Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 107/2024-T
Data da decisão: 2024-09-30   Outros 
Valor do pedido: € 321.859,41
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário; Pressupostos processuais; Legitimidade do repercutido, directo e indirecto, para suscitar a ilegalidade dos actos de liquidação de impostos especiais de consumo.
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SUMÁRIO:

 

I – Como, por definição, os actos de repercussão são diferentes dos actos de liquidação e uma vez que a competência legalmente atribuída aos Tribunais Arbitrais se circunscreve, no aqui relevante, à avaliação de actos de liquidação, os actos de repercussão são, qua tale, inarbitráveis.

II – Tendo sido formulado pedido de declaração de ilegalidade das “liquidações de CSR” por parte de Requerentes que não são sujeitos passivos de ISP/CSR, importa aferir preliminarmente da natureza da imposição tributária impugnada.

III – A designação que o legislador adoptou para uma parcela do ISP que, durante algum tempo, foi dele legalmente autonomizada, é irrelevante para determinar a sua natureza jurídica.   

            IV – Todos os tribunais arbitrais são dotados da competência da competência e esta implica que possam determinar a natureza jurídica das situações que lhe podem ser submetidas.

V – Os únicos factos relevantes para apurar a legitimidade das Requerentes para impugnar os actos de liquidação da CSR são os referentes às relações estabelecidas com os sujeitos passivos que intervieram nesses actos. Isso implica que a própria repercussão invocada pode ser de 1.º grau, ou de 2.º ou mais graus.

VI – Havendo um regime especial de revisão no Código dos Impostos Especiais de Consumo, para o qual remetia o n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, o círculo dos potenciais impugnantes dos actos de liquidação da CSR coincide necessariamente com o círculo dos potenciais credores do reembolso (até porque só eles podem invocar um interesse relevante) e está delimitado no artigo 15.º, n.º 2, do CIEC.

VII – Estando apenas em causa a apreciação, numa jurisdição facultativa e de âmbito limitado, como é a arbitral, da legitimidade de quem não é sujeito passivo de imposto para pôr em causa uma relação tributária em que não participa, não faz qualquer sentido sujeitar tal questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 25 de Janeiro de 2024, “na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito dos Pedidos de Revisão Oficiosa, apresentados a 30 de junho de 2023, junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, da Alfândega de Aveiro, da Alfândega de Viana do Castelo e da Divisão de Figueira da Foz da Alfândega de Aveiro, relativos às liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) com base nas Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”) submetidas pela A..., S.A., pela B..., S.A., pela C..., S.A., pela D..., Lda., pela E..., S.A., pela F..., S.A. e pela G..., Lda.”,

-H..., S.A., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Porto;

- I..., LDA., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede na Rua  ..., n.º ...,  ..., ..., ...-... Terrugem;

- J..., LDA., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede em ..., ..., ..., ..., ...-... Viana do Castelo;

- K..., S.A., titular do número único de pessoa coletiva..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Porto;

- L..., S.A., titular do número único de pessoa coletiva..., com sede na Rua..., n.º..., ...-... Porto;

- M..., UNIPESSOAL, LDA., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Porto;

- N..., UNIPESSOAL, LDA., titular do número único de pessoa coletiva..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Porto;

- O..., LDA., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede na ..., n.º ...,  ..., ...-... Paio Pires;

- P..., LDA., titular do número único de pessoa coletiva..., com sede na Rua..., n.º .../..., ...-... Viseu; e,

- Q..., LDA., anteriormente titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede em ..., ...-... Ponte de Vagos (doravante, abreviadamente designada por «Q...»), e

- R..., S.A., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Porto (doravante, «R... »), por si e em representação da “Q...”,

(Requerentes), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, al. a), e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

  1. Pretendiam que fosse declarada “a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas Requerentes no decurso do período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustível, determinando-se, nessa medida, a sua anulação, com as demais consequências legais, designadamente, com o reembolso às Requerentes de todas as quantias suportadas a esse título, no montante global de € 321.859,41, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios.”.
  2. Em 2 de Fevereiro, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) apresentou requerimento, dirigido ao Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), nos seguintes termos:

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), notificada em 31/01/2024 do pedido de constituição de tribunal arbitral no processo supramencionado, apresentado por H... S.A., titular do número único de pessoa coletiva ..., e outros, vem informar, que analisado o pedido, não detetou a identificação de qualquer ato tributário. Identificação que, aliás, também não consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária.

Tendo em conta, que

A competência dos tribunais arbitrais, que funcionam no CAAD, abrange exclusivamente a apreciação direta da legalidade de ato(s) de liquidação ou de ato(s) de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de ato(s) daquele tipo, conforme decorre do n.º 1, do artigo 2.º do RJAT e como se depreende das referências expressas que se fazem na alínea a), do nº 1, do artigo 10.º, do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT;

Conforme dispõe expressamente a alínea b), do nº 2, do artigo 10º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;

Sem a identificação, por parte dos interessados, do ato ou atos tributários, cuja ilegalidade é invocada, não pode o dirigente máximo da AT exercer a faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT.

Solicita-se que seja(m) identificado(s) os ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação, à Autoridade Tributária e Aduaneira, da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.

  1. Nomeados os árbitros que constituem o presente Tribunal Arbitral em 14 de Março de 2024, e não tendo nem as Requerentes nem a Requerida suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 3 de Abril.
  2. Tendo o Presidente do CAAD entendido que seria o Tribunal Arbitral a entidade competente para a pronúncia sobre o requerido pela AT, foi o requerimento referido em 3. integrado nos autos. Porém, sendo ele dirigido a entidade alheia ao Tribunal Arbitral Colectivo, entendeu este que a pretensão da Requerida poderia ser-lhe apresentada na sua resposta, razão pela qual, em 3 de Abril, foi proferido despacho a convidar a AT a, querendo, apresentá-la e solicitar a produção de prova adicional no prazo de 30 dias.
  3. Em 7 de Maio, a AT apresentou resposta – em que, entre o mais, suscitou as excepções adiante apreciadas – e juntou o processo administrativo (PA).
  4. Em 20 de Maio, foi proferido despacho que, entre o mais, concedia prazo às Requerentes para replicar às excepções suscitada pela AT.
  5. Em 3 de Junho, as Requerentes apresentaram a sua réplica e juntaram uma missiva, sem data, em papel timbrado da E..., S.A., dirigido à J..., LDA., em que aquela refere que, “na qualidade de entreposto fiscal, em que introduziu no consumo produtos petrolíferos, está a desenvolver as diligências necessárias à recuperação da CSR”, embora não tivesse “até à presente data obtido qualquer decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a este respeito.”.

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
  2. Requerentes e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas.
  3. Importa estabelecer preliminarmente – e oficiosamente – se o pedido de pronúncia arbitral (PPA) se contém no âmbito das atribuições do tribunal arbitral e, atentas também as excepções invocadas pela AT, a da sua legitimidade passiva e a da legitimidade activa das Requerentes.
  4. É o que se verá a seguir.

 

 

  1. DIREITO

III.1. Questões a decidir

Seguindo o percurso argumentativo das decisões dos processos n.os 296/2023-T e 332/2023, ambas de 1 de Fevereiro de 2024, com as devidas adaptações às circunstâncias do caso, entende o presente Tribunal que o primeiro núcleo de questões a discutir é o da arbitrabilidade da disputa.

Isso supõe estabelecer, em primeiro lugar, três coisas:

a) que a jurisdição arbitral pode aferir se a CSR é um imposto ou uma contribuição;

b) que, sendo uma contribuição, ainda assim está dentro do perímetro de jurisdição atribuída legalmente aos Tribunais Arbitrais do CAAD;

c) que, sendo um imposto ou uma contribuição, está compreendida no âmbito de vinculação que foi fixado para a AT pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (que “Vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa”, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do RJAT).

Todas estas questões são puramente de Direito.

