Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 391/2024-T
Data da decisão: 2024-09-18  IRC  
Valor do pedido: € 158.403,24
Tema: OIC não Residentes – Retenções na Fonte – Discriminação e Violação da Livre Circulação de Capitais – arts. 22.º, n.ºs 1 a 3 e 10 EBF e 63.º do TFUE.
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SUMÁRIO

 

 

Sumário:

  1. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
  2. O art.º 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
  3.  A interpretação do art.º 63.º do TFUE acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22.º, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.

 

 

I – RELATÓRIO

 

A..., SICAV, NIPC ..., com sede em ..., ..., Grão-Ducado do Luxemburgo, representado pela sua entidade gestora B..., com sede em ..., ..., ..., Paris, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. O pedido

O Requerente pede a anulação das liquidações de IRC por retenção na fonte, adiante melhor identificadas, ocorridas em 2020 e 2021, relativas a dividendos por ele recebidos. Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

B) O Litígio

 

As retenções na fonte impugnadas incidiram sobre dividendos que foram distribuídos à Requerente por sociedades residentes em Portugal.

O Requerente invoca ser um Organismo de Investimento Coletivo operando ao abrigo de normas do Direito da União e ser tal tributação discriminatória por a ela não estarem sujeitos os OIC’s constituídos e operando ao abrigo da legislação portuguesa.

A AT respondeu invocando várias exceções, a que a seguir se responderá, e impugnando a pretensão da Requerente.

 

 

  1. Tramitação processual

O pedido foi aceite em 22/03/2024.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 04/06/2024.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA. O Requerente respondeu às exceções.

Por despacho 05/09/2024 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

 

  1. Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito para além das exceções invocadas pela AT, que de seguida se analisarão.

 

A invocação destas exceções pela AT é recorrente (aparecem sistematicamente em muitos processos em que é idêntica a questão substantiva a ser decidida), o que não se compreende dado que tais alegações são sistematicamente indeferidas pelos tribunais.

 

  1. Sob a epígrafe Inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte diz, em resumo, a Requerida:

Verifica-se a exceção dilatória de inimpugnabilidade dos atos tributários de retenção na fonte, suscitada oficiosamente pelo tribunal arbitral, uma vez que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado para além do prazo de dois anos, e, por conseguinte, a impugnação judicial não foi precedida de impugnação administrativa necessária, conforme impunha o artigo 132.º, n.º 3, do CPPT).

Não se põe em dúvida, e constitui jurisprudência pacífica do STA, que a revisão dos atos tributários por iniciativa da Administração Tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação, pode ser suscitada pelo contribuinte, com base em erro imputável aos serviços (cfr. acórdãos de 20 de março de 2002, Processo n.º 026580, de 12 de julho de 2006, Processo n.º 0402/06, e de 29 de maio de 2013, Processo n.º 0140/13). No entanto, numa interpretação conforme a unidade do sistema jurídico, uma tal possibilidade não pode inutilizar a exigência legal de impugnação administrativa necessária que consta do artigo 132.º, n.º 3, do CPTT, dentro do prazo aí previsto, e que constitui um requisito de impugnabilidade dos atos de retenção na fonte.

 

Apreciando,

A argumentação acima louva-se numa jurisprudência antiga.

A “equiparação”, para este efeito, de um pedido de revisão oficiosa à apresentação de um pedido de reclamação graciosa, propugnada pela doutrina[1] e pela jurisprudência[2], é fácil de compreender se pensarmos na razão de ser das reclamações necessárias.

Antes, recordaremos que a regra, hoje, é a da impugnabilidade imediata dos atos administrativos lesivos, ou seja, o caráter facultativo das reclamações e outras formas de recursos administrativos[3].

A reclamação prevista no art. 132.º do CPPT obedece a uma razão lógica: seria totalmente incongruente a administração tributária surgir, sem mais, como requerida num processo, judicial ou arbitral, visando a anulação de um ato que não praticou (a autoria é do substituto total) mas a que a lei atribui os efeitos de um ato administrativo (apuramento do quantitativo de imposto exigível) tal qual tivesse sido por ela praticado.

A necessidade da reclamação impõe-se como oportunidade de a administração, pela primeira vez se pronunciar. Dando razão ao particular, não haverá necessidade de o processo judicial ter lugar. Se a AT não der razão ao particular (o que deverá fundamentar) teremos então duas partes sufragando entendimentos diferentes, ou seja, um litígio que caberá ao tribunal dirimir.

Ora é bom de ver que as razões que justificam a necessidade – repete-se excecional - de um recurso administrativo prévio à interposição do recurso judicial se encontram totalmente satisfeitas em caso de pedido de revisão oficiosa. Também aqui a administração, antes da intervenção do tribunal, é chamada a pronunciar-se sobre a legalidade de um ato que não praticou mas cujos efeitos lhe são imputados.

Daí a sua equiparação à reclamação necessária enquanto condição (pressuposto processual) do processo de impugnação.

Improcede, pois, esta exceção.

 

  1. Sob a epígrafe Da incompetência, em razão da matéria, do tribunal arbitral, a requerida invoca diferentes exceções:

 

A) Erro imputável aos serviços

 

Transcrevemos da resposta da AT: Mais, estando-se perante um indeferimento tácito, sobre o qual a AT não tomou posição expressa sobre a existência de erro imputável aos serviços, compulsado o pedido de revisão oficiosa apresentado não se retira do mesmo que a requerente tenha invocado erro de direito imputável à AT, ou que, tendo-o invocado, o comprove invocando, designadamente, que as retenções na fonte se deveram a orientações ou instruções da AT. (…) Assim, revogado que foi o n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que estabelecia a presunção de que se considerava “imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”, e dispondo a lei nova para o futuro (cf. artigo 12.º do Código Civil), o pedido de revisão oficiosa com fundamento em “erro imputável aos serviços”, incluído no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, passou a exigir, também no caso de autoliquidação, ao contribuinte a prova da imputabilidade aos serviços do erro que invoca”.

 

Dito de forma simples, temos que a AT considera que, por não ter tido qualquer intervenção nas liquidações impugnadas – porque praticadas no quadro de uma substituição fiscal total –, não existe erro imputável aos serviços e, portanto, a Requerente não pode aproveitar do prazo de quatro anos previsto no nº 1 do art. 78º da LGT.

 

Apreciando,

Há, em primeiro lugar, que precisar qual a posição da Requerente nas relações jurídico-tributárias em causa: ela surge como substituído fiscal (substituição total), alguém que, formalmente, é um terceiro, ainda que titular de um interesse próprio enquanto contribuinte (aquele que suporta o encargo económico do tributo).

Formalmente, os sujeitos passivos são os substitutos (no caso, o banco pagador), aos quais cumpre, em exclusivo (substituição total por aplicação de taxas liberatórias) as obrigações, declarativas e de pagamento, relativas ao imposto.

O mesmo é dizer que, tendo presente, em primeiro lugar, o elemento literal da norma, o substituído (substituição total), por não ser sujeito passivo, não pode ser considerado como diretamente afetado pela revogação do n.º 2 do art. 78.º da LGT, que era relativo, apenas, aos sujeitos passivos.

A questão deve, pois, ser colocada noutros termos, não num plano formal, mas sim num plano substancial: o substituto deve ser considerado como sendo um “serviço” para efeitos do n.º 1 de tal norma, o mesmo é dizer, o erro por ele cometido numa liquidação deverá ser equiparado, para efeitos de reclamação graciosa, ao erro cometido pela própria AT?

Para responder a esta questão haverá que ter em consideração, nomeadamente: (i) o substituto exerce, por força de lei, funções que, materialmente, são de administração fiscal, praticando atos de liquidação aos quais a lei confere a mesma força jurídica de que gozam as liquidações praticadas pela administração fiscal; (ii) em ambos os casos, estamos perante hétero-liquidações, procedimentos a que o substituído é alheio, a liquidações que não só não são por ele praticadas como sobre as quais não tem qualquer possibilidade de controlo.

A equivalência material entre as duas situações é evidente. No silêncio de lei expressa, há que concluir que distinguir as duas situações, para efeitos do exercício do direito à revisão oficiosa, criaria uma injustificada discriminação dos contribuintes consoante o grau de “privatização” das funções de administração discal (de liquidação) presentes em cada caso.

 

Esta é também a posição jurisprudencialmente dominante, ainda que com nuances ao nível da fundamentação. Citamos, por todos, do sumário do ac. do STA de 09-11-2022, proc. 087/22: assim, nos casos como o dos autos, em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo, de quantias por conta de imposto de selo, cobrado no âmbito de operações de concessão de crédito, e suportado pelas Recorrentes, o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é susceptível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária.

Improcede, pois, esta exceção.

 

 

B) Meio processual

 

A Requerida entende, em resumo, que:

A decisão proferida em sede de procedimento de revisão pode, ou não, comportar a apreciação da legalidade do ato de liquidação.

No caso concreto, o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é um ato silente, na medida em que foi apenas por efeito da passagem do tempo que se ficcionou a existência de um indeferimento tácito, para efeitos de impugnação arbitral.  Ora, tal indeferimento pode consubstanciar e, no caso teria obrigatoriamente que se reportar a um indeferimento por extemporaneidade

Ou seja, tendo em conta que o p.p.a não é interposto para a apreciação direta e nem indireta de uma liquidação adicional, mas apenas para a apreciação de um indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, é evidente que o Tribunal vai ter que decidir se a requerente ainda estava em tempo de apresentar pedido de revisão oficiosa, tendo em conta a existência de erro imputável aos Serviços.

Ora, o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa violou, ou não, o art. 78º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT.

 

Temos alguma dificuldade em compreender este argumentário: o pedido formulado em sede de revisão oficiosa foi o mesmo que é feito no presente processo de impugnação: [que o tribunal] declare a ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte em referência, por vício de violação de lei.

A existir uma ficção de indeferimento tácito esta apenas se poderia referir a este pedido.

Mais, a fundamentação de um indeferimento ficcionado não pode, também ela, ser ficcionada, ao contrário do que parece pretender a AT.

A questão do “erro imputável aos serviços”, já atrás analisada e decidida, surge, no âmbito deste processo, como uma exceção (um pressuposto processual) e não como uma questão de mérito capaz de constituir o objeto primário do processo e, enquanto tal, suscetível de ser determinante relativamente ao meio processual a ser utilizado.

Improcede, pois, esta exceção.

 

Resta salientar, num breve aparte, que, quanto a este ponto, a argumentação em análise se baseia com base na tradicional ficção de que o silêncio administrativo para além do prazo legal equivale a um “indeferimento tácito”.

Com o que consideramos ser a melhor doutrina, diremos que, após a revisão do CPA em 2015, se deixou de poder falar em atos de indeferimento tácito: o incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir os requerimentos que lhe sejam submetidos não dá lugar à formação de qualquer ato tácito, mas é tratado como omissão pura e simples que efetivamente é, ou seja, como um mero facto. Nesse sentido, é hoje afirmado no art. 129.º do CPTA que a falta de decisão administrativa dentro do prazo legal confere ao interessado a faculdade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados[4].

O que, no nosso entender, sempre levaria à rejeição liminar desta exceção.

 

II- PROVA

 

II.1 – Factos provados

 

  1. O Requerente é um OIC com sede e direção efetiva no Grão-Ducado do Luxemburgo, operando ao abrigo da legislação deste país que procedeu à transposição da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC.
  2. Em 2020, o Requerente auferiu dividendos, distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de € 276.535,41, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal, em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, no montante de € 69.133,85.
  3. Em 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de € 357.077,45, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos, no montante de € 89.269,36
  4. As retenções na fonte de IRC em causa – no montante de EUR 158.403,24 – foram efetuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.º  ... e ..., pelo C..., S.A., NIPC..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC
  5. Os referidos dividendos foram pagos pelo C..., S.A., para a conta do Requerente junto do D..., entidade com sede em ..., ... Luxemburgo.
  6. Em 18 de setembro de 2023, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC acima identificadas, sustentando que os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.º 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais ("EBF"),
  7. Tal pedido não foi objeto de decisão no prazo legal de quatro meses, nem posteriormente.

 

Estes factos constam de documentos juntos aos autos, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.

 

II.2- Factos não provados

Não foram considerados não-provados quaisquer factos tipos por relevantes para a decisão da causa.

 

III- DO MÉRITO

 

  1. Violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE

 

Cumpre aferir se assiste razão à Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.os 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.

Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19 (Allianz), o qual versou situação factual com características essenciais idênticas às dos presentes autos, suscitada por Tribunal Arbitral Tributário constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.

Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[5].

Citamos:

37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado-Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C-480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Remete-se, assim, para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.

Ou seja, em resumo, temos que o argumentário de direito desenvolvido pela Requerida ficou definitivamente prejudicado, relativamente a este tipo de casos, pelos desenvolvimentos contidos no acórdão Allianz.

Resulta também irrelevante a questão da possibilidade de, no estado de residência (do fundo ou dos seus investidores), ser recuperado o imposto pago em Portugal pois que a questão, pelo menos na perspetiva do TJUE é outra, a da legitimidade da tributação ocorrida em Portugal, porque considerada discriminatória.

 

 

IV - JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf., entre outros o acórdão do STA de 14.10.2020 no processo n.º 01273/08).

Porém, há que considerar que a al. c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT, determina que são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

Assim, atendo em conta que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 21 de Junho de 2023 apenas serão devidos juros indemnizatórios a partir de 19 de setembro de 2024.

 

V- DECISÃO

 

Pelo exposto, acordam os árbitros em:

  1. Anular as liquidações de IRC (retenções na fonte liberatórias) impugnadas, com as legais consequências, nomeadamente no relativo ao reembolso do imposto que se mostre ter sido indevidamente pago por retenção na fonte.
  2. Reconhecer o direito do Requerente a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT.

 

Valor do processo – Fixa-se em € 158.403,24 correspondente ao montante das liquidações impugnadas.

Custas, no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

18 de setembro de 2024

 

Os árbitros

 

Rui Duarte Morais (Relator)

 

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

(com declaração de voto)

 


Amândio Silva 

Declaração de voto

1. Voto vencido quanto à decisão das exceções de incompetência e de inimpugnabilidade contenciosa dos atos de primeiro grau em causa na presente arbitragem.

Com efeito, o contencioso tributário, à semelhança de resto do que sucede no contencioso de atos administrativos, não é um processo de tutela da legalidade objetiva, mas antes um processo dirigido à tutela de posições jurídicas subjetivas: não basta, assim, a verificação de uma qualquer ilegalidade para determinar a anulação de um ato tributário. No caso em espécie, cuida-se da impugnação de atos de liquidação mediante retenção na fonte a título definitivo proferidos por entidade bancária. Trata-se de atos tributários que não são proferidos pelos serviços da administração fiscal e que, como revelam as regras da experiência, são habitualmente praticados sem que a AT tenha conhecimento do seu teor exato ou sequer da sua fundamentação (é-lhe remetida apenas uma guia de pagamento e um formulário fiscal), invia­bi­lizando de todo que esta possa, nessa fase de primeiro grau de decisão, escrutinar a legalidade ou va­­­li­dade de tais atos de substituição tributária ou, mesmo, agir sponte sua contra eventuais irre­gula­ri­da­des cometidas pelo substituto tributário.

Ciente dessa realidade o legislador gizou um mecanismo procedimental — a reclamação graciosa em termos, aliás, bastante generosos (o prazo de interposição é de 2 anos) — que permite ao sujeito passivo suscitar a intervenção da administração fiscal para que esta possa reparar eventuais ilegalidades de que o ato tributário padeça e que não foram por cometidas pela AT, mas sim por terceiros agindo no seu interesse e por sua conta.

É absolutamente consensual que a reclamação administrativa prevista para os atos de substituição tributária tem natureza necessária e que a falta da sua interposição tempestiva torna o ato de primeiro grau contenciosamente inimpugnável. A impugnação judicial deduzida, sem precedência de uma reclamação graciosa, contra um ato de liquidação praticado por um substituto tributário está inevitável­mente votada ao insucesso.

A questão, pois, é a de saber se essa inimpugnabilidade pode, por um mero bizantino formalismo ritual, ser sanada se, depois de decorrido o prazo perentório de 2 anos, o contribuinte em vez de deduzir uma reclamação graciosa vier apresentar pedido de instauração oficiosa de um procedimento de revisão. Aceitar essa possibilidade significaria fazer tábua rasa do requisito de prévia reclamação graciosa necessária legislativamente erigido como critério de impugnabilidade contenciosa, tornando-o num requisito legal completamente excrescente, inútil e ineficaz, já que o efeito claramente visado e desejado pelo legislador (: estabelecer a inimpugnabilidade contenciosa de atos que não sejam objeto de reclamação administrativa no prazo de 2 anos) seria completamente frustrado se o contribuinte, numa soi-disant ‘burla de etiquetas’, alterasse a denominação por si atribuída ao procedimento administrativo cujo desencadeamento se apresentava a suscitar. Ora, não é razoável, nem compreensível, que a efetividade de requisitos de impugnabilidade contenciosa de atos tributários — que são, note-se bem, erigidos em ordem à prossecução de finalidades de ordem pública ligadas aos interesses da segurança e da certeza jurídicas — ficassem inteiramente na disponibilidade da vontade dos particulares e subordinados aos caprichos do critério que seguissem na denominação dos requerimentos procedi­men­tais por si apresentados.

Conforme é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina, o pedido de revisão oficiosa de­duzi­do dentro do prazo para a interposição de reclamação graciosa pode fazer as vezes desta e produzir os mesmos efeitos que teriam resultado da interposição deste meio procedimental. Não está em causa essa equiparação de efeitos entre um e outro meio procedimental.

Diferentemente, o que já não se afigura possível será reconhecer-se à dedução de pedido de revisão ofi­cio­sa a aptidão de suprir a omissão de tempestiva interposição da reclamação graciosa que o legis­la­dor qualificou de necessária e erigiu em requisito de impugnabilidade contenciosa: admiti-lo implicaria que a reclamação graciosa, afinal de contas, não seria nunca nem necessária nem condição de procedi­bi­li­dade do subsequente processo jurisdicional. A natureza reconhecidamente complementar do procedimento de revisão oficiosa face aos demais meios de impugnação administrativa não pode ter um alcance tão vasto e tão extenso a ponto de derrogar in totum qualquer efeito útil ou eficácia ao regime procedimental (e às suas projeções processuais) que resulta do art. 132.º, n.º 4, do CPPT.

Só não será assim — e a reclamação graciosa não terá então natureza necessária e, portanto, o pedido de revisão poderá livremente ser deduzido no seu prazo normal de 4 anos — se estiver exclusi­va­mente em causa matéria de direito e o ato de liquidação por retenção na fonte tiver sido efetuado de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária (arts. 131.º, n.º 3, e 132.º, n.º 6, do CPPT). Salvo melhor opinião, o ónus da prova da existência de tais orientações genéricas recai sobre o impugnante e não me parece que, nesta arbitragem, tenha sido satisfeito.

O que acima fica dito vale, mutatis mutandis, para a questão da competência do CAAD para conhecer da impugnação de atos de liquidação mediante retenção na fonte a título definitivo. Nos termos do art. 2.º, al. a), da Portaria de Vinculação, a AT excetuou da sua vinculação à jurisdição arbitral do CAAD a impugnação de atos tributários que não tenha sido precedida do recurso às vias administrativas previstas nos arts. 131.º a 133.º do CPPT. Pese embora seja de se reconhecer, para efeitos do preenchimento deste requisito estabelecido pela Portaria de Vinculação, uma equiparação entre as reclamações graciosas e os pedidos de instauração oficiosa de procedimento de revisão (quando apresentados dentro do prazo de 2 anos referido naqueles dois preceitos do CPPT) não creio que a dedução de pedido de desencadea­men­to de revisão oficiosa depois de ultrapassado o prazo de 2 anos em referência possa, neste contexto e para estes efeitos, fazer as vezes da reclamação graciosa. Assim, a meu ver, no caso desta arbitragem está preenchido o requisito negativo da declaração de adesão da AT à jurisdição arbitral voluntária do CAAD, obstando assim a que esta entidade jurisdicional possa conhecer do objeto da causa. Dito de outra forma: a exigência de reclamação graciosa prévia aposta no cit. art. 2.º, al. a), da Portaria de Vinculação refere-se a este específico meio procedimental (ou, se apresentado no prazo da reclamação graciosa, ao pedido de instauração de revisão oficiosa).

Não ignoro a jurisprudência dos tribunais superiores em que se admite a impugnação de atos tributários na sequência de pedidos de revisão oficiosa apresentados para além do mencionado prazo de dois anos. Porém, tais arestos assentam a sua ratio decidendi em situações fácticas distintas daquela que se verifica na presente arbitragem, na medida em que dizem respeito a processos em que as instâncias concluíram que a omitida reclamação graciosa não tinha natureza necessária por estar em causa a aplicação exclu­siva de matéria de direito de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária. No caso da presente arbitragem não ficou demonstrada — nem sequer foi alegada — a existência de tais orientações genéricas, em termos que permitissem convolar a reclamação graciosa de necessária em facultativa.

Teria, portanto, julgado ambas as exceções procedentes e, em consequência, absolvido a requerida da ins­tância arbitral, uma vez que o pedido de instauração oficiosa do procedimento de revisão foi apresen­ta­do pela requerente mais de dois ano após a prolação dos atos de liquidação por retenção na fonte a títu­lo definitivo que formam o objeto da presente arbitragem.

 

2. Uma derradeira referência para salientar que, contrariamente ao entendimento que segui no julgamento da matéria de facto do Proc.º 619-2023-T, e que está vertido na declaração de voto que apresen­tei nesses autos, em minha opinião nesta arbitragem ficou suficientemente demonstrado que os valo­res mobiliários melhor identificados no probatório (que estão depositados numa conta de títulos se­dea­da numa instituição bancária portuguesa e titulada pela entidade estrangeira D...) per­ten­cem na realidade ao fundo requerente. Com efeito, foi junta o prospeto do fundo em causa (doc. n.º 4 junto com a p.i.) declarando que aquele D... está registado como entidade depositária dos valores mobiliários detidos pelo fundo (pág. 3). Esse facto, aliado também à circunstância das notas de lançamento dos pagamentos dos dividendos identificarem o fundo requerente como beneficiário efetivo, parece-me ser suficiente para concluir probatoriamente, e para além de dúvida razoável, que o real titular dos valores mobiliários aqui em causa é o fundo requerente, e não o D... .

 

CAAD, 18/09/2024

 

O Árbitro,

 

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

 

 


 

 

 


 

 

 



[1] CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: Anotado", 2016, pág. 96 e 97.

[2] Temos como exemplos da jurisprudência ora dominante, se não mesmo pacífica, as seguintes decisões arbitrais:: 660/2022-T, de 16-06-2023; 658/2022-T, de  23-05-2023; 821/2021-T, de  26-04-2023; 661/2022-T, de 14-04-2023;  505/2022-T, de  09-03-2023; 506/2022-T, de 26-02-2023; 45/2022-T, de  23-02-2023; 495/2022-T, de  13-02-2023; 474/2022, de 12-12-2022; 746/2021-T, de 26-09-2022; 711/2021-T, de  22-07-2022; 817/2021-T, de 18-05-2022; 135/2021-T, de  30-04-2022; 593/2021-T, de 26-04-2022; 133/2021-T, de  21-03-2022; 922/2019-T, de  11-01-2019; 48/2012-T, de 06-07-2012.

[3] Ou seja, as reclamações necessárias são uma exceção à regra constitucional da imediata impugnabilidade os atos administrativos lesivos, pelo que a sua exigibilidade deverá estar sempre sujeita a um escrutínio restritivo.

[4] Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2017, pág. 220 ss.

[5] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).