Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 146/2024-T
Data da decisão: 2024-10-03  IRS  
Valor do pedido: € 16.663,37
Tema: IRS – Residente não habitual; inscrição como residente não habitual; artigo 16.º, n.ºs 8 a 12, do Código do IRS. Competência do tribunal arbitral. Impugnabilidade da liquidação de imposto.
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Sumário:

  1. A facti species constitutiva da situação tributária de residente não habitual é a verificação dos dois pressupostos materiais atinentes à residência fiscal em certo ano em território português e à não residência fiscal pretérita nos cinco anos anteriores nesse território (cf. artigo 16.º, n.º 8, do Código do IRS).
  2. O pedido de inscrição como residente não habitual a que se refere o n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS constitui um dever acessório do contribuinte (cf. artigo 31.º, n.º 2, da LGT) e tem natureza meramente declarativa e não constitutiva do direito a ser tributado enquanto residente não habitual.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            I. Relatório

1. No dia 1 de fevereiro de 2024, A..., NIF..., residente na Rua..., ..., ..., ...-... Odivelas (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente:

i) À ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019 e do qual resultou o valor a pagar de € 1.499,91;

ii) À ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020 e do qual resultou o valor a reembolsar de € 852,84;

iii) À ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2021 e do qual resultou o valor a pagar de € 5.274,68;

iv) À ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2022 e do qual resultou o valor a pagar de € 4.915,59;

v) À ilegalidade dos atos de indeferimento tácito das reclamações graciosas que tiveram por objeto os sobreditos atos de liquidação; e,

  vi) À ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019 e do qual resultou o valor a pagar de € 3.521,28.

A Requerente juntou 38 (trinta e oito) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

 

2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), a Requerente alega, essencialmente, o seguinte:

Entre 1 de janeiro e 31 de maio de 2019, a Requerente foi contratada pela sociedade comercial portuguesa “B..., S. A.” para exercer as funções de médica no Hospital ..., em ... .

A 11 de junho de 2019, na sequência da cessação daquele contrato de trabalho, a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços com a B..., no âmbito do qual as partes acordaram que a Requerente prestaria, na qualidade de médica, serviços médicos no serviço de urgência do Hospital ..., os quais incluíam, entre outros, o atendimento e tratamento de utentes, bem como a realização de consultas médicas e exames de diagnóstico e terapêutica.

Em 2019, 2020 e 2021, por força da prestação de serviços à B..., a Requerente auferiu rendimentos enquadráveis na categoria B de IRS, nos montantes de € 9.290,50, € 16.164,50 e € 2.847, respetivamente.

A 4 de março de 2020, a Requerente celebrou um contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto com a C..., I.P., para exercer as funções de médica interna.

Em 2020, 2021 e 2022, a Requerente continuou a exercer as funções de médica interna no Hospital ... ao abrigo do dito contrato de trabalho em funções públicas, tendo auferido rendimentos enquadráveis na categoria A de IRS, os quais, naqueles anos, ascenderam aos montantes de € 23.062,59, € 43.978,68 e € 41.176,90, respetivamente.

Adicionalmente, entre 2019 e 2022, a Requerente auferiu rendimentos de fonte estrangeira enquadráveis na categoria F de IRS, provenientes do arrendamento de um imóvel sito em Itália, do qual é proprietária.

Por referência aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, a Requerente apresentou as respetivas declarações de rendimentos modelo 3 de IRS, na sequência das quais foram emitidas as respetivas liquidações de IRS; posteriormente, a Requerente apercebeu-se que as suas declarações de rendimentos relativas aos anos de 2019, 2020 e 2021 padeciam de erros de preenchimento porquanto não tinham sido inscritos os montantes auferidos no estrangeiro a título de rendas, nem, tão-pouco, tinha sido preenchido o Anexo L. A declaração de rendimentos referente ao ano de 2022 padecia também de um erro de preenchimento, pois, apesar de ter sido possível preencher o Anexo J, não foi possível preencher o Anexo L.

A fim de sanar tais lapsos, a Requerente tentou submeter declarações modelo 3 de substituição, nas quais declarou a totalidade dos rendimentos auferidos nos anos de 2019 a 2021 (incluindo os obtidos no estrangeiro) e preencheu o Anexo L, por forma a requerer a tributação autónoma dos rendimentos de elevado valor acrescentado (enquadráveis nas categorias A e B de IRS) e a isenção de tributação dos rendimentos prediais (enquadráveis na categoria F) por si auferidos. Relativamente ao ano de 2022, a Requerente também tentou submeter uma declaração modelo 3 de substituição, com preenchimento do Anexo L.

Acontece que o sistema informático da AT impediu a entrega daquelas declarações modelo 3 de substituição, com o preenchimento do Anexo L.

Por não pretender manter a omissão declarativa de quaisquer rendimentos, relativamente aos anos de 2019 a 2021, a Requerente entregou declarações modelo 3 de substituição, nas quais inscreveu a totalidade dos rendimentos por si auferidos naqueles anos, incluindo os de fonte estrangeira, mas sem preenchimento do Anexo L. Tais declarações modelo 3 de substituição deram origem à emissão pela AT dos atos tributários objeto deste processo, referentes aos anos de 2019 e 2021. A declaração modelo 3 de substituição atinente ao ano de 2020 não chegou a ser processada pelo sistema informático da AT e, bem assim, validada pela AT, motivo pelo qual não foi emitida qualquer liquidação adicional de imposto.  

Em julho e agosto de 2023, a Requerente apresentou reclamações graciosas das aludidas liquidações de IRS, no âmbito das quais peticionou a anulação de tais atos tributários, sendo que, até ao momento, a AT não se pronunciou sobre nenhuma dessas reclamações graciosas, pelo que é de considerar que foram tacitamente indeferidas.

Em novembro de 2023, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2019, a qual também é objeto do presente processo.

A Requerente pretende que seja aferida a legalidade dos atos tributários e decisórios sub judice, à luz, designadamente, do disposto no artigo 16.º, n.ºs 8 e 9, do CIRS, porquanto tais atos foram emitidos no pressuposto de ser a Requerente residente para efeitos fiscais em Portugal nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, não beneficiando, como se impunha, do estatuto de residente não habitual. A Requerente entende, pois, que, verificam-se (quanto a si) os pressupostos legais de que depende a qualificação e inscrição como residente não habitual com efeitos ao ano de 2019, circunstância que determinará a ilegalidade dos atos tributários e decisórios sub judice na parte que não reflete a tributação (mais favorável) em sede de IRS aplicável aos residentes não habituais.

