Sumário:
-
Tal como previsto no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA, para beneficiar do direito à dedução de imposto, o sujeito passivo tem de demonstrar que o adquirente dos bens ou serviços teve conhecimento da regularização promovida.
-
Ocorrendo uma nova definição, pelo sujeito passivo, dos critérios de dedução de IVA aplicados a anteriores autoliquidações, tal equivale à invocação de erro de direito.
-
Nos termos do artigo 98.º, n.º 2, do Código do IVA, o prazo de exercício do direito à dedução do imposto, em caso de erro de direito, é de quatro anos após o nascimento do direito à dedução, podendo ser exercido mediante a correção do erro cometido, em declaração de período posterior àquele em que se tiver verificado a receção das faturas.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Árbitro Presidente), Dr. João Taborda da Gama e Dr. José Coutinho Pires (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 1 de março de 2024, acordam no seguinte:
RELATÓRIO
A..., