Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 76/2024-T
Data da decisão: 2024-09-20   Outros 
Valor do pedido: € 483.429,55
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR); competência dos tribunais arbitrais; ineptidão da petição; legitimidade.
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SUMÁRIO:

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário é um tributo que se qualifica como imposto e não como contribuição, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar matérias a ela respeitantes.
  2. Os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR e já não de actos de repercussão daquele imposto.
  3. A falta de identificação dos actos de liquidação de CSR contestados, cuja declaração de ilegalidade e anulação se requer, implica a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.
  4. A Requerente não suportou o encargo da CSR por repercussão legal, pelo que carece de legitimidade processual para contestar a legalidade dos actos de liquidação daquele imposto.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Marisa Isabel Almeida Araújo e Vítor Braz, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., S.A., NIPC..., com sede na Rua..., ...-... ..., Braga (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na

 

sequência da formação da presunção de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa apresentados em 20 de Junho de 2023 junto da Alfândega do Jardim do Tabaco e da Alfândega de Aveiro, tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) com base nas Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”) submetidas pelas sociedades B..., S.A. (“B...”) e C..., S.A. (“C...”) (em conjunto designadas como “fornecedoras de combustíveis”) e, bem assim, dos consequentes actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e ao gasóleo àquelas adquiridos no ano de 2022.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado pela Requerente em 17 de Janeiro de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

            3. No pedido arbitral a Requerente invocou, em síntese, que:

  • A CSR, aprovada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, está em antinomia com o regime geral dos impostos especiais de consumo vertido na Directiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008 (“Directiva 2008/118/CE”), conforme entendeu o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no despacho Vapo Atlantic proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C-460/21;
  • Tal antinomia resulta do facto de a CSR não prosseguir “motivos específicos”, na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 2008/118/CE, uma vez que “as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar‑se como suficiente, para estabelecer uma relação directa entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objectivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental”;
  •  Neste sentido, os actos tributários praticados ao abrigo das normas internas que conformam o regime jurídico da CSR padecem do vício de ilegalidade abstracta por violação de norma do direito da União Europeia de parâmetro hierárquico superior;
  • O direito da União Europeia vincula todos os serviços do Estado, o que significa que a AT estava obrigada a desaplicar as referidas normas internas com fundamento na apontada desconformidade com o direito da União Europeia, por forma a evitar a consequente ilegalidade abstracta dos putativos actos de aplicação;
  • Uma vez que a AT não o fez, conclui-se que o erro (ilegalidade) ínsito nos actos tributários objecto do presente processo é imputável aos serviços, que deviam ter procedido à respectiva revisão nos termos previstos na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”);
  • Devem assim ser anulados os actos tributários objecto do presente processo arbitral e, em consequência, devolvidas à Requerente as quantias pela mesma suportadas a título de CSR, no montante global de € 483.429,55.

 

            4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 6 de Março de 2024, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 26 de Março de 2024, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

            6. Em 30 de Abril de 2024, a Requerida apresentou a sua resposta onde invocou, em suma, o seguinte:

  • Independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica da CSR, a verdade é que não é, por definição, um imposto e, portanto, o CAAD não tem competência para decidir sobre esta matéria, por força do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”);
  • A incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido da Requerente resulta ainda do facto de esta questionar a legalidade do regime jurídico da CSR no seu todo, tendo em vista a suspensão da eficácia de actos legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, o que extravasa as competências dos Tribunais Arbitrais, que têm competência de mera anulação de actos e não de fiscalização da legalidade de normas em abstracto, sem enquadramento processual impugnatório de acto concreto de liquidação, nem a execução de sentenças/decisões;
  • Afigurando-se inconstitucional uma interpretação que determine que o artigo 2.º do RJAT inclui a apreciação dos pedidos aqui formulados pela Requerente, quando a letra e o espírito da norma não o permitem;
  • Ainda que se considerasse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR (que a Requerente não consegue identificar), nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR, e que para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
  • Neste sentido, verifica-se a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral que determina a absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 576.º e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT;
  • Resulta do artigo 15.º do Código do Impostos Especiais sobre o Consumo (“CIEC”) apenas podem solicitar o reembolso do imposto pago, os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto;
  • O que significa que de acordo com os artigos 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do acto tributário e consequente pedido de reembolso do imposto;
  • No caso concreto, ao não ser a Requerente um sujeito passivo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 4.º do CIEC, não se encontram reunidos os pressupostos para a revisão dos actos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do alegado repercutido económico ou de facto, pelo que a Requerente carece de legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações e consequente reembolso do montante correspondente;
  • Mesmo que assim não se entendesse, a Requerente continuaria a carecer de legitimidade nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, já que esta apenas é atribuída ao sujeito passivo que suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sendo que a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal pelo que esta, a existir, será uma mera repercussão económica;
  • Por outro lado, dada a natureza da repercussão da CSR, ainda que o sujeito passivo de ISP/CSR “repasse” o custo da CSR, ou parte dele, no preço de venda dos combustíveis, os seus clientes não são, necessariamente, quem suporta, a final, o encargo do tributo;
  • De facto, a Requerente enquanto sociedade comercial que desenvolve uma actividade com fins lucrativos, repassa, necessariamente no preço dos serviços praticados, os gastos em que incorre, nomeadamente com a aquisição de combustíveis, pelo que as entidades potencialmente lesadas com o encargo da CSR, são os consumidores finais de tais serviços e não a Requerente;
  • A Requerente não consegue demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriu à sua fornecedora, tem incluído o valor da CSR pago pelo sujeito passivo de ISP/CSR, nem que suportou, a final, o encargo de tal tributo, isto é, que não o repassou no preço dos serviços praticados aos seus clientes, enquanto consumidores finais;
  • A aceitar-se que a Requerente tenha legitimidade para efectuar o pedido de revisão e de anulação parcial da liquidação do ISP, reclamando o reembolso da CSR, a Requerida poderia vir a ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR, mais do que uma vez, a todo e qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia comercial de combustíveis, o que não configuraria uma real situação de reembolso nos termos e para o efeito do disposto no artigo 15.º, n.º 2, do CIEC, mas, sim, um atentado à segurança jurídica e a todo o ordenamento jurídico-constitucional;
  • Em suma, carece a Requerente de legitimidade substantiva que sustente a sua pretensão, o que implica a verificação de excepção de ilegitimidade que determina a absolvição da Requerida da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º todos do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”);
  • Acresce que o deferimento ou indeferimento da pretensão não acarreta qualquer proveito ou prejuízo para a Requerente, porquanto não logrou concretizar, e muito menos provar, os alegados factos referentes ao pagamento do valor da CSR, nomeadamente que a CSR lhe foi repercutida e, que por sua vez, também a não repercutiu aos seus clientes, por forma a poder sustentar que suportou de forma efectiva o encargo do imposto, de tal forma que carece de interesse em agir, verificando-se assim uma excepção dilatória inominada nos termos do vertido nos artigos 576.º, nº 1 e n.º2 e 577.º do CPC, aplicável ao presente processo por via do artigo 29.º, n.º1 al. e) do RJAT, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo, consequentemente, a Requerida ser absolvida da instância;
  • Nos termos do da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT impunha-se à Requerente a identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido, o que esta não fez, limitando‑se a identificar facturas de aquisição de combustíveis ao seus fornecedor sem identificar qualquer acto tributário de liquidação, o que determina a nulidade de todo o processo e absolvição da Requerida da instância por verificação de excepção de ineptidão da petição inicial, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º do RJAT;
  • Verifica-se ainda a caducidade do direito de acção, porque a Requerente não pode fazer valer-se do prazo de quatro anos previsto na segunda parte da norma vertida no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, tendo já decorrido o prazo previsto na primeira parte daquela norma;
  • Ademais, no âmbito dos IEC os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos artigos 15.º a 20.º do CIEC, sendo pacífico que o regime específico aí previsto é o aplicável quando se suscite a questão da revisão do acto tributário e consequente reembolso com os fundamentos previstos nas mesmas normas, incluindo o do erro na liquidação;
  • Ora, no presente caso, à data das apresentações dos pedidos de revisão oficiosa já teria terminado o prazo de três anos para requerer o reembolso, ainda que parcial, do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR;
  • Pelo que se verifica uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido ou, caso assim não se entenda, uma excepção dilatória que impõe a absolvição da Requerida da instância nos termos dos artigos 89.º n.ºs 1, 2 e 4 alínea k) do CPTA;
  • Por fim, a Requerente não logrou provar que no ano de 2022, adquiriu 3.110.997,20 litros de gasóleo rodoviário e 252.216,23 de litros de gasolina, tendo, nessa medida, suportado, a título de CSR, a quantia global de €483.429,55, razão pela qual deve o pedido de pronúncia arbitral ser julgado totalmente improcedente.

