Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1055/2023-T
Data da decisão: 2024-09-30  ISP Outros 
Valor do pedido: € 227.546,03
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário; Pressupostos processuais; Legitimidade do repercutido, directo e indirecto, para suscitar a ilegalidade dos actos de liquidação de impostos especiais de consumo.
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 SUMÁRIO:

            I – Tendo sido formulado pedido de declaração de ilegalidade do “indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa” e das “liquidações de IEC” por parte de Requerente que não é sujeito passivo de ISP/CSR, importa aferir preliminarmente da natureza da imposição tributária impugnada.

II – A designação que o legislador adoptou para uma parcela do ISP que, durante algum tempo, foi dele legalmente autonomizada, é irrelevante para determinar a sua natureza jurídica.   

            III – Todos os tribunais arbitrais são dotados da competência da competência e esta implica que possam determinar a natureza jurídica das situações que lhe podem ser submetidas.          

IV – Os únicos factos relevantes para apurar a legitimidade da Requerente para impugnar os actos de liquidação da CSR são os referentes às relações estabelecidas com os sujeitos passivos que intervieram nesses actos. Isso implica que a própria repercussão invocada pode ser de 1.º grau, ou de 2.º ou mais graus.

V – Havendo um regime especial de revisão no Código dos Impostos Especiais de Consumo, para o qual remetia o n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, o círculo dos potenciais impugnantes dos actos de liquidação da CSR coincide necessariamente com o círculo dos potenciais credores do reembolso (até porque só eles podem invocar um interesse relevante) e está delimitado no artigo 15.º, n.º 2, do CIEC.

VII – Estando apenas em causa a apreciação, numa jurisdição facultativa e de âmbito limitado, como é a arbitral, da legitimidade de quem não é sujeito passivo de imposto para pôr em causa uma relação tributária em que não participa, não faz qualquer sentido sujeitar tal questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 17 de Dezembro de 2023, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de promoção de revisão oficiosa da Contribuição de Serviço Rodoviário apresentado em 6 de Junho de 2023 junto da Alfândega de Leixões, A... LDA., NIPC ..., sedeada no ..., sito na Av. ..., s/n.º., freguesia e concelho de ... (Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 5.º, n.º 3, e 6.º, n.º 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
  2. Pretendia que fosse declarada a ilegalidade do “indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa” e das “liquidações do Imposto Especial sobre o Consumo (daqui em diante IEC), na parte correspondente à CONTRIBUIÇÃO DE SERVIÇO RODOVIÁRIO (…), relativas aos consumos elencados e referenciados no ANEXO I (…) por referência ao período compreendido entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022, liquidadas e pagas pela: “B... S.A.”, NIPC..., com sede na Rua ..., ...-... Lisboa (adiante designada por B...); “C... SA.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., Nº ... ...-... Guimarães (doravante C...); “D..., Unipessoal Lda.”, NIPC..., com sede na Rua ..., Nº ... ...-... Guimarães (doravante D...); “E... SA.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., Nº ... ...-... Guimarães (doravante E...); “F... Unipessoal Lda.”, NIPC..., com sede na Rua ..., Nº ... ...-... Guimarães (doravante F...), “G..., Lda.”, NIPC ..., com sede na ..., ..., ...-... ... (doravante G...), “H..., S.A.”, NIPC..., com sede na ..., Nº ..., ... ...-... Lisboa (H...), “I..., Lda.”, NIPC ..., com sede Rua ..., Nº. ... ...-... Amarante (doravante I...), e pela “J... S.A.”, NIPC..., sediada no ..., ...-......-... Porto Salvo (doravante J...), as quais foram repercutidas na Requerente”, no montante total de € 227.546,03€ (duzentos e vinte sete, quinhentos e quarenta e seis mil euros e três cêntimos).
  3. Em 4 de Janeiro, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) apresentou requerimento, dirigido ao Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), nos seguintes termos:

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), notificada em 29/12/2023 do pedido de constituição de tribunal arbitral no processo supramencionado, apresentado por A..., LDA., NIPC ..., vem informar, que analisado o pedido, não detetou a identificação de qualquer ato tributário. Identificação que, aliás, também não consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária.

Tendo em conta, que

a) A competência dos tribunais arbitrais, que funcionam no CAAD, abrange exclusivamente a apreciação direta da legalidade de ato(s) de liquidação ou de ato(s) de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de ato(s) daquele tipo, conforme decorre do n.º 1, do artigo 2.º do RJAT e como se depreende das referências expressas que se fazem na alínea a), do nº 1, do artigo 10.º, do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT;

b) Conforme dispõe expressamente a alínea b), do nº 2, do artigo 10º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;

c) Sem a identificação, por parte dos interessados, do ato ou atos tributários, cuja ilegalidade é invocada, não pode o dirigente máximo da AT exercer a faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT.

Solicita-se que seja(m) identificado(s) os ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação, à Autoridade Tributária e Aduaneira, da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.

  1. Nomeados os árbitros que constituem o presente Tribunal Arbitral em 14 de Fevereiro de 2024, e não tendo nem a Requerente nem a Requerida suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 5 de Março.
  2. Tendo o Presidente do CAAD entendido que seria o Tribunal Arbitral a entidade competente para a pronúncia sobre o requerido pela AT, foi o requerimento referido em 3. integrado nos autos. Porém, sendo ele dirigido a entidade alheia ao Tribunal Arbitral Colectivo, entendeu este que a pretensão da Requerida poderia ser-lhe apresentada na sua resposta, razão pela qual, em 5 de Março, foi proferido despacho a convidar a AT a, querendo, apresentá-la e solicitar a produção de prova adicional no prazo de 30 dias.
  3. Em 9 de Abril, a AT apresentou resposta – em que, entre o mais, suscitou as excepções adiante apreciadas – e juntou o processo administrativo (PA).
  4. Em 15 de Maio, foi proferido despacho que, entre o mais, concedia prazo à Requerente para resposta às excepções suscitada pela AT.
  5. Em 29 de Maio, a Requerente apresentou a sua resposta e juntou nove “Extrato[s] de Conta” referentes ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 2019 e 28 de Fevereiro de 2023, com outras tantas fornecedoras de combustíveis (J..., SA; D..., Lda.; H..., S.A.; F..., LDA.;G..., LDA.; E... S.A.; I..., Lda.; B..., S.A.; e C..., S.A.).

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
  2. Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas.
  3. Importa estabelecer preliminarmente – e oficiosamente – se o pedido de pronúncia arbitral (PPA) se contém no âmbito das atribuições do tribunal arbitral e, atentas também as excepções invocadas pela AT, a da sua legitimidade passiva e a da legitimidade activa da Requerente.
  4. É o que se verá a seguir.

 

 

  1. DIREITO

III.1. Questões a decidir

Seguindo o percurso argumentativo das decisões dos processos n.os 296/2023-T e 332/2023, ambas de 1 de Fevereiro de 2024, com as devidas adaptações às circunstâncias do caso, entende o presente Tribunal que o primeiro núcleo de questões a discutir é o da arbitrabilidade da disputa.