Em segundo lugar, e caso se conclua pela competência do Tribunal para decidir sobre matérias atinentes à CSR, importa apurar se é competente para se pronunciar:

-  sobre os actos de liquidação que ocorreram entre a AT e os fornecedores de gasóleo rodoviário e gasolina às Requerentes que eram sujeitos passivos de ISP/CSR: a A..., S.A., a B..., S.A., a C..., S.A., a D..., Lda., e, até Outubro de 2020, a E..., S.A.; e

- sobre os actos de liquidação que não ocorreram entre a AT e os fornecedores de gasóleo de gasóleo rodoviário e gasolina às Requerentes que não eram sujeitos passivos do ISP/CSR: a F..., S.A., a G..., Lda. e, depois de Outubro de 2020, a E..., S.A.).

Um segundo núcleo de questões é o que se prende com a posição das Requerentes no processo arbitral. Assim, passado o anterior nível de análise, importa avaliar:

  1. se foi liquidada CSR às Requerentes, ou, pelo menos, se adquiriram combustíveis a alguém que a tenha pago;
  2. a legitimidade e interesse das Requerentes em relação aos dois pedidos formulados (ou só em relação àquele que seja considerado arbitrável, se algum), uma vez que os requisitos para se conhecer da “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas Requerentes” (que é o pedido – e o interesse – imediato desta) não são idênticos aos que se colocam para se poder decidir sobre “a ilegalidade (…) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustível” (que constitui o pedido “consequencial” das Requerentes), e
  3. a legitimidade e interesse das Requerentes em relação ao que, afinal, são dois pedidos diferentes em relação à anulação dos actos de liquidação: por um lado, quanto à sua pretendida intromissão na relação tributária entre a AT e os sujeitos passivos do ISP/CSR, e, por outro, quanto à sua pretendida intromissão na não-relação (tributária ou outra) entre a AT e os não-sujeitos passivos do ISP/CSR que lhe forneceram combustíveis.

Um terceiro núcleo de questões a discutir – caso se ultrapassem as anteriores – é o da regularidade do PPA. Isso implica estabelecer, em primeiro lugar, que

a) o PPA não era inepto (por não identificação dos actos de liquidação visados, como foi alegado pela AT, ou por contradição entre o pedido e a causa de pedir[1], ou, parcialmente, por se pretender a anulação de actos de liquidação que envolviam fornecedores interpostos e, portanto, implicavam sujeitos que nem sequer se tinham relacionado com a AT a propósito da CSR) e que

b) o que o PPA visava não era uma pronúncia abstracta sobre o regime da CSR (como a AT entendeu que visava).

Um quarto núcleo de questões, se acaso se resolverem positivamente as anteriores, tem a ver com a regularidade do pedido de revisão oficiosa, pressuposto necessário, desde logo, da tempestividade do pedido arbitral. No caso, isso passaria por estabelecer:

a) a legitimidade das Requerentes para solicitarem essa “revisão oficiosa” (sendo certo que o estatuto de sujeito passivo da relação tributária – o único para o qual remete a norma do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) – não é o seu, como aliás admitiram expressamente; e sendo certo que a norma do n.º 2 do artigo 15.º do CIEC reserva aos sujeitos passivos da relação tributária a possibilidade de obter o reembolso desses impostos e, portanto, admissivelmente, o interesse em desencadear a sua revisão; e sendo ainda para mais certo que as Requerentes pretendiam, nesse pedido de revisão, a anulação da parcela de CSR da tributação que incidira não apenas sobre quem lhe forneceu combustível sendo sujeito passivo desse tributo – a A..., S.A., a B..., S.A., a C..., S.A., a D..., Lda., e, até Outubro de 2020, a E..., S.A. –, mas também sobre quem lhe forneceu combustível não sendo sujeito passivo desse tributo – a F..., S.A., a G..., Lda. e, depois de Outubro de 2020, a E..., S.A.) –, pretendendo, portanto, anular actos de liquidação que terão ocorrido entre a AT e quem forneceu os seus fornecedores de combustíveis, ou – não se sabe – actos de liquidação que terão ocorrido entre a AT e quem forneceu quem forneceu os seus fornecedores de combustíveis, ou por aí adiante);

b) a tempestividade do pedido de revisão (quer em termos do fundamento invocado –uma vez que os prazos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT são diferentes consoante tais fundamentos –, quer em termos da contagem desses prazos a partir do dies a quo relevante, que é o da cobrança do imposto, não da sua sucessiva repercussão, a ter ocorrido esta); e

c) a regularidade do pedido de revisão (na medida em que tem de ser dirigido ao autor do acto – o n.º 1 do artigo 78.º da LGT prevê a “revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou” e o n.º 3 do artigo 15.º do CIEC estipula que o “pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente”; e na medida em que as entidades a quem as Requerentes apresentaram tal pedido poderiam não ter sido, no caso, as autoras dos actos de liquidação de ISP/CSR que pretenderam impugnar).

Uma quinta questão, a ser abordada só após resolvidas as anteriores a favor da competência do Tribunal, da arbitrabilidade da questão suscitada e da legitimidade, tempestividade e regularidade das pretensões formuladas junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, da Alfândega de Aveiro, da Alfândega de Viana do Castelo e da Divisão de Figueira da Foz da Alfândega de Aveiro e, consequentemente – mas não só consequentemente – também junto deste Tribunal, seria a da (i)legalidade da cobrança dos valores da CSR face ao Direito da União ou à Constituição. Sobretudo porque o que está em causa, na materialidade das coisas, é apenas uma (transitória) alteração da designação atribuída a uma parte do ISP, que era integralmente válido antes de o legislador lhe mudar o nome para CSR (e de consignar essa parcela do que era antes o ISP), e continuou a sê-lo depois de o legislador ter deixado de lhe chamar CSR (mesmo tendo continuado a consignar a mesma receita à mesma entidade)[2].

Um sexto núcleo de questões seria o da possibilidade de dissociação dos actos de liquidação da CSR e do ISP, sendo certo que só aqueles estavam em causa – o que se poderia designar como a questão da dissociação jurídica; e, uma vez que a não repercussão integral e exacta dos montantes de tributação incidentes sobre os combustíveis (que decorre desde logo de haver facturas que fazem referência a “descontos”[3]) poderia ter a ver com qualquer das componentes da imposição fiscal única, determinar qual delas (ou qual a percentagem de qualquer delas) é que não teria sido repercutida integralmente – o que se poderia designar como a questão da dissociação económica.

Finalmente, um sétimo núcleo de questões teria a ver com tecnicalidades da decisão a proferir em caso de juízo de desconformidade da CSR e das implicações dessa desconformidade na situação das Requerentes (e das suas fornecedoras de combustíveis), designadamente:

  1. A possibilidade de duplicação dos “reembolsos”, caso as fornecedoras de combustíveis – tanto as que eram sujeitos passivos do imposto como as que, não o sendo, os adquiriram a essas, ou a quem os adquiriu a essas – entendessem usar dos mesmos mecanismos (ou de outros) para obter o reembolso dos montantes pagos a título de CSR[4];
  2. A não-homogeneidade da tributação no momento da introdução no consumo e no da sua repercussão (os problemas da ampliação dos volumes com a variação das temperaturas e do possível desfasamento entre sujeitos passivos e repercutidos, miscigenando os volumes de combustíveis que passam de uns para outros);
  3. A correspondência a estabelecer entre a tributação por grosso e a repercussão a retalho e entre as entidades que aparecem como responsáveis pela introdução no consumo e as entidades que comercializam os combustíveis já onerados com a CSR;
  4. A correspondência a estabelecer entre as facturas identificadas pelas Requerentes e as declarações de introdução no consumo que originaram a cobrança da CSR[5];
  5. A possibilidade de ter havido também repercussão a jusante[6] e as suas implicações.

 

Prossigamos então, por ordem, começando pelas questões de competência e âmbito da jurisdição, que, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – aplicável por força do disposto na alínea c) do n.º 1 artigo 29.º do RJAT – “precede o de qualquer outra matéria”.

