Sumário:
I – O regime previsto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT não tem aplicação nos casos em que o Tribunal Arbitral apenas tomou conhecimento da revogação parcial dos atos de liquidação impugnados após a data da sua constituição;
II – Atenta a revogação de parte das liquidações sindicadas e da desistência do pedido relativamente a estas, torna-se inútil o prosseguimento da lide no que respeita à pretensão anulatória daqueles atos, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT;
III – Os fundos que não se qualifiquem como “fundos comuns de investimento” abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Concelho, de 13 de julho de 2009, não ficam, de acordo com a jurisprudência que emana do Acórdão C-656/21 do TJUE, protegidas pela Diretiva n.º 2008/7/CE, de 12 de fevereiro de 2008 e, com efeito, as liquidações de Imposto do Selo que incidiram sobre as comissões de comercialização das suas unidades de participação não violam a alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º da referida Diretiva.
DECISÃO ARBITRAL
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Relatório
A..., S.A., com sede na ..., n.º ..., freguesia ..., concelho de Lisboa, ...-... Lisboa, com o número único de matrícula e identificação fiscal ...(“A...”), e os seguintes fundos de investimento abertos por aquela geridos:
- B...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações, com o número de identificação fiscal ...;
- C...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações, com o número de identificação fiscal ...;
- D...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal 720003180;
- E...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal 720003270;
- F...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal...;
- G...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
- H...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
- I...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal...;
- J...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal 7... (anteriormente ...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações);
- K...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações, com o número de identificação fiscal...;
- L...- Fundo de Investimento Alternativo Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
-M...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal...;
-N...– Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal...;
- O...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
- P...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal ... (anteriormente ... - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto);
- Q...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal ... (anteriormente...);
- R...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal ... (anteriormente – R...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto);
- S...- Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal...;
- T...- Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal...;
- U...- Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal...;
- V..., com o número de identificação fiscal ...;
-W..., com o número de identificação fiscal ...;
- X...- Fundo de Investimento Alternativo em Valores Mobiliários, com o número de identificação fiscal ...;
-Y..., com o número de identificação fiscal ...;
(doravante conjuntamente designados por “Requerentes”), vieram, nos termos e para efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer pedido de pronúncia arbitral contra o indeferimento da reclamação graciosa notificada aos Requerentes em 25-09-2023 e, consequentemente, os atos de liquidação de Imposto do Selo repercutidos nos Requerentes, relativos a operações financeiras de comercialização de unidades de participação (“UP”) nos fundos mobiliários e imobiliários abertos realizadas pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. (“CGD”)
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
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Constituição do Tribunal Arbitral
O pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).
Pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi comunicada a constituição do presente tribunal arbitral coletivo em 14-02-2024, nos termos da alínea c) do número 1, do artigo 11.º do RJAT.
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História Processual
Os Requerentes pretendem, em síntese, que seja declarada a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, bem como dos atos de liquidação de Imposto do Selo identificados no pedido de pronúncia arbitral, com a sua consequente anulação, aos quais corresponde um montante de imposto no valor de € 2.043.243,61.
Como fundamento da sua pretensão, os Requerentes alegam que as liquidações de Imposto do Selo impugnadas, incidentes sobre a atividade financeira de comercialização de novas UP em fundos, são ilegais, porquanto assentam em lei nacional violadora do direito comunitário, por ser desconformes com a alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva n.º 2008/7/CE, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais (“Diretiva 2008/7/CE”), conforme resulta da jurisprudência comunitária, designadamente do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), proferido no âmbito do processo n.º C-656/2021, de 22-12-2022, e bem assim da jurisprudência do CAAD.
Os Requerentes juntaram lista dos documentos juntos, procuração forense, comprovativo do pagamento da taxa de arbitragem inicial e 11 (onze) documentos.
Em 17-01-2024, a Requerida notificou o mandatário dos Requerentes que foram parcialmente revogados os atos de liquidação de Imposto do Selo impugnados no montante de € 1.876.391,62, mantendo as restantes autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, cujo valor ascende a € 166.851,99.