Isso supõe estabelecer, em primeiro lugar, duas coisas:

a) que a jurisdição arbitral pode aferir se a CSR é um imposto ou uma contribuição;

b) que, sendo uma contribuição, ainda assim está dentro do perímetro de jurisdição atribuída legalmente aos Tribunais Arbitrais do CAAD;

c) que, sendo um imposto ou uma contribuição, está compreendida no âmbito de vinculação que foi fixado para a AT pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (que “Vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa”, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do RJAT).

Todas estas questões são puramente de Direito.

Em segundo lugar, e caso se conclua pela competência do Tribunal para decidir sobre matérias atinentes à CSR, importa apurar se é competente para se pronunciar:

-  sobre os actos de liquidação que ocorreram entre a AT e os fornecedores de gasóleo à Requerente que são sujeitos passivos de ISP/CSR: a B..., a C..., a H..., a F... e a J...; e

- sobre os actos de liquidação que não ocorreram entre a AT e os fornecedores de gasóleo à Requerente que não são sujeitos passivos do ISP/CSR: a D... Lda., E... SA, a G..., Lda., e a I..., Lda.).

Um segundo núcleo de questões é o que se prende com a posição da Requerente no processo arbitral. Assim, passado o anterior nível de análise, importa avaliar:

a) se foi liquidada CSR à Requerente, ou, pelo menos, se adquiriu combustíveis a alguém que a tenha pago; e

b) a legitimidade e interesse da Requerente em relação ao que, afinal, são dois pedidos diferentes: por um lado, a sua pretendida intromissão na relação tributária entre a AT e os sujeitos passivos do ISP/CSR, e, por outro, a sua pretendida intromissão na não-relação (tributária ou outra) entre a AT e os não-sujeitos passivos do ISP/CSR que lhe forneceram combustíveis.

Um terceiro núcleo de questões a discutir – caso se ultrapassem as anteriores – é o da regularidade do PPA. Isso implica estabelecer, em primeiro lugar, que

a) o PPA não era inepto (por não identificação dos actos de liquidação visados, como foi alegado pela AT, ou por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ou, parcialmente, por pretender a anulação de actos de liquidação que envolviam fornecedores interpostos e, portanto, implicavam sujeitos que nem sequer se tinham relacionado com a AT a propósito da CSR); e que

b) o que o PPA visava não era uma pronúncia abstracta sobre o regime da CSR (como entendeu a AT que visava).

Um quarto núcleo de questões, se acaso se resolverem positivamente as anteriores, tem a ver com a regularidade do pedido de revisão oficiosa, pressuposto necessário, desde logo, da tempestividade do pedido arbitral. No caso, isso passaria por estabelecer:

a) a legitimidade da Requerente para solicitar essa “revisão oficiosa” (sendo certo que o estatuto de sujeito passivo da relação tributária – o único para o qual remete a norma do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) – não é o seu, como aliás admitiu expressamente; e sendo certo que a norma do n.º 2 do artigo 15.º do CIEC reserva aos sujeitos passivos da relação tributária a possibilidade de obter o reembolso desses impostos e, portanto, admissivelmente, o interesse em desencadear a sua revisão; e sendo ainda para mais certo que a Requerente pretendia, nesse pedido de revisão, a anulação da parcela de CSR da tributação que incidira não apenas sobre quem lhe forneceu combustível sendo sujeito passivo desse tributo – a B..., a C..., a H..., a F... e a  J...–, mas também sobre quem lhe forneceu combustível não sendo sujeito passivo desse tributo – a D... Lda., a E... SA, a G..., Lda., e a I..., Lda. –, pretendendo, portanto, anular actos de liquidação que terão ocorrido entre a AT e quem forneceu os seus fornecedores de combustíveis, ou – não se sabe – actos de liquidação que terão ocorrido entre a AT e quem forneceu quem forneceu os seus fornecedores de combustíveis, ou por aí adiante);

b) a tempestividade do pedido de revisão (quer em termos do fundamento invocado –uma vez que os prazos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT são diferentes consoante tais fundamentos –, quer em termos da contagem desses prazos a partir do dies a quo relevante, que é o da cobrança do imposto, não da sua sucessiva repercussão, a ter ocorrido esta); e

c) a regularidade do pedido de revisão (na medida em que tem de ser dirigido ao autor do acto – o n.º 1 do artigo 78.º da LGT prevê a “revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou” e o n.º 3 do artigo 15.º do CIEC estipula que o “pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente”; e na medida em que a – única – entidade a quem a Requerente apresentou tal pedido[1] poderia não ter sido, no caso, a autora dos actos de liquidação de ISP/CSR que pretendeu impugnar).

Uma quinta questão, a ser abordada só após resolvidas as anteriores a favor da competência do Tribunal, da arbitrabilidade da questão suscitada e da legitimidade, tempestividade e regularidade das pretensões formuladas junto da Alfândega de Leixões e, consequentemente – mas não só consequentemente – também junto deste Tribunal, seria a da (i)legalidade da cobrança dos valores da CSR face ao Direito da União ou à Constituição. Sobretudo porque o que está em causa, na materialidade das coisas, é apenas uma (transitória) alteração da designação atribuída a uma parte do ISP, que era integralmente válido antes de o legislador lhe mudar o nome para CSR (e de consignar essa parcela do que era antes o ISP), e continuou a sê-lo depois de o legislador ter deixado de lhe chamar CSR (mesmo tendo continuado a consignar a mesma receita à mesma entidade)[2].

Um sexto núcleo de questões seria o da possibilidade de dissociação dos actos de liquidação da CSR e do ISP, sendo certo que só aqueles estavam em causa – o que se poderia designar como a questão da dissociação jurídica; e, uma vez que a não repercussão integral e exacta dos montantes de tributação incidentes sobre os combustíveis (que decorre desde logo de haver facturas que fazem referência a “descontos”[3]) poderia ter a ver com qualquer das componentes da imposição fiscal única, determinar qual delas (ou qual a percentagem de qualquer delas) é que não teria sido repercutida integralmente – o que se poderia designar como a questão da dissociação económica.

Finalmente, um sétimo núcleo de questões teria a ver com tecnicalidades da decisão a proferir em caso de juízo de desconformidade da CSR e das implicações dessa desconformidade na situação da Requerente (e das suas fornecedoras de combustíveis), designadamente:

  1. A possibilidade de duplicação dos “reembolsos”, caso as fornecedoras de combustíveis – tanto as que eram sujeitos passivos do imposto como as que, não o sendo, os adquiriram a essas, ou a quem os adquiriu a essas – entendessem usar dos mesmos mecanismos (ou de outros) para obter o reembolso dos montantes pagos a título de CSR;
  2. A não-homogeneidade da tributação no momento da introdução no consumo e no da sua repercussão (os problemas da ampliação dos volumes com a variação das temperaturas e do possível desfasamento entre sujeitos passivos e repercutidos, miscigenando os volumes de combustíveis que passam de uns para outros);
  3. A correspondência a estabelecer entre a tributação por grosso e a repercussão a retalho e entre as entidades que aparecem como responsáveis pela introdução no consumo e as entidades que comercializam os combustíveis já onerados com a CSR;
  4. A correspondência a estabelecer entre as facturas identificadas pela Requerente e as declarações de introdução no consumo que originaram a cobrança da CSR;
  5. A possibilidade de ter havido também repercussão a jusante e as suas implicações.

 

Prossigamos então, por ordem, começando pelas questões de competência e âmbito da jurisdição, que, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – aplicável por força do disposto na alínea c) do n.º 1 artigo 29.º do RJAT – “precede o de qualquer outra matéria”.

 

 

III.2. A questão da arbitrabilidade

III.2.1. A possibilidade de haver processos arbitrais sobre contribuições e a natureza da CSR

 

Uma vez que a competência dos tribunais arbitrais a constituir no âmbito do CAAD está estabelecida no artigo 2.º do RJAT e abrange (al. a) do seu n.º 1) a “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”, mas o proémio do n.º 2 da já citada Portaria n.º 112-A/2011 circunscreveu – ao menos literalmente – tal vinculação às “pretensões relativas a impostos cuja administração (…) esteja cometida” à AT, tem-se discutido se as pretensões referentes a “contribuições” podem ser objecto de apreciação por tais tribunais[4]. Aliás, diz-se na Resposta da AT que “independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica da CSR, a verdade é que não é, por definição, um imposto e, portanto, o CAAD não tem competência para decidir sobre esta matérias.” (Sic).

Na sua resposta às excepções suscitadas pela AT, a Requerente procurou contrariar esta posição da AT defendendo que, a partir do seu regime, “dificilmente se poderia concluir que a CSR constitui uma contribuição financeira” e que, de resto, “Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional.”.

Concluía que “Para o Tribunal de Justiça, o tributo instituído pela lei portuguesa – e que este designou por “contribuição” – constitui um imposto porquanto, em virtude do desenho escolhido pelo legislador português, representa uma imposição indireta sem motivo específico e como tal suscetível de frustrar os desideratos de harmonização positiva subjacentes à Diretiva 2008/118.”.

Embora o problema não se esgote na qualificação da CSR como imposto ou contribuição (como se verá adiante), entende o presente Tribunal que a CSR era um imposto (mal) disfarçado de contribuição. Como se escreveu no Sumário da decisão do processo n.º 629/2021-T, “Uma parcela de um imposto especial de consumo não deixa de ser um imposto especial de consumo por o legislador lhe atribuir uma narrativa (de resto oscilante entre a compensação de custos e a contrapartida de benefícios) e lhe providenciar uma consignação orgânica (mormente se a entidade que dela beneficia deixa de ter como função única providenciar a suposta contrapartida que justificaria a alteração de género)”.

Nessa decisão, os argumentos usados para caracterizar a CSR como imposto foram essencialmente os seguintes (negritos no original, *notas suprimidas):

- histórico:

A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (“Regula o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E.”) criou a CSR por desdobramento do ISP – que é, indiscutivelmente, um imposto especial de consumo. Como se escrevia no artigo 7.º dessa lei, sob a epígrafe “Fixação das taxas do ISP”,

“As taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário”.

“(…) a única diferença entre os € 525,1 milhões que o ISP perdeu e os € 525,1 milhões que a CSR ganhou em 2008 residiu na alteração da sua designação e na sua afectação. Enquanto imposto especial de consumo louvava-se na cobertura de um custo: os custos ambientais que o preço dos combustíveis não internalizavam (uma externalidade). A partir do momento em que uma parte – arbitrária – da receita gerada pelo ISP passou a ter a designação de CSR, passou (parece – mas contra o já referido pelo legislador*) a louvar-se no benefício proporcionado aos causadores do custo”.

 

- conceptual:

Procurando identificar os critérios de distinção das taxas, das contribuições financeiras*, das contribuições especiais e dos impostos”, a A. [Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013] recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:

1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”

(…)

a CSR apresenta diferenças muito significativas em relação ao comum das contribuições financeiras, sejam elas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou as “grandes contribuições” que foram surgindo a título transitório e se vão mantendo (Contribuição sobre o Sector Bancário, Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético - CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, …).

Em primeiro lugar, nessas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições”, o sujeito passivo é o contribuinte (na CESE há mesmo uma proibição da sua repercussão), enquanto que na CSR um e outro são diferentes: o sujeito passivo (quem tem de entregar o imposto ao Fisco) é o introdutor dos produtos no mercado e o contribuinte (quem tem de suportar a exacção fiscal) é o adquirente dos combustíveis (incluindo, como a já citada jurisprudência arbitral evidencia, adquirentes de combustíveis que nada têm a ver com a utilização das estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal).

Em segundo lugar, o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas colectivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária. (…)

Em terceiro lugar, enquanto nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições” é a pertença ao grupo que permite de imediato a identificação do devedor – sendo a indução de um custo ou a obtenção de um benefício presumida a partir dessa inclusão nele – na CSR não há nenhum grupo prévio a que se possa imputar o pagamento: é porque se paga a CSR que se supõe que se integra o grupo. (…)

Em quarto lugar, o princípio da equivalência – a que se recorre para conferir unidade de sentido às contribuições financeiras*, equiparando-se o pagamento feito à repartição, tendencialmente idêntica (ou, pelo menos, com base em características dadas e estáveis), dos custos especificamente gerados pelo grupo homogéneo (ou dos benefícios auferidos pelo grupo homogéneo, como nas “taxas” das autoridades reguladoras, ou, forçando mais ou menos a nota, nas tais “grandes contribuições”) – assume na CSR uma ligação a um índice variável: o do consumo dos “grandes combustíveis rodoviários”*. Com a agravante de o presumido benefício não ter uma relação directa com esse índice variável: por um lado, as vias da Rede Rodoviária Nacional (que foram concessionadas, em 2007, à EP - Estradas de Portugal, E.P.E.) não são a totalidade das estradas nacionais (além das auto-estradas concessionadas, e da rede municipal – urbana e rural –, o Plano Rodoviário Nacional prevê a transferência para as autarquias das estradas que não estejam nele incluídas). Noutras palavras: a utilidade proporcionada pela circulação nas estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal não é segmentável da que é proporcionada pelas demais; por outro lado, uma fracção crescente dos utilizadores dessa sub-parcela das vias de circulação automóvel – a rede rodoviária nacional – não fica sujeita a essa “contribuição”: o dos utilizadores dela com veículos eléctricos ou velocípedes. (…)

Em quinto lugar, e não obstante – como já referido – não ser bom critério determinar a natureza de um tributo a partir da sua consignação material ou orgânica*, certo é que a EP - Estradas de Portugal, E.P.E. só gastava o dinheiro em estradas (e no mais necessário a poder fazê-lo, incluindo as suas despesas correntes), mas, com a fusão, em 2015, com a Rede Ferroviária Nacional - REFER E.P.E. para dar origem à Infraestruturas de Portugal, isso deixou de ser assim”.

