fundo da causa e, desta forma, à ilegalidade dos actos.
De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, a jurisprudência mais recente do STA pronunciou-se no sentido de que, sendo o pedido do sujeito passivo dirigido à anulação por ilegalidade do acto tributário, está em causa a apreciação dessa mesma ilegalidade, qualquer que seja a razão ou o vício que conduziram à rejeição ou indeferimento dessa pretensão.
Veja-se, por todos, o acórdão do STA, de 13-01-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR:[7]
A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação - artigo 99.º do CPPT - independentemente de ter sido ou não precedida de meio gracioso e, no caso de assim ter acontecido, independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito – acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18. E visa a anulação total ou parcial do ato tributário (a liquidação).
Ao invés, a ação administrativa, meio contencioso comum à jurisdição administrativa e tributária, será o meio processual a usar quando a pretensão do interessado não implique a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
Assim, se na sequência do indeferimento do meio gracioso, o interessado pedir ao tribunal que aprecie a legalidade da liquidação e que, em consequência, a anule (total ou parcialmente), o meio processual adequado é a impugnação judicial, ainda que esse conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa.
Daí que se tenha vindo a afirmar que nestas situações, em que o meio gracioso precede o contencioso, a impugnação judicial tem um objeto imediato (a decisão administrativa) e um mediato (a legalidade da liquidação).
[…]
Importa dizer que sobre esta matéria a posição deste Tribunal tem também sido uniforme no sentido de adotar, na interpretação do pedido formulado, um critério flexível com vista a alcançar uma justiça efetiva e não meramente formal, pois só assim é garantida uma tutela jurisdicional efetiva.
Deste modo, o facto de a AT ter considerado intempestivo o pedido de abertura de procedimento de revisão oficiosa, não impede nem compromete a apreciação, por este Tribunal, do objecto mediato da presente acção arbitral, identificado no pedido de pronúncia arbitral pela Requerente, a saber: a ilegalidade e a consequente anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo ali identificados.
Tendo a Requerente estabelecido como pedido principal a declaração de ilegalidade dos já referidos actos tributários de Imposto do Selo - e acompanhando a jurisprudência citada - é indiferente o teor, formal ou material, da decisão dos actos administrativos em matéria tributária, de segundo ou de terceiro graus.
Se o que é pedido ao Tribunal é uma pronúncia sobre a legalidade do acto de liquidação, então o meio processual é a impugnação judicial, aplicando-se tal raciocínio à acção arbitral, por identidade de razões - cfr. a decisão proferida no processo arbitral n.º 832/2021-T, de 15-09- 2022.[8]
Com efeito, nos termos do regime estatuído nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, a determinação da competência material do Tribunal arbitral afere-se em função do objecto do processo.
Da leitura do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, resulta inequívoco pretender a Requerente a apreciação da legalidade das liquidações de imposto do selo impugnadas.
Assim, configurando a Requerente aqueles actos de liquidação como objecto do processo arbitral, é em relação a eles que deve ser aferida a competência do Tribunal.
Por abundância, diga-se, ainda, que constitui posição pacífica da jurisprudência tributária que a decisão de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa com fundamento na inexistência de erro imputável aos serviços para efeitos de aplicação do artigo 78.º da Lei Geral Tributária comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação - Acórdãos do STA, processos nrs. 01958/13,[9] 0129/18.9BEAVR,[10] 0608/13.4BEALM,[11] e decisões do CAAD, processos nrs. 167/2022-T,[12] 457/2022-T,[13] e 92/2021-T[14].
E assim sendo, tal pretensão tem cabimento na jurisdição arbitral tributária, pelo que este Tribunal se considera materialmente competente, assim improcedendo a excepção deduzida pela Requerida.
C.4.1.1 - 2.ª excepção invocada - Intempestividade do pedido arbitral:
A Requerida invoca a inadmissibilidade do pedido de constituição do tribunal arbitral, defendendo que aquele deverá ser rejeitado por intempestividade, dado que inexiste qualquer erro imputável aos serviços, uma vez que a AT não teve qualquer intervenção nas autoliquidações de imposto realizadas pela Requerente de acordo com o quadro legal vigente.