Foi proferido despacho arbitral tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
A Requerida apresentou resposta, tendo alegado que, no caso sub judice, que a verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), que prevê a sujeição a Imposto do Selo de comissões e contraprestações cobradas por serviços financeiros, é ilegal quando aplicável à comercialização das suas UP, por incompatibilidade com a alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE. Contudo, a Requerida ressalva que apenas uma parte dos fundos Requerentes geridos pela A... se encontram abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Concelho, de 13 de julho de 2009 (“Diretiva 2009/65/CE”), que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (“OICVM”). Assim, a Requerida concluiu que apenas o Imposto do Selo liquidado pela CGD aos fundos que se qualificam como “fundos comuns de investimento” abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, tem aplicação a referida jurisprudência comunitária. Assim, a Requerida manteve as restantes autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, cujo valor ascende a € 166.851,99. Nestes termos, a Requerida entende que o pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente deve ser julgado improcedente por não provado (na parte não revogada), no montante global de € 166.851,99 e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.
Na sequência da resposta apresentada pela Requerida, o Tribunal Arbitral tomou, ainda, conhecimento da anulação de parte das autoliquidações de Imposto do Selo (i.e., após a constituição do presente Tribunal Arbitral), tendo notificado os Requerentes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo, sobre a inutilidade / impossibilidade superveniente da lide na parte revogada pela Requerida.
Os Requerentes comunicaram a este Tribunal a desistência do pedido quanto aos atos de liquidação revogados e montante aí implicado de € 1.876.391,62, dada a inutilidade superveniente da instância quanto a esses atos e respetivo montante de imposto, mantendo a impugnação sobre os restantes atos impugnados e não revogados pela Requerida.
As partes foram notificadas do despacho arbitral, dispensando a reunião do Tribunal com as partes, nos termos do artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações finais escritas.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
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Matéria de Facto
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Matéria de Facto Provada
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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A A... é uma sociedade gestora de fundos de investimento, isto é, uma Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo (“SGOIC”);
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A A... gere diversos fundos de investimento mobiliário e imobiliário abertos cujo património é composto de ações, títulos de dívida e similares e imóveis, e cujas UP (representativas destes patrimónios que são os fundos) são subscritas e comercializadas aos balcões das redes de diversas instituições financeiras;
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A A... recorre à CGD para comercializar ao público as UP dos fundos de investimento por si geridos;
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Nos anos de 2021 e 2022 foram comercializadas, pela CGD, ... de diversos fundos geridos pela A...;
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Em 2021 e 2022, a CGD faturou aos fundos Requerentes a comercialização das suas próprias UP, liquidando o Imposto do Selo, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS, conforme detalhe infra:
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Matéria de Facto Não Provada
Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.
Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.
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Questão a decidir
A questão que cabe apreciar no âmbito do presente processo, prende-se com a legalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, bem como dos atos de liquidação de Imposto do Selo identificados no pedido de pronúncia arbitral e repercutidos nos Requerentes, e, muito concretamente, decidir se a tributação, em sede de Imposto do Selo, sobre as comissões cobradas pela CGD aos fundos Requerentes ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS, pela comercialização das suas UP, é violadora da Diretiva 2008/7/CE.
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Matéria de direito
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Da inutilidade superveniente da lide
A Requerida notificou o mandatário dos Requerentes, ao abrigo do artigo 13.º do RJAT, da revogação parcial dos atos de liquidação de Imposto do Selo impugnados no montante de € 1.876.391,62, conforme despacho de 16-01-2024, da Subdiretora-Geral da Área de Gestão dos Impostos sobre o Património, reconhecendo o direito dos Requerentes a juros indemnizatórios sobre o referido valor, contados desde a data do indeferimento da reclamação graciosa até ao seu respetivo reembolso, mantendo na ordem jurídica as restantes autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, cujo valor ascende a € 166.851,99.
Contudo, no caso, apesar de a Requerida ter revogado parcialmente os atos sob impugnação, apenas com a resposta apresentada pela Requerida (i.e., após a constituição do presente Tribunal Arbitral) foi dado conhecimento a este Tribunal dessa revogação. Neste contexto, os Requerentes foram notificados pelo Tribunal Arbitral para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo, sobre a inutilidade/impossibilidade superveniente da lide nessa parte.