 

 

III.2. A questão da arbitrabilidade

III.2.1. A possibilidade de haver processos arbitrais sobre contribuições e a natureza da CSR

 

Uma vez que a competência dos tribunais arbitrais a constituir no âmbito do CAAD está estabelecida no artigo 2.º do RJAT e abrange (al. a) do seu n.º 1) a “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”, mas o proémio do n.º 2 da já citada Portaria n.º 112-A/2011 circunscreveu – ao menos literalmente – tal vinculação às “pretensões relativas a impostos cuja administração (…) esteja cometida” à AT, tem-se discutido se as pretensões referentes a “contribuições” podem ser objecto de apreciação por tais tribunais[7]. Aliás, diz-se na Resposta da AT que “independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica da CSR, a verdade é que não é, por definição, um imposto e, portanto, o CAAD não tem competência para decidir sobre esta matéria.”.

Na sua resposta às excepções suscitadas pela AT, as Requerentes procuraram contrariar esta posição da AT defendendo que, “a CSR consubstancia uma prestação devida pelo grupo de presumíveis utilizadores da rede rodoviária nacional (identificados por via do seu consumo de combustível) na medida em que essa utilização dê origem a presumíveis maiores despesas de gestão da respetiva rede rodoviária” e que, de resto, “deve, atenta a sua qualidade de contribuição especial por maiores despesas (segregada pelo legislador constitucional de 1997 do conceito de contribuições financeiras consagrado na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa), ser perspetivada como um verdadeiro imposto, quer em sede constitucional, quer, consequentemente, em sede infraconstitucional.”.

Embora o problema não se esgote na qualificação da CSR como imposto ou contribuição (como se verá adiante), entende o presente Tribunal que a CSR era um imposto (mal) disfarçado de contribuição. Como se escreveu no Sumário da decisão do processo n.º 629/2021-T, “Uma parcela de um imposto especial de consumo não deixa de ser um imposto especial de consumo por o legislador lhe atribuir uma narrativa (de resto oscilante entre a compensação de custos e a contrapartida de benefícios) e lhe providenciar uma consignação orgânica (mormente se a entidade que dela beneficia deixa de ter como função única providenciar a suposta contrapartida que justificaria a alteração de género)”.

Nessa decisão, os argumentos usados para caracterizar a CSR como imposto foram essencialmente os seguintes (negritos no original, *notas suprimidas):

- histórico:

A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (“Regula o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E.”) criou a CSR por desdobramento do ISP – que é, indiscutivelmente, um imposto especial de consumo. Como se escrevia no artigo 7.º dessa lei, sob a epígrafe “Fixação das taxas do ISP”,

“As taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário”.

“(…) a única diferença entre os € 525,1 milhões que o ISP perdeu e os € 525,1 milhões que a CSR ganhou em 2008 residiu na alteração da sua designação e na sua afectação. Enquanto imposto especial de consumo louvava-se na cobertura de um custo: os custos ambientais que o preço dos combustíveis não internalizavam (uma externalidade). A partir do momento em que uma parte – arbitrária – da receita gerada pelo ISP passou a ter a designação de CSR, passou (parece – mas contra o já referido pelo legislador*) a louvar-se no benefício proporcionado aos causadores do custo”.

 

- conceptual:

Procurando identificar os critérios de distinção das taxas, das contribuições financeiras*, das contribuições especiais e dos impostos”, a A. [Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013] recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:

1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”

(…)

a CSR apresenta diferenças muito significativas em relação ao comum das contribuições financeiras, sejam elas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou as “grandes contribuições” que foram surgindo a título transitório e se vão mantendo (Contribuição sobre o Sector Bancário, Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético - CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, …).

Em primeiro lugar, nessas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições”, o sujeito passivo é o contribuinte (na CESE há mesmo uma proibição da sua repercussão), enquanto que na CSR um e outro são diferentes: o sujeito passivo (quem tem de entregar o imposto ao Fisco) é o introdutor dos produtos no mercado e o contribuinte (quem tem de suportar a exacção fiscal) é o adquirente dos combustíveis (incluindo, como a já citada jurisprudência arbitral evidencia, adquirentes de combustíveis que nada têm a ver com a utilização das estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal).

Em segundo lugar, o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas colectivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária. (…)

Em terceiro lugar, enquanto nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições” é a pertença ao grupo que permite de imediato a identificação do devedor – sendo a indução de um custo ou a obtenção de um benefício presumida a partir dessa inclusão nele – na CSR não há nenhum grupo prévio a que se possa imputar o pagamento: é porque se paga a CSR que se supõe que se integra o grupo. (…)

Em quarto lugar, o princípio da equivalência – a que se recorre para conferir unidade de sentido às contribuições financeiras*, equiparando-se o pagamento feito à repartição, tendencialmente idêntica (ou, pelo menos, com base em características dadas e estáveis), dos custos especificamente gerados pelo grupo homogéneo (ou dos benefícios auferidos pelo grupo homogéneo, como nas “taxas” das autoridades reguladoras, ou, forçando mais ou menos a nota, nas tais “grandes contribuições”) – assume na CSR uma ligação a um índice variável: o do consumo dos “grandes combustíveis rodoviários”*. Com a agravante de o presumido benefício não ter uma relação directa com esse índice variável: por um lado, as vias da Rede Rodoviária Nacional (que foram concessionadas, em 2007, à EP - Estradas de Portugal, E.P.E.) não são a totalidade das estradas nacionais (além das auto-estradas concessionadas, e da rede municipal – urbana e rural –, o Plano Rodoviário Nacional prevê a transferência para as autarquias das estradas que não estejam nele incluídas). Noutras palavras: a utilidade proporcionada pela circulação nas estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal não é segmentável da que é proporcionada pelas demais; por outro lado, uma fracção crescente dos utilizadores dessa sub-parcela das vias de circulação automóvel – a rede rodoviária nacional – não fica sujeita a essa “contribuição”: o dos utilizadores dela com veículos eléctricos ou velocípedes. (…)

Em quinto lugar, e não obstante – como já referido – não ser bom critério determinar a natureza de um tributo a partir da sua consignação material ou orgânica*, certo é que a EP - Estradas de Portugal, E.P.E. só gastava o dinheiro em estradas (e no mais necessário a poder fazê-lo, incluindo as suas despesas correntes), mas, com a fusão, em 2015, com a Rede Ferroviária Nacional - REFER E.P.E. para dar origem à Infraestruturas de Portugal, isso deixou de ser assim”.

 

E, em termos de índices da natureza da CSR[8],

- doutrinal:

“- na recolha de Casalta Nabais Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, refere-se, a propósito da CSR (e de outras figuras aí referidas), “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal”. Como o A. escreve em Direito Fiscal, 11.ª ed, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 53-54, “o critério para a distinção entre os tipos de tributos [reporta-se] exclusivamente à estrutura da relação tributária, ao tipo de relação que se estabelece entre os respetivos sujeito ativo e passivo, e não à titularidade activa dessa relação (…) É, pois, a estrutura bilateral da relação jurídica, em que assentam tanto as taxas como as contribuições financeiras, que revela a natureza comutativa destes tributos, os quais, porque concretizam uma efectiva troca de utilidades económicas, têm por base […] uma legitimidade económica. / O que vale também relativamente à titularidade da receita dos tributos. De facto, esta titularidade, até porque esta para além da relação tributária integrando [-se …] numa relação financeira a constituir-se a jusante da relação tributária, nada pode dizer sobre o tipo de tributo” (destaques aditados).

(…)

Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., p. 116, sublinha que “o nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, e desdobra este, na página seguinte, numa “homogeneidade de interesses” – que, segundo informa, na literatura alemã por vezes se designa por “homogeneidade de grupo” – e numa “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem”.

E,

- jurisprudencial:

apenas DUAS das 19 decisões do CAAD que a Requerente invoca (na sua Resposta às excepções) para afirmar que tais tribunais arbitrais têm aceite a sua jurisdição sobre a CSR o poderiam substanciar (as dos processos n.os 483/2014-T e 147/2015-T8, que autonomizaram o seu tratamento), sendo as demais resultantes da consideração indiferenciada da CSR com o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP).