 

E, em termos de índices da natureza da CSR[5],

- doutrinal:

“- na recolha de Casalta Nabais Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, refere-se, a propósito da CSR (e de outras figuras aí referidas), “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal”. Como o A. escreve em Direito Fiscal, 11.ª ed, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 53-54, “o critério para a distinção entre os tipos de tributos [reporta-se] exclusivamente à estrutura da relação tributária, ao tipo de relação que se estabelece entre os respetivos sujeito ativo e passivo, e não à titularidade activa dessa relação (…) É, pois, a estrutura bilateral da relação jurídica, em que assentam tanto as taxas como as contribuições financeiras, que revela a natureza comutativa destes tributos, os quais, porque concretizam uma efectiva troca de utilidades económicas, têm por base […] uma legitimidade económica. / O que vale também relativamente à titularidade da receita dos tributos. De facto, esta titularidade, até porque esta para além da relação tributária integrando [-se …] numa relação financeira a constituir-se a jusante da relação tributária, nada pode dizer sobre o tipo de tributo” (destaques aditados).

(…)

Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., p. 116, sublinha que “o nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, e desdobra este, na página seguinte, numa “homogeneidade de interesses” – que, segundo informa, na literatura alemã por vezes se designa por “homogeneidade de grupo” – e numa “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem”.

E,

- jurisprudencial:

apenas DUAS das 19 decisões do CAAD que a Requerente invoca (na sua Resposta às excepções) para afirmar que tais tribunais arbitrais têm aceite a sua jurisdição sobre a CSR o poderiam substanciar (as dos processos n.os 483/2014-T e 147/2015-T8, que autonomizaram o seu tratamento), sendo as demais resultantes da consideração indiferenciada da CSR com o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP).

O mesmo se diga para a jurisprudência dos Tribunais superiores, ainda que estes não tenham de cuidar da delimitação da sua competência em função da natureza do tributo, e se não conheçam decisões suas sobre a CSR.

Também não é indiferente que o Tribunal de Contas, a pp. 90 do seu Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2008 (https://erario.tcontas.pt/pt/actos/parecer-cge/2008/pcge2008-v1.pdf ), tenha considerado o seguinte:

Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança”.

 

No mesmo sentido pode ver-se, por exemplo, a argumentação da decisão do processo n.º 644/2022-T (que, neste ponto, foi parcialmente reproduzida na decisão do processo n.º 467/2023-T):

Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.

Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.

Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal.

Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008

(…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza”.

 

Evidentemente, sendo a CSR um imposto, a questão da competência do presente Tribunal deixa de ser controvertida, e fica prejudicada a indagação de saber se as questões relativas às contribuições se incluem no âmbito da jurisdição dos Tribunais arbitrais do CAAD.

 

*

 

Como se antecipou, isso não encerra a questão porque, sem dar nota de que a sua argumentação subsequente era completamente distinta da tese da natureza que imputava à CSR (uma contribuição, não um imposto), a Resposta da AT volta-se de seguida para a tese que, por maioria, prevaleceu na decisão do processo n.º 31/2023-T (que extensamente transcreve), e – diz a AT – se manteve “no âmbito do processo nº 675/2023-T e 16-11-2023 no âmbito dos processos n.ºs 508/2023-T e 520/2023-T[6]. É que em todas essas decisões se admitiu a eventual classificação doutrinal da CSR como imposto (negrito aditado):

utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal.

 

Essa tese – que invoca o que parece ser uma presunção judicial iuris et de iure de falta de vinculação da AT à arbitragem do CAAD em todas as liquidações referentes a algo que o legislador não tenha designado como imposto, qualquer que seja a sua natureza jurídica –, que na Resposta da AT é assumida por referência à transcrição da decisão do processo n.º 31/2023-T, já foi apreciada na decisão do processo n.º 688/2023-T, onde fora a única linha argumentativa da AT. Como aí se notou, apontando exemplos,

A ideia de que a vinculação da AT à jurisdição arbitral depende estritamente da letra da portaria – quaisquer que pudessem ser as reservas que existiriam na altura da sua aprovação quanto à jurisdição arbitral tributária –, vedando a esta jurisdição arbitral a competência da competência que lhe é típica (cfr. artigo 18.º da Lei da Arbitragem Voluntária - LAV[7]) como reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça[8], não parece ser congruente com o pacífico alargamento da competência dos tribunais arbitrais para lá da letra do RJAT, designadamente onde a letra da Portaria n.º 112-A/2011 apontava para outra solução.

 

Como quer que seja, tal tese tem a particularidade de levar materialmente ao mesmo resultado da generalidade das decisões do CAAD sobre a CSR: em situações em que as Requerentes não são sujeitos passivos da relação tributária (já não assim quando o são), chega à mesmíssima solução das teses que, por caminhos não coincidentes, recusam conhecer de mérito – quer por diagnosticarem falta de legitimidade das Requerentes (decisões dos processos n.os 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 409/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 537/2023-T e 604/2023-T), quer por identificarem ineptidão da petição inicial (decisões dos processos n.os 364/2023-T, 467/2023-T[9] e 537/2023-T[10]). Na verdade, com qualquer desses fundamentos, a AT é absolvida da instância e as custas arbitrais recaem sobre as Requerentes.

Vejamos então se esse é também o caso aqui.

 

 

III.3. A questão da posição da Requerente no processo arbitral

Como se viu, a Requerente solicitou ao Tribunal que fosse declarada a ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que tinha apresentado em relação a Declarações de Introdução no Consumo das suas nove empresas fornecedoras de combustíveis, e as liquidações de IEC “na parte correspondente à CONTRIBUIÇÃO DE SERVIÇO RODOVIÁRIO (…), relativas aos consumos elencados e referenciados no ANEXO I (…) por referência ao período compreendido entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022, liquidadas e pagas pela: “B... S.A.” (…); “C...SA. (…); “D..., Unipessoal Lda.” (…); “E... SA.” (…); “F... Unipessoal Lda.” (…), “G..., Lda.” (…), “H..., S.A.” (…), “I..., Lda.” (…), e pela “J... S.A.” (…), as quais foram repercutidas na Requerente”.

Há claramente uma diferença entre a Requerente pretender interferir na relação tributária ocorrida imediatamente a montante (entre a AT e os seus fornecedores de combustíveis que, sendo sujeitos passivos, pagaram o montante de CSR correspondente ao gasóleo que introduziram no consumo – e que, numa pequena parte, foi adquirida pela Requerente) ou pretender interferir na mesma relação tributária (entre a AT e os seus fornecedores de combustíveis que, sendo sujeitos passivos, pagaram o montante de CSR correspondente ao gasóleo que introduziram no consumo) porque, directa ou indirectamente, esses venderam esse gasóleo, numa pequena parte, a outras empresas que, numa parte ainda menor, o venderam à Requerente). Por analogia com uma terminologia consagrada a outro propósito, é como se a Requerente se arrogasse não apenas o direito de interferir em 2.º grau no acto de liquidação (como, nos casos em que, não sendo parte da relação da AT com o sujeito passivo, adquire directamente a este o combustível onerado com a CSR), como também em 3.º (ou 4.º, …) grau(s) (como, nos casos em que, não sendo parte da relação da AT com o sujeito passivo, adquire o combustível onerado com a CSR a quem o adquiriu a um sujeito passivo, ou a quem esse sujeito passivo o vendeu, ou a quem comprou esse combustível a quem o tinha comprado ao sujeito passivo e por aí adiante…).

Vejamos então, começando por estabelecer os factos necessários a decidir dessas possibilidades:

 

III.4. Factos provados

  1. A Requerente dedica-se ao aluguer de veículos, dispondo “de viaturas de passageiros e comerciais, nomeadamente através de furgões intermédios, citadinos de maior volume e comerciais com capacidade máxima de carga.” (https://www...);
  2. Em 2019, 2020, 2021 e 2022, a Requerente adquiriu à B..., SA, C... SA., D... Lda., E... SA., F... Unipessoal Lda., G..., Lda., H..., S.A.,  I..., Lda. e J... S.A. gasolina e gasóleo rodoviário, sobre o qual incidiu CSR, nos montantes correspondentes à seguinte listagem de facturas (que constituía o Anexo I ao seu PPA):

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III.5. Fundamentação dos factos provados

 

Uma vez que nem Requerente nem Requerida entenderam pertinente caracterizar a actividade da Requerente, recorreu-se à informação do próprio sítio da empresa, confirmado pela informação disponível em https://www...

A listagem supra reproduzida consolidava as facturas que a Requerente juntou aos autos, e demonstra que a Requerente adquiriu, às referidas fornecedoras de combustíveis, gasolina e gasóleo rodoviário sobre o qual tinha – salvo ilegalidades na introdução no consumo – incidido CSR nesse momento.

 

III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (na medida em que estejam ligados a actos de repercussão)

 

Numa passagem do seu manual[11], Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral[12].

            Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias[13]. Fê-lo a coberto do argumento da ineptidão do PPA por não incluir “a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido arbitral;”, como expressamente exigido na alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT; fê-lo invocando o “Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul datado de 30-06-2022, processo n.º 138/17.5BELRS (…) a petição inicial de impugnação que não identifica o ato tributário impugnado, que não formula a pretensão concreta por referência àquele e que não indica os factos concretos que justificariam a adopção da providência judiciária requerida é inepta”; mas fê-lo igualmente com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (sublinhado no original):

apenas os sujeitos da liquidação, i.e. apenas os sujeitos passivos que declararam os produtos para consumo e que efetuaram o pagamento das imposições correspondentes, podem solicitar a revisão das liquidações/reembolso da CSR junto da alfândega competente e reúnem as condições para e podem identificar os atos de liquidação;”.

 

Isto porque “no âmbito dos IEC, de acordo com o estatuído nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto;”.

 

Acrescentando que

Prevê o CIEC normativos legais que se fundamentam no regime próprio dos impostos especiais de consumo, designadamente, por se tratarem de impostos monofásicos, que incidem apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez;

 

E que

Diferentes são os impostos plurifásicos, como é o caso do IVA, que incidem em todas as fases do circuito económico, através do crédito do imposto a jusante e do débito a montante.”.

 

Por outro lado, a Requerente invocou, na sua réplica às excepções, que

A legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, sendo certo que, é atribuída legitimidade processual a entidades que não se qualificam como sujeitos passivos, designadamente em situações de repercussão do pagamento do imposto, como sucede na presente situação.”.

 

E que

Caso se entenda que Requerente, enquanto repercutida de CSR, se encontra excluída do âmbito de aplicação subjetivo do regime vertido no artigo 78.º da LGT – ou, bem assim, do regime especial de reembolso previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, caso se considere ser esse o regime aplicável à CSR – então, sempre se terá de concluir que o ordenamento jurídico doméstico não confere qualquer meio de reação às entidades repercutidas para obterem, eficazmente, a restituição do tributo que tenham indevidamente suportado em violação do direito da União.

 

*

 

O Tribunal entende que tem competência para se pronunciar sobre a declaração de ilegalidade dos actos tributários visados pela Requerente (porque está em causa um imposto e porque quando está em causa um imposto administrado pela AT ela está obrigatoriamente sujeita à jurisdição arbitral). Ser competente, porém, apenas preenche o pressuposto processual referente ao Tribunal, não o que é respeitante à Requerente. A questão é: pode ela suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com pagamentos por ela feitos?

Rectius: pode ela – supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que teria de se apurar depois, se estas perguntas tivessem resposta positiva) –, pode a Requerente, perguntava-se, recorrer ao CAAD para pôr em causa as liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito quando adquiriu combustíveis aos sujeitos passivos da CSR?

E – o que não é de todo o mesmo – pode a Requerente recorrer ao CAAD para pôr em causa as liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito quando adquiriu combustíveis a quem não teve qualquer interacção com a AT porque os combustíveis que lhe revendeu tinham sido adquiridos aos sujeitos passivos da CSR – ou a quem estes já os tivessem vendido antes?[14]

A questão, portanto, está em saber se no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações do Imposto Especial sobre o Consumo (…), na parte correspondente à CONTRIBUIÇÃO DE SERVIÇO RODOVIÁRIO (…), relativas aos consumos elencados e referenciados no ANEXO I (…) por referência ao período compreendido entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022, liquidadas e pagas pelas” suas nove fornecedoras de combustíveis, quatro das quais nem sequer tendo tido relação com a AT a esse propósito, por não serem sujeitos passivos desses impostos.

Num comentário de divulgação das primeiras decisões arbitrais sobre a CSR[15] escreveu-se (p. 10):

o parque automóvel português é composto por 6,5 milhões de veículos ligeiros, a que acrescem 500 mil veículos pesados, num total de cerca de 7 milhões de veículos em circulação.

Se, por hipótese, admitirmos que cada automobilista fará, relativamente à CSR, um “pedido de revisão do ato de liquidação” e considerando que podem ser revistos os atos de liquidação relativos aos últimos quatro anos, temos que este contencioso poderá somar 28 milhões de processos!

 

Numa publicação anterior da mesma fonte[16] tinha-se escrito:

Com efeito, tem sido pacífico na doutrina e na jurisprudência que os IECs [Impostos Especiais de Consumo] implicam casos de repercussão legal. Sustenta-se, nesse sentido, que os impostos especiais de consumo procuram onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente e da saúde pública e que, por essa razão, deverá ser o verdadeiro titular da capacidade contributiva a ser onerado com o encargo do imposto.

 

A confirmar-se a natureza “pacífica” de tal entendimento – o que não é relevante apurar para os presentes autos – tal permitiria considerar legítima a determinação legislativa do artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro (“Altera o Código dos Impostos Especiais de Consumo, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, transpondo as Diretivas (UE) 2019/2235, 2020/1151 e 2020/262”) ao atribuir natureza interpretativa à “redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC”. Isto porque, dada a proibição constitucional da retroactividade de disposições fiscais que abranjam os elementos essenciais dos impostos (artigo 103.º da Constituição), só nesse caso é que tal alteração (a introdução do inciso “sendo repercutidos nos mesmos” – sendo os “mesmos” os “contribuintes” onerados segundo o “princípio da equivalência”, “na medida dos custos que (…) provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública”) seria verdadeiramente interpretativa e, portanto, constitucionalmente legítima. Acontece que quem provoca custos ao ambiente e à saúde pública não são as empresas de aluguer de veículos, como a Requerente, mas quem usa os veículos que esta lhe disponibiliza. O que, numa síntese admirável, a própria Requerente reconheceu:

na medida em que estamos perante a violação de disposições do direito da União Europeia, assiste ao sujeito passivo – definido, para efeitos de CSR, como destinatário registado que introduz produtos petrolíferos no consumo, tal como sucede no âmbito do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos – e ao repercutido – vulgarmente designado por consumidor dos referidos produtos petrolíferos – o direito de obterem o reembolso dos impostos que tenham sido pagos pelo contribuinte”.

 

E, na verdade, é exactamente isso que ocorre: quer os sujeitos passivos (as empresas petrolíferas que introduziram os combustíveis no mercado), quer os repercutidos que logram ser credenciados como parte legítima para o efeito (como as empresas que têm frotas para exercer as suas actividades), estão a obter da AT valores que foram de facto suportados pelos verdadeiros contribuintes, que nenhum desses sujeitos é.

 

Sendo as coisas assim – e o Tribunal só o pode constatar, não emitir juízos sobre isso –, e qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido[17] invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida:

 “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”.

 

Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção:

1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;

(…)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;

 

            Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

            Quer dizer, também, que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.

            Como a Requerente não é, confessada e manifestamente, sujeito passivo de ISP/CSR, e como menos ainda preenche os demais requisitos para se qualificar como um dos beneficiários da possibilidade de obter o reembolso do que tenha sido indevidamente pago, não pode accionar a jurisdição arbitral para tal efeito – tal como não poderia antes ter accionado a actividade administrativa da AT para o efeito.

 

*

 

Diga-se, mas apenas como obiter dictum, que tal opção legislativa, que tem de se admitir justificada face à impraticabilidade de se gerir um sistema, digamos, “aberto” (como o que resultaria dos números indicados acima), foi aliás, no que diz respeito à contrariedade de tais liquidações com o Direito da União, considerada justificável no despacho do TJUE no Processo n.º C-94/10, desde que o “comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil”. Se essa condição está ou não preenchida no caso não cabe, evidentemente, a este Tribunal apurar: tal perquisição só poderia ocorrer aquando da aferição da conformidade do sistema legal de recuperação de montantes pagos a título de CSR com o Direito da União (na fase da decisão sobre o fundo), e o Tribunal já concluiu que a Requerente não está em condições de o poder levá-lo a confrontar-se com tal questão (como o poderiam fazer os sujeitos passivos da relação tributária).

Em todo o caso, sempre se dirá que, sobre a possibilidade de certos interessados serem impedidos de contestar a legalidade de certos tributos (em geral ou numa específica jurisdição), já o TJUE referiu[18] que

na ausência de regulamentação comunitária em matéria de repetição de impostos nacionais indevidamente cobrados, cabe à ordem jurídica interna dos Estados-Membros designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais dos recursos judiciais destinados a assegurar a protecção dos direitos de que os cidadãos gozam com base no direito comunitário.

38. Por razões de segurança jurídica, os Estados-Membros estão, em princípio, autorizados a limitar, a nível nacional, o reembolso de impostos indevidamente cobrados. Contudo, estas limitações devem respeitar o princípio da equivalência, nos termos do qual as disposições nacionais devem aplicar-se de maneira idêntica às situações puramente nacionais e às situações reguladas pelo direito comunitário, e o princípio da eficácia, que impõe que o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária não se torne praticamente impossível ou excessivamente difícil.

 

Daqui resulta que, na lógica do Direito da União, nada impede que o legislador nacional limite (e não apenas na jurisdição arbitral, embora por maioria de razão nesta, dada a sua competência por atribuição), os modos e as condições de, e os interessados na, obtenção da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação por razões ligadas à prevalência do Direito da União – designadamente excluindo a possibilidade de quem quer que seja que não tenha tido intervenção neles suscitar a avaliação dessa desconformidade[19].

 

 

III.7. Conclusão sobre a legitimidade da Requerente e sobre as demais questões enunciadas

            Concluindo-se que a Requerente é parte ilegítima para suscitar questionar os actos de liquidação da CSR que pudessem ter alguma ligação com invocados actos de repercussão de 1.º grau (decorrentes da hipotética transferência integral do montante pago a título de CSR pelas B..., C..., H..., F... e J...) e de 2.º grau (decorrentes da hipotética transferência integral do montante hipoteticamente pago a título de CSR pelas D..., Unipessoal Lda., E... SA, G..., Lda., e I..., Lda.), conclui-se que a Requerida terá de ser absolvida da instância, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.   

            Não se opinando sobre o mérito, ficam igualmente prejudicados os pedidos de “restituição” e de pagamento de juros indemnizatórios.

            Uma palavra final sobre o pedido de reenvio formulado pela Requerente – que, em qualquer caso, é indiferente para o processo decisório dos Tribunais que estejam vinculados, como o presente Tribunal está, a considerar a sua necessidade[20]: face ao fundamento da decisão, unicamente sustentada na falta de legitimidade da Requerente para desencadear o processo de arbitragem tributária facultativamente criado pela legislação nacional, do que se tratou foi de interpretar disposições normativas processuais puramente nacionais, sobre as quais o TJUE não pode ter opinião.

  1. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:

  1. Considerar-se competente para apreciar questões relacionadas com a CSR, por esta ser, para todos os efeitos, um imposto, e por caber ao Tribunal aferir a sua competência;
  2. Considerar a Requerente parte ilegítima para suscitar a anulação de liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas declarações de introdução no consumo submetidas pelas fornecedoras de combustíveis da Requerente que são sujeitos passivos de ISP/CSR;
  3. Considerar a Requerente parte ilegítima para suscitar a anulação de liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas declarações de introdução no consumo submetidas pelas fornecedoras de combustíveis da Requerente que não são sujeitos passivos de ISP/CSR;  
  4. Em consequência, absolver a AT da instância, condenando a Requerente nas custas, nos termos abaixo fixados.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 227.546,03 (duzentos e vinte e sete mil, quinhentos e quarenta e seis euros e três cêntimos).

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo das Requerentes, no montante de € 4.284,00 (quatro mil, duzentos e oitenta e quatro euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

Lisboa, 30 de Setembro de 2024

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

O árbitro presidente (e relator, por vencimento)

 

 

Victor Calvete

 

A árbitro adjunta (com voto de vencida)

 

 

Cristina Aragão Seia

DECLARAÇÃO DE VOTO

Não acompanhamos o sentido da, excepcional e bem fundamentada, decisão ao considerar não ser a Requerente parte legítima no pedido arbitral.

Entendemos que a CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criada tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

Com efeito, no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente em 2018 e 2019) estabelece-se que “o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável” e no n.º 3 do mesmo artigo (vigente na redacção inicial) que “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.

Isto, aliás, na linha do que determina o Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (para onde remete o regime da CSR no artigo 5º da Lei55/2007), no seu artigo 2º quando determina que “os impostos especiais sobre o consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

Ora, resulta do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a), da LGT, que quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal, ainda que não seja sujeito passivo da relação jurídica tributária, mantém o direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias contra os actos de liquidação que geram a repercussão.