Os Requerentes vieram comunicar a este Tribunal da desistência do pedido quanto aos atos de liquidação revogados e montante aí implicado de € 1.876.391,62, dada a inutilidade superveniente da instância quanto a esses atos e respetivo montante de imposto, mantendo a impugnação sobre os restantes atos impugnados e não revogados pela Requerida no valor de € 166.851,99.
Assim sendo, resulta claro que o regime previsto no artigo 13.º do RJAT não tem aqui aplicação, porquanto o presente Tribunal Arbitral apenas tomou conhecimento da revogação parcial dos atos de liquidação impugnados após a data da sua constituição.
Atenta a revogação de parte das liquidações de Imposto do Selo sindicadas, tornava-se inútil o prosseguimento da presente lide no que respeitava à pretensão anulatória daqueles atos, porquanto os presentes autos perderam parte do seu objeto. Como se escreveu na decisão do processo n.º 207/2021-T,
“A respeito da inutilidade superveniente da lide pronunciou-se já o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão de 30 de Julho de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 0875/14, no qual referiu que “A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”.
(…)
o acto tributário impugnado pelo Requerente foi revogado pela AT, o que implica a inutilidade e impossibilidade deste Tribunal declarar a ilegalidade e determinar a consequente anulação de um acto que já se encontra suprimido da ordem jurídica. Com a referida revogação o Requerente atingiu a totalidade dos efeitos pretendidos com o presente pedido de pronúncia arbitral, já que a AT reconheceu no acto de revogação anulatória o direito aos juros indemnizatórios que aquele havia peticionado.”
A inutilidade superveniente da lide está, assim, incontornavelmente demonstrada nos presentes autos, relativamente aos atos de liquidação revogados pela Requerida no montante total de € 1.876.391,62, mantendo-se a instância, relativamente aos restantes atos impugnados, sobre os quais cabe apreciar e decidir.
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Da legalidade dos atos tributários sindicados
A A... é uma SGOIC que gere diversos fundos de investimento mobiliário e imobiliário abertos cujo património é composto de ações, títulos de dívida e similares e imóveis. As UP representativas dos patrimónios que são os fundos são subscritas nos balcões da CGD.
Em contrapartida, a CGD fatura aos fundos Requerentes comissões de comercialização das respetivas UP, liquidando Imposto do Selo sobre as referidas comissões ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS.
Contudo, os Requerentes alegam que as referidas liquidações de Imposto do Selo, incidentes sobre a atividade financeira de comercialização de novas UP em fundos, são ilegais, porquanto assentam em lei nacional violadora do direito comunitário, por ser desconformes com a alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, conforme resulta da jurisprudência comunitária, designadamente do acórdão do TJUE, proferido no âmbito do processo n.º C-656/2021, de 22-12-2022, e bem assim da jurisprudência do CAAD.
Por sua vez, entende a Requerida, quanto aos atos de liquidação de Imposto do Selo não revogados e que subsistem na ordem jurídica, que apenas uma parte dos fundos Requerentes geridos pela A... se encontram abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, pelo que, apenas o Imposto do Selo liquidado pela CGD aos fundos Requerentes que se qualificam como “fundos comuns de investimento” abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, tem aplicação a referida jurisprudência comunitária.
Vejamos, então.
No que concerne à legislação interna, o artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo estabelece que «O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.»
Por seu turno, a verba 17.3.4 da TGIS prevê o seguinte: «17. Operações financeiras:
(…)
17.3 Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras - sobre o valor cobrado:
(…)
17.3.4 - Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões - 4 %.»
No plano do direito secundário da União Europeia (“UE”), o artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, estabelece o seguinte:
«Artigo 5.º
Operações não sujeitas a impostos indirectos
(...)
1. Os Estados-Membros não devem sujeitar as sociedades de capitais a qualquer forma de imposto indirecto sobre:
a) Entradas de capital;
b) Empréstimos ou prestações de serviços, efectuadas no âmbito das entradas de capital;
c) Registo ou qualquer outra formalidade prévia ao exercício de uma actividade a que uma sociedade de capitais esteja sujeita em consequência da sua forma jurídica;
d) Alterações do acto constitutivo ou dos estatutos de uma sociedade de capitais, designadamente as seguintes:
i) a transformação de uma sociedade de capitais numa sociedade de capitais de tipo diferente,
ii) a transferência de um Estado-Membro para outro Estado-Membro da sede de direcção efectiva ou da sede estatutária de uma sociedade de capitais,
iii) a alteração do objecto social de uma sociedade de capitais,
iv) a extensão do período de duração de uma sociedade de capitais;
e) As operações de reestruturação referidas no artigo 4.º
2. Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indirecto:
a) A criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;
b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.»