 

            7. Em 6 de Maio de 2024, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório e para, querendo, juntar ao processo de cópia das liquidações objecto de impugnação, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do RJAT. A Requerente respondeu ao despacho por requerimento apresentado em 14 de Maio de 2024, onde sustentou, em síntese, o seguinte:

  • O objecto da presente acção arbitral comporta: i) primordial e autonomamente, os actos de repercussão de CSR ínsitos nas facturas emitidas pela B... e pela C... referente ao combustível adquirido pela Requerente; e, bem assim, ii) os actos de liquidação de CSR que deram origem àqueles actos de repercussão (e sem as quais estes não existiriam);
  • No que respeita aos primeiros, a Requerente procedeu à identificação dos mesmos através da junção aos autos das facturas que lhe foram emitidas pela B... e, bem assim, por via da apresentação de listagens com todos os elementos identificativos de tais facturas;
  • Já no que se refere aos segundos, a Requerente também procedeu, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea b), do RJAT, à respectiva identificação, careando para o processo todos os elementos identificativos de que dispunham (rectius, de que podiam dispor), indicando, expressa e claramente, que se tratam dos actos de liquidação de CSR praticados pela AT com base nas DIC submetidas pelos respectivos sujeitos passivos, referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente às referidas fornecedoras de combustível nas datas constantes das facturas e listagens juntas com o pedido de pronúncia arbitral;
  • No âmbito de uma relação de repercussão legal de tributos, como a da CSR, perfila-se como lógico e linear que os repercutidos apenas tenham o ónus de identificar específica e concretamente os – únicos – actos tributários de que são destinatários no âmbito dessa relação jurídico-tributária sujeita a repercussão legal, ou seja, os actos de repercussão legal corporizados nas facturas ou documentos equivalentes que lhes são dirigidos pelos respectivos sujeitos repercutentes;
  • Sendo a AT a entidade incumbida de promover a liquidação da CSR, é esta quem está, na verdade, obrigada a indicar, através dos meios ao seu dispor e ao abrigo dos respectivos poderes de indagação, os concretos elementos identificativos dos actos de liquidação de CSR objecto do presente processo arbitral (como, por exemplo, as respectivas datas de emissão ou os n.ºs de liquidação) e de, se necessário for, promover a sua junção aos autos;
  • Atribuir ao artigo 10.º, n.º 2, alínea b), do RJAT (ou, bem, assim, ao artigo 74.º da LGT) um sentido interpretativo diferente do que fica enunciado, projectando sobre os terceiros repercutidos – como a ora Requerente – o ónus de identificarem e de juntarem aos autos actos tributários de que não foram destinatários e que não têm forma de conhecer – i.e., os actos de liquidação dirigidos aos respectivos sujeitos passivos primários e que constituem o quid da repercussão legal –, violará, de forma grosseira, os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa) e da proporcionalidade (ínsito no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa), sendo um tal sentido interpretativo, por esse motivo, materialmente inconstitucional;
  • Concomitantemente, regista-se ainda que a projecção de um tal ónus sobre a Requerente violaria também o princípio da efectividade vigente no âmbito do direito da União, tendo em consideração que tornaria impossível ou excessivamente difícil o exercício, por parte da Requerente, do seu direito a obter a restituição de um tributo suportado em violação do direito da União.

 

            8. Em 16 de Maio de 2024, foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, remetendo-se para a decisão final a apreciação da matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

 

II. SANEAMENTO

 

            9. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria de Vinculação.

 

            10. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as excepções de (i) incompetência do Tribunal Arbitral, (ii) ineptidão do pedido de pronúncia arbitral, (iii) ilegitimidade da Requerente e (iv) caducidade do direito de acção, o que será feito por esta ordem a título prévio no âmbito da análise do mérito da causa, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

               

§1 – Factos provados

 

            11. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade de direito português, com sede e direcção efectiva em Portugal;
  2. A B... e a C... são empresas que comercializam combustíveis em Portugal;
  3. Durante o ano de 2022, a Requerente adquiriu à B... 3.110.997,20 litros de gasóleo rodoviário e 252.216,23 litros de gasolina;
  4. Durante o ano de 2022, a Requerente adquiriu à C... 1.046.514,00 litros de gasóleo rodoviário;
  5. A B... emitiu uma declaração com o seguinte teor:

B..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à empresa A..., S.A. (NIF –...), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.”:

  1. A C... emitiu uma declaração com o seguinte teor:

C..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., ..., ..., ...-... Ílhavo, pela presente declara, para os devidos efeitos que "todos os impostos e taxas" por si entregues, na qualidade de revendedor de combustíveis, por referência ao combustível fornecido à empresa A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.

  1. Por correio registado de 20 de Junho de 2023, a Requerente deduziu junto da Alfândega do Jardim do Tabaco e da Alfândega de Aveiro dois pedidos de revisão oficiosa com vista à anulação das liquidações de CSR e dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas emitidas pelas referidas fornecedoras de combustível, referentes aos litros de gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos durante o ano de 2022 e referidos nas alíneas c) e d) supra;
  2. Até à presente data, os pedidos de revisão oficiosa não foram objecto de decisão por parte da AT;
  3. Em 17 de Janeiro de 2024, a Requerente apresentou o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

§2 – Factos não provados

 

            17. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:

  1. A AT liquidou a quantia global de € 483.429,55 a título de CSR, em relação ao gasóleo rodoviário e gasolina referente às facturas emitidas pela B... e pela C... à Requerente;
  2. A B... e a C... pagaram integralmente o montante de CSR referido na alínea anterior;
  3. A Requerente suportou economicamente o encargo da CSR, na quantia global de € 483.429,55, referente às facturas de gasóleo rodoviário e gasolina adquiridos à B... e à C...;
  4. A Requerente é o consumidor final dos combustíveis rodoviários adquiridos à B... e à C..., não tendo repercutido o encargo da CSR no preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

18. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

19. O Tribunal formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

20. Quanto aos factos julgados como não provados nos pontos 1) e 2) supra, entendeu o presente Tribunal que as declarações juntas pela B... e pela C..., desacompanhadas das Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”) globalizadas, dos consequentes actos de liquidação e dos respectivos comprovativos de pagamento não permitem certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo das quantidades de gasóleo rodoviário e gasolina adquiridos pela Requerente e titulado pelas facturas a que aludem as alíneas c) e d) dos factos provados.

 

21. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto 3) supra, é essencial precisar, em primeiro lugar, que a prova da repercussão da CSR tem como pressuposto inevitável a demonstração de que este tributo foi inicialmente liquidado e pago pelo sujeito passivo, i.e., pela B... e pela C..., no momento da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – factualidade que a Requerente não logrou provar, tal como acima explanado.

 

22. Em segundo lugar, considera este Tribunal que a Requerente não cumpriu o critério fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C‑460/21, no que respeita à prova da repercussão da CSR. Nas palavras daquele Tribunal:

 

“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).

45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).

46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).

(…)

48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)

 

            23. Transpondo as considerações do TJUE para os presentes autos, dá-se como assente que a repercussão da CSR pela B... e pela C... sobre a Requerente não pode em caso algum ser presumida.

 

            24. O que é compreensível, desde logo porque ao contrário do que afirma a Requerente, não está aqui em causa uma “repercussão legal”, assente numa qualquer norma prevista na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que instituiu a CSR. Pelo contrário, a repercussão deste tributo é tão só “expectável” perante o respectivo regime e funcionamento, não passando, porém, de um fenómeno económico que pode assumir uma configuração e amplitude variáveis. Como explica Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399:

A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.

A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”.

 

            25. Portanto, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida por mais que tenha sido querida na lógica de funcionamento do tributo. Impõe-se, diversamente, uma análise do contexto e dos vários factores que conformam cada transacção comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final.

 

            26. Ora, este exercício de prova não foi realizado pela Requerente, que se limitou a estabelecer meros juízos presuntivos de que suportou a CSR em virtude de uma suposta – embora inexistente – obrigação legal de repercussão do encargo daquele tributo.

 

27. A Requerente procurou provar a repercussão através da junção aos autos de facturas, listagens internas com os consumos de combustíveis e declarações das fornecedoras de combustíveis onde estas se limitaram a afirmar de forma genérica e abstracta que repercutiram o encargo da CSR.

 

28. Sucede que daquelas facturas, listagens e declarações não decorre, sem mais, a prova da repercussão. Veja-se que as declarações não versam as concretas transacções realizadas entre as fornecedoras de combustível e a Requerente; não fazem a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados; não estabelecem a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não demonstram a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de gasóleo rodoviário e gasolina à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida é que tal incorporação se processou.

 

            29. Para além do mais, ainda que a Requerente tivesse provado a liquidação e repercussão da CSR nos termos acabados de enunciar, sempre inexistiriam elementos nos autos para certificar que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera jurídica, isto é, que foi a Requerente a entidade que em última instância foi onerada com o tributo em causa, porquanto não incorporou o seu custo no preço do serviços prestados aos seus clientes que podem situar‑se no circuito ou cadeia económico-comercial como os verdadeiros consumidores finais. Foi por isso que não se deu como provado o facto constante do ponto 4) supra.

 

            30. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

IV.1. Questões prévias – saneamento

 

§1 – Incompetência do Tribunal Arbitral

 

            31. Quanto à competência deste Tribunal Arbitral, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pela Requerente é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária e, em segundo lugar, se os concretos pedidos formulados pela Requerente se encontram dentro do escopo material da arbitragem tributária.

 

            32. Esta mesma questão foi já objecto de ampla apreciação pelos Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência cumpre aqui considerar em cumprimento do desiderato uniformizador de jurisprudência que decorre do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil. Para o efeito, adere-se ao decidido no acórdão do Tribunal Arbitral no processo n.º 848/2023-T, proferido em 12 de Junho de 2024, que na parte aqui relevante referiu o seguinte:

 

27. Quanto à apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos formulados pela Requerente, seguem-se aqui de perto as conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 29 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 467/2023‑T.

 

28. Assim, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pela Requerente é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.

 

29. Ao que aqui importa, a competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)

 

30. Âmbito material este que é por sua vez circunscrito na Portaria de Vinculação, da seguinte forma:

“Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

 

31. Apesar de a concatenação das referidas normas jurídicas não apresentar uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de actos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação – o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria –, certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos.

 

32. Revela-se, assim, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.

 

33. Nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a excepção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:

 

“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.

 

34. Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita‑se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:

 

“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.

Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.

Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.

Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”

 

35. Cabendo tomar posição, e evitando repetições desnecessárias e contrárias à economia processual que se exige, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, já que este é um tributo que efectivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Por conseguinte, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos.

 

36. Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar os concretos pedidos formulados pela Requerente com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.

 

37. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente peticionou, por um lado, a declaração de “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022” e, por outro lado, a declaração de ilegalidade “das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustível, determinando‐se, nessa medida, a sua anulação, com as demais consequências legais”.

 

38. Do teor de tais pedidos resulta desde logo que não assiste razão à AT quando sustenta que a Requerente questiona a desconformidade jurídico-constitucional do regime da CSR como um todo, peticionando a suspensão da eficácia de acto legislativo emanado pela Assembleia da República no exercício das suas competências. Tal pedido não foi definitivamente formulado pela Requerente, pelo que improcedem quaisquer desconformidades que lhe pudessem ser assacadas.

 

39. Prosseguindo pela análise ao primeiro pedido, avança-se desde já que a apreciação da legalidade de actos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária.

 

40. Os actos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia Sérgio Vasques, ob. cit., p. 399.

 

41. Fenómeno este que não se subsume a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT anteriormente transcrito, que determina que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação (alínea a) do n.º 1) e de actos de fixação da matéria tributável/matéria colectável/valores patrimoniais na eventualidade de não terem originado qualquer acto de liquidação (alínea b) do n.º 1).

 

42. Com efeito, independentemente da posição que se adopte sobre a natureza jurídica dos actos de repercussão – i.e., saber se são actos que integram uma relação jurídico-tributária complexa ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada – certo é que aqueles não são actos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria colectável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos actos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (neste sentido vide Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).