De qualquer modo, para além da legitimidade activa da Requerente se encontrar coberta pelo referido preceito, essa legitimidade é também reconhecida pela regra geral do artigo 9.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”.

No pedido, a Requerente identifica as facturas emitidas pelos fornecedores de combustíveis em que sustenta ter ocorrido necessariamente repercussão da CSR.

Os actos impugnados encontram-se identificados e documentados pelo único meio possível, qual seja, a emissão de facturas emitidas pelo fornecedor do combustível que consubstancia a repercussão do encargo tributário na esfera jurídica dos adquirentes, estando estes impossibilitados de obter elementos de informação que estão na posse de uma terceira entidade, por não serem eles o sujeito passivo do imposto.

De qualquer forma, entendemos que a repercussão da CSR se presume, por recurso à livre apreciação dos factos de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros [artigo 16º, e) do RJAT e artigo 607º, n.º 5 do CPC].

Seguimos integralmente neste ponto, o que se decidiu no processo arbitral n.º 1015/2023-T, de 28-05-2024:

- “A repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é manifestamente pretendida pela lei, ao estabelecer que o financiamento da rede rodoviária nacional «é assegurado pelos respectivos utilizadores» e que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis» ((artigos 2.º e 3.º do CIEC na redacção anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro).

Assim, a existência de repercussão do tributo no consumidor final numa situação em que a lei pretende que ela exista, como sucede com a CSR, tem de se presumir, à face das regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto, pois trata-se de uma situação normal, que corresponde ao andamento natural das coisas, quod plerumque accidit.

Neste contexto, deve dizer-se que a presunção de que ocorreu efectivamente repercussão quando ela está prevista na lei e não há qualquer facto que permita duvidar da correspondência do facto presumido à realidade, não é incompatível com o Direito da União, designadamente à face do Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21.

O que aí se refere, relativamente a prova de uma situação de enriquecimento sem causa, que constitui excepção ao direito ao reembolso de quantias cobradas em violação do Direito da União, é que «o direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42)».

Isto é, o que o TJUE considera incompatível com o Direito da União é a utilização exclusiva de uma presunção de repercussão para prova de uma situação excepcional de enriquecimento sem causa, derivada de omissão de repercussão, impedindo ao operador que devia fazer a repercussão a apresentação de elementos de prova destinados a demonstrar que não ocorreu.

Mas, no caso em apreço, o que esta em causa não é a prova de uma situação de excepção, mas sim a prova da situação normal de ter existido a repercussão pretendida por lei e não há obstáculos a que seja apresentada prova de que a repercussão não ocorreu, abalando a operacionalidade da referida presunção natural. O que sucede, é que nenhuma prova foi apresentada que permita entrever que a repercussão não tenha ocorrido.

Por outro lado, é manifesta a acrescida dificuldade de prova positiva da repercussão, em situação em que a Requerente apenas tem na sua posse as facturas em que apenas se indica o preço em que se presume estar incluída a CSR e essa acentuada dificuldade deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina "iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur".

Por outro lado, «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT), pelo que tinha o dever de diligenciar, na sequência da apresentação do pedido de revisão oficiosa, no sentido de apurar quais as liquidações que ela própria emitiu e os pagamentos que recebeu relativas ao pagamento de CSR pela fornecedora de combustíveis e confirmar ou não se foram ou não efectuados os pagamentos das facturas pela Requerente, se necessário através de exame à contabilidade da Requerente e informações bancárias.

É apenas nas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

As regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.

«No procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

A expressão «todas» as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.

O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

Por isso, não podem aplicar-se as regras do ónus da prova contra o sujeito passivo, valorando contra ele as dúvidas sobre a matéria de facto, em situação em que não foi cumprido adequadamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira o princípio do inquisitório: se houve omissão absoluta de diligências no procedimento que tinham potencialidade para esclarecer os factos relevantes para a apreciação da causa, a falta de prova tem de ser valorada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira

Efectivamente, independentemente do critério de repartição do ónus da prova ao caso aplicável, a Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, ao princípio da verdade material, pelo qual lhe cabe o poder-dever de realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta da verdade, constituindo um afloramento deste princípio o disposto no artigo 58.º da LGT. Por outro lado, os órgãos da Administração Pública estão sujeitos a um princípio de colaboração, e, como tal, “devem actuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes, designadamente, prestar aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam, apoiar e estimular as suas iniciativas e receber as suas sugestões e informações”, princípio esse igualmente consagrado nos artigos 11º, n.º 1, do CPA, 59º da LGT e 48º do CPPT.

Aliás, o contribuinte não pode ver agravada a sua situação fiscal pelo facto de não lhe ser possível apresentar uma prova documental específica a que não pode ter acesso, quando a Autoridade Tributária se absteve de obter essa mesma prova pelos seus próprios meios.

Mais do que isso, a existência do erro que constitui fundamento do pedido de revisão não pode ser aferida a partir da posição jurídica que tenha sido assumida pela AT na apreciação desse pedido, mas com base nos vícios de ilegalidade que tenham sido arguidos pelo contribuinte na formulação do pedido de impugnação judicial ou arbitral. E não pode deixar de ter-se presente que o processo arbitral foi deduzido precisamente para discutir a validade do entendimento adoptado pela AT na decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

Desse modo, tendo presentes todos os elementos constantes do processo arbitral, consideraríamos a Requerente como parte legítima no pedido arbitral.

 

O Árbitro Adjunto

 

(Cristina Aragão Seia)

 

 

 

O árbitro adjunto (com voto de vencido)

 

 

 

David de Oliveira Silva Nunes Fernandes

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Não acompanho o sentido da decisão, na exata medida em que teria julgado procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral – ainda que a reconduzindo a incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral -, ancorando-me em fundamentação anteriormente subscrita, nomeadamente, nos autos 508/2023-T (e plasmada em voto vencido nos autos 669/2023-T, nos autos 872/2023-T e, mais recentemente, nos autos 811/2023-T), a qual se reproduz infra nos segmentos relevantes, porquanto são plenamente aplicáveis nos presentes autos:

 

«O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

            Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

            1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

            2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

            3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

            Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». 

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (   )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.»

 

Lisboa 30 de setembro de 2024

 

O árbitro adjunto (com voto de vencido)

 

 

 

 David de Oliveira Silva Nunes Fernandes

 

 

 



[1] Aparentemente, a da área do seu domicílio fiscal, que – evidentemente – nada importa para aferir da autoria de actos de liquidação em que ela não foi parte.

 

[2] O n.º 2 do artigo 4.º (epigrafado “Montante da consignação”) da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, manteve os montantes exactos que antes correspondiam à dita “CSR”:

A parte da receita de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos a consignar ao serviço rodoviário é de 87 (euro)/1000 l da receita relativa à gasolina, de 111 (euro)/1000 l da receita relativa ao gasóleo rodoviário e de 123 (euro)/1000 kg da receita relativa ao GPL auto, montantes que integram os valores das taxas unitárias fixados nos termos do n.º 1 do artigo 92.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho.

Ou seja: uma vez que não se divisa que tais montantes de ISP sejam desconformes com o Direito da União, o que, em direitas contas, foi julgado desconforme com ele – na sequência do pedido de reenvio prejudicial que levou ao despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022 no Proc.º C-460/21 –, foi apenas a designação do primeiro regime de consignação de receitas que o legislador desavisadamente criou…

 

[3] Como notado pela AT no artigo 205.º da sua Resposta.

[4] Na fórmula usada na decisão do processo n.º 629/2021-T, “Isso não releva do âmbito de competência do tribunal, releva do âmbito de sujeição a ele de um dos intervenientes processuais.”, invocando em nota a “decisão do caso n.º 146/2019-T (com um voto de vencido) que acaba por reconduzir a primeira [“competência – delimitada legislativamente”] a incompetência absoluta e a segunda [“vinculação – delimitada pela portaria dentro da liberdade de opção atribuída por lei”] a incompetência relativa.”.

[5] Escreveu-se então: “Ainda que a qualificação jurídica de um tributo como imposto ou não-imposto tenha de depender das suas características intrínsecas (…), não são indiferentes os índices que – sendo externos a essa qualificação – foram invocados pela Requerente e pela Requerida. Assim, para começar, a jurisprudência do CAAD (e dos tribunais estaduais que a examinaram) não é indiferente”.

[6] Nessas decisões renunciou-se expressamente a estabelecer a natureza da CSR em homenagem à liberdade de vinculação que o legislador atribuiu ao autor da portaria de vinculação, por se ter entendido que, como se escreveu vg na decisão n.º 508/2023-T, outra solução implicaria “impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais”. Nesse sentido, escreveu-se aí o seguinte (negrito aditado): “aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos” (destaque aditado).

[7] Correspondia à nota 5 dessa decisão:

A lei sobre arbitragem voluntária é expressamente invocada pelo artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e este é aplicável na jurisdição arbitral por via da alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. A epígrafe do referido artigo 18.º da LAV é “Competência do tribunal arbitral para se pronunciar sobre a sua competência”. O seu n.º 1 dispõe do seguinte modo:

O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.”.

 

[8] Correspondia à nota 6 dessa decisão:

Por último, pode ver-se o Acórdão do STJ de 17 de Abril de 2024, no processo 3283/22.1 T8STR.E1.S1, onde se escreveu o seguinte:

Como decidiu o Acórdão do STJ de 10.03.2011, P. 5961/09.1TVLSB.L1,S1:

“Não podendo olvidar-se que sendo os tribunais arbitrais constitucionalmente configurados como “tribunais” – isto é, como entidades dotadas das características de independência e imparcialidade que caracterizam o núcleo essencial da função jurisdicional, a que compete definir o direito nas concretas situações litigiosas entre os particulares – não poderá deixar de lhes estar reservada uma relevante parcela da jurisdição, abrangendo, desde logo e em primeira linha, a aferição da sua própria competência emergente do legítimo exercício da autonomia privada pelos interessados, consubstanciada na convenção de arbitragem.””.

[9] Esta decisão assenta numa dupla fundamentação: ilegitimidade e ineptidão da petição inicial e, por isso, surge em duplicado na listagem.

 

[10] No decisório só se invoca a ilegitimidade da Requerente, mas no Sumário, a mais desta, faz-se referência à ineptidão da Petição inicial, razão pela qual também surge em duplicado na listagem.

[11]  Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 401.

 

[12] Dispõe o n.º 4 do artigo 18.º do RJAT que

Não é sujeito passivo quem:

a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias; (…)”.

 

[13] O Tribunal não fez uma indagação de Direito Comparado, mas como resulta do n.º 58 da decisão que o TJUE proferiu, em 2 de Outubro de 2003, no processo C-147/01 (Weber's Wine World Handels-GmbH et al. v. Abgabenberufungskommission Wien), essa é uma solução que não é específica do Direito nacional:

na medida em que tenha efectivamente havido repercussão, foram os consumidores que suportaram o encargo do imposto sobre as bebidas alcoólicas. Ora, nem a ordem jurídica do Land de Viena nem a da República da Áustria oferecem, em geral, aos consumidores a possibilidade de invocarem, no quadro de um procedimento de tributação, a ilegalidade de um imposto assim repercutido.

[14] Como se advertiu antes, as mesmas perguntas teriam de ser feitas em relação à possibilidade de a ora Requerente poder desencadear o procedimento de revisão oficiosa indispensável ao preenchimento dos requisitos para recurso à arbitragem tributária. Noutras palavras: a aferição da legitimidade teria de ser feita retrotrair ao momento do recurso ao mecanismo da revisão oficiosa, na medida em que esta é requisito da admissibilidade de se recorrer à jurisdição arbitral.

 

[15] “A Contribuição de Serviço Rodoviário: enquadramento e desenvolvimentos recentes”, edição de Março de 2023 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em

https://www.rfflawyers.com/xms/files/KnowHow/Newsletters/2023/03_Marco/A_Contribuicao_de_Servico_Rodoviario_enquadramento_e_desenvolvimentos_recentes_-marco_2023.pdf

 

[16] “A contribuição de serviço rodoviário e a legitimidade processual dos consumidores finais”, edição de Agosto de 2022 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-e-a-legitimidade-processual-dos-consumidores-finais/4579/

 

[17] Já se viu que, no presente caso, repercutidos há vários: além da Requerente, as suas fornecedoras de combustíveis que não são sujeitos passivos de ISP/CSR: a D... Lda., a E... SA, a G..., Lda., e a I..., Lda.. Mas, como invocado pela AT na sua Resposta (“impendia sobre a Requerente o ónus de provar que o preço dos serviços que presta aos seus clientes, não comporta, a jusante, a repercussão da CSR, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo daquele tributo.”) e notado, por exemplo, na decisão proferida no processo n.º 408/2023-T, também seriam repercutidos os clientes da Requerente quando esta fixa preços que cobrem os seus custos.

[18] Nos nºs. 37 e 38 da decisão citada na nota 13.

 

[19] Como se referiu supra, nota 13, é o que acontece na Áustria.

[20]  Como se escreve no n.º 3 das “RECOMENDAÇÕES à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2016/C 439/01)” (destaques aditados):

A competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar, a título prejudicial, sobre a interpretação ou a validade do direito da União é exercida por iniciativa exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, independentemente de as partes no processo principal terem ou não exprimido a intenção de submeterem uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Uma vez que é chamado a assumir a responsabilidade pela futura decisão judicial, é na verdade ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar-se sobre um litígio — e a ele apenas — que cabe apreciar, atendendo às particularidades de cada processo, quer a necessidade de um pedido de decisão prejudicial para o julgamento da causa quer a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça.

Por outras palavras: não é por ser pedido – nem por não ter sido pedido – que um pedido de reenvio prejudicial deve ter lugar. Em todo o caso, deixe-se registado (com destaque aditado) qual foi o pedido formulado – só por si evidência da sua inviabilidade:

desde já se pugnando, no caso limite mas que não se concebe, de se considerar não ter a Requerente ter legitimidade para a apresentação deste pedido, o reenvio prejudicial da questão para o TJUE (cf. Artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).