Antes de mais, sublinha o Tribunal que a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral constitui um pressuposto processual, cuja não verificação conduz à absolvição da instância - artigos 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2 e 577.º, todos do CPC, e 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA, ex vi o artigo 29.º, n.º 1, do RJAMT -, pelo que irá apreciar-se e decidir-se quanto a esta excepção suscitada pela Requerida.
É pacífico que a tempestividade da reclamação administrativa constitui condição necessária para a tempestividade da subsequente impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral - vejam-se, entre muitos, os seguintes arestos:
Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, proferido em 23-03-2017, no processo n.º 07644/14:
«Estando a reclamação graciosa fora de prazo à data em que foi apresentada, em consequência e independentemente da mesma ter sido ou não decidida, a impugnação judicial também será intempestiva».[15]
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 02-04-2009, no processo n.º 0125/09:
«Só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações impugnadas, pois a sua extemporaneidade da reclamação ainda que não consequencie a extemporaneidade da impugnação conduz à sua necessária improcedência, por se reagir, então, contra um caso decidido ou resolvido».[16]
E «só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações, pois a confirmar-se a intempestividade da reclamação tudo se passa como se esta não tivesse existido».[17]
Deste modo, a intempestividade do pedido de abertura do procedimento de revisão oficiosa, que precedeu o presente pedido de pronúncia arbitral, a verificar-se, implicaria a improcedência do pedido arbitral.
Contudo, no caso dos presentes autos, entende-se não se verificar a invocada excepção de intempestividade.
Seguir-se-á, nesta parte, o que, a propósito, se escreveu na Decisão arbitral proferida em 05-03-2024, processo n.º 491/2023-T.[18]
Ali se entendeu que:
Já o artigo 78.º, n.º 1, da LGT tem a seguinte redação: «A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».
Daqui resulta que a revisão do ato tributário prevista naquele n.º 1 constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05).
Neste sentido, tal como este Tribunal arbitral a compreende, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08.06.2022, processo 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.
E ainda:
Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24.03.2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12.02.2001, recurso n.º 26233, de 11.05.2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18.11.2015, recurso n.º 1509/13).
Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).
E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado - e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto - estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).
Assim, havendo – como se demonstrará claramente infra - erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT […].
Assim, tendo sido requerida a abertura de procedimento de revisão oficiosa em 20-07-2023 e respeitando as liquidações objecto daquele procedimento aos anos de 2019 - Junho a Dezembro -, 2020 e 2021 - Janeiro a Maio -, o pedido foi apresentado tempestivamente, isto é, antes de decorridos quatro anos desde a data da liquidação, que é o prazo que releva à luz do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em face da ocorrência de “erro imputável aos serviços”.
No que respeita à tempestividade do pedido de constituição do Tribunal arbitral, tendo a decisão final do procedimento de revisão oficiosa sido notificada ao particular em 14-09-2023 e tendo este apresentado o seu pedido arbitral em 13-12-2023, não há dúvidas de que este foi igualmente tempestivo.
Pelo que, pelas razões expostas, improcede a excepção relacionada com a intempestividade do pedido de revisão oficiosa.
Termos em que se julga improcedente a excepção de intempestividade, suscitada pela Requerida.
Em consequência, o Tribunal entrará de seguida na apreciação da matéria de fundo.
C.4.2 - Questão a decidir:
A questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se as comissões cobradas pela gestão e pela comercialização de unidades de participação dos Fundos geridos pela Requerente, devem ou não ser tributadas em sede de imposto do selo, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS, por tal tributação poder configurar violação da Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2008 (doravante Directiva 2008/7/CE ou, simplesmente, Directiva), que proíbe a tributação indirecta das reuniões de capital .
Esta questão foi analisada, em reenvio suscitado, no processo n.º 88/2021-T, tendo o TJUE por Acórdão, de 22 de Dezembro de 2022, proferido, no processo C-656/21, estabelecido a jurisprudência que se passa a reproduzir:
“Nestas condições, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O artigo 5.°, n.° 2, da Diretiva [2008/7] opõe-se a uma legislação nacional, como a verba 17.3.4 do Código do Imposto do Selo, que prevê a tributação em Imposto do Selo das comissões cobradas por bancos às entidades gestoras de fundos mobiliários abertos, por prestação de serviços a estas relativos à atividade dos bancos dirigida à concretização de novas subscrições de UP, isto é, dirigida a novas entradas de capitais para os fundos de investimento, consubstanciadas na subscrição de novas unidades de participação emitidas pelos fundos?
