Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 385/2024-T
Data da decisão: 2024-10-02  IMT  
Valor do pedido: € 195.094,77
Tema: IMT. Isenção. RFAI. Acto constitutivo de direitos
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Decisão Arbitral

 

 

           Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. José Nunes Barata e Dr. Jorge Belchior de Campos Laires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 28-05-2024, acordam no seguinte:

 

          

           1. Relatório

 

A..., UNIPESSOAL LDA., NIPC ..., com domicílio fiscal na sua sede na ..., ..., ..., na freguesia de ..., concelho de ... (doravante designada como “Requerente”) veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração  de nulidade do ato de liquidação de imposto, IMT – Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis – liquidação ofício n.º ... de 11.01.2024, e bem assim, dos juros compensatórios, tudo no valor global de € 195.094,77.

A Requerente pede ainda indemnização pela garantia prestada.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 20-03-2024.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 10-05-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 28-05-2024.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Em 17-09-2024, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que foi produzida prova testemunhal e acordado que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

A Requerente apresentou alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e o Tribunal é competente.

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. Em 1 de Março de 2018, a Requerente, A..., Unipessoal, Lda. procedeu à aquisição de um prédio urbano, composto por nave fabril, armazém e escritório, com logradouro, com uma área de superfície coberta de 9.382 m2 e um logradouro de 25.7488 m2, na..., ..., na freguesia de ..., concelho de ..., com a inscrição matricial urbana artigo n.º..., prédio esse descrito sob o número .../... na Conservatória do Registo Predial de ..., tendo essa compra e venda sido efetivada através dos serviços “Casa Pronta” junto da Conservatória do Registo Predial e Comercial de Ponte de Lima (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. Nos finais do ano de 2016, o gerente da Requerente, B..., no âmbito do processo de consolidação e crescimento da empresa, para fazer face às suas necessidades e aos interesses dos seus parceiros iniciou negociações com vista à aquisição da propriedade (depoimento da testemunha C...);
  3. O prédio está situado numa zona industrial e estava devoluto e degradado (depoimento da testemunha D...);
  4. A Câmara Municipal de ... incentiva o aproveitamento de prédios devolutos (depoimento da testemunha D...);
  5. Na sequência de reuniões do gerente da Requerente com a Câmara Municipal de ..., foi formalizado pela Requerente pedido de isenção de IMT relativo à aquisição do prédio referido (depoimento das testemunhas D... e C...);
  6.  Em 5 de Janeiro de 2017, a Câmara Municipal de ... deliberou no sentido de atribuir o benefício de isenção de IMT – Imposto Municipal sobre Transações Onerosas de Imóveis – à A..., Unipessoal Lda., nos termos do artigo 23-º A do Código Fiscal do Investimento e solicitar à Assembleia Municipal de ... a aprovação da concessão à Requerente do benefício fiscal de isenção total de IMT (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. Tal deliberação, de aprovação da concessão do benefício fiscal de isenção total de IMT devido pela transação, foi em 13 de Janeiro de 2017 submetida à Assembleia Municipal de ... que a aprovou (Acta N.º .../17, que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  8. Em 1 de Março de 2018, a Requerente através dos serviços da “Casa Pronta”, Processo n.º .../2018, formalizou a compra e venda, mútuo com hipoteca e aval, pelo valor de 2.4000.000,00€ - dois milhões e quatrocentos mil euros (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  9. A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma inspecção à Requerente relativa ao exercício de 2018, em que foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

III.1. Enquadramento legal e descrição da atividade desenvolvida pelo sujeito passivo

A empresa A... -Unipessoal, Lda (adiante A...), NIPC ... O, está inscrita para o exercício da atividade principal de "Aluguer de Outras Máquinas e Equipamentos, NE -CAE  77390". No ano objeto de análise (2018), tinha como atividades secundárias o "Comércio por Grosso  de Outras Máquinas e Equipamentos - CAE 46690", "Fabricação de Motores, Geradores e  Transformadores Elétricos -CAE 27110" e "Compra e Venda de Bens Imobiliários -CAE 68100".

 

(...)

IV. Descrição da análise efetuada

Através do S/ Ofício nº .../2022 de 09-08-2022, a Inspeção Geral de Finanças (IGF) -

Autoridade de Auditoria remeteu à Autoridade Tributária e Aduaneira, a Informação nº 386/2022 e respetivos anexos, onde era analisada a atribuição de benefícios fiscais, a diversas empresas, por parte da Câmara Municipal de ... (CMVC).

De entre essas empresas, constava a A..., que teria usufruído indevidamente de um benefício fiscal em sede de IMT, concedido pela CMVC, ao abrigo do artigo 23°-A do Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo Decreto-Lei nº 162/2014 de 31 de outubro.

No âmbito da presente ação de inspeção, foram analisados o teor da informação, e ainda toda a documentação remetida, por parte da IGF -Autoridade de Auditoria, relativamente ao Sujeito Passivo  em causa. Paralelamente, foram consultadas as Bases de Dados da AT, no sentido de confirmar os  factos descritos na informação.

Em resultado dessa análise, foram efetuadas as correções constantes do Capítulo V do presente Relatório.

 

V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

Em sessão extraordinária da Assembleia Municipal de ..., que decorreu no dia 13-01-2017, foi aprovada a concessão de um benefício fiscal de isenção total de IMT, ao Sujeito Passivo A..., nos termos do n° 1 do artigo 23°-A do Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo Decreto-Lei nº 162/2014 de 31 de outubro (Ver Anexo 1).

A isenção em causa teve como objeto a transmissão do ..., localizado na ...-... -..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... -..., sob o nº... . Esse prédio foi adquirido, por parte da A..., à empresa E..., SA, NIPC ..., pelo valor de 2.400.000€, no dia 01-03-2018. Nessa data, o Valor Patrimonial Tributário (VPT) do referido prédio ascendia a 2.431.280€, face a uma avaliação realizada em 21-06-2017 (Ver Anexo 2 - Elementos relativos à transmissão, declaração de IMT e caderneta predial do prédio).

Nos termos do n° 1 do artigo 22° do CFI, o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) é  aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no nº 2 do artigo 2° do mesmo diploma. Por outro lado, a Portaria nº 282/2014 de 30-dez  define os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades elegíveis para efeitos de RFAI.

Por seu turno, o nº 2 do artigo 22° do CFI estabelece o que se consideram aplicações relevantes,  no âmbito do diploma, no sentido de indicar quais os investimentos em ativos que podem beneficiar de incentivos fiscais. O nº 4 do mesmo artigo impõe determinadas condições aos Sujeitos Passivos, para poderem beneficiar dos incentivos, entre as quais se destacam a manutenção na empresa e região, dos bens objeto de investimento, durante um período mínimo de 3 anos, e que o investimento relevante proporcione a criação de postos de trabalho, os quais devem ser mantidos durante esse mesmo prazo de 3 anos.

Ora, nos termos da alínea c) do n° 1 do artigo 23° do CFI, aos Sujeitos Passivos de IRC previstos no n° 1 do artigo 22°, é concedido, entre outros, um benefício fiscal de isenção ou redução de IMT, relativamente às aquisições de prédios que constituam aplicações relevantes nos termos do artigo 22°.

Por seu turno, o n° 1 do artigo 239-Ado CFI, aditado ao diploma pela Lei nº 7-A/2016 de 30/março, vem dizer que, "para além dos benefícios fiscais previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 23°, os órgãos municipais podem conceder isenções totais ou parciais de /MI ou IMT, para apoio a investimento realizado na área do município", sendo que, nos termos do nº 2 do artigo 23°-A, essa concessão é feita pela Assembleia Municipal, por proposta da Câmara Municipal.

Foi à luz do artigo 23%-Ado CFI que o Município de ... concedeu a isenção de IMT à A... .

Em consulta às Bases de Dados da AT, verifica-se que a A... está inscrita para o

exercício de diversas atividades (Ver detalhe extraído do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes constante do Anexo 3). Das 10 atividades para as quais a A... está registada atualmente, apenas a "Fabricação de Motores, Geradores e Transformadores Elétricos - CAE 2711 O" e a "Reparação e Manutenção de Máquinas e Equipamentos -CAE 33120" são elegíveis para efeitos do RFAI, nos termos do n° 1 do artigo 22° do CFI.

No entanto, verifica-se que a A... apenas se encontra inscrita para o exercício da atividade de "Reparação e Manutenção de Máquinas e Equipamentos -CAE 33120" desde 10-10-2022. Ou seja, à data da aquisição do artigo ... da freguesia de ... (01-03-2018) e nos 4 anos seguintes, apenas a atividade de "Fabricação de Motores, Geradores e Transformadores Elétricos - CAE 27110", para a qual a A... e encontra inscrita desde 09-11-2015, seria elegível para efeitos do RFAI.

De resto, em consulta às Declarações Anuais IES-DA entregues pela empresa, verifica-se que as Vendas e Prestações de Serviços efetuadas pela A..., entre os anos de 2018 e 2022, respeitam exclusivamente às atividades de "Aluguer de Outras Máquinas e Equipamentos, NE -CAE 77390" e "Comércio por Grosso de Outras Máquinas e Equipamentos -CAE 46690" até ao ano de 2019, e, para além dessas, também à atividade de "Comércio por Grosso de Peças e Acessórios para Veículos Automóveis -CAE 4531O, a partir de 2020 (Ver informação de rendimentos por atividade económica, obtida das IES-DA dos anos de 2018 a 2022 -Anexo 4). Nenhuma dessas atividades é elegível no âmbito do RFAI.

Mas ainda que a A... exercesse a atividade de "Fabricação de Motores, Geradores e Transformadores Elétricos - CAE 27110", durante esse período de tempo, tal atividade teria inevitavelmente uma reduzida expressão na globalidade do negócio da empresa, como se pode comprovar do Quadro que se segue, onde é analisado o perfil das aquisições efetuadas pelo Sujeito Passivo, nos anos de 2021 e 2022.

(...)

No QUADRO 01, foram recolhidos os dados relativos ao cruzamento do Anexos P das

Declarações Anuais IES-DA entregues pela A..., nos anos de 2021 e 2022, e o seu confronto com a informação obtida através dos Anexos O das IES-DA entregues pelos respetivos fornecedores.

Sendo assim, é possível aferir o perfil das aquisições efetuadas pela A..., nesses dois anos, em que o exercício de uma nova atividade já se deveria fazer refletir nas contas da empresa, após a aquisição de um imóvel que ocorreu em 2018.

No entanto, o que se conclui é que a esmagadora maioria das aquisições efetuadas pelo Sujeito Passivo respeita a atividades ligadas ao Aluguer e Comercialização de Máquinas e Equipamentos, ou ainda ao Comércio de Veículos Automóveis, atividade para a qual a A... está inscrita desde 07-08-2019, mas que também não é elegível para efeitos de RFAI. Assim, as aquisições efetuadas dizem, grosso modo, respeito a aquisições de produtos petrolíferos, automóveis, peças e acessórios para automóveis, manutenção e reparação de automóveis e outros equipamentos, transporte de mercadorias, entre outros bens e serviços que não é possível associar diretamente a uma atividade de fabricação (atividades bancárias, contabilidade, Construção de Edifícios, Desmantelamento de automóveis em fim de vida, etc).

Essa evidência é coerente com a informação extraída do próprio site da A..., onde a empresa se apresenta como sendo de Aluguer e Venda de Equipamentos, Geradores, Gruas, Retroescavadoras, etc (Ver Anexo 5).

Ou seja, tendo presente toda a informação constante das Bases de Dados da AT, nomeadamente o perfil das aquisições efetuadas pelo Sujeito Passivo, às atividades para as quais se encontra inscrito, à informação de que a globalidade dos seus rendimentos resulta do exercício das atividades de Compra e Venda e Aluguer de Máquinas e Equipamentos e, juntando isso à forma como a própria empresa publicita a sua atividade, no seu site e redes sociais, chegamos à conclusão de que a A... não exerce nem exerceu, nos anos de 2018 a 2022, nenhuma atividade elegível no âmbito do RFAI, designadamente a atividade de "Fabricação de Motores, Geradores e

Transformadores Elétricos -CAE 27110".

Mas ainda que essa atividade tivesse sido exercida, o seu peso seria muito diminuto face ao total da atividade da empresa, o que se comprova pela informação constante das Bases de Dados da AT.

Desse modo, a aquisição do imóvel em questão (artigo... inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... -...) teve em vista a continuação do exercício da atividade que a A... efetivamente exercia, à data de 01-03-2018, ou seja, a Compra e Venda e Aluguer de Máquinas e Equipamentos, e também de veículos automóveis, atividades essas que não são elegíveis no âmbito do RFAI.

Assim sendo, embora a CMVC tenha a possibilidade de, nos termos do artigo 23°-A do CFI, conceder uma isenção de IMT para apoiar um investimento no Município, tem de o fazer respeitando as limitações impostas no CFI, nomeadamente no n° 1 do artigo 22°, em conjugação com o nº 2 do artigo 2° e Portaria 282/2014 de 30 de dezembro. E, na situação em concreto, não foram respeitadas essas limitações o que, em última análise, viola o princípio da legalidade tributária, previsto no n 1 do artigo 8° da LGT.

Em conclusão, face ao exposto nos parágrafos anteriores, é apurado IMT em falta no valor de 158.033,20€, correspondente à aplicação da taxa de 6,50%, prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 17° do Código do IMT, ao Valor Patrimonial Tributário, à data da transmissão, do artigo U-... da freguesia de ... (2.431.280€), nos termos do nº 1 do artigo 12° do mesmo código, uma vez que esse montante é superior ao valor declarado de venda (2.400.000€).

  1. Em 12 de Janeiro de 2024, foi a Requerente, através do n.º ... de 11-01-2024, notificada da liquidação do imposto, para que em 30 dias procedesse ao pagamento da importância relativamente ao IMT de 158.033,20€ e da importância de juros compensatórios no valor de 37.061,57€  (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. Em 26-04-2024, a Requerente prestou garantia bancária para suspender execução fiscal destinada a cobrar as quantias liquidadas (documento junto em 17-09-2024, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. As referidas deliberações da Câmara Municipal de ... e da Assembleia Municipal de ... não foram revogadas nem objecto de anulação administrativa ou judicial (depoimentos das testemunhas D... e C...);
  4. Em 19-03-2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

2.2.1. Não se provou que a garantia cuja prestação foi requerida em 19-03-2024 tenha sido deferida. Não foram juntos documentos que o comprovem.

 

2.2.2. Não se provou que tivesse sido prestada outra garantia, além da prevista na alínea K) da matéria de facto dada como provada, para suspender a execução fiscal destinada a cobrança coerciva da quantia liquidada. Não foram juntos documentos que o comprovem.

 

2.2.3. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo, bem como com base na prova testemunhal, nos pontos indicados.

As testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento directo dos factos que foram dados como provados com base nos seus depoimentos.

A testemunha D... é Presidente da Câmara Municipal de ... e era, em 2017/2018, vereador da mesma.

A testemunha C... é director financeiro da Requerente que acompanhou todo o processo da compra do imóvel.

 

 

3. Matéria de direito

 

           A Câmara Municipal de ... e a Assembleia Municipal de ... deliberaram conceder à Requerente uma isenção total, de IMT na aquisição de um prédio destinado às instalações da Requerente, invocando como fundamento da isenção o artigo 23.º-A do Código Fiscal do Investimento (CFI).

           Este artigo 23.º-A, aditado ela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, estabelece o seguinte:

 

Artigo 23.º-A

Benefícios fiscais municipais

 

1 - Para além dos benefícios fiscais previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 23.º, os órgãos municipais podem conceder isenções totais ou parciais de IMI e ou IMT para apoio a investimento realizado na área do município.

2 - A concessão de benefícios fiscais municipais é feita nos termos previstos no n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro.

3 - Aos benefícios fiscais concedidos nos termos dos números anteriores não é aplicável a limitação prevista na subalínea i) da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º

 

           A Autoridade Tributária e Aduaneira, em inspecção tributária, entendeu, em suma, que tal benefício fiscal não poderia ter sido concedido, por a actividade da Requerente não se enquadrar entre as actividades a que se pode aplicar o RFAI, como se vê pela seguinte síntese:

Desse modo, a aquisição do imóvel em questão (artigo ... inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ...-...) teve em vista a continuação do exercício da atividade que a A... efetivamente exercia, à data de 01-03-2018, ou seja, a Compra e Venda e Aluguer de Máquinas e Equipamentos, e também de veículos automóveis, atividades essas que não são elegíveis no âmbito do RFAI.

 

           A Requerente imputa vícios à correcção efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo seguinte, em suma:

– a partir do momento, ou seja, após o aditamento ocorrido em 2016, pelo artigo 195.º da Lei n.º 7-A/2016, o regime a aplicar no presente caso é o da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro – Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, que no seu n.º 2 do artigo 16.º diz que a concessão de benefícios fiscais municipais é feita nos termos previstos no n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro. A “A assembleia municipal, mediante proposta da câmara municipal, aprova regulamento contendo os critérios e condições para o reconhecimento de isenções totais ou parciais, objetivas ou subjetivas, relativamente aos impostos e outros tributos próprios”;

– quando o legislador quis acrescentar o artigo 23.º-A do Código Fiscal do Investimento, foi para afastar as imposições constantes do n.º 1 do artigo 21.º do CFI;

– a Câmara Municipal de ..., certificou um ato constitutivo de direitos, que serviu de suporte à isenção do IMT para a aquisição do prédio pela impugnante, que nenhum diploma legal sancionou com invalidade jurídica, pois, até ao presente, não existe qualquer preceito legal que recomende a desconsideração de tais actos;

– vir agora, como o faz, a Autoridade Tributária e Aduaneira, atribuir efeitos retroativos à sua pretensão, colide com direitos adquiridos e ofende a segurança jurídica da interessada,

– a isto se opõe o princípio da estabilidade e da segurança nas relações jurídicas administrativas.

– existindo boa-fé da Impugnante como ficou amplamente demonstrado, não pode o mesmo ser prejudicada por alterações de procedimento por parte da administração fiscal, com revogações de atos administrativos, atribuindo a esta revogação efeitos  retroativos, violando frontalmente a lei e o princípio da justiça.

 

No presente processo, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende a posição assumida no RIT, dizendo ainda o seguinte, em suma:

– atendendo, designadamente, ao elemento sistemático da lei, não se pode ignorar o disposto no n.º 3 do art.º 23.º-A do RFAI, de que resulta que aos benefícios fiscais concedidos nos termos dos números anteriores não é aplicável a limitação prevista na subalínea i) da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º;

– este n.º 3 prevê, portanto, uma delimitação negativa expressa à aplicação da limitação consagrada na subalínea i) da alínea a) do n.º 2 do art.º 22.º do RFAI;

– para efeitos de aplicação do art.º 23.º-A, são aplicáveis todas as normas do CFI, com exceção da limitação prevista na subalínea i) da alínea a) do nº 2 do art.º 22.º do mencionado diploma, conforme decorre do nº 3 do art.º 23-A do RFAI;