O mesmo se diga para a jurisprudência dos Tribunais superiores, ainda que estes não tenham de cuidar da delimitação da sua competência em função da natureza do tributo, e se não conheçam decisões suas sobre a CSR.

Também não é indiferente que o Tribunal de Contas, a pp. 90 do seu Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2008 (https://erario.tcontas.pt/pt/actos/parecer-cge/2008/pcge2008-v1.pdf ), tenha considerado o seguinte:

Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança”.

 

No mesmo sentido pode ver-se, por exemplo, a argumentação da decisão do processo n.º 644/2022-T (que, neste ponto, foi parcialmente reproduzida na decisão do processo n.º 467/2023-T):

Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.

Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.

Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal.

Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008

(…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza”.

 

Evidentemente, sendo a CSR um imposto, a questão da competência do presente Tribunal deixa de ser controvertida, e fica prejudicada a indagação de saber se as questões relativas às contribuições se incluem no âmbito da jurisdição dos Tribunais arbitrais do CAAD.

 

*

 

Como se antecipou, isso não encerra a questão porque, sem dar nota de que a sua argumentação subsequente era completamente distinta da tese da natureza que imputava à CSR (uma contribuição, não um imposto), a Resposta da AT volta-se de seguida para a tese que, por maioria, prevaleceu na decisão do processo n.º 31/2023-T (que extensamente transcreve), e – diz a AT – se manteve nas “decisões proferidas no âmbito dos processos n.ºs 508/2023-T, 520/2023-T e 675/2023-T[9]. E distinta (se é que não incompatível) porque nestas decisões se admitiu a eventual classificação doutrinal da CSR como imposto (negrito aditado):

utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal.

 

Essa tese – que invoca o que parece ser uma presunção judicial iuris et de iure de falta de vinculação da AT à arbitragem do CAAD em todas as liquidações referentes a algo que o legislador não tenha designado como imposto, qualquer que seja a sua natureza jurídica –, que na Resposta da AT é assumida por referência à transcrição da decisão do processo n.º 31/2023-T, já foi apreciada na decisão do processo n.º 688/2023-T, onde fora a única linha argumentativa da AT. Como aí se notou, apontando exemplos,

A ideia de que a vinculação da AT à jurisdição arbitral depende estritamente da letra da portaria – quaisquer que pudessem ser as reservas que existiriam na altura da sua aprovação quanto à jurisdição arbitral tributária –, vedando a esta jurisdição arbitral a competência da competência que lhe é típica (cfr. artigo 18.º da Lei da Arbitragem Voluntária - LAV[10]) como reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça[11], não parece ser congruente com o pacífico alargamento da competência dos tribunais arbitrais para lá da letra do RJAT, designadamente onde a letra da Portaria n.º 112-A/2011 apontava para outra solução.

 

Como quer que seja, tal tese tem a particularidade de levar materialmente ao mesmo resultado da generalidade das decisões do CAAD sobre a CSR: em situações em que as Requerentes não são sujeitos passivos da relação tributária (já não assim quando o são), chega à mesmíssima solução das teses que, por caminhos não coincidentes, recusam conhecer de mérito – quer por diagnosticarem falta de legitimidade das Requerentes (decisões dos processos n.os 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 409/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 537/2023-T e 604/2023-T), quer por identificarem ineptidão da petição inicial (decisões dos processos n.os 364/2023-T, 467/2023-T[12] e 537/2023-T[13]). Na verdade, com qualquer desses fundamentos, a AT é absolvida da instância e as custas arbitrais recaem sobre as Requerentes.

Vejamos então se esse é também o caso aqui.

 

 

 

III.3. A questão da posição das Requerentes no processo arbitral

 

Como se viu, as Requerentes solicitaram ao Tribunal duas coisas: que fosse declarada a ilegalidade

 - “dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas Requerentes no decurso do período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022

e,

- “das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustível”.

A arbitrabilidade do litígio tanto pode resultar do primeiro pedido, como do segundo, como de ambos. A jurisprudência arbitral sobre CSR que tinha sido desencadeada pelos sujeitos passivos, ie, pelos intervenientes na relação jurídico-tributária, não abordou a questão de saber se:

  1. é possível em geral aos tribunais arbitrais apreciarem “a ilegalidade dos atos de repercussão” e se, sendo isso possível em geral,
  2. também é possível apreciar “a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR” (como se referia no pedido das Requerentes).

Ambas as questões foram, porém, objecto de tratamento nas decisões proferidas nos processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T, ambas de Janeiro de 2024, e, desde então, em inúmeras mais[14].

Como se viu, na sequência da presunção do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa que tinham apresentado em relação a Declarações de Introdução no Consumo das suas sete empresas fornecedoras de combustíveis – e muito embora em relação a duas essas declarações inexistissem e em relação a outra só pudessem existir em relação a uma parte do período visado – as Requerentes solicitaram ao Tribunal que fosse declarada “a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas Requerentes no decurso do período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustível, determinando-se, nessa medida, a sua anulação”.

Face ao disposto no artigo 2.º do RJAT (epigrafado “Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável”) a questão da arbitrabilidade de questões de repercussão parece claramente fora do perímetro das atribuições cometidas ao CAAD pelo legislador do RJAT. Aliás, mesmo sem a limitação da jurisdição arbitral que resulta imperativamente de tal norma, sempre se diria que – por definição – um dos intervenientes necessários na arbitragem tributária tem de ser a AT, e, se a AT não intervém nas relações sucessivas (de 1.º, 2.º, ou mais graus) que se estabelecem entre agentes económicos em fases sucessivas do circuito de comercialização dos bens, necessário seria que tais relações se revestissem de natureza tributária e implicassem a sua imputação à AT.

Quanto à impugnabilidade dos actos de liquidação, há claramente uma diferença entre as Requerentes pretenderem interferir na relação tributária ocorrida imediatamente a montante (entre a AT e os seus fornecedores de combustíveis que, sendo sujeitos passivos, pagaram o montante de CSR correspondente ao gasóleo e à gasolina que introduziram no consumo – e que, numa pequena parte, foram adquiridas pelas Requerentes) ou pretenderem interferir na mesma relação tributária (entre a AT e os seus fornecedores de combustíveis que, sendo sujeitos passivos, pagaram o montante de CSR correspondente ao gasóleo e gasolina que introduziram no consumo) porque, directa ou indirectamente, esses venderam esse gasóleo e gasolina, numa pequena parte, a outras empresas que, numa parte ainda menor, o venderam às Requerentes. Por analogia com uma terminologia consagrada a outro propósito, é como se as Requerentes se arrogassem não apenas o direito de interferir em 2.º grau no acto de liquidação (como, nos casos em que, não sendo parte da relação da AT com o sujeito passivo, adquiriram directamente a este o combustível onerado com a CSR), como também em 3.º (ou 4.º, …) grau(s) (como, nos casos em que, não sendo parte da relação da AT com o sujeito passivo, adquiriram o combustível onerado com a CSR a quem o adquiriu a um sujeito passivo, ou a quem esse sujeito passivo o vendeu, ou a quem comprou esse combustível a quem o tinha comprado ao sujeito passivo e por aí adiante…).

Vejamos então, começando por estabelecer os factos necessários a decidir dessas possibilidades:

 

 

III.4. Factos provados

 

  1. Em 2019, 2020, 2021 e 2022, as Requerentes adquiriram à A... Ca, S.A., à B..., S.A., à C..., S.A., à D..., Lda., à E..., S.A., à F..., S.A. e à G..., Lda. gasolina e gasóleo rodoviário sobre os quais incidiu CSR, nos montantes correspondentes à seguinte listagem de facturas:

 

F...

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G...

 

G...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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B...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

R...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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J...

 

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N...

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J...

O...

 

 

 

 

 

 

 

 

J...