2) O artigo 5.°, n.° 2, da Diretiva [2008/7] opõe-se a uma legislação nacional que prevê a tributação em Imposto do Selo das comissões de gestão cobradas pelas entidades gestoras aos fundos mobiliários abertos, na medida em que essas comissões de gestão incluam o redébito das comissões cobradas por bancos, às entidades gestoras, pela atividade referida?»
“(…)
“22 A título preliminar, importa recordar que, segundo o seu artigo l.°, alínea a), a Diretiva 2008/7 regulamenta a aplicação de impostos indiretos sobre as entradas de capital nas sociedades de capitais. Entre esses impostos indiretos figuram o imposto do selo sobre os títulos e os outros impostos indiretos com características idênticas às do imposto do selo sobre os títulos.
23 O artigo 2.°, n.°2, da referida diretiva prevê, por outro lado, que qualquer sociedade, associação ou pessoa coletiva com fins lucrativos que não pertença às categorias de sociedades de capitais mencionadas no n.° 1 do mesmo artigo é equiparada a uma sociedade de capitais.
24 No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o imposto em causa no processo principal constitui um imposto do selo cobrado sobre a remuneração dos bancos a título dos serviços de comercialização de novas subscrições de participações de fundos comuns de investimento. Daqui resulta igualmente que, em direito português, o conceito de «fundo de investimento» visa uma massa de património, sem personalidade jurídica, que pertence aos participantes segundo o regime geral de comunhão.
25 Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que um agrupamento de pessoas sem personalidade jurídica, cujos membros entram com capitais para um património separado para atingir um fim lucrativo, deve ser considerado uma «associação com fins lucrativos» na aceção do artigo 2.°, n.° 2, da Diretiva 2008/7, pelo que, em aplicação desta última disposição, é equiparado a uma sociedade de capitais para efeitos desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 12 de novembro de 1987, Amro Aandelen Fonds, 112/86, EU:C:1987:488, n.° 13).
26 Decorre destas considerações que fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, devem ser equiparados a sociedades de capitais e, por conseguinte, são abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7.
27 Feitas estas observações preliminares, há que recordar que o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 proíbe os Estados-Membros de sujeitarem a qualquer forma de imposto indireto a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu.
28 Todavia, tendo em conta o objetivo prosseguido por esta diretiva, o artigo 5.° da mesma deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil. Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica-se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C-573/16, EU:C:2017:772, n.os 31 e 32 e jurisprudência referida).
Assim, o Tribunal de Justiça declarou que, uma vez que uma emissão de títulos só tem sentido a partir do momento em que esses mesmos títulos são adquiridos, uma taxa sobre a primeira aquisição dc títulos de uma nova emissão tributaria, na realidade, a própria emissão dos títulos, na medida em que ela faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais. O objetivo de preservar o efeito útil do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 implica assim que a «emissão», na aceção desta disposição, inclua a primeira aquisição dos títulos efetuada no quadro da sua emissão (v., por analogia, Acórdão de 15 de julho de 2004, Comissão/Bélgica, C-415/02, EU:C:2004:450, n.os 32 e 33).
30 Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça considerou que a transmissão de titularidade, apenas para efeitos de uma operação de admissão dessas ações na Bolsa e sem consequências sobre a sua propriedade efetiva, deve ser vista apenas como uma operação acessória, integrada nessa operação de admissão, a qual, em conformidade com o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, não pode ser sujeita a qualquer imposição, seja de que forma for (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C-573/16, EU:C:2017:772, n.os 35 e 36).
31 Ora, uma vez que serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais.
32 Com efeito, sob reserva de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses fundos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65, por força do seu artigo l.°, n.os 1 a 3. A este respeito, o pagamento do preço correspondente às participações adquiridas, único objetivo de uma operação de comercialização, está ligado à substância da reunião de capitais e é, como resulta do artigo 87.° da Diretiva 2009/65, uma condição que deve ser preenchida para que as participações de fundos em causa sejam emitidas.