– tendo presente o princípio da legalidade tributária, só cabe na esfera de atuação dos competentes órgãos do município a concessão de isenções, totais ou parciais, quando exista lei que defina os termos e condições para essa atribuição;

– em face da factualidade que a Assembleia Municipal de ... tinha no momento (2017) do reconhecimento da isenção do IMT ora em análise, outra não poderia ter sido a sua atuação, na medida em que a Requerente de facto apresentava formalmente uma atividade que constava da lista contemplada na Portaria acima mencionada e, portanto, era potencialmente elegível para efeitos do RFAI;

– todavia, a AT, no âmbito dos seus poderes inspetivos, reserva-se no direito de, a posteriori, comprovar o preenchimento dos pressupostos das isenções concedidas, nomeadamente se o investimento (na aquisição do imóvel) foi, de facto, dirigido a atividades da empresa que estejam previstas na referida Portaria;

– não obstante a Requerente ter um CAE elegível para efeitos de RFAI à data da aquisição do imóvel (CAE 27110), entre 2018 e 2022, as suas vendas e prestações de serviços respeitaram exclusivamente a setores de atividade não elegíveis para efeitos da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro (CAE 77390, 46690 e 45310);

– o Regulamento Municipal de Reconhecimento de Benefícios Fiscais associados aos Impostos Municipais e Incentivos à Atividade Económica, publicado em Diário da República n.º 15/2024, Série II de 22-01-2024 (Regulamento n.º 86/2024, de 22 de janeiro, do Município de ...), estabelece a necessidade de os interessados no reconhecimento do benefício ora em análise apresentarem os CAE constantes da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro (cf. art.º 3.º do Regulamento).

 

 

3.1. Apreciação da questão da violação de acto constitutivo de direitos

 

Resulta da matéria de facto fixada que a Câmara Municipal e a Assembleia Municipal de ... concederam à Requerente um benefício fiscal de isenção total de  IMT.

As deliberações da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal de ... através do qual foi concedida essa isenção não foram revogadas nem objecto de anulação administrativa ou judicial.

A Requerente defende que a concessão da isenção constitui um acto constitutivo de direitos, cujo desrespeito «colide com direitos adquiridos e ofende a segurança jurídica da interessada».

Na verdade, são actos constitutivos de direitos os «que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições, salvo quando a sua precariedade decorra da lei ou da natureza do ato» (artigo 167.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo).

Os actos que concedem isenções fiscais, reconhecendo situações jurídicas de vantagem, enquadram-se, manifestamente, nesse conceito, como desde há muito vem entendendo, uniformemente, o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se, entre outros, pelos seguintes acórdãos:

– de 16-01-1986, processo n.º 020414, publicitado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 356, página 424;

– do Pleno, de 17-07-1986, processo n.º 015789, publicitado no Boletim do Ministério da Justiça 361, página 577;

– de 09-06-1987, processo n.º 03078, publicado no Boletim do Ministério da Justiça 368, página 425, e em Ciência e Técnica Fiscal n.º 346, página 316;

– de 12-07-1989, processo n.º 03683, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15-11-90, página 253;

– de 05-02-1997, processo n.º 010536, publicado no Apêndice ao Diário da República de 19-03-1999, página 36;

– de 16-04-1997, processo n.º 014612, publicado no Apêndice ao Diário da República de 28-03-2000, página 106.

 

Sendo o acto de concessão de uma isenção constitutivo de direitos, o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio constitucional do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa) impõe que a sua anulação apenas pode ocorrer nas condições especiais previstas para os actos desse tipo, como resulta do preceituado no artigo 168.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), o que constitui hoje jurisprudência uniformizada pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 1/2023, do Pleno, de 18-01-2023, processo n.º 0104/22.9BALSB, publicado no Diário da República, I Série, de 17-03-2023, em que se entendeu, em suma,  que os actos que concedem isenções são autonomamente impugnáveis e só poderão ser anulados nos termos legais previstos para a anulação dos actos administrativos constitutivos de direitos.

Do regime legal dos actos constitutivos de direitos decorre, desde logo, que, enquanto eles não forem anulados administrativa ou jurisdicionalmente, eles vigoram na ordem jurídica e são vinculativos para toda a Administração Pública.

Com efeito, o acto constitutivo de direitos inclui-se no bloco de legalidade que a Administração Pública tem de respeitar, por força do princípio da legalidade, pois esse princípio, que também vigora no procedimento tributário (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT),   impõe a obediência da actividade administrativa «à lei e ao direito» (artigo 3.º, n.º 1, do CPA) e «a submissão ao direito vai muito além de um entendimento positivista da ordem jurídica, implicando a submissão a princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições de carácter regulamentar, a actos constitutivos de direitos, etc.». ( [1] )

Para além disso, decorre do regime dos actos constitutivos de direitos que a sua anulação administrativa é da competência exclusiva da entidade que os praticou ou seu superior hierárquico (artigo 169.º, n.º 3, do CPA), o que, nos casos de actos praticados por órgãos de autarquias locais, afasta a relevância anulatória de qualquer actuação da Administração Tributária estadual.

Por outro lado, em 2024, quando a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação, já se tinha consolidado na ordem jurídica o referido acto constitutivo de direitos praticado em 2018, pois tinha sido ultrapassado o prazo máximo em que ele podia ser anulado administrativamente (artigo 168.º do CPA). 

Por isso, estando em vigor o acto que concedeu a isenção, a actuação da Administração Tributária ao não fazer aplicação dessa isenção na liquidação efectuada, enferma de vício de violação de lei, por violação dos princípios da legalidade e da segurança jurídica.

Estes vícios justificam a anulação da liquidação de IMT e da liquidação de juros compensatórios que nela se integra (artigo 35.º, n.º 8 da LGT), de harmonia com o preceituado no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.2. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade da liquidação que é objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC),  o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente à liquidação impugnada.

 

           4. indemnização por garantia indevida

 

 

Em 26-04-2024, a Requerente prestou garantia bancária para suspender execução fiscal destinada a cobrar a quantia liquidada e formula um pedido de indemnização.

O artigo 171.º do CPPT estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de indemnização por garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

              1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

              2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

              3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

              4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

No caso em apreço, é manifesto que o erro subjacente à liquidação impugnada é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois esta foi de sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada.

Não havendo elementos que permitam determinar o montante exacto da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão, de harmonia com o preceituado no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

          

5. Decisão        

 

              De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral,
  2. Anular a liquidação de IMT e juros compensatórios notificada à Requerente pelo ofício n.º SF... de 11-01-2024;
  3. Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente o que for liquidado em execução da presente decisão arbitral.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €195.094,77, indicado pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 02-10-2024

 

  Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(relator)

 

 

 

(José Nunes Barata)

 

 


(Jorge Belchior de Campos Laires)

 



[1] DIOGO FREITAS DO AMARAL et alii, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, página 40.

Na mesma linha, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA et alii, Código do Procedimento Administrativo Anotado, Volume I, 1993, página 140:

Na sujeição da Administração "ao direito", este vai manifestamente entendido em sentido objectivo, reportado às fontes de Direito (todas, desde as normas constitucionais até às dos regulamentos de utilização de um serviço)-, se bem que daí derivem também outras sujeições, outras modelações jurídicas da actuação administrativa, não directamente referidas às fontes de direito objectivo, mas sim aos antecedentes jurídicos dessa actuação (como o podem ser, por exemplo, os actos ou contratos constitutivos de direitos administrativos a favor de terceiros) e, sobretudo, aos princípios gerais de direito --para quem não inclua estes entre as fontes criadoras (mas meramente reveladoras) de direito.