A Requerente termina o seu pedido de pronúncia arbitral peticionando o seguinte:

“Nestes termos, requer-se a esse Douto Tribunal Arbitral que julgue procedente, por provado, o presente pedido de pronúncia arbitral e, por conseguinte:

i) Determine a anulação dos atos tributários e decisórios sub judice, nos termos do artigo 163.º do CPA;

ii) Na medida da procedência do pedido anterior, condene a Entidade Requerida no reembolso à Requerente do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios vencidos e vincendos, com fundamento em erro imputável aos serviços da Autoridade Tributária, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, e, bem assim, no pagamento das custas do processo arbitral, tudo com as demais consequências legais.”

 

3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 12 de fevereiro de 2024.

4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 8 de abril de 2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 29 de abril de 2024.

 

5. No dia 29 de maio de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual deduziu defesa por exceção (incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação à Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais e inimpugnabilidade do ato de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH) e impugnou os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pugnando pela procedência das exceções invocadas, com a sua consequente absolvição da instância ou, se assim não se entender, pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas; na mesma ocasião, a Requerida procedeu à junção aos autos do processo administrativo (doravante, PA).

 

6. No dia 20 de junho de 2024, a Requerente, notificada para o efeito, pronunciou-se relativamente às exceções invocadas pela Requerida, tendo concluído pugnando pela respetiva improcedência.

 

7. No dia 21 de junho de 2024, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, a conceder prazo para as partes, querendo, apresentarem alegações escritas e a indicar o dia 29 de outubro de 2024 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

 

8. Ambas as partes apresentaram alegações escritas que aqui se dão por inteiramente reproduzidas e nas quais essencialmente reiteraram as posições anteriormente vertidas nos respetivos articulados.

 

II. Saneamento

9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Admite-se a cumulação de pedidos – estão em causa diversos atos tributários atinentes a IRS –, em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados pela Requerente depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (cf. artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).

O processo não enferma de nulidades.

Como foi já referido, a Requerida suscitou duas exceções (incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação à Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais e inimpugnabilidade do ato de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH), para cuja apreciação se mostra necessário fixar a factualidade provada e não provada, após o que nos debruçaremos sobre as mesmas.

Não existem quaisquer outras exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.

 

III. Fundamentação                             

III.1. De Facto

§1. Factos ProvadosROVADOS

10. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente é uma cidadã de nacionalidade italiana. [cf. documento n.º 7 anexo ao PPA]

b) A Requerente residiu e exerceu a sua atividade profissional em Itália até ao ano de 2018, inclusive. [cf. documento n.º 8 anexo ao PPA]

c) A Requerente é titular do grau de Mestre em Medicina e Cirurgia. [cf. documentos n.ºs 9 e 10 anexos ao PPA]

d) A Requerente decidiu mudar-se para Portugal e aqui vir exercer a sua atividade profissional.

e) A fim de exercer a sua atividade profissional em Portugal, a Requerente inscreveu-se na Ordem dos Médicos, em 22.08.2018. [cf. documento n.º 11 anexo ao PPA]    

f) Em fevereiro de 2019, a Requerente arrendou um imóvel em Lisboa. [cf. documento n.º 12 anexo ao PPA]      

g) A partir de 2019, a Requerente passou a residir em Portugal, tendo alterado a sua residência fiscal para o território nacional a 5 de junho de 2019. [cf. documento n.º 13 anexo ao PPA]       

h) A Requerente não apresentou, através do Portal das Finanças, qualquer pedido de inscrição como residente não habitual. [cf. documento n.º 14 anexo ao PPA]     

i) Entre 1 de janeiro de 2019 e 31 de maio de 2019, a Requerente foi contratada, como trabalhadora, pela sociedade comercial portuguesa “B..., S. A.” (“B...”), NIPC..., para exercer as funções de médica no Hospital ..., em ... . [cf. documento n.º 15 anexo ao PPA]       

j) Em virtude desse contrato de trabalho, a Requerente auferiu rendimentos enquadráveis na categoria A de IRS, no montante de € 9.921,67.   

k) A 15 de junho de 2019, a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços com a  B... . [cf. documento n.º 16 anexo ao PPA]     

l) No âmbito desse contrato de prestação de serviços, as partes acordaram que a Requerente prestaria, na qualidade de médica, serviços médicos no serviço de urgência geral do Hospital ..., os quais incluíam, entre outros, o atendimento e tratamento de utentes, bem como a realização de consultas médicas e exames de diagnóstico e terapêutica. [cf. documento n.º 16 anexo ao PPA]     

m) Em 2019, 2020 e 2021, em virtude da prestação de serviços à B..., a Requerente auferiu rendimentos enquadráveis na categoria B de IRS, nos montantes de € 9.290,50, € 16.164,50 e € 2.847,00, respetivamente. [cf. documento n.º 17 anexo ao PPA]     

n) A 4 de março de 2020, a Requerente celebrou um contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto com a C..., IP, NIPC..., para exercer as funções de médica interna, com início em 1 de janeiro de 2020. [cf. documento n.º 18 anexo ao PPA]    

o) Em 2020, 2021 e 2022, a Requerente continuou a exercer as funções de médica interna no Hospital ... ao abrigo do aludido contrato de trabalho em funções públicas, tendo auferido rendimentos enquadráveis na categoria A de IRS que, naqueles anos, ascenderam a € 23.062,59, € 43.978,68 e € 41.176,90, respetivamente. [cf. documentos n.ºs 24, 25 e 26 anexos ao PPA]

p) Em 2019, 2020, 2021 e 2022, a Requerente auferiu rendimentos de fonte estrangeira enquadráveis na categoria F de IRS, provenientes do arrendamento de um imóvel sito em Itália e do qual é proprietária, nos montantes de € 17.878,00, € 16.913,00, € 16.628,00 e € 17.749,00, respetivamente. [cf. documentos n.ºs 19, 20, 21 e 22 anexos ao PPA]     

q) Por referência aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, a Requerente apresentou as declarações de rendimentos Modelo 3 de IRS que estão anexas ao PPA como documentos n.ºs 23, 24, 25 e 26 e aqui se dão por inteiramente reproduzidas.

r) Na sequência da entrega das aludidas declarações de rendimentos, a Requerente foi notificada dos seguintes atos tributários:

(i) Liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2019, da qual resultou o montante total a reembolsar de € 2.076,28; [cf. documento n.º 27 anexo ao PPA]       