33 Daqui resulta que o facto de dar a conhecer junto do público a existência de instrumentos de investimento de modo a promover a subscrição de participações de fundos comuns de investimento constitui uma diligência comercial necessária e que. a esse título, deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e de colocação em circulação de participações nos referidos fundos.
34 Além disso, uma vez que a aplicação do artigo 5.°, n.°2, alínea a), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de comercialização com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de comercialização a terceiros em vez de as efetuar diretamente.
35 A este respeito, há que recordar que, por um lado, esta disposição não faz depender a obrigação de os Estados-Membros isentarem as operações de reunião de capitais de nenhuma condição relativa à qualidade da entidade encarregada de realizar essas operações. Por outro lado, a existência ou não de uma obrigação legal de contratar os serviços de um terceiro não é uma condição pertinente quando se trata de determinar se uma operação deve ser considerada, parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C-573/16, EU:C:2017:772, n.° 37).
36 Daqui resulta que serviços de comercialização como os que estão em causa no processo principal fazem parte integrante de uma operação de reunião de capitais, pelo que o facto de os onerar com um imposto do selo está abrangido pela proibição prevista no artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7.
37 Por outro lado, há que observar que o efeito útil desta disposição ficaria comprometido se, apesar de impedir a incidência de um imposto do selo sobre as remunerações auferidas pelos bancos a título de serviços de comercialização de novas participações de fundos comuns de investimento junto da sociedade de gestão destes, fosse permitido que esse imposto do selo incidisse sobre as mesmas remunerações quando estas são redebitadas pela referida sociedade de gestão aos fundos em causa.
38 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo, por um lado, sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas e, por outro, sobre os montantes que essa sociedade de gestão recebe dos fundos comuns de investimento na medida em que esses montantes incluam a remuneração que a referida sociedade de gestão pagou às instituições financeiras por esses serviços de comercialização.
Termos em que, transpondo para o caso em apreço, com as devidas adaptações, este Tribunal, dando cumprimento à jurisprudência do TJUE, irá dar provimento ao pedido, relativamente às liquidações de Imposto do Selo que incidiram sobre comissões de comercialização, referentes ao ano de 2020 e ao período compreendido entre 01-01-2021 e 31-05-2021.
Contudo, já no que respeita às liquidações de Imposto do Selo que incidiram sobre comissões de gestão e de comercialização, referentes ao período compreendido entre 01-06-2019 e 31-12-2019, terá de ser dada solução diversa.
Com efeito, tal como consta dos factos fixados:
No ano de 2019, no período compreendido entre 1 de Junho e 31 de Dezembro daquele ano, foi liquidado aos fundos de investimento Imposto do Selo sobre as comissões de comercialização e de gestão de unidades de participação as quais ascenderam ao valor de € 19.832.914,60 - Documento junto aos autos em 26-04-2024, quadros II e VI.
Ou seja, relativamente a este ano de 2019, o valor do imposto do selo entregue nos cofres do Estado compreendeu, não apenas comissões de comercialização, mas também comissões de gestão.
Ora, enquanto no processo decidido pelo TJUE, o que estava em causa era, apenas, o Imposto do Selo incidente sobre a parcela das comissões de comercialização cobradas pela entidade gestora aos fundos e referentes à repercussão do imposto pago pela entidade gestora aos bancos, no presente processo a Requerente pede a anulação da liquidação do imposto liquidado sobre a totalidade das comissões (comissões de comercialização E de gestão), referentes ao período compreendido entre 01-06-2019 e 31-12-2019.
É entendimento deste Tribunal que as denominadas “comissões de gestão” constituem uma remuneração por toda a actividade de gestão exercida pelas SGOIC, sendo a comercialização das unidades de participação dos fundos apenas uma parte dessa actividade.
Por conseguinte, ao incidir sobre a totalidade das “comissões de gestão” de que apenas numa parte, indeterminável, corresponde à comercialização das unidades de participação nos fundos, o imposto do selo estaria a incidir apenas sobre uma parte, igualmente indeterminável, da operação de comercialização de tais unidades de participação.