 

 

 

 

 

 

G...

 

  1. A A..., S.A., a B..., S.A., a C..., S.A., e a D..., Lda., foram, entre Junho de 2019 e Dezembro de 2022 sujeitos passivos de ISP/CSR;
  2. Nesse período, a F..., S.A. e a G..., Lda., não foram sujeitos passivos de ISP/CSR;
  3. Nesse período, a E..., S.A., só foi sujeito passivo de ISP/CSR até Outubro de 2020.

 

 

 

III.5. Fundamentação dos factos provados

 

A listagem supra reproduzida consolidava as facturas que as Requerentes juntaram aos autos, e demonstra que as Requerentes adquiriram, às referidas fornecedoras de combustíveis, gasolina e gasóleo rodoviário sobre o qual – salvo ilegalidades na introdução no consumo – tinha incidido CSR nesse momento.

A qualidade de sujeitos passivos (ou não) das fornecedoras de combustíveis das Requerentes resultou das afirmações da AT, não contraditadas pelas Requerentes.

 

 

  1. 6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de repercussão

 

Como as próprias Requerentes reiteraram no PPA, “emergem no âmbito da CSR, necessariamente, duas tipologias distintas de atos tributários:

  1. os atos de liquidação de CSR, emitidos pela AT com base nas DIC apresentadas pela fornecedora de combustível (…)
  2. os atos de repercussão da CSR liquidada (…)”.

 

Ligando ambos, na sua resposta às excepções, as Requerentes invocaram que

 

em matéria de CSR a relação estabelecida entre cada uma das Requerentes e o respetivo fornecedor de combustível não se traduz apenas numa relação privada entre empresas, à qual a administração tributária é estranha, mas, igualmente, como vem sendo apontado pela doutrina e pela jurisprudência, numa relação jurídico-tributária de repercussão legal, onde se inclui, obviamente, a AT (Requerida)”.

 

Seja isso assim ou não – e já se verá que desinteressa discuti-lo em sede arbitral – o certo é que, como os Colectivos que decidiram os processos n.os  296/2023-T, 332/2023-T, 409/2023-T, 466/2023-T, 490/2023-T, 688/2023-T, 847/2023-T, 981/2023-T e 1044/2023-T – o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa[15] – na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas  corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier[16], distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária”.

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa[17], entre o terceiro repercutido

e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado”.

 

Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido das Requerentes (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário por elas adquiridos).

Tal não impede que, por via do seu segundo pedido (o de que o Tribunal declare a ilegalidade das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pelas respectivas fornecedoras de combustível), as Requerentes possam ainda obter uma pronúncia de mérito da jurisdição arbitral. Isso, porém, depende de outra indagação:

 

 

  1. 7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (na medida em que estejam ligados a actos de repercussão)

 

Numa passagem do seu manual[18], Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral[19].

            Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias[20]. Fê-lo a coberto do argumento da ineptidão do PPA por não incluir “a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido arbitral;”, como expressamente exigido na alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT; fê-lo invocando o “Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul datado de 30-06-2022, processo n.º 138/17.5BELRS (…) a petição inicial de impugnação que não identifica o ato tributário impugnado, que não formula a pretensão concreta por referência àquele e que não indica os factos concretos que justificariam a adopção da providência judiciária requerida é inepta”; mas fê-lo igualmente com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, invocando Sérgio Vasques e Tânia Carvalhais Pereira (Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2016, p. 364: “O reembolso por erro corresponde, materialmente, à revisão do ato tributário, com fundamento em erro dos serviços, previsto no artigo 78º da LGT, aqui com um prazo mais curto de 3 anos”), fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (negrito e sublinhado no original):

apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago.”.

 

Isto porque “no âmbito dos IEC, de acordo com o estatuído nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto.”.

 

Acrescentando a AT que tais artigos do Código dos Impostos Especiais de Consumo

fundamentam-se no regime próprio dos impostos especiais de consumo, designadamente, por se tratarem de impostos monofásicos, que incidem apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez;

 

E que

 

Diferentes são os impostos plurifásicos, como é o caso do IVA, que incidem em todas as fases do circuito económico, através do crédito do imposto a jusante e do débito a montante.”.

 

*

 

O presente Tribunal entendeu ser incompetente para se pronunciar sobre a declaração de ilegalidade da repercussão (o primeiro pedido das Requerentes) –, porque esta é subsequente e exterior ao acto tributário, decorrendo de uma relação de direito privado e porque não cabe no âmbito dos actos da AT que o legislador lhe permitiu sindicar –, mas entende que tem obviamente competência para se pronunciar sobre o segundo pedido das Requerentes – a declaração de ilegalidade dos actos tributários por elas visados (porque está em causa um imposto e porque quando está em causa um imposto administrado pela AT esta está obrigatoriamente sujeita à jurisdição arbitral). Ser competente, porém, apenas preenche o pressuposto processual referente ao Tribunal, não o que é respeitante às Requerentes. A questão é: podem elas suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não tiveram intervenção – e que, aliás, não conseguem identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com pagamentos por elas feitos?

Rectius: podem elas – supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que teria de se apurar depois, se estas perguntas tivessem resposta positiva) –, podem as Requerentes, perguntava-se, recorrer ao CAAD para pôr em causa as liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invocam dizer-lhes respeito quando adquiriram combustíveis aos sujeitos passivos da CSR?

E – o que não é de todo o mesmo – podem as Requerentes recorrer ao CAAD para pôr em causa as liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invocam dizer-lhes respeito quando adquiriram combustíveis a alguém que não teve qualquer interacção com a AT porque os combustíveis que esse alguém revendeu às Requerentes tinham sido adquiridos aos sujeitos passivos da CSR – ou a quem estes já os tivessem vendido antes?[21]

A questão, portanto, está em saber se no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustível, determinando-se, nessa medida, a sua anulação”, ainda que apenas quanto aos valores de “CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas Requerentes no decurso do período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022” – em relação aos montantes pagos pelas suas sete fornecedoras de combustíveis, duas das quais (a F..., S.A. e a G..., Lda.) nem sequer tendo tido relação com a AT a esse propósito, por não serem sujeitos passivos desses impostos, e uma outra (E..., S.A.), só a ter tido até Outubro de 2020 – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.

Na decisão pioneira proferida no processo n.º 408/2023, escreveu-se:

Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual do facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis, caracterizando-se no artigo 29.º do ppa como um “consumidor” de combustíveis, sobre o qual “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo”.

Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”).”.

 

Num comentário de divulgação das primeiras decisões arbitrais sobre a CSR[22] escreveu-se (p. 10):

o parque automóvel português é composto por 6,5 milhões de veículos ligeiros, a que acrescem 500 mil veículos pesados, num total de cerca de 7 milhões de veículos em circulação.

Se, por hipótese, admitirmos que cada automobilista fará, relativamente à CSR, um “pedido de revisão do ato de liquidação” e considerando que podem ser revistos os atos de liquidação relativos aos últimos quatro anos, temos que este contencioso poderá somar 28 milhões de processos!

 

Numa publicação anterior da mesma fonte[23] tinha-se escrito:

Com efeito, tem sido pacífico na doutrina e na jurisprudência que os IECs [Impostos Especiais de Consumo] implicam casos de repercussão legal. Sustenta-se, nesse sentido, que os impostos especiais de consumo procuram onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente e da saúde pública e que, por essa razão, deverá ser o verdadeiro titular da capacidade contributiva a ser onerado com o encargo do imposto.

 

A confirmar-se a natureza “pacífica” de tal entendimento – o que, para os presentes autos, não é relevante apurar – tal permitiria considerar legítima a determinação legislativa do artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro (“Altera o Código dos Impostos Especiais de Consumo, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, transpondo as Diretivas (UE) 2019/2235, 2020/1151 e 2020/262”) ao atribuir natureza interpretativa à “redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC”. Isto porque, dada a proibição constitucional da retroactividade de disposições fiscais que abranjam os elementos essenciais dos impostos (artigo 103.º da Constituição), só nesse caso é que tal alteração (a introdução do inciso “sendo repercutidos nos mesmos” – sendo os “mesmos” os “contribuintes” onerados segundo o “princípio da equivalência”, “na medida dos custos que (…) provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública”) seria verdadeiramente interpretativa e, portanto, constitucionalmente legítima.

Porém, qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido[24] invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida:

 “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”.

 

Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção:

1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;

(…)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;

 

            Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado[25].

Ou seja: só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Só eles, portanto, podem ser titulares de um interesse tutelado pela lei – designadamente para accionarem a revisão oficiosa.

O mesmo se escreveu na decisão do processo n.º 364/2023-T:

é o art. 9.º, 1 e 4 do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, 1 do RJAT, que define a legitimidade activa no processo arbitral tributário, e lá não se prevê que essa legitimidade se possa perder por efeito de uma repercussão que propiciasse a identificação de um interesse, concorrente ou exclusivo, na esfera de um “repercutido” que não seja o sujeito passivo.

(…)

A conjugação do art. 9º, 1 e 4 do CPPT com o art. 18º, 3 da LGT dissipa quaisquer dúvidas sobre a ilegitimidade processual da Requerente: têm essa legitimidade os contribuintes, e contribuinte é o “sujeito passivo” na relação tributária, a pessoa singular ou colectiva, património ou organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.

Não sendo a Requerente sujeito passivo do ISP, de acordo com a norma de incidência subjectiva constante do art. 4.º, 1, a), do CIEC, não é responsável pelo pagamento da CSR, por força do disposto nos arts. 4.º, 1, e 5.º, 1, da Lei n.º 55/2007 – não sendo consequentemente, na qualidade de contribuinte directo, titular da relação jurídica tributária, e parte legítima no processo (art. 9º, 1 do CPTA).

(…)

Querendo isto dizer, muito pragmaticamente, que só os sujeitos passivos aí identificados, e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre erros na liquidação”.

 

O argumento que as Requerentes esgrimiram supervenientemente (na resposta às excepções) contra este beco sem saída da sua tese foi o de que tal norma não era aplicável ao caso da CSR.

E isto porque, referiram (negrito aditado),

o regime especial consagrado nos sobreditos artigos 15.º e 16.º do CIEC não é aplicável à CSR, pela simples, mas definitiva, razão de que a remissão para o CIEC opera, exclusivamente, quanto às matérias de liquidação, cobrança e pagamento da CSR, deixando-se de forai.e., sujeitando ao respetivo regime geral – todas as restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reação para contestar este tributo.”.

 

Entende este Tribunal, pelo contrário, que uma tal interpretação dessa remissão é manifestamente insustentável. Desde logo porque, como é indistintamente feita para o CIEC, para o CPPT e para a LGT[26], levando a sério a pretensão das Requerentes de que às “restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reação para contestar este tributo” o CIEC se não aplicaria, então ser-lhe-iam igualmente inaplicáveis o CPPT e a LGT. É claro que não será necessário fazer notar que a pretensão das Requerentes começa justamente por se fundar na invocação do procedimento de revisão oficiosa geral (da LGT) para poder preencher os requisitos do recurso à jurisdição arbitral[27].

            Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.

            Como as Requerentes não são, confessada e manifestamente, sujeitos passivos de ISP/CSR, e como menos ainda preenchem os demais requisitos para se qualificar como um dos beneficiários da possibilidade de obter o reembolso do que tenha sido indevidamente pago, não podem accionar a jurisdição arbitral para tal efeito – tal como não poderiam antes ter accionado a actividade administrativa da AT para o efeito.

 

*

 

Diga-se, mas apenas como obiter dictum, que tal opção legislativa, que tem de se admitir justificada face à impraticabilidade de se gerir um sistema, digamos, “aberto” (como o que resultaria dos números indicados acima), foi aliás, no que diz respeito à contrariedade de tais liquidações com o Direito da União, considerada justificável no despacho do TJUE no Processo n.º C-94/10, desde que o “comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil”. Se essa condição está ou não preenchida no caso não cabe, evidentemente, a este Tribunal apurar: tal perquisição só poderia ocorrer aquando da aferição da conformidade do sistema legal de recuperação de montantes pagos a título de CSR com o Direito da União (na fase da decisão sobre o fundo), e o Tribunal já concluiu que as Requerentes não estão em condições de o poder levá-lo a confrontar-se com tal questão (como o poderiam fazer os sujeitos passivos da relação tributária).

Em todo o caso, sempre se dirá que, sobre a possibilidade de certos interessados serem impedidos de contestar a legalidade de certos tributos (em geral ou numa específica jurisdição), já o TJUE referiu[28] que

na ausência de regulamentação comunitária em matéria de repetição de impostos nacionais indevidamente cobrados, cabe à ordem jurídica interna dos Estados-Membros designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais dos recursos judiciais destinados a assegurar a protecção dos direitos de que os cidadãos gozam com base no direito comunitário.

38. Por razões de segurança jurídica, os Estados-Membros estão, em princípio, autorizados a limitar, a nível nacional, o reembolso de impostos indevidamente cobrados. Contudo, estas limitações devem respeitar o princípio da equivalência, nos termos do qual as disposições nacionais devem aplicar-se de maneira idêntica às situações puramente nacionais e às situações reguladas pelo direito comunitário, e o princípio da eficácia, que impõe que o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária não se torne praticamente impossível ou excessivamente difícil.

 

Daqui resulta que, na lógica do Direito da União, nada impede que o legislador nacional limite (e não apenas na jurisdição arbitral, embora por maioria de razão nesta, dada a sua competência por atribuição), os modos e as condições de, e os interessados na, obtenção da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação por razões ligadas à prevalência do Direito da União – designadamente excluindo a possibilidade de quem quer que seja que não tenha tido intervenção neles suscitar a avaliação dessa desconformidade[29].

 

 

III.8. Conclusão sobre a legitimidade das Requerentes e sobre as demais questões enunciadas

            Concluindo-se que as Requerentes são parte ilegítima para questionar os actos de liquidação da CSR que pudessem ter alguma ligação com invocados actos de repercussão de 1.º grau (decorrentes da hipotética transferência integral do montante pago a título de CSR pelas A..., S.A., B..., S.A., C..., S.A e D..., S.A., e, durante parte do período relevante – antes de 7 de Outubro de 2020 – E..., S.A.) e de 2.º grau (decorrentes da hipotética transferência integral do montante hipoteticamente pago a título de CSR pelas F..., S.A.,  G..., Lda., e, durante parte do período relevante – depois de 7 de Outubro de 2020 –E..., S.A.), conclui-se que a Requerida terá de ser absolvida da instância, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.   

            Não se opinando sobre o mérito, ficam igualmente prejudicados os pedidos de “restituição” e de pagamento de juros indemnizatórios.

            Uma palavra final sobre o pedido de reenvio formulado pelas Requerentes – que, em qualquer caso, é indiferente para o processo decisório dos Tribunais que estejam vinculados, como o presente Tribunal está, a considerar a sua necessidade[30]: face ao fundamento da decisão, unicamente sustentada na falta de legitimidade das Requerentes para desencadearem o processo de arbitragem tributária facultativamente criado pela legislação nacional, do que se tratou foi de interpretar disposições normativas processuais puramente nacionais, sobre as quais o TJUE não pode ter opinião.

 

 

  1. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:

  1. Considerar-se competente para apreciar questões relacionadas com a CSR, por esta ser, para todos os efeitos, um imposto, e por caber ao Tribunal aferir a sua competência;
  2. Considerar-se incompetente para aferir actos de repercussão da CSR, directos (dos sujeitos passivos de ISP/CSR para as Requerentes) ou indirectos (de não-sujeitos passivos de ISP/CSR para as Requerentes);
  3. Considerar as Requerentes parte ilegítima para suscitar a anulação de liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas declarações de introdução no consumo submetidas pelas fornecedoras de combustíveis das Requerentes que eram sujeitos passivos de ISP/CSR;
  4. Considerar as Requerentes parte ilegítima para suscitar a anulação de liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas declarações de introdução no consumo submetidas pelas fornecedoras de combustíveis das Requerentes que não eram sujeitos passivos de ISP/CSR;  
  5. Em consequência, absolver a AT da instância, condenando as Requerentes nas custas, nos termos abaixo fixados.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 321.859,41 (trezentos e vinte e um mil, oitocentos e cinquenta e nove euros e quarenta e um cêntimos).