Ora, as liquidações impugnadas têm subjacente a aplicação da verba 17.3.4. da TGIS, interpretada como prevendo, por um lado, a incidência de Imposto do Selo sobre as comissões cobradas por instituições bancárias a fundos de investimento mobiliário e imobiliário abertos por prestação de serviços a estes de comercialização de UP.
Conforme decidido no acórdão do TJUE, proferido no âmbito do processo n.º C-656/2021, de 22-12-2022, os «fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, devem ser equiparados a sociedades de capitais e, por conseguinte, são abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7».
O artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE, proíbe aos Estados-Membros sujeitar a qualquer forma de imposto indireto «a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu».
Interpretando esta proibição, o TJUE entendeu, em suma, que:
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«o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 proíbe os Estados-Membros de sujeitarem a qualquer forma de imposto indireto a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu» (n.º 27);
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«tendo em conta o objetivo prosseguido por esta diretiva, o artigo 5.º da mesma deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil. Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica-se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais» (n.º 28);
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«uma vez que serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais»;
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«uma vez que a aplicação do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de comercialização com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de comercialização a terceiros cm vez de as efetuar diretamente» (n.º 34);
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«serviços de comercialização como os que estão em causa no processo principal fazem parte integrante de uma operação de reunião de capitais, pelo que o facto de os onerar com um imposto do selo está abrangido pela proibição prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7» (n.º 36);
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«o efeito útil desta disposição ficaria comprometido se, apesar de impedir a incidência de um imposto do selo sobre as remunerações auferidas pelos bancos a título de serviços de comercialização de novas participações de fundos comuns de investimento junto da sociedade de gestão destes, fosse permitido que esse imposto do selo incidisse sobre as mesmas remunerações quando estas são redebitadas pela referida sociedade de gestão aos fundos em causa».
O TJUE concluiu, assim, no aludido acórdão que «a incidência de um imposto do selo, por um lado, sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas e, por outro, sobre os montantes que essa sociedade de gestão recebe dos fundos comuns de investimento na medida em que esses montantes incluam a remuneração que a referida sociedade de gestão pagou às instituições financeiras por esses serviços de comercialização» é incompatível com o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE.
Em suma, as liquidações de Imposto do Selo sobre as designadas comissões de comercialização, cobradas pelos intermediários financeiros aos fundos de investimento mobiliários abertos é contrário ao direito da UE, em concreto, ao artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE.
Assim, resulta da referida decisão de reenvio que o imposto em causa no processo principal constitui um Imposto do Selo cobrado sobre a remuneração dos bancos a título dos serviços de comercialização de novas subscrições de participações de fundos comuns de investimento, é contrário ao Direito da UE, em concreto, ao artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE.
Contudo, defende a Requerida que apenas o Imposto do Selo liquidado pela CGD aos fundos da Requerente que se qualificam como “fundos comuns de investimento”, abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, tem aplicação a referida jurisprudência comunitária.
A este propósito, a Requerida alega na sua resposta que «(…) com base nos documentos (disponíveis para consulta do público em geral nas páginas da internet da CGD e da CMVM), nomeadamente DIF, DIOIA, Regulamentos de Gestão e Prospetos, verificamos que existe um grupo de FUNDOS que não se enquadram na Diretiva 2009/65/CE, qualificando-se, ao invés, como organismos de investimento alternativo (OIA, nos termos do RGOIC (presentemente revogado pelo RGA, aprovado pelo DL n.º 27/2023, de 28 de abril), ou FIA ́s nos termos da Diretiva 2011/61/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011).»