Não é, assim, possível afirmar que as “comissões de gestão”, no seu todo, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 7/2008, [devendo] ser consideradas parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais, como se escreveu no acórdão do TJUE, de 22-12-2022 - processo C-656/21, no parágrafo 31 do acórdão. [19]
Por outro lado, não distinguindo a Requerente a parcela da “comissão de gestão” da parcela da comissão que se refere à actividade de comercialização das unidades de participação,[20] também ao Tribunal Arbitral não é possível efectuar uma tal distinção.
Pelo que haverá que concluir que o Imposto do Selo liquidado, globalmente, sobre “comissões de gestão e de comercialização” não se enquadra na al. a) do n.º 2 do art.º 5.º da Directiva 7/2008, e não é incompatível com ela.
Assim, o Tribunal não irá dar provimento ao pedido, relativamente às liquidações de Imposto do Selo que incidiram sobre comissões de gestão e de comercialização, referentes ao período compreendido entre 01-06-2019 e 31-12-2019.
C.4.3 - Juros indemnizatórios:
No seu pedido, a Requerente solicita a restituição do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido - cfr. art. 43.º, n.º 1, da LGT).
Como ficou dito na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 296/2019-T,[21] “É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços”.
Nesse sentido, vejam-se, por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Acórdão do STA de 30 de maio de 2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Acórdão do STA de 10 de abril de 2013, proc. 1215/12).”
Seguindo o entendimento que resulta do douto Acórdão do STA, de 03-06-2020, processo n.º 018/10.5BELRS 095/18 [22] que, remete, entre outros, para o acórdão do STA, de 12-12-2001, rec. n.º 26.233:[23]
Havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte»
E, como decorre da Decisão arbitral proferida em 05-03-2024, processo n.º 491/2023-T:[24]
E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição - não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado - e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto - estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).
Assim, no caso dos autos, determina-se, em resultado do que atrás foi dito, ocorrer erro imputável aos serviços - o qual conduz à anulação parcial dos actos tributários em causa e à consequente devolução do montante pago pela Requerente, nos termos do disposto no artº 173.º, n.º 1, do CPTA, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT -, concluindo-se, sem necessidade de mais considerações, pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios, nos termos legais, no que à parte do pedido de pronúncia arbitral que procederá respeita.
D - DECISÃO:
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em :
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Julgar improcedentes as excepções invocadas pela Requerida;
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Julgar procedente o pedido de anulação e, em consequência, anular as impugnadas liquidações de Imposto do Selo, incidentes sobre as “comissões de comercialização” referentes ao ano de 2020 e ao período compreendido entre 01-01-2021 e 31-05-2021., nos valores, respectivamente, de € 659.857,05 e € 327.187,49.
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Julgar procedente o pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, relativamente ao imposto anulado e referido em II.
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Julgar improcedente o pedido de anulação, e manter na ordem jurídica, as impugnadas liquidações de Imposto do Selo, incidente sobre as “comissões de gestão e de comercialização”, referentes ao período compreendido entre 01-06-2019 e 31-12-2019, no valor de € 793.316,58.
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Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, relativamente ao imposto mantido na ordem jurídica e referido em IV.
E - VALOR DA CAUSA:
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.780.361,12, correspondente às liquidações impugnadas, objecto do pedido de pronúncia arbitral.
O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 1.780.361,12.
F - CUSTAS:
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 23.562,00, repartidas entre Requerente e Requerida na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
Lisboa, em 18 de Outubro de 2024.
Os Árbitros,
( Fernanda Maçãs - Presidente), com a seguinte declaração – voto a improcedência das excepções, incluindo a referente à alegada intempestividade do pedido, por se tratar de liquidação não efectuada pelo SP, mas sim por um terceiro.
(António Pragal Colaço)
(Martins Alfaro)
[1] Em concreto: 793 316,58 €, referentes a período compreendido entre junho e dezembro de 2019 e 659 857,05 €, referentes a 2020.
[2] A partir do ponto n.º 61 daquele requerimento, com o subtítulo «Defesa por impugnação».
[20] Veja-se que a própria Requerente fala, neste particular, «em comissões de gestão cobradas aos fundos de investimento geridos pela Requerente, na medida em que incorporam as comissões de comercialização» - cfr. o pedido constante da p.i.