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo das Requerentes, no montante de € 5.508,00 (cinco mil, quinhentos e oito euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

Lisboa, 30 de Setembro de 2024

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

O árbitro presidente (e relator, por vencimento)

Victor Calvete

 

A árbitro adjunta (com voto de vencida)

Nina Aguiar

Vencida

(Com declaração de voto)

 

 

A árbitro adjunta

Marisa Isabel Almeida Araújo

 

 

 

 

Voto de vencido

Considero, em primeiro lugar, que o nº 2 do artigo 15º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC) não é aplicável à Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), uma vez que, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 5º da Lei n.º 55/2007 de 31/8 (Lei que institui e regula a CSR), o CIEC apenas é aplicável a este tributo nas matérias relativas a “liquidação, cobrança e pagamento”.

Em segundo lugar, e ad abundantiam, considero que, ainda que estivéssemos perante um imposto regulado pelo CIEC, o nº 2 do artigo 15º não afastaria a possibilidade de o repercutido recorrer ao mecanismo do pedido de revisão oficiosa. Com efeito, o nº 2 do artigo 15º refere-se apenas ao “pedido de reembolso” e não se encontra nele indício de que pretenda substituir todo o regime estabelecido quer na Lei Geral Tributária, quer no Código de Procedimento e Processo Tributário, quanto aos meios de impugnação administrativos da liquidação, de que os sujeitos passivos e outros sujeitos com legitimidade procedimental disponham nos termos definidos daqueles dois diplomas.

Assim, em nossa opinião, a regra que deve definir a legitimidade procedimental das Requerentes é a que se encontra estabelecida no artigo 9º do CPPT, nomeadamente no seu nº 1, que diz: “Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.”

De referir que a mesma regra se aplica ao processo tributário, por força do nº 4 do artigo 9º do CPPT.

Entendo que, para interpretar a expressão interesse legalmente protegido não há que recorrer ao art.º 30º do Código do Processo Civil, quer porque este preceito não faz referência àquele conceito, quer porque o conceito de interesse legalmente protegido é próprio do Direito procedimental e processual administrativo e encontra-se bem definido pela jurisprudência de forma autónoma em relação ao direito processual civil. Assim, vg. no acórdão do STA 3 Sec. do CA de 28.03.2001, proc. 27016 (Rel: Jorge de Sousa), afirma-se que “[E]stá-se perante um interesse legalmente protegido quando a Lei não protege diretamente um interesse particular, mas um interesse público que, se for corretamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual” (no mesmo sentido: Ac. STA Pleno da Sec. CA, 02-03-2006, proc. 51/03, Rel: Jorge de Sousa; Ac. STA Pleno da Sec. CA, 18-05-2004, proc. 269/02, Rel: Isabel Jovita).

No caso vertente, admitindo-se que a liquidação de CSR possa ser ilegal por violação da Diretiva 2008/118, esta é a lei que protege um interesse público que, se for corretamente prosseguido, implica a satisfação do interesse individual (que no caso será o não suportar CSR no preço do combustível adquirido).

Consideraríamos, deste modo, que as Requerente têm quer legitimidade procedimental para o pedido de revisão oficiosa, quer legitimidade processual para o pedido de pronúncia arbitral.

Consideraríamos, contudo, a petição inepta, por não identificar, nem ser possível, a partir dos elementos que ela contém, identificar, os atos de liquidação cuja anulação se pretende.

 

(Nina Aguiar)

 

 

           

 

 

 

 

 

 

 



[1] Na decisão do processo n.º 364/2023-T, por exemplo, escreveu-se que seria muito difícil

sanar a contradição entre o pedido e a causa de pedir:

• o pedido, formalmente, é a anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações – e é-o formalmente, porque é assim que está inicialmente formulado o pedido de pronúncia.

• a causa de pedir é a repercussão de um tributo tido por inválido, por desconformidade desse tributo com o Direito da União, para efeitos de reembolso do que foi repercutido – isto, relativamente a um tributo cuja liquidação não se provou, por se assentar na ideia errada de que vigorava para esse tributo um regime de repercussão legal, e de que, de um tal regime, decorria que a repercussão pudesse ser presumida, seja no seu quid, seja no seu quantum, permitindo inferir, da ilegalidade das liquidações, a ilegalidade das repercussões, fosse qual fosse o nexo entre liquidações e repercussões.”.

[2] O n.º 2 do artigo 4.º (epigrafado “Montante da consignação”) da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, manteve os montantes exactos que antes correspondiam à dita “CSR”:

A parte da receita de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos a consignar ao serviço rodoviário é de 87 (euro)/1000 l da receita relativa à gasolina, de 111 (euro)/1000 l da receita relativa ao gasóleo rodoviário e de 123 (euro)/1000 kg da receita relativa ao GPL auto, montantes que integram os valores das taxas unitárias fixados nos termos do n.º 1 do artigo 92.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho.

Ou seja: uma vez que não se divisa que tais montantes de ISP sejam desconformes com o Direito da União, o que, em direitas contas, foi julgado desconforme com ele – na sequência do pedido de reenvio prejudicial que levou ao despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022 no Proc.º C-460/21 –, foi apenas a designação do primeiro regime de consignação de receitas que o legislador desavisadamente criou…

 

[3] Como notado pela AT no artigo 212.º da sua Resposta.

[4] Não só a Resposta da AT menciona (§122.º) que a C... e a D... “estão já, elas próprias, enquanto sujeitos passivos de ISP/CSR, a solicitar o reembolso da CSR, via pedidos de revisão oficiosa e/ou PPA (alegando a não repercussão da CSR a jusante)”, como a própria Requerente fez juntar aos autos uma declaração da E... a assumir que também o fizera (cfr. supra, n.º 8).

 

[5] Que, como notado na Resposta da AT (§§6.º e 7.º), correspondem a realidades profundamente diversas (destaques no original):

Da DIC resulta um ato tributário stricto sensu, sendo a liquidação de CSR da competência da AT e impugnável nos termos do artigo 51.º, “Atos impugnáveis” do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA.

Já da fatura não resulta qualquer ato imputável à AT, quer tributário, quer administrativo em matéria tributária. Está em causa um documento contabilístico ou comercial que deve ser emitido pelo fornecedor ou prestador de serviços, sempre esteja em causa a aquisição de um bem, como o são os produtos petrolíferos como o gasóleo e a gasolina, ou serviço, respetivamente, sujeito a IVA.

[6] Logo no processo n.º 408/2023-T se notou que

Também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

- Que a CSR foi repercutida à Requerente, qual o montante e em que períodos;

- Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR e em que medida, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo do imposto.”.

 

[7] Na fórmula usada na decisão do processo n.º 629/2021-T, “Isso não releva do âmbito de competência do tribunal, releva do âmbito de sujeição a ele de um dos intervenientes processuais.”, invocando em nota a “decisão do caso n.º 146/2019-T (com um voto de vencido) que acaba por reconduzir a primeira [“competência – delimitada legislativamente”] a incompetência absoluta e a segunda [“vinculação – delimitada pela portaria dentro da liberdade de opção atribuída por lei”] a incompetência relativa.”.

[8] Escreveu-se então:

Ainda que a qualificação jurídica de um tributo como imposto ou não-imposto tenha de depender das suas características intrínsecas (…), não são indiferentes os índices que – sendo externos a essa qualificação – foram invocados pela Requerente e pela Requerida. Assim, para começar, a jurisprudência do CAAD (e dos tribunais estaduais que a examinaram) não é indiferente”.

[9] Nessas decisões renunciou-se expressamente a estabelecer a natureza da CSR em homenagem à liberdade de vinculação que o legislador atribuiu ao autor da portaria de vinculação, por se ter entendido que, como se escreveu vg na decisão n.º 508/2023-T, outra solução implicaria “impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais”. Nesse sentido, escreveu-se aí o seguinte (negrito aditado): “aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos” (destaque aditado).

 

[10] Correspondia à nota 5 dessa decisão:

A lei sobre arbitragem voluntária é expressamente invocada pelo artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e este é aplicável na jurisdição arbitral por via da alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. A epígrafe do referido artigo 18.º da LAV é “Competência do tribunal arbitral para se pronunciar sobre a sua competência”. O seu n.º 1 dispõe do seguinte modo:

O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.”.

 

[11] Correspondia à nota 6 dessa decisão:

Por último, pode ver-se o Acórdão do STJ de 17 de Abril de 2024, no processo 3283/22.1 T8STR.E1.S1, onde se escreveu o seguinte:

Como decidiu o Acórdão do STJ de 10.03.2011, P. 5961/09.1TVLSB.L1,S1:

“Não podendo olvidar-se que sendo os tribunais arbitrais constitucionalmente configurados como “tribunais” – isto é, como entidades dotadas das características de independência e imparcialidade que caracterizam o núcleo essencial da função jurisdicional, a que compete definir o direito nas concretas situações litigiosas entre os particulares – não poderá deixar de lhes estar reservada uma relevante parcela da jurisdição, abrangendo, desde logo e em primeira linha, a aferição da sua própria competência emergente do legítimo exercício da autonomia privada pelos interessados, consubstanciada na convenção de arbitragem.””.

 

[12] Esta decisão assenta numa dupla fundamentação: ilegitimidade e ineptidão da petição inicial e, por isso, surge em duplicado na listagem.

 

[13] No decisório só se invoca a ilegitimidade da Requerente, mas no Sumário, a mais desta, faz-se referência à ineptidão da Petição inicial, razão pela qual também surge em duplicado na listagem.

 

[14] Um inventário exaustivo das decisões proferidas pode ver-se na recente decisão do processo n.º 118/2024-T.

[15] Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do RJAT, os tribunais arbitrais constituídos no CAAD também são competentes para “A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”.

 

[16] Manual de Direito Fiscal I, Reimpressão, s/ed., Lisboa, 1981, p. 409.

 

[17] Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª ed, encontro da escrita, Lisboa, 2012, p. 187. Tenha-se em conta que, embora os AA. admitissem que essa “primeira impressão” desse lugar a “uma nova noção de sujeito passivo” (p. 188), acabavam por concluir (p. 189) que “A repercussão efectua-se fora do âmbito da obrigação tributária.” e (p. 190), que “a repercussão é estranha à relação jurídico tributária”. No mesmo sentido – ainda que aparentemente por referência ao IVA, Nina Aguiar, in Códigos Anotados e Comentados - Justiça Tributária - LGT.CPPT.RGIT.RCPITA.RAT.LPFA, Lexit, 2018, p. 45: “aquele que suporta o imposto”, “Não é (…) sujeito de qualquer relação jurídica tributária”.

[18]  Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 401.

 

[19] Dispõe o n.º 4 do artigo 18.º do RJAT que

Não é sujeito passivo quem:

a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias; (…)”.

 

[20] O Tribunal não fez uma indagação de Direito Comparado, mas como resulta do n.º 58 da decisão que o TJUE proferiu, em 2 de Outubro de 2003, no processo C-147/01 (Weber's Wine World Handels-GmbH et al. v. Abgabenberufungskommission Wien), essa é uma solução que não é específica do Direito nacional:

na medida em que tenha efectivamente havido repercussão, foram os consumidores que suportaram o encargo do imposto sobre as bebidas alcoólicas. Ora, nem a ordem jurídica do Land de Viena nem a da República da Áustria oferecem, em geral, aos consumidores a possibilidade de invocarem, no quadro de um procedimento de tributação, a ilegalidade de um imposto assim repercutido.”.

[21] Como se advertiu antes, as mesmas perguntas teriam de ser feitas em relação à possibilidade de as ora Requerentes poderem desencadear o procedimento de revisão oficiosa indispensável ao preenchimento dos requisitos para recurso à arbitragem tributária. Noutras palavras: a aferição da legitimidade teria de ser feita retrotrair ao momento do recurso ao mecanismo da revisão oficiosa, na medida em que esta é requisito da admissibilidade de se recorrer à jurisdição arbitral.

 

[22] “A Contribuição de Serviço Rodoviário: enquadramento e desenvolvimentos recentes”, edição de Março de 2023 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em

https://www.rfflawyers.com/xms/files/KnowHow/Newsletters/2023/03_Marco/A_Contribuicao_de_Servico_Rodoviario_enquadramento_e_desenvolvimentos_recentes_-marco_2023.pdf

 

[23] “A contribuição de serviço rodoviário e a legitimidade processual dos consumidores finais”, edição de Agosto de 2022 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-e-a-legitimidade-processual-dos-consumidores-finais/4579/

 

[24] Já se viu que, no presente caso, repercutidos há vários: além das Requerentes, as suas fornecedoras de combustíveis que não eram sujeitos passivos de ISP/CSR (ie, a F..., S.A., a G..., Lda. e, durante parte do período abrangido, a E..., S.A.). Mas, como invocado pela AT na sua Resposta (“impendia sobre as Requerentes o ónus de provar que o preço dos serviços prestados e/ou dos bens comercializados aos seus clientes, não comportou, a jusante, a repercussão da CSR, por forma a poder sustentar que suportaram de forma efetiva o encargo daquele tributo.”) e notado, por exemplo, na decisão proferida no processo n.º 408/2023-T, também seriam repercutidos os clientes das Requerentes quando estas fixam preços que cobrem os seus custos.

[25] O que foi reiterado na decisão do processo n.º 364/2023-T.

[26] Recorde-se que a redacção da “norma remissiva” (a do n.º 1) do dito artigo 5.º é a seguinte (negrito aditado):

A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações”.

 

[27] Como as Requerentes escreveram na resposta às excepções (negrito aditado),

sendo absolutamente claro que a matéria relativa aos meios de reação aplicáveis à CSR não integra a norma remissiva constante do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, sempre se terá de concluir, liminarmente e sem necessidade de ulteriores desenvolvimentos, pela improcedência do primeiro – e principal – argumento invocado pela Requerida, bem como, em consequência, de todas as considerações tecidas nesse domínio a propósito do âmbito subjetivo de aplicação do regime especial recortado pelos referidos artigos 15.º e 16.º do CIEC”.

 

[28] Nos ns. 37 e 38 da decisão citada na nota 20.

 

[29] Como se referiu supra, nota 20, é o que acontece na Áustria.

[30]  Como se escreve no n.º 3 das “RECOMENDAÇÕES à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2016/C 439/01)” (destaques aditados):

A competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar, a título prejudicial, sobre a interpretação ou a validade do direito da União é exercida por iniciativa exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, independentemente de as partes no processo principal terem ou não exprimido a intenção de submeterem uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Uma vez que é chamado a assumir a responsabilidade pela futura decisão judicial, é na verdade ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar-se sobre um litígio — e a ele apenas — que cabe apreciar, atendendo às particularidades de cada processo, quer a necessidade de um pedido de decisão prejudicial para o julgamento da causa quer a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça.

Por outras palavras: não é por ser pedido – nem por não ter sido pedido – que um pedido de reenvio prejudicial deve ter lugar. Em todo o caso, deixe-se registado (com destaque aditado) qual foi o pedido formulado – só por si evidência da sua inviabilidade:

desde já se pugnando, no caso limite mas que não se concebe, de se considerar não ter a Requerente ter legitimidade para a apresentação deste pedido, o reenvio prejudicial da questão para o TJUE (cf. Artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).