Conclui a Requerida que «Estão, concretamente, nesta situação os seguintes FUNDOS:
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Fundo Especial de Investimento Aberto U..., NIPC ... – Imposto do Selo: 7 632,97 €;
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Fundo de Investimento Imobiliário Aberto Z..., NIPC...– Imposto do Selo: 143 131,10 €;
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V..., NIPC ... – Imposto do Selo: 2 757,24 €;
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W...- Fundo de Investimento Alternativo Aberto em Valores Mobiliários, NIPC ... – Imposto do Selo: 5 873,28 €;
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Fundo de Investimento Alternativo em Valores Mobiliários X..., NIPC ... – Imposto do Selo: 5 439,72 €;
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Fundo Especial de Investimento AA..., NIPC ... – Imposto do Selo: 2 017,68 €;»
Ora, efetivamente, o artigo 1.º da Diretiva 2008/7/CE prevê que «A presente directiva regula a aplicação de impostos indirectos sobre:
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Entradas de capital em sociedades de capitais;
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Operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais;
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Emissão de determinados títulos e obrigações.»
O artigo 2.º da Diretiva 2008/7/CE estabelece o seguinte:
«1. Para efeitos da presente directiva, entende-se por sociedade de capitais:
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Qualquer sociedade que assuma uma das formas enunciadas no anexo I;
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Qualquer sociedade, associação ou pessoa colectiva cujas partes representativas do capital social ou do activo sejam susceptíveis de ser negociadas em bolsa;
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Qualquer sociedade, associação ou pessoa colectiva com fins lucrativos, cujos membros tenham o direito de ceder sem autorização prévia as respectivas partes sociais a terceiros, só sendo responsáveis pelas dívidas da sociedade, associação ou pessoa colectiva até ao limite da respectiva participação.
2. Para efeitos da presente directiva, é equiparada às sociedades de capitais qualquer outra sociedade, associação ou pessoa colectiva com fins lucrativos.»
Ou seja, apenas estão abrangidas pelas disposições da Diretiva 2008/7/CE, os organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (“OICVM”) na aceção do artigo 1.º, n.º 1 a 3, da Diretiva 2009/65/CE, o qual prevê o seguinte:
«1. A presente directiva aplica-se aos organismos de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM) estabelecidos no território dos Estados-Membros.
2. Para efeitos do disposto na presente directiva, e sem prejuízo do artigo 3.º, entendem-se por «OICVM» os organismos:
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Cujo objecto exclusivo é o investimento colectivo dos capitais obtidos junto do público em valores mobiliários ou noutros activos financeiros líquidos referidos no n.º 1 do artigo 50.º e cujo funcionamento seja sujeito ao princípio da repartição de riscos; e
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Cujas unidades de participação sejam, a pedido dos seus detentores, readquiridas ou reembolsadas, directa ou indirectamente, a cargo dos activos destes organismos. É equiparado a estas reaquisições ou reembolsos o facto de um OICVM agir de modo a que o valor das suas unidades de participação na bolsa não se afaste sensivelmente do seu valor patrimonial líquido.
Os Estados-Membros podem autorizar que os OICVM sejam constituídos por vários compartimentos de investimento.
3. Os organismos a que se refere o n.º 2 podem, por força da respectiva lei nacional, assumir a forma contratual (fundos comuns de investimento geridos por uma sociedade gestora) ou de trust (unit trust) ou a forma estatutária (sociedade de investimento).
Para efeitos da presente directiva:
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A expressão «fundos comuns de investimento» abrange igualmente os unit trusts;
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As «unidades de participação» dos OICVM abrangem também as respectivas acções.»
Este entendimento é confirmado pelo acórdão do TJUE, proferido no âmbito do processo n.º C-656/2021, de 22-12-2022, quando aí se refere que «Com efeito, sob reserva de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses fundos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65, por força do seu artigo 1.°, n.os 1 a 3. A este respeito, o pagamento do preço correspondente às participações adquiridas, único objetivo de uma operação de comercialização, está ligado à substância da reunião de capitais e é, como resulta do artigo 87.° da Diretiva 2009/65, uma condição que deve ser preenchida para que as participações de fundos em causa sejam emitidas.»