 

43. Este é, de resto, o entendimento que tem sido defendido pela jurisprudência que se pronunciou sobre o tema, concretamente pelos Tribunais Arbitrais constituídos nos processos n.º 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T, 408/2023-T e 467/2023-T. Por todos, reproduz-se nesta sede em reforço das considerações já realizadas, o excerto das conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 1 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 296/2023‑T:

 

“III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de repercussão

Como os Colectivos que decidiram os processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T, o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa – na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier, distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária.”

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa, entre o terceiro repercutido “e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.”

 

Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”. Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente).”.

 

44. Em face do exposto, declara-se o presente Tribunal Arbitral incompetente, em razão da matéria, para conhecer o pedido de apreciação da legalidade de actos de repercussão de CSR, impondo-se a absolvição parcial da Requerida da instância quanto a este concreto pedido, em conformidade com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) todos do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

45. Em sentido oposto, e sem necessidade de mais valorações, reconhece-se o presente Tribunal Arbitral competente para apreciar o segundo pedido formulado pela Requerente, de declaração de ilegalidade das liquidações de CSR dirigida à sociedade fornecedora de combustível, porque subsumível ao âmbito material previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. Saber se tal impugnação pode ser feita pela Requerente, na qualidade de (alegada) repercutida, ou apenas pela B..., enquanto sujeito passivo primário a quem foi (alegadamente) liquidada e por quem foi (alegadamente) paga a CSR, é uma questão que não releva para efeitos de determinação de competência mas tão só para efeitos de apuramento de legitimidade, pelo que será nessa sede apreciada.”.

 

            33. Fica, portanto, evidente, que a apreciação de questões relativas à CSR se encontram, em termos genéricos, abrangidas no âmbito de competência material da arbitragem tributária, por estar em causa um imposto e não uma contribuição. Falta então analisar, em concreto, o teor do pedido formulado pela Requerente, que aqui se transcreve:

 

O PRESENTE PEDIDO ARBITRAL DEVERÁ SER CONSIDERADO PROCEDENTE, POR PROVADO E FUNDADO, DECLARANDO-SE A ILEGALIDADE DOS ATOS DE REPERCUSSÃO DA CSR CONSUBSTANCIADOS NAS FATURAS REFERENTES A GASOLINA E A GASÓLEO RODOVIÁRIO ADQUIRIDOS À B...  E À C... PELA REQUERENTE NO DECURSO DO ANO DE 2022, E, BEM ASSIM, DAS CORRESPONDENTES LIQUIDAÇÕES DE CSR PRATICADAS PELA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA COM BASE NAS DIC SUBMETIDAS PELAS PELOS RESPETIVOS SUJEITOS PASSIVOS, DETERMINANDO-SE, NESSA MEDIDA, A SUA ANULAÇÃO, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE, COM O REEMBOLSO À REQUERENTE DE TODAS AS QUANTIAS SUPORTADAS A ESSE TÍTULO, ACRESCIDAS DOS RESPETIVOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS CONTADOS NOS TERMOS ACIMA REFERIDOS.

 

            34. Da leitura do pedido formulado pela Requerente resulta, liminarmente, que não tem razão a AT quando afirma que a pretensão manifestada com a presente acção radica na suspensão da eficácia de actos legislativos emanados no exercício da função legislativa da Assembleia da República. Tal não é peticionado e também não resulta de modo algum da causa de pedir tal qual conformada pela Requerente.

 

            35. Da leitura do pedido resulta, também, que a Requerente pretende sindicar a legalidade de actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas emitidas pelas fornecedoras de combustíveis. Acontece que tais actos, que não são actos de liquidação conforme exposto no acórdão citado ao qual se aderiu, estão fora do escopo material da arbitragem tributária consagrado no 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março. Por este motivo, declara-se o presente Tribunal Arbitral materialmente incompetente para a sua apreciação, o que implica a consequente absolvição da Requerida desta parte da instância.

 

            36. Da leitura do pedido resulta, por fim, que a Requerente pretende discutir a legalidade dos actos de liquidação de CSR praticados pela AT com base nas DIC submetidas pelos respectivos sujeitos passivos daquele imposto. Quanto a este segmento do pedido, considera-se o Tribunal Arbitral competente, por estar o mesmo dentro do escopo material da arbitragem tributária consagrado no 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março. Por conseguinte, julga-se improcedente a excepção dilatória suscitada pela Requerida a este respeito.

 

§2 – Ineptidão do Pedido de Pronúncia Arbitral

 

            37. Tendo-se concluído pela competência material do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR, cabe então analisar se o pedido de pronúncia arbitral cumpre todos os requisitos legalmente previstos ou, pelo contrário, se é procedente a excepção de ineptidão invocada pela Requerida.

 

            38. Para o efeito, transcrevem-se uma vez mais as considerações do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no processo n.º 848/2023-T, proferido em 12 de Junho de 2024, ao qual se adere:

 

47. A título de contextualização, cumpre começar por sublinhar que o contencioso tributário é um contencioso de plena jurisdição que confere aos particulares uma tutela jurisdicional efectiva quanto a todas as lesões de direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária. Ainda assim, esta plena jurisdição é “mitigada”, porquanto reconhece limitações no que respeita aos poderes condenatórios e substitutivos que assistem aos Tribunais.

 

48. No que em concreto respeita ao domínio da impugnação judicial e da arbitragem tributária que lhe é alternativa, o contencioso tributário continua a ser essencialmente de mera anulação, com excepção dos poderes condenatórios de reembolso do imposto indevidamente pago, de condenação no pagamento de juros indemnizatórios e de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

49. Para além disso, no domínio daqueles meios processuais o contencioso tributário continua a ser de mera legalidade, de tipo, natureza ou matriz “objectivista”, que tem no acto tributário, maxime de liquidação, o seu elemento central (neste sentido vide Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2014, pp. 292-293).

 

50. Significa isto que a impugnação judicial e o pedido arbitral são meios processuais que não visam uma tutela da relação jurídico-tributária globalmente considerada, mas tão só dos concretos actos tributários contestados. Consequentemente, aqueles meios processuais dependem necessariamente da imputação de vícios a um determinado acto tributário previamente praticado e devidamente identificado que consiste no objecto do processo, cuja anulação ou declaração de nulidade ou inexistência se requer.

 

51. Neste mesmo sentido, referiu-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 16 de Dezembro de 2020, proc. n.º 0545/13.2BEVIS, que “o contencioso tributário é de mera apreciação da legalidade, consistindo na formulação de um pedido jurisdicional tendo em vista a anulação de um acto jurídico (tributário – liquidação) da administração, ou seja é um contencioso de anulação, e não de substituição”.

 

52. Dada a primazia que assume o acto tributário, torna-se particularmente relevante o cumprimento pelos particulares dos requisitos da petição inicial e do pedido de constituição de Tribunal Arbitral/pedido de pronúncia arbitral no que respeita à identificação dos actos de liquidação contestados.

 

53. Assim, determina-se no CPPT o seguinte:

 

“Artigo 108.º

Requisitos da petição inicial

1 - A impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido.”. (destaque nosso)

 

54. Já no RJAT estabelece-se, ao que importa, o seguinte:

 

“Artigo 10.º

Pedido de constituição de tribunal arbitral

(…) 2 – O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via electrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar:

(…) b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral;”. (destaque nosso)

 

55. Compreende-se que em concretização do princípio do dispositivo a lei faça recair o ónus de identificação dos actos de liquidação sobre quem exerce o impulso processual de os impugnar. Se assim não fosse, isto é, se quem tomasse a iniciativa de contestar a legalidade de um acto de liquidação não tivesse o dever de o identificar e caracterizar, bem como de invocar os elementos essenciais que conformam o pedido e a causa de pedir, poder-se-ia verificar o prosseguimento de uma acção com um objecto processual inexistente ou, pelo menos, não devidamente delimitado.

 

56. Tal hipótese não pode, naturalmente, ser admitida. Por um lado, porque é em função do objecto processual que o Tribunal afere o cumprimento dos pressupostos que lhe permitem apreciar o mérito, designadamente a competência material, a legitimidade das partes, a tempestividade do pedido e a competência em razão do valor. Por outro lado, porque sem objecto o processo será inútil, já que no limite a acção poderá prosseguir sem que o Tribunal consiga aferir perante o concreto acto de liquidação contestado a verificação dos vícios invocados pelo impugnante. Isto sem contar que a final a decisão não terá efeito útil prático, já que o Tribunal não poderá declarar a ilegalidade e consequente anulação de um acto que desconhece.

 

57. Vejam-se a este respeito as seguintes conclusões a que chegou o STA no acórdão de 07 de Fevereiro de 2018, proc. n.º 01400/17:

 

“A única questão a decidir consiste em saber se está correcta a decisão ora sindicada que se decidiu pelo indeferimento liminar da petição de impugnação com fundamento no facto de a petição inicial ser inepta, por falta de objecto e, ainda, por ininteligibilidade do pedido, determinante da sua nulidade, a qual entendeu ser do conhecimento oficioso do tribunal, de harmonia com o disposto nos artigos 98.º do CPPT, 195.º n.º 1 e 186.º, n.º 2, alínea a), estes últimos do CPC, aplicável por remissão do artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Importa saber se foram cometidos erros de julgamento de direito, e se terá sido violado o princípio da cooperação, consagrado no artigo 7º, n.º 1, do CPC, e, bem assim, o direito de acesso à justiça e aos tribunais, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

(…)

Dispõe o artigo 108º do CPPT o seguinte:

Artigo 108.º

Requisitos da petição inicial

1 – A impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o acto impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido.

2 – Na petição indicar-se-á o valor do processo ou a forma como se pretende a sua determinação a efectuar pelos serviços competentes da administração tributária.

3 – Com a petição, elaborada em triplicado, sendo uma cópia para arquivo e outra para o representante da Fazenda Pública, o impugnante oferecerá os documentos de que dispuser, arrolará testemunhas e requererá as demais provas que não dependam de ocorrências supervenientes.

A impugnante não identificou o acto impugnado e, não incumbia ao tribunal a quo substituir-se à Impugnante na identificação e junção do ato impugnado. Ocorre total ausência de indicação do acto de liquidação passível de ser impugnado, no âmbito da presente impugnação judicial e daí decorre a falta de objecto da impugnação e a ininteligibilidade do pedido apresentado na petição inicial. A ora recorrente concede, aliás que a sua petição inicial era imprecisa (vide supra conclusão e)), mas nada fez, nem quando notificada para a tornar precisa, desde logo neste elemento essencial – indicação do acto lesivo para si ou seja o acto impugnado que constituiria o objecto da acção que dirigiu ao tribunal.

É exacto que atenta a falta de objecto da impugnação e, bem assim, a ininteligibilidade do pedido formulado na petição inicial, o tribunal “a quo” nunca poderia emitir primeiro uma decisão sobre a tempestividade da impugnação, que obedece aos prazos previstos no artº 102º do CPPT e depois, caso se verificasse a tempestividade da mesma, uma decisão de mérito, por não ter sido materializado o ataque a um qualquer ato de liquidação de um tributo com indicação de causa(s) de pedir inteligíveis.

Esta é uma situação bem distinta de outros casos apreciados por este STA onde se expressou que o indeferimento liminar só terá lugar quando for de todo em todo impossível o aproveitamento da petição inicial, isto tendo em atenção que o princípio da pronúncia sobre o mérito se sobrepõe a questões formais que não interfiram e ponham em causa o mesmo.

Mas no presente caso nem sequer estamos imediatamente numa situação de evidência da improcedência da pretensão do autor. Estamos ainda a montante, na omissão de identificação do próprio acto impugnado e daí que o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, sendo que a concretizar-se redundaria em manifesto desperdício de actividade judicial. Nestas circunstâncias não se contraria o sentido decisório dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21.05.2014, recurso 69/14, de 6.03.2014, recurso 509/13, de 26.09.2012, recurso 377/12, de 16.05.2012, recurso 212/12, de 12.01.2011, recurso 766/10 e de 24.02.2011, recurso 765/10, todos in www.dgsi.pt.

No caso apreço, consideramos que o entendimento veiculado na decisão recorrida justifica o despacho de indeferimento liminar por impossibilidade da lide sendo correcta a fundamentação, supra destacada, em que se sustenta a decisão e que também para aqui se aporta.

Permitimo-nos ainda destacar aqui a asserção do Sr. Procurador Geral Adjunto neste STA inserta no seu parecer, consistente em que:

“(…) da simples leitura da fundamentação do despacho de indeferimento liminar, emerge que não foi proferida uma decisão atentatória dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da promoção do acesso à justiça ou pro actione, consagrados no artigo 20.º da CRP.

A não ser assim, inexistiriam decisões de natureza meramente formal, o que, por absurdo, levaria ao prosseguimento de ações, à partida, sem a mínima viabilidade, desperdiçando os meios materiais e humanos disponíveis e os dinheiros públicos, já de si escassos e, ademais, ocupando artificialmente os tribunais, já tão assoberbados, com questões de antemão condenadas ao insucesso”.

Acresce referir que atenta a falta de indicação e de junção do ato impugnado, que, necessariamente, o deveria instruir, por parte da Impugnante, não se impunha à Meritíssima Juíza do TAF de Sintra que interviesse de novo, no processo antes de proferir o despacho ora sindicado pois que o convite foi feito logo com a cominação do que sucederia caso não fosse satisfeito o convite formulado. Em consequência, não houve qualquer decisão surpresa para a ora recorrente e também não ocorreu violação do princípio da cooperação.

Finalmente cremos que o Mº Juiz não violou qualquer dever de «gestão processual», princípio que permite ao juiz dirigir activamente o processo, tomando as providências necessárias ao seu andamento célere e legal, o que inclui a adopção dos actos indispensáveis à regularização da instância.

É que, perante petição inicial, ostensivamente deficiente de elementos exigidos por lei, tomou a iniciativa própria e adequada traduzida na notificação/convite para identificação/junção aos autos do acto impugnado lesivo dos direitos da impugnante. Saíram goradas as suas diligências, por manifesta falta de colaboração da própria impugnante que erradamente entendeu que podia transferir para o Tribunal a obrigação de juntar aos autos um documento que não identificou, e não alegou que estivesse em poder da parte contrária, atinente ao acto impugnado também não identificado, sendo que a existir a sua junção estava no âmbito do princípio do dispositivo que à parte assiste não sendo caso para aplicação do disposto no artº 429º do novo CPC.

Nestas circunstâncias muito bem andou a Meritíssima Juiz de Direito do TAF de Sintra, ao decidir indeferir liminarmente a presente petição de impugnação judicial.”. (destaque nosso)

 

58. Num sentido próximo, vejam-se as considerações do Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 28 de Setembro de 2021, proc. n.º 693/2020-T:

 

“Analisado o pedido Arbitral na globalidade, verifica-se, em primeiro lugar, que a Requerente se limita, no pedido final, e de forma abstracta, a dizer que deve ser decretada “a anulação do ato tributário impugnado com todas as consequências legais”, ficando o intérprete sem saber muito bem qual seja esse acto tributário, porquanto o mesmo não é identificado de forma clara, nem ao longo do articulado nem a afinal.

(…)

O RJAT não contém regime próprio em matéria de excepções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no art. 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.

De acordo com o estabelecido no art. 186.º, n.º 2, do CPC, há lugar a ineptidão da petição inicial quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir e quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Na presente instância, a imprecisão quanto à identificação do pedido e a omissão dos factos correspondentes à identificação e caracterização dos actos tributários em causa, representam factualidade essencial, por isso integrante da causa de pedir. Trata-se, além do mais, de conteúdo que, pela sua essencialidade, deve, nos termos do estabelecido no art. 10.º, n.º 2, b), do RJAT, constar necessariamente do pedido de pronúncia arbitral.

Com efeito, o pedido é um elemento da petição inicial que, para além de ser importante para o réu (de modo a devidamente poder conformar a sua defesa), assume carácter essencial para o tribunal, na medida em que é com base no pedido que o tribunal aquilata o tipo de actividade jurisdicional que lhe é solicitada e define as balizas e objecto de conhecimento do mérito que lhe são permitidos e devidos. Conclusões que, no presente caso, em face do teor da petição inicial, e, em particular, da ausência, nela, da formulação de pedido, o tribunal não consegue apurar, não se reunindo, pois, as condições mínimas para que este possa conhecer do mérito.

Verifica-se, portanto, um dos tipos de deficiências “de carácter substancial, que irremediavelmente” comprometem “a finalidade da petição inicial” (ANTUNES VARELA, SAMPAIO e NORA e Miguel BEZERRA, Manual de Processo Civil, 1985, Coimbra Editora, p. 244), constituindo causa de ineptidão da petição inicial. Esta consubstancia, por seu turno, irregularidade geradora da nulidade de todo o processo (cfr. art. 186.º, n.º 1 do CPC), cuja previsão legal, enquanto excepção dilatória, consta do art. 89.º, n.º 4, b) do CPTA. Representa, por outro lado, nulidade insanável, como decorre do estipulado no art. 98.º, n.º 1, a), do CPPT, determinando, consequentemente, a absolvição da Requerida da instância (cfr. art. 576.º, n.º 2 do CPC).” (destaque nosso)

 

59. Retomando ao presente processo, constata-se que a Requerente peticiona a final a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de CSR praticados pela AT, porém, não identifica quais os específicos e concretos actos em causa nem junta aos autos qualquer prova, rectius documental, onde tal identificação seja feita.

 

60. Dos elementos probatórios produzidos pela Requerente apenas constam facturas que titulam aquisições de gasóleo rodoviário, bem como uma declaração da entidade fornecedora de combustível onde esta afirma que, enquanto sujeito passivo de CSR, repercutiu integralmente a totalidade do encargo do imposto na Requerente.

 

61. Por muito que as facturas e a mencionada declaração da fornecedora de combustível titulassem actos de repercussão de CSR – o que não ficou provado –, certo é que aquelas não são actos de liquidação, o que significa que a Requerente não cumpriu o ónus legal que lhe é imposto pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

 

62. Incumprimento este que a Requerente não supriu, apesar de ter sido devidamente notificada para o efeito. Numa tentativa de colmatar a falta de identificação dos actos de liquidação, no pedido de pronúncia arbitral e no exercício do contraditório, a Requerente remeteu para que a AT o incumprimento do ónus da prova, invocando para o efeito a inversão decorrente do n.º 2, do artigo 74.º, da LGT.

 

63. Ora, tal como se referiu, o dever de identificação das liquidações impugnadas recai sobre a Requerente por força do princípio do dispositivo associado ao impulso processual de impugnação (artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT), sem contar que o incumprimento deste ónus é processualmente valorado contra a Requerente por ser esta que tem de demonstrar os factos constitutivos dos seus direitos (artigo 74.º, n.º 1 da LGT). Em todo o caso, e sem prejuízo de não existir fundamento para transferir para a AT a obrigação de identificação e junção aos autos das liquidações contestadas, a verdade é que inexistem elementos no processo que permitam à AT – e muito menos ao Tribunal Arbitral – estabelecer um nexo causal entre as facturas que alegadamente titulam a repercussão da CSR e as liquidações que lhe estão a montante.

 

64. Tal como evidenciou a Requerida, a B... apresenta declarações de DIC’s diárias em diferentes alfândegas, sendo cada uma delas competente para emitir a DIC globalizada e consequente liquidação (artigos 10.º, n.º 6, 10.º-A e 11.º do Código dos IEC ex vi artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto). Portanto, as facturas a que alude a Requerente podem corresponder a qualquer uma das DIC globalizadas submetidas pela B... nas diferentes alfândegas.

 

65. Isto sem contar que a liquidação e pagamento da CSR situam-se no circuito económico a montante das vendas de combustíveis rodoviários efectuadas pela B... à Requerente, inexistindo uma correspondência temporal entre liquidações e facturas emitidas. O que implica que as facturas a que alude a Requerente podem estar associadas a várias das liquidações que foram emitidas à B..., sem que a factura de um determinado mês corresponda à liquidação globalizada desse mês.

 

66. Isto sem contar ainda que no giro comercial é comum que um operador económico declare para introdução no consumo a partir de um seu Entreposto Fiscal produtos que são propriedade de outro fornecedor de combustíveis. Nestas situações, o operador económico que apresenta a DIC é o sujeito passivo a quem é liquidada a CSR, ainda que seja o outro fornecedor de combustíveis quem irá vender, através do Entreposto Fiscal do sujeito passivo que apresentou a DIC, os produtos aos seus clientes. Portanto, as facturas a que alude a Requerente podem respeitar a liquidações de que foi objecto a B... ou qualquer outro fornecedor de combustíveis a quem aquela possa ter solicitado a declaração para introdução no consumo.

 

67. Conclui-se, assim, que a identificação dos actos de liquidação pela AT seria excessivamente difícil ou até mesmo inviável, já que as facturas juntas pela Requerente aos autos poderiam corresponder a qualquer uma das DIC globalizadas e a qualquer uma das liquidações emitidas nas diferentes alfândegas no período compreendido entre Abril de 2019 e Dezembro de 2022. Isto, sem contar que poderá nem sequer existir coincidência entre o sujeito passivo de CSR e a fornecedora de combustível à Requerente, que pode não ter sido a responsável pela introdução no consumo e pelo pagamento da CSR liquidada. A identificação dos actos de liquidação carecia de ser feita pelos verdadeiros sujeitos passivos de CSR, que não são parte no processo e sobre os quais este Tribunal Arbitral não dispõe de poderes de autoridade, pelo que não seria possível recorrer ao regime previsto no artigo 429.º do CPC.

 

68. Esta impossibilidade prática de identificação dos actos de liquidação pela Requerente é mais facilmente compreensível se for tido em consideração, em primeiro lugar, que nos termos do artigo 15.º do CIEC a legitimidade para contestar a legalidade das liquidações de CSR apenas assiste aos sujeitos passivos deste imposto e, em segundo lugar, que o ordenamento jurídico prevê formas específicas de tutela dos direitos dos repercutidos, concretamente através de acções de repetição do indevido contra os repercutentes. É este, de resto, o entendimento que tem sido sufragado pela jurisprudência arbitral, designadamente nos processos n.ºs 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T e 408/2023-T já citados.

 

69. Para efeitos elucidativos, atente-se no seguinte excerto do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral em 1 de Fevereiro de 2024, proc. n.º 296/2023-T:

 

“III.7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (inerentemente ligados a actos de repercussão) por solicitação dos repercutidos

Numa passagem do seu manual , Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral” .

Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias . Fê-lo a coberto do argumento da ineptidão do PPA por não incluir “A identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;”, como expressamente exigido na alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT; fê-lo também com base na caracterização da relação da Requerente com a sua Fornecedora de Combustível como “uma relação comercial de direito privado entre empresas, à qual a administração tributária é estranha” (o que era especialmente relevante para a questão anterior); mas fê-lo igualmente com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (…)

A questão é: pode ela suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com os pagamentos por ela feitos? Rectius: pode ela, supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que ainda teria de se apurar) – pode a Requerente, perguntava-se, suscitar a revisão das liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito?

A questão está em saber se, portanto, no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”, ainda que delimitando o âmbito da ilegalidade de tais liquidações pela correspondência aos “atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021” – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.

(…) qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida:

 “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”.

Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção:

“1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;

(…)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;”

Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.”.

 

70. A idêntica conclusão, ainda que com fundamentos diversos, chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 15 de Janeiro de 2024, proc. n.º 375/2023-T:

 

“37. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:

i. A referida Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;

ii. As ora Requerentes não são consumidoras finais, o que significa que os gastos em que incorrem são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;

iii. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis às ora Requerentes, não há razões para crer que estas, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, os quais nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).

 

38. Ora, não sendo as ora Requerentes os sujeitos passivos da CSR, nem repercutidos legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstrem factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., a menos que evidenciem a existência de um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre as mesmas impende.

 

39. Contudo, o único facto que as ora Requerentes alegam para este efeito é o de lhes ter sido repercutida a CSR. Qualificam esta repercussão, erradamente, como legal, embora não indiquem onde está prevista essa repercussão – que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe).

 

(…) 41. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que as ora Requerentes afirmam (nas suas palavras, o apontado “consumidor de combustíveis”, que, todavia, na realidade, a Lei não aponta...).

 

42. Rigorosamente, as ora Requerentes são tão-só clientes comerciais dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR. Não são os sujeitos passivos dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integram, nem são parte da relação tributária, nem são repercutidos legais. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido as Requerentes a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

i. Que a CSR foi repercutida às ora Requerentes, quais os montantes e em que períodos;

ii. Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que prestam aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comportam, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportaram, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respetivo quantum.

 

43. As ora Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, as quais estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Não lograram, por isso, atestar que suportaram o tributo contra o qual reagem. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhes poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não são sujeitos passivos, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.

 

44. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

45. Por fim, não se diga que as ora Requerentes ficaram desprovidas de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (vd. artigo 20.º da Constituição).

 

46. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (vd. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).”. (destaque nosso)

 

71. Percebe-se, assim, que a Requerente não tenha logrado identificar os actos de liquidação de CSR cuja legalidade pretende contestar. É que tal impugnação apenas pode ser feita pelos sujeitos passivos a quem as liquidações foram dirigidas, sendo tal restrição de justificada pelas dificuldades práticas que resultariam de uma atribuição irrestrita de legitimidade. Resulta, assim, das citadas decisões arbitrais que mesmo que a Requerente lograsse identificar os actos de liquidação de CSR, sempre lhe faltaria legitimidade processual para contestar a respectiva legalidade por força do disposto no artigo 15.º do CIEC e no artigo 18.º, n.ºs 3 e 4, alínea a), da LGT. Solução que, conforme se referiu, não obsta à efectivação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva, concretizada através de acção de restituição do indevido.

 

72. Pelo que sempre estaria verificada a excepção dilatória de ilegitimidade da Requerente, o que determina a absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

73. Em face de tudo o exposto, e sem necessidade de maiores considerações, julga este Tribunal Arbitral procedente a ineptidão da petição inicial por falta de objecto, o que consubstancia uma nulidade insanável e determina a absolvição da Requerida da instância arbitral por procedência de excepção dilatória, nos termos conjugados do artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, do artigo 89.º, n.º 4, alínea b) do CPTA e dos artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), do CPC.

 

            39. A conclusão a que chegou aquele Tribunal Arbitral é aplicável mutatis mutandis ao presente caso, porquanto também aqui a Requerente não logrou identificar os actos de liquidação de CSR cuja legalidade pretende sindicar, procurando suprir o incumprimento desse dever apelando a uma (inexistente) previsão de repercussão legal deste imposto e, bem assim, a uma inversão do ónus probatório que não tem suporte legal. Por conseguinte, julga-se procedente a excepção dilatória de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto, o que implica a absolvição da Requerida da instância nos termos conjugados dos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

40. Acresce que a Requerente não é sujeito passivo e não suportou economicamente o encargo do imposto, pela que carece igualmente de legitimidade processual activa para contestar a legalidade das liquidações de CSR. Neste sentido, julga-se procedente a excepção dilatória de ilegitimidade, o que implica a absolvição da Requerida da instância por força do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

41. Face ao sentido da decisão, fica prejudicada, porque inútil, nos termos do artigo 130.º do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas e), do RJAT, a apreciação das demais questões suscitadas no processo.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar:

  1. Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar actos de repercussão de CSR e, em consequência, absolver parcialmente a Requerida da instância;
  2. Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar actos de liquidação de CSR;
  3. Julgar procedente a excepção dilatória de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e de ilegitimidade quanto ao pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
  4. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 483.429,55.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 7.650,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de setembro de 2024

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e Relatora)

 

 

Marisa Isabel Almeida Araújo

 

 

Vítor  Braz

(com declaração de voto)

 

Declaração

Atento o teor da decisão e no sentido de posições pretéritas expressas sobre a CSR, apresento as observações seguintes:

A ineptidão da petição inicial constitui nulidade insanável do processo judicial tributário, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 98.º CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, norma essa que não esclarece as situações que configuram essa ineptidão.

A título subsidiário (v. alínea e) do artigo 2.º do CPPT e alínea e) do n.º 1 do art.º 29 do RJAT), o artigo 186.º do CPC apresenta-se como normativo aplicável e que rege esta matéria (v. neste sentido a decisão do Processo arbitral n.º 410/2024-T, de 13 de novembro de 2023).

No n.º 1 do artigo 186.º do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

O n.º 3 desse artigo determina que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Em relação à identificação dos atos tributários, não tendo a Requerente a qualidade de sujeito passivo da CSR, não lhe é exigível que disponha das liquidações correspondentes, uma vez que não é o destinatário das mesmas, nem participou na sua emissão.

Essa exigência comprometeria a sindicabilidade dos atos tributários por repercutidos legais, ou, no caso de retenções na fonte, pelos substituídos, com a consequente contração do acesso ao direito, incompatível com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e com o princípio da proporcionalidade (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição).

Acresce que a não identificação dos atos tributários não impediu o exercício do contraditório pela Requerida, atento, ainda, o teor da extensa e circunstanciada resposta, claramente manifestou compreender o alcance da pretensão da Requerente e os argumentos que a alicerçam. Por sua vez, nem essa identificação se apresenta como necessária para aferir da legalidade da cobrança de CSR.

O pedido formulado é perfeitamente inteligível e idóneo ao meio processual (ação arbitral tributária) - “revogação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação de CSR sub judice respeitante ao exercício de 2019 a 2022 e […] ilegalidade das liquidações e pagamento da CSR repercutidas”- reconduzindo-se à declaração de ilegalidade (e consequente anulação) das liquidações de CSR.

Em relação a alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir, essa também não existe, porquanto a Requerente não põe em causa a legalidade de emissão das faturas, nem pretende atingir o ato de repercussão tout cour, antes visa, no essencial, a declaração de ilegalidade e a anulação das liquidações de CSR subjacentes e a restituição do imposto que alega ter suportado por repercussão (v. Processo arbitral n.º 676/2023, de 12 de março de 2024 ).

Observa-se, ainda, que na interpretação das peças processuais deve observar-se o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, pelo que o Tribunal deve extrai da redação dada ao pedido na petição inicial o sentido mais favorável aos interesses da peticionante.

Pelo exposto, entende-se não se verificar a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral, não se verificando nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC.

Sobre a ilegitimidade da Requerente não sujeito passivo (SP) do imposto, recorda-se que quando é cobrado imposto em violação do direito da União Europeia é entendido que subiste a obrigação de restituí-lo ao SP, nos termos da lei e da jurisprudência da EU e nacional, salvaguardadas as situações de enriquecimento sem causa.

O pedido em apreciação consiste em saber se nos termos desses ordenamentos jurídicos, os restantes intervenientes nas operações comerciais e tributárias e, em regra, os contribuintes consumidores finais a quem o imposto possa ter sido repercutido e que o possam ter suportado economicamente têm o direito de exigir diretamente da Requerida/Estado a apreciação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto indevidamente pago, caso seja provado ter sido acrescido ao preço de compra do bem/produto por eles adquirido.

As empresas petrolíferas, em regra, repercutem o ISP e, no caso a CSR, nos operadores a jusante. Enquanto impostos aplicados ao consumo, estes caracterizam-se pelo facto de o seu encargo financeiro poder ser repercutido -repercussão fiscal - nos intervenientes na atividade comercial, maxime, no consumidor final.

A legitimidade deve ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas - têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem um interesse legalmente protegido. - cf. n.º 2 do art.º 1.º e art.º 65.º da LGT.

Nos termos da alínea a) do n.º 4 do art.º 18.º da LGT assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”. Nesse sentido, o CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” – cf. art.º 9.º do CPPT.

No caso da CSR alegadamente paga pela/s Requerente/s, enquanto consumidor final, existe a demonstração de um interesse legalmente protegido e que merece a tutela do direito, porquanto é no contribuinte consumidor final que, em regra, recai o pagamento dos tributos indiretos.

Por fim, atenta a jurisprudência da UE, o “Tribunal de Justiça referiu expressamente a possibilidade de o comprador final poder exigir, directamente às autoridades nacionais, a restituição do montante do imposto indevido cujo encargo suportou. “ – cf. Acórdão Comateb e O (-192/95 a C-218/95, Colect., p. I-165, n.º 20) de 14 de Janeiro de 1997.”

A plena eficácia do direito de reparação e a proteção efetiva dos contribuintes poderia ficar manifestamente prejudicada perante uma interpretação restrita no sentido de apenas os SP (no caso de CSR) gozarem do direto de ação e de pedirem o reembolso ao Estado – art.ºs. 4.º a 12.º e 15.º a 20.º do CIEC, limitando-se formalmente a outros sujeitos da relação tributária a efetiva reparação dos prejuízos incorridos - os contribuintes que possam ter suportado efetivamente o imposto e ser objetivamente lesados pelos respetivos atos de liquidação.

Nesse sentido, aquele Tribunal afirma: “Por conseguinte, no caso em que um Estado-Membro tenha cobrado um imposto especial sobre o consumo em violação do direito da União e o sujeito passivo tiver repercutido este sobre o seu cliente, um direito a indemnização deste cliente contra o Estado não pode ser recusado com o fundamento de que é de excluir de antemão um nexo de causalidade directo entre a cobrança do imposto e o dano do cliente.” – cf. Proc. C-94/10, conclusões.

Termos em que a/s Requerente/s, na qualidade de consumidor final dos produtos sujeitos a ISP e, subsequentemente a CSR, a quem este imposto possa ter sido repercutido, é titular de um interesse legalmente protegido e, ipso facto, de legitimidade processual, enquanto forma de acesso à justiça e de proteção dos direitos e reparação dos prejuízos que alega ter suportado com o pagamento da CSR, considerada em desconformidade com o direito da União.

Por sua vez, um putativo direito de acesso à justiça, em matéria tributária, através da jurisdição civil contra o SP, o qual se limitou a cumprir a lei vigente e que, em princípio, não obteve qualquer ganho, afigura-se que tal possibilidade seria difícil ou inexistente, na medida em que não ocorre nenhuma das situações previstas no artigo 476º do Código Civil. Observa-se que a repetição do indevido dependeria, ainda, do enriquecimento sem causa do SP, o qual, em regra, não ocorreu por ter entregado ao Estado um imposto que, eventualmente, repercutiu no consumidor final.

Acresce que atento o princípio da efetividade, deve ser igualmente reconhecido ao consumidor final, em regra, o repercutido de impostos indiretos, o direito de reclamar diretamente junto da administração tributária os montantes de imposto indevidamente liquidados e alegadamente pagos, com os demais poderes de impugnação junto dos Tribunais, incluindo o presente Tribunal arbitral - cf. Acórdão do TJUE de 20 de outubro de 2011, Proc. C-94/10.

 

Vítor Braz