(ii) Liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020, da qual resultou o montante total a reembolsar de € 852,84; [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]       

(iii) Liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2021, da qual resultou o montante total a pagar de € 2.153,92; [cf. documento n.º 28 anexo ao PPA]       

(iv) Liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2022, da qual resultou o montante total a pagar de € 4.915,59. [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA]       

s) Posteriormente, a Requerente apercebeu-se do seguinte: nas suas aludidas declarações de rendimentos relativas aos anos de 2019, 2020 e 2021 não haviam sido inscritos os montantes por si auferidos no estrangeiro a título de rendas (rendimentos enquadráveis na categoria F de IRS e declaráveis no Anexo J), nem havia sido preenchido o Anexo L; e, na aludida declaração de rendimentos relativa ao ano de 2022, não obstante ter sido preenchido o Anexo J, não foi preenchido o Anexo L. [cf. documentos n.ºs 23, 24, 25 e 26 anexos ao PPA]              

t) Nessa sequência, a Requerente tentou submeter declarações de rendimentos Modelo 3 de substituição, nas quais declarou a totalidade dos rendimentos auferidos nos anos de 2019 a 2021 (incluindo, assim, os obtidos no estrangeiro) e preencheu o Anexo L, a fim de requerer a tributação autónoma dos rendimentos de elevado valor acrescentado (enquadráveis nas categorias A e B de IRS) e a isenção de tributação dos rendimentos prediais (enquadráveis na categoria F) por si auferidos.

u) Relativamente ao ano de 2022, a Requerente tentou igualmente submeter uma declaração de rendimentos Modelo 3 de substituição, com preenchimento do Anexo L.

v) A entrega das referidas declarações de rendimentos Modelo 3 de substituição, com o preenchimento do Anexo L, foi vedada pelo sistema informático da Autoridade Tributária. [cf. documento n.º 29 anexo ao PPA]            

w) Sequentemente, para os anos de 2019, 2020 e 2021, a Requerente entregou declarações de rendimentos Modelo 3 de substituição, nas quais inscreveu a totalidade dos rendimentos por si auferidos naqueles anos, incluindo os de fonte estrangeira, mas sem preenchimento do Anexo L. [cf. documentos n.ºs 30, 31 e 32 anexos ao PPA]        

x) As aludidas declarações de rendimentos Modelo 3 de substituição deram origem à emissão dos seguintes atos tributários:

(i) Liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, da qual resultou o montante total a pagar de € 1.499,91; [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA]           

(ii) Liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2021, da qual resultou o montante total a pagar de € 5.274,68. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]          

y) A declaração de rendimentos Modelo 3 de substituição relativa ao ano de 2020 nunca chegou a ser processada pelo sistema informático e, bem assim, validada pela Autoridade Tributária, razão pela qual não foi emitida qualquer liquidação de imposto.

z) A Requerente solicitou o pagamento fracionado, em prestações mensais, do imposto liquidado relativamente aos anos de 2019 e 2022, tendo tais pedidos sido deferidos pela Autoridade Tributária. [cf. documentos n.ºs 33 e 34 anexos ao PPA]

aa) Até à data da apresentação do PPA, no âmbito do plano prestacional relativo ao ano de 2019, a Requerente efetuou o pagamento da prestação referente ao mês de janeiro de 2024, no montante total de € 55,38. [cf. documento n.º 35 anexo ao PPA]  

bb) Até à data da apresentação do PPA, no âmbito do plano prestacional relativo ao ano de 2022, a Requerente efetuou o pagamento das prestações referentes aos meses de outubro, novembro e dezembro de 2023 e janeiro de 2024, no montante total de € 551,93 (€ 136,96 + € 137,63 + € 138,32 + € 139,02). [cf. documento n.º 36 anexo ao PPA]

cc) Relativamente ao ano de 2020, a Requerente recebeu o reembolso de imposto, no montante de € 852,84. [cf. documentos n.ºs 2 e 37 anexos ao PPA]   

dd) Relativamente ao ano de 2021, a Requerente procedeu ao pagamento integral do montante de imposto liquidado. [cf. documento n.º 38 anexo ao PPA]

ee) Em novembro de 2023, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, da qual resultou o montante total a pagar de € 3.521,28. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA]

ff) No dia 03.07.2023, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020, cujo requerimento inicial está anexo como documento n.º 6 ao PPA e aqui se dá por inteiramente reproduzido.

gg) No dia 28.08.2023, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra as liquidações de IRS n.º 2021 ..., referente ao ano de 2019, n.º 2023..., referente ao ano de 2021 e n.º 2023 ..., referente ao ano de 2022, cujo requerimento inicial está anexo como documento n.º 39 ao PPA e aqui se dá por inteiramente reproduzido.

hh) Até à data desta decisão arbitral, não foi comunicada, nem junta aos autos, qualquer decisão que tenha sido proferida nas aludidas reclamações graciosas.  

ii) No dia 01.02.2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. Factos não Provados

11. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados.

 

§3. Motivação quanto à Matéria de Facto

12. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada. 

Conforme indicado em cada uma das alíneas do probatório, a convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica e de uma adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, do acervo probatório de natureza documental (incluindo o constante do PA) que foi carreado para os autos, em conjugação com as alegações das partes nos respetivos articulados quando reportadas a factos pertinentes para a decisão que não se mostraram controvertidos.

  

III.2. De Direito

§1. O thema decidendum

13. A questão jurídico-tributária que está no epicentro do dissídio entre as partes e que, por isso, o Tribunal é chamado a apreciar e decidir, é atinente ao regime fiscal dos residentes não habituais, estando concretamente em causa dilucidar, para além da verificação dos requisitos materiais do estatuto de residente não habitual, se a inscrição enquanto residente não habitual no registo de contribuintes consubstancia um pressuposto específico da aplicabilidade do respetivo regime legal.

A resposta que for dada a esta questão será determinante para o juízo a proferir relativamente à (i)legalidade dos atos tributários controvertidos e, consequentemente, para a decisão quanto ao pedido de restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Previamente, porém, importa apreciar as seguintes exceções suscitadas pela Requerida: a incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação à Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais e a inimpugnabilidade do ato de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH. 