De acordo com o respetivo Documento de Informação Fundamental (“DIF”) disponibilizado online pela A..., o W...- Fundo de Investimento Alternativo Aberto em Valores Mobiliários, o Fundo de Investimento Alternativo em Valores Mobiliários X..., o Fundo Especial de Investimento Aberto U..., o Fundo de Investimento Imobiliário Aberto Z...., o Fundo V... e o Fundo Especial de Investimento Aberto AA... foram constituídos sob a forma de Organismos de Investimento Alternativos (“OIA”), encontrando-se, por isso, fora do conceito de “fundos comuns de investimento” abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE.
Por conseguinte, não tendo os fundos identificados supra por «objeto por exclusivo o investimento colectivo dos capitais obtidos junto do público em valores mobiliários ou noutros activos financeiros líquidos referidos no n.º 1 do artigo 50.º e cujo funcionamento seja sujeito ao princípio da repartição de riscos», não poderão qualificar-se como “fundo comum de investimento” abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65/CE, uma vez que, como estipula a alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva 2009/65/CE, um dos requisitos cumulativos que tem de estar preenchido para que um OIC possa ser qualificado como OICVM é que o seu objeto exclusivo seja o investimento coletivo com capitais obtidos junto do público em geral, isto é, junto de todo e qualquer o tipo de investidores (não profissionais, profissionais e contrapartes elegíveis), o que não se verifica no caso em apreço.
Em face do exposto, entende este Tribunal que assiste razão à Requerida quando afirma que os fundos identificados supra não se qualificam como “fundos comuns de Investimento” abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/CE/65, não ficando, por isso, de acordo com a jurisprudência que emana do Acórdão do TJUE C-656/21, as liquidações de Imposto do Selo que incidiram sobre as comissões de comercialização das suas UP protegidas pela aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, devendo manter-se na ordem jurídica as autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, relativamente aos aludidos fundos, cujo valor ascende a € 166.851,99.
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Dos juros indemnizatórios
Os Requerentes pedem, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde 06-09-2023 até à data do seu integral reembolso.
Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, na parte aqui aplicável, «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
No caso em apreço, concluiu-se, nos termos acima expostos, que os atos de autoliquidação de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, cujo valor ascende a € 166.851,99, não padecem dos vícios de violação de lei que lhe são imputados no pedido de pronúncia arbitral.
Assim, improcedendo o pedido de declaração da respetiva ilegalidade, necessariamente improcede o pedido de juros indemnizatórios, que é suscitado como consequência das ilegalidades invocadas.
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Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:
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Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral na parte subsistente e, em consequência, manter as autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, cujo valor ascende a € 166.851,99, nos termos acima expostos;
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Julgar improcedente o pedido de restituição do Imposto do Selo pago pelo Requerentes;
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Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
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Condenar a Requerida nas custas processuais no valor de € 24.448,04, relativamente às autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e revogadas pela Requerida;
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Condenar os Requerentes nas custas processuais no valor de € 2.173,96, relativamente às autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida.
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Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 2.043.243,61, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
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Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 26.622,00 de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, ficando o montante de € 24.448,04, relativamente às autoliquidações de Imposto do Selo revogadas pela Requerida, a cargo desta última, calculado em função da respetiva responsabilidade que se fixa em 91,83%, por ter sido a Requerida que deu causa à presente ação e apenas ter revogado e comunicado a anulação do ato após a constituição do tribunal arbitral, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT, e o valor remanescente de € 2.173,96, relativamente às autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas pelos Requerentes e não revogadas pela Requerida, a cargo dos Requerentes, calculado em função da respetiva responsabilidade que se fixa em 8,17%.
Notifique-se.
Lisboa, 7 de outubro de 2024
O Tribunal Arbitral Coletivo,
Victor Calvete - Árbitro Presidente
(com duas declarações: a de que, admitindo que as obrigações formais são, em geral, ad probationem e que, portanto, podem ser ultrapassadas quando as situações de facto estejam perfeitamente determinadas, admitiria a correcção do valor da demanda decorrente da revogação parcial das liquidações, não obstante a falta de comunicação prevista no artigo 13.º do RJAT; e a de que, subsequentemente à apresentação do projecto de decisão, a que aderi, me surgiram dúvidas que, porém, não pude ainda traduzir em eventual alteração ao entendimento que assumi).
José Coutinho Pires – Árbitro Adjunto
Sérgio Santos Pereira – Árbitro Adjunto (Relator)