 

§2. Da incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação à Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais

14. A Requerida invoca esta exceção estribada, nuclearmente, na seguinte argumentação:

Atenta a causa de pedir subjacente ao PPA, é manifesto que está em causa um pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, não obstante a Requerente peticionar a anulação das liquidações de IRS dos anos de 2019 a 2022; com efeito, a matéria controvertida é relativa à não aplicação do regime previsto para os residentes não habituais, e, consequentemente, a suposta aplicação da taxa especial prevista no artigo 72.º, n.º 10, do CIRS. Assim, sem se apreciar se a Requerente pode ou não estar inscrita como RNH, não há como avançar para a apreciação da ilegalidade que se imputa aos atos de liquidação de IRS controvertidos, uma vez que está somente em causa a aplicação deste regime de tributação.

Acontece que o julgamento dessa questão prévia não comporta a apreciação da legalidade de nenhum ato concreto de liquidação de imposto, pelo que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de aplicação do regime jurídico-tributário dos RNH (cf. artigo 2.º, n.º 1, do RJAT).

A incompetência absoluta em razão da matéria configura uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e importa a absolvição da instância, nos termos do disposto nos artigos 88.º, n.º 2 e 89.º, n.º 3, alínea a), do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

15. Notificada para o efeito, a Requerida pronunciou-se quanto a esta exceção, aduzindo, essencialmente, a seguinte argumentação:

A Requerente não solicita ao Tribunal Arbitral que reconheça o seu direito a ser tributada como residente não habitual – o qual se basta com a mera verificação dos pressupostos legais de acesso ao benefício fiscal, sendo, por isso, automático (não carecendo de reconhecimento) –, antes peticionando a anulação dos atos tributários e decisórios sub judice por preterição de tal regime legal.

O pedido formulado pela Requerente é claro e inequívoco: com fundamento no aludido argumento, a Requerente peticiona a anulação dos atos tributários (liquidações de IRS) e decisórios (decisões de indeferimento tácito das reclamações graciosas) objeto deste processo, inexistindo qualquer outro pedido oculto para além do expressamente formulado. Com efeito, o que a Requerente manifestamente evidencia em sede do PPA é a ilegalidade dos atos tributários e decisórios controvertidos por violação dos diversos preceitos legais que regulam o regime dos residentes não habituais, dela retirando as devidas consequências legais.

Assim, para conhecer, apreciar e decidir tal pedido é indubitavelmente competente o Tribunal Arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e, por conseguinte, é a ação arbitral (em alternativa à impugnação judicial) o meio de reação judicial adequado; consequentemente, deverá improceder esta exceção dilatória invocada pela AT.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

16. A invocada incompetência em razão da matéria deste Tribunal constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso e prioritário (cf. artigo 16.º, n.º 1, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e artigos 13.º e 89.º, n.º 4, alínea a), do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT).

A competência material do tribunal, enquanto pressuposto processual, é aferida pela forma como o demandante conforma o pedido e a respetiva causa de pedir, determinando-se, assim, pelos termos em que a ação é configurada pelo autor e em que são expostos a pretensão deduzida em juízo e os factos com relevância jurídica (cf. acórdãos do TCA Sul proferidos em 28.11.2019, no processo n.º 44/19.9BCLSB e em 07.04.2022, no processo n.º 56/21.2BCLSB).

Destarte, a fim de determinar a competência material do Tribunal, importa atender à articulação da causa de pedir e da pretensão jurídica formulada pelo demandante na sua petição inicial.   

 

17. No caso concreto, como resulta do respetivo articulado, o pedido de pronúncia arbitral visa a declaração de ilegalidade e a consequente anulação, com as legais consequências, dos atos tributários controvertidos, invocando a Requerente, como fundamento da pretensão deduzida, que padecem “os atos tributários e decisórios sub judice de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, na medida em que não consideram a Requerente como residente não habitual, em clara violação do disposto nos artigos 16.º, n.ºs 8 e 9, e 72.º, n.º 10, do CIRS”.

Ora, no concernente ao tribunais arbitrais, como decorre do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, a sua competência compreende a apreciação das seguintes pretensões, delimitadas nos termos vertidos nos artigos 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março:

a) a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; e,

b) a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.      

Assim, uma vez que a Requerente deduz uma pretensão, fundada em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciada na apreciação da (i)legalidade dos atos tributários controvertidos, afigura-se-nos evidente que o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar os atos tributários impugnados nos autos, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. 

 

18. Como afirmado na decisão arbitral proferida no processo n.º 705/2022-T, em que igual questão excetiva foi objeto de apreciação, contra a conclusão a que se chegou no sentido na competência material deste Tribunal, não procede a argumentação da Requerida “de que, apesar de solicitar a anulação da liquidação de IRS em crise, a causa de pedir centra-se na condição de residente não habitual, pelo que estaria em causa o pedido de reconhecimento dessa condição, que é suscetível, em termos contenciosos, perante o seu indeferimento, designadamente tácito, de reação mediante ação administrativa (art. 97.º, n.º 2 do CPPT), matérias e meio processuais que são alheios à competência dos tribunais arbitrais. Sucede que, se é certo que o Requerente questiona na sua PI a natureza da inscrição no registo dos contribuintes da condição de residente não habitual para efeitos da aplicação do competente regime, os termos da configuração do pedido de pronúncia arbitral, pelos quais se afere a competência, não correspondem ao que assim indica a Requerida, sendo claro que se impugna a liquidação de IRS em crise, à qual se imputa o vício de erro sobre os pressupostos por não aplicação das regras de tributação dos residentes não habituais que corresponderia à situação tributária do Requerente. Por outras palavras, o objeto do presente processo não é inscrição autónoma e específica no registo da condição de residente não habitual do Requerente (…), mas a legalidade da liquidação de IRS em atenção à regulação jurídica aplicável.

Por outro lado, não há que confundir a competência para a declaração de ilegalidade de ato de liquidação de imposto com a inviabilidade de isso se fazer com base em fundamentos que respeitem a atos destacáveis autonomamente impugnáveis, que envolvem a consequência, na falta da sua impugnação tempestiva, de se consolidarem como caso resolvido. O sujeito passivo pode impugnar uma liquidação de imposto perante Tribunal arbitral, o qual é competente para a sua apreciação (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT); questão distinta é verificar se, no exercício dessa competência, o Tribunal arbitral está vinculado a não acolher, como fundamentos de anulação, vícios imputados em relação a antecedentes atos que, por não terem sido objeto oportunamente dos competentes meios de reação autónoma, se consolidaram em definitivo na ordem jurídica – trata-se, neste último caso, de questão que concerne à inimpugnabilidade da liquidação em atenção à verificação de caso decidido ou caso resolvido, não à competência do Tribunal.”

Nesta conformidade, é julgada improcedente a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral invocada pela Requerida.

 

§3. Da inimpugnabilidade do ato de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH

19. A Requerida invoca esta exceção esgrimindo, essencialmente, os seguintes argumentos:

O reconhecimento da condição de RNH assenta num procedimento prévio e independente das liquidações controvertidas, porquanto o procedimento de reconhecimento da residência fiscal não habitual não tem uma natureza preparatória/destacável do procedimento de liquidação, sendo, antes, um ato administrativo autónomo.

Assim, a impugnação do ato de reconhecimento da condição de residente não habitual não encontra sustentação jurisdicional na discussão da legalidade da liquidação, porquanto o meio gracioso previsto consiste no pedido de reconhecimento correspondente, sucedido contenciosamente, na eventualidade de indeferimento da dita pretensão, da ação administrativa.

Em abono desta sua posição, a Requerida cita o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, de 15.11.2017 e, ainda, o acórdão do STA, de 04.11.2020, proferido no processo n.º 014/19.7BALSB. 

Nessa conformidade, é manifesta a inimpugnabilidade dos atos de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH de que a Requerente se arroga para se conhecer o pedido arbitral apresentado, o que consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e importa a absolvição da instância, nos termos do disposto nos artigos 88.º, n.º 2 e 89.º, n.º 3, alínea a), do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

20. Notificada para o efeito, a Requerida pronunciou-se quanto a esta exceção, alegando, nuclearmente, o seguinte:

            O regime dos residentes não habituais constitui um benefício fiscal automático, dependente apenas da verificação dos pressupostos legais estatuídos no artigo 16.º, n.º 8, do CIRS, adquirindo o sujeito passivo o direito a ser tributado nos termos de tal regime no momento da sua inscrição como residente fiscal em Portugal, na aceção dos n.ºs 9 e 11 do referido preceito legal; sendo certo que o registo enquanto residente não habitual, no cadastro fiscal, é uma mera formalidade declarativa, sem efeito constitutivo, não podendo, por isso, a sua falta obstar à tributação do sujeito passivo como residente não habitual.

            Assim, assumindo o regime dos residentes não habituais a natureza de benefício fiscal automático, os atos tributários controvertidos são plena e autonomamente impugnáveis per se, sendo a impugnação judicial ou a ação arbitral o meio processual adequado para efeitos de apreciação e julgamento da respetiva legalidade. Ademais, a Requerente não pretende ver sindicados vícios de um pretenso e inexistente ato autónomo de um igualmente pretenso e inexistente procedimento de reconhecimento do benefício fiscal em apreço, mas antes vícios próprios das liquidações de IRS controvertidas.   

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

21. A Requerida invoca, pois, a “inimpugnabilidade dos atos de liquidação com o fundamento no suposto estatuto de RNH de que a Requerente se arroga para se conhecer o pedido arbitral apresentado”, o que consubstancia matéria de exceção dilatória, como resulta do disposto no artigo 89.º, n.º 4, alínea i), do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

A decisão arbitral prolatada no processo n.º 574/2023-T pronunciou-se sobre esta mesma questão excetiva nos seguintes termos que, por merecerem a nossa concordância, data venia, fazemos nossos:

“Em sede de Resposta, a Requerida deduziu a exceção de inimpugnabilidade do ato de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH. Para o efeito, a Requerida entende que o procedimento de residência fiscal não habitual não teria uma natureza preparatória do procedimento de liquidação. Antes configurando um ato administrativo autónomo, e portanto não poderia ser fundamento para impugnabilidade do ato de liquidação. Defendendo que sempre que estejam em causa benefícios fiscais a impugnação do ato, é autónoma em relação à impugnação do ato de liquidação, sendo o meio de reação ao dispor do contribuinte a ação administrativa. Por conseguinte entende a Requerida que a impugnação do ato de reconhecimento da condição de residente não habitual, não encontra sustentação na discussão da legalidade da liquidação. Concluindo a Requerida pela existência de erro na forma de processo, assim como, a inimputabilidade do ato com fundamento no suposto estatuto de RNH. 

Para a suporte da sua posição a Requerida entende ser aplicável o decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, proferido no Processo n.º 723/2016, de 2017.15.

De facto o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017 considerou como não inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do CPPT com “(…) o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles.”

Todavia, não obstante o sentido da não constitucionalidade, importa ter em consideração que a decisão não foi unânime, existindo voto de vencido do Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, o qual conclui “Se, pelo contrário, e como julgo mais correto, não chegasse a semelhante conclusão ─ aceitando como não manifestamente errada a qualificação do ato acolhida na decisão recorrida ─, cabia-lhe revisitar a questão decidida pelo Acórdão n.º 410/2015. Nessa hipótese, julgo que o Tribunal deveria ter reiterado essa jurisprudência, por me parecer que a convivência de um ónus normal de impugnação unitária com um ónus excecional de impugnação autónoma, delimitada por um conceito de elevado grau de complexidade e imprecisão ─ «ato imediatamente lesivo de direitos» ─, constitui um fator de insegurança jurídica que condiciona o exercício do direito à impugnação contenciosa das decisões tributárias, sem que se consigam discernir quaisquer razões constitucionalmente relevantes que o justifiquem. Como se afirmou naquele aresto: «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.» Em suma, o Tribunal deveria ter julgado o recurso improcedente.”

Sobre semelhante matéria atinente à interpretação do artigo 54º do CPPT quanto à possibilidade de, em sede de impugnação de liquidação, apreciar vícios atinentes a atos interlocutórios ou autónomos entretanto já consolidados na ordem jurídica, se havia já pronunciado o Tribunal Constitucional em 2015 em sentido inverso,  através do acórdão nº 410/2015, de 29-09, que referiu “Julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República portuguesa”.

Evidenciar contudo, que a factualidade objeto de análise do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 781/2017 e a constante dos presentes autos, é divergente. No acórdão do Tribunal Constitucional estava em causa um contribuinte que não havia reagido, designadamente impugnado a decisão de indeferimento, enquanto nos presentes autos os Requerentes não efetuaram qualquer pedido de inscrição como RNH, entendendo que este opera ope legis, não estando dependente de qualquer procedimento/reconhecimento ou registo pela AT.

Ora, não tendo os Requerentes efetuado qualquer pedido de decisão da AT sobre o estatuto do RNH, não existe qualquer ato lesivo descartável que pudesse integrar a interpretação defendida pela AT do artigo 54.º CPPT.  Sendo assim, inaplicável o disposto no artigo 54.º do CPPT ao caso dos autos, visto no caso presente não existir qualquer ato de natureza autónoma ou interlocutória suscetível de impugnação autónoma pelos Requerentes. Impedir, no caso dos autos, a impugnabilidade do ato de liquidação, com base na interpretação dos Requerentes, num estatuto jurídico fiscal que resulte diretamente da lei, sem dependência de ato administrativo de reconhecimento, constituiria uma limitação incompreensível da tutela jurisdicional efetiva.

Veja-se que a alínea a) do artigo 99.º do CPPT estabelece que “constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente:

a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários;”

Entendendo o Tribunal Arbitral que a ilegalidade por não aplicação do regime dos RNH integra-se plenamente no fundamento de impugnação previsto na alínea a) do artigo 99.º do CPPT.

Neste sentido vide a decisão arbitral n.º 319/2022-T que refere:

“No que à ilegalidade apontada à liquidação por não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais concerne, tal causa de pedir não poderá deixar de ter como inscrita no leque de fundamentos suscetíveis de, em caso de provimento, determinar a errada quantificação dos rendimentos por esta declarados e consequentemente, a ilegalidade do ato tributário de liquidação.”

“Inexistindo in casu qualquer ato ou decisão interlocutória ou autónoma, suscetível de ser enquadrada no artigo 54º do CPPT e constituindo fundamento da impugnação da liquidação qualquer ilegalidade, designadamente a “Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários” - al. a) do artigo 99º do CPPT - não se vislumbra a existência de qualquer entrave no ordenamento legal tributário, que impeça a apreciação da declaração de ilegalidade da liquidação que se reconduza, no que à causa de pedir concerne, ao direito da Requerente em ver apreciada a questão relativa à apontada ilegalidade tangente à não tributação de acordo com o regime de residentes não habituais, cujo pedido de inscrição, de valor meramente declarativo (como adiante se expenderá), se encontra ainda pendente de decisão.”

Entendimento que acolhemos na integra.”

Acresce referir que, tal como vertido na decisão arbitral prolatada no processo n.º 705/2022-T, também nós entendemos que “o n.º 10 do art. 16.º do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01.08 (“O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território”), ao impor a solicitação, por via eletrónica, da inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual, não consagra, para além da imposição de um dever acessório (art. 31.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária - LGT), um procedimento autónomo ou um momento procedimental interlocutório dirigido a um ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, prévio e prejudicial, sem o qual estaria inviabilizada a aplicação em cada ano dos benefícios fiscais a isso associados. Trata-se, aliás, de entendimento que está em consonância com a orientação estabelecida na Circular n.º 4/2019 da Diretora-Geral da AT (n.º 1) segundo a qual as medidas resultantes do regime dos residentes não habituais “consubstanciam medidas excecionais de desagravamento da tributação de caráter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT, conforme determina o artigo 5.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF)”. Assim, face à regulação legal aplicável, abaixo melhor examinada, julga-se que a inscrição cadastral como residente não habitual do sujeito passivo de imposto não constitui ato autónomo ou destacável em relação ao procedimento de liquidação do imposto para efeitos de impugnação contenciosa, que obrigue, em derrogação do princípio da impugnação unitária (art. 54.º do CPPT), à impugnação direta e autónoma, no prazo e pelo meio legalmente previsto, de uma eventual decisão de indeferimento, sob pena de estabilização da situação mediante caso decidido ou caso resolvido e de decorrente preclusão da impugnação da liquidação de imposto nessa base.”

Nesta conformidade, é julgada improcedente a exceção da inimpugnabilidade dos atos de liquidação controvertidos.

                                              

22. Ainda neste conspecto, importa referir que a Requerida alude à existência de erro na forma de processo, reputando-o de manifesto, mas sem daí (aparentemente) retirar quaisquer consequências, pois apenas conclui “que ocorre a exceção dilatória da inimpugnabilidade dos atos de liquidação com o fundamento no suposto estatuto de RNH”.

No entanto, uma vez que estamos perante a alusão a uma nulidade processual (que, aliás, é de conhecimento oficioso – cf. artigos 193.º, n.º 1 e 196.º do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), não podemos deixar de tomar posição sobre a mesma, o que fazemos reafirmando aqui tudo quanto anteriormente se deixou dito quanto à exceção da inimpugnabilidade dos atos de liquidação controvertidos, pelo que, sem necessidade de acrescidas considerações, entendemos que não se verifica erro na forma de processo.

 

§4. O regime fiscal dos residentes não habituais: enquadramento normativo

23. Resolvidas as questões excetivas, centremos agora a nossa atenção na apreciação da questão jurídico-tributária de fundo que, como vimos, se prende com a aplicação à Requerente, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, do regime fiscal dos residentes não habituais, estando o pomo da discórdia entre as partes centrado na questão de saber se a inscrição no registo como residente não habitual possui uma natureza meramente declarativa ou, pelo contrário, se tem uma eficácia constitutiva e, por isso, constitui um pressuposto específico sem o qual não é possível beneficiar das reduções ou isenções fiscais que são conferidas aos contribuintes em razão desse estatuto de residente não habitual.

A análise da enunciada questão jurídico-tributária deve principiar pela convocação do bloco normativo aplicável, obviamente, na redação vigente à data dos factos; assim, desde logo, importa ter presente o disposto no artigo 16.º, n.ºs 8 a 12, do Código do IRS, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto:

“Artigo 16.º

Residência

(…)

8. Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9. O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10. O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11. O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12. O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.

(…)”  

 

24. A questão de saber se a inscrição no registo como residente não habitual, a que alude o n.º 10 deste artigo 16.º, possui uma natureza meramente declarativa ou, pelo contrário, se tem uma eficácia constitutiva, nos termos acima enunciados, foi já objeto de apreciação em múltiplas decisões arbitrais, sendo o entendimento dominante aquele que foi adotado, entre outras, na decisão arbitral prolatada no processo n.º 705/2022-T:

“Pois bem, em face do assim disposto, julga-se que não é possível reputar a inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual como requisito necessário e constitutivo do direito à aplicação do regime respetivo e dos benefícios fiscais dele emergentes.

Como já foi observado, por exemplo, no processo n.º 777/2020-T e acolhido no processo n.º 550/2022-T, a redação aplicável dos n.ºs 8 e 9 do art. 16.º do CIRS depõe claramente no sentido de que se trata, nessa inscrição no cadastro dos contribuintes, de um registo declarativo, cuja não realização não obvia à aplicação, verificados os pressupostos materiais exigidos, dos benefícios fiscais em causa.

É que, se o n.º 9 do art. 16.º do CIRS estabelece que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”, com o que faz depender a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual de o sujeito passivo ser considerado residente não habitual, o n.º 8 do mesmo artigo é expresso e taxativo em declarar que: “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores”.

Assim, para que o sujeito passivo seja “considerado residente não habitual” e adquira o direito a ser tributado como tal, a lei não inclui a inscrição no registo como residente não habitual, que surge no n.º 10 do mesmo artigo apenas como um dever do sujeito passivo (“deve solicitar a inscrição”), não como um requisito constitutivo dessa condição e do direito à correspondente situação tributária vantajosa.

Esta interpretação mostra-se corroborada pelo confronto com a anterior regulação do regime dos residentes não habituais. Recorde-se que, na versão do Decreto-Lei n.º 249/2009, o art. 23.º, n.º 2 do Código Fiscal do Investimento dispunha que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI” e o então n.º 7 do art. 16.º do CIRS afirmava, do mesmo modo, que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos”. Como se observa, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo dos contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 16.º do CIRS e não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.

A facti species constitutiva da situação tributária de residente não habitual e dos correspondentes benefícios fiscais em sede de IRS é, portanto, a verificação dos dois pressupostos materiais atinentes à residência fiscal em certo ano em território português e à não residência fiscal pretérita nos cinco anos anteriores nesse território. O pedido de inscrição como residente não habitual imposto pelo n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se um dever acessório do contribuinte (art. 31.º, n.º 2 da LGT) que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do benefício fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos, sendo, porém, da verificação destes requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como residente não habitual.

Assim, como dever acessório, o seu incumprimento pode gerar uma contraordenação tributária (cfr. art. 117.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), mas não interfere com o direito à redução ou isenção tributária adveniente do regime do residente não habitual, que assenta estritamente na satisfação das condições materiais legalmente previstas e não pressupõe, como requisito formal autónomo, a inscrição cadastral como tal.

Conclui-se, pois, que a aplicação do regime dos residentes não habituais exige a verificação dos requisitos de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores, mas não depende da inscrição correspondente no cadastro. Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime correspondente.”

É este também o nosso entendimento e, por isso, consideramos que o pedido de inscrição como residente não habitual, previsto no artigo 16.º, n.º 10, do Código do IRS, não tem qualquer efeito constitutivo, mas meramente declarativo.

 

            25. Atentos os contornos fáticos do caso concreto, importa ainda ter em consideração as seguintes normas do Código do IRS, também na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto:  

            “Artigo 72.º

            Taxas especiais

            (…)

            10. Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20%.

            (…)”

 

            “Artigo 81.º

            Eliminação da dupla tributação jurídica internacional

            (…)

            5. Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:  

            a) Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado;

(…)

7. Os rendimentos isentos nos termos dos n.ºs 4 e 5 são obrigatoriamente englobados para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos, com exceção dos previstos nas alíneas c) a e) do n.º 1, nos n.ºs 2 a 5 e no n.º 10 do artigo 72.º

(…)” 

            Por seu turno, para efeitos do disposto no n.º 10 do artigo 72.º e no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS, importa convocar, desde logo, a Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, na redação introduzida pela Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho, que aprova a tabela de atividades de elevado valor acrescentado, constante do respetivo anexo, da qual consta a atividade profissional “221 – Médicos”.       

            Também para efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS, importa termos presente a Convenção para Evitar a Dupla Tributação (CDT) celebrada entre Portugal e Itália, aprovada para ratificação pela Lei n.º 10/82, de 1 de junho, que no seu artigo 6.º estatui, além do mais, o seguinte:

            “Artigo 6.º   

            Rendimentos dos bens imobiliários

            1. Os rendimentos que um residente de um Estado contratante aufira de bens imobiliários (incluídos os rendimentos das explorações agrícolas ou florestais) situados no outro Estado contratante podem ser tributados nesse outro Estado.

            (…)

3. A disposição do n.º 1 aplica-se aos rendimentos derivados da utilização direta, do arrendamento ou de qualquer outra forma de utilização dos bens imobiliários.

(…)”

 

 

§5. O caso concreto: subsunção normativa

26. Volvendo ao caso sub judice e tendo em vista aquilatar a (i)legalidade dos atos tributários controvertidos, importa então determinar se deve, ou não, ser aplicado à Requerente, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, o regime fiscal dos residentes não habituais.

Atenta a factualidade que resultou provada, designadamente os factos provados a), b), d), e), f), g), i), k) e l), é manifesto que a Requerente, apesar de não estar inscrita como tal no registo dos contribuintes, pois não apresentou, através do Portal das Finanças, o respetivo pedido de inscrição (cf. facto provado h)), satisfaz as condições para ser considerada como residente não habitual, uma vez que se tornou fiscalmente residente em território português no ano de 2019, não tendo sido aqui residente em qualquer dos cinco anos anteriores.

Aliás, há que frisar que não é objeto de controvérsia entre as partes o preenchimento de tais condições para a Requerente ser considerada residente não habitual.    

Destarte, verificam-se os pressupostos legais, constantes do artigo 16.º, n.º 8, do Código do IRS, que se afiguram necessários e suficientes para que a Requerente seja considerada como residente não habitual e tributada, como tal, em conformidade com o n.º 9 do mesmo artigo 16.º.

Acresce que, a Requerente é médica (cf. factos provados c) e e)), atividade profissional que tem exercido ininterruptamente desde que se tornou fiscalmente residente em território português (cf. factos provados i), k), l), n) e o)) e que, como acima referido, é considerada uma atividade de elevado valor acrescentado, para efeitos do disposto no n.º 10 do artigo 72.º e no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS.

Dito isto, como ficou provado (não sendo, aliás, objeto de controvérsia entre as partes), a Requerente auferiu no nosso país rendimentos enquadráveis na categoria A de IRS, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, e também na categoria B de IRS, nos anos de 2019, 2020 e 2021 (cf. factos provados i), j), k), l), m), n) e o)). Ora, como a Requerente é residente não habitual em território português, tais rendimentos devem ser tributados nos termos do disposto no artigo 72.º, n.º 10, do Código do IRS, ou seja, à taxa especial de 20%.        

Por outro lado, também não é objeto de qualquer controvérsia que, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, a Requerente auferiu rendimentos de fonte estrangeira enquadráveis na categoria F de IRS, provenientes do arrendamento de um imóvel sito em Itália e do qual é proprietária (cf. facto provado p)). Ora, uma vez que a Requerente é residente não habitual em território português e, em conformidade com o disposto no artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, da CDT celebrada entre Portugal e Itália, tais rendimentos podem ser tributados em Itália, há lugar à aplicação, no nosso país, do método da isenção, como decorre do disposto no artigo 81.º, n.º 5, alínea a), do Código do IRS.

 

27. Atento o exposto, os atos de liquidação de IRS controvertidos – liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020, liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2021, liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2022 e liquidação adicional de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019 – padecem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 16.º, n.ºs 8, 9 e 10, 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, alínea a), do Código do IRS e no artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, da CDT celebrada entre Portugal e Itália; consequentemente tais atos liquidação de IRS são inválidos e devem, por isso, ser anulados (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).

 

28. No concernente às reclamações graciosas instauradas contra os atos de liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, n.º 2021..., referente ao ano de 2020, n.º 2023..., referente ao ano de 2021 e n.º 2023..., referente ao ano de 2022, importa dizer o seguinte: foram apresentadas em 03.07.2023 (contra a liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020 – cf. facto provado ff)) e em 28.08.2023 (contra as liquidações de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019, n.º 2023..., referente ao ano de 2021 e n.º 2023 ..., referente ao ano de 2022 – cf. facto provado gg)) e deveriam ter sido concluídas no prazo de quatro meses (cf. artigo 57.º, n.º 1, da LGT), sendo que, o incumprimento desse prazo, contado a partir da entrada da petição do contribuinte no competente serviço da administração tributária, faz presumir o respetivo indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial (cf. artigo 57.º, n.º 5, da LGT). Uma vez que, no procedimento tributário, os prazos são contínuos e contam-se nos termos do artigo 279.º do CC (cf. artigo 57.º, n.º 3, da LGT), as preditas reclamações graciosas deveriam ter sido decididas até aos dias 03.11.2023 e 28.12.2023; não o tendo sido, como não foram (cf. facto provado hh)), presumem-se as mesmas tacitamente indeferidas, o que já se verificava aquando da apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo, no dia 01.02.2024 (cf. facto provado ii)).

O indeferimento tácito não é um ato, mas uma ficção destinada a possibilitar o uso dos meios de impugnação administrativos e contenciosos, como decorre do preceituado no artigo 57.º, n.º 5, da LGT.

No entendimento de Jorge Lopes de Sousa[1], [a]pesar de o artigo 2.º, n.º 1, do RJAT fazer referência apenas a declaração de ilegalidade de atos, é inequívoco que nela se abrange a declaração de ilegalidade de indeferimentos tácitos, pois o n.º 1 do artigo 10.º do RJAT faz referência aos «factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» e a «formação da presunção de indeferimento tácito» vem indicada na alínea d) do n.º 1 deste artigo 102.º (…)

O indeferimento tácito presume-se que se baseia em razões de mérito e não em obstáculos processuais.”

No mesmo sentido, Carla Castelo Trindade[2] afirma que “na medida em que o indeferimento tácito consiste apenas numa ficção de acto, aquela apreciação da (i)legalidade do acto de primeiro grau não existe – de facto – nestes casos. Em rigor, presume-se.»; sendo que, quanto «à questão de saber se se inclui ou não no âmbito material da arbitragem tributária a apreciação de acto de indeferimento tácito”, a mesma é perentória a afirmar que [a] resposta é sim”.      

Dito isto e atento o acima afirmado quanto à ilegalidade dos atos de liquidação de IRS controvertidos, há que concluir também pela invalidade dos indeferimentos tácitos das aludidas reclamações graciosas.

 

§6. A restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios

29. O Tribunal é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre a restituição à Requerente do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do estatuído no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e no artigo 61.º, n.º 4, do CPPT.

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estatuir que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Ora, dependendo o direito a juros indemnizatórios do direito à restituição de quantias pagas ou retidas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito à restituição dessas quantias.

 

Cumpre, então, apreciar e decidir.

 

30. Na sequência da declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários controvertidos, nos termos acima enunciados, há lugar à restituição das prestações tributárias indevidamente suportadas pela Requerente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se aqueles atos tributários não tivessem sido praticados nos termos em que foram.

Destarte, procede o pedido de restituição à Requerente dos montantes por esta indevidamente suportados a título de IRS, referente aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, a serem determinados em execução da presente decisão (cf. factos provados z), aa), bb) e dd)).

 

31. Acresce que, como estatui o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, determinando o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT que os “juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos”.

No caso concreto, afigura-se que a ilegalidade e a consequente anulação dos atos tributários controvertidos, nos termos acima enunciados, é imputável à AT por ter incorrido em vício de violação de lei, gerador de anulabilidade.

Por consequência, tem a Requerente direito a juros indemnizatórios, a liquidar após a determinação, em cumprimento da presente decisão, dos montantes de IRS, referente aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, por ela indevidamente suportados; uma vez determinados esses montantes, deverão então ser liquidados os respetivos juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

32. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (cf. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

IV. Decisão

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar improcedente a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral;
  2. Julgar improcedente a exceção da inimpugnabilidade dos atos de liquidação controvertidos;
  3. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
  1. Declarar ilegal e anular, com as legais consequências:
  • A liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019;
  • A liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020;
  • A liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2021;
  • A liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2022; e
  • A liquidação adicional de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2019;    
  1. Declarar ilegais e anular os indeferimentos tácitos das reclamações graciosas instauradas contra os atos de liquidação de IRS n.º 2023.., referente ao ano de 2019, n.º 2021..., referente ao ano de 2020, n.º 2023..., referente ao ano de 2021 e n.º 2023..., referente ao ano de 2022, com as legais consequências;
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira:
  • A restituir à Requerente os montantes de IRS, relativo aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, que, em execução da presente decisão, se determine terem sido por ela indevidamente suportados;
  • A pagar juros indemnizatórios à Requerente, calculados sobre os preditos montantes de imposto a restituir, nos termos legais;
  • No pagamento das custas processuais.

 

 

V. Valor do Processo

Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 16.663,37 (dezasseis mil seiscentos e sessenta e três euros e trinta e sete cêntimos).

 

VI. Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte quatro euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique.

 

Lisboa, 3 de outubro de 2024.

 

O Árbitro,

 

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Guia da Arbitragem Tributária, Nuno de Villa-Lobos e Tânia Carvalhais Pereira (Coordenação), 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 130 e 135.

[2] Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Anotado, Almedina, Coimbra, 2016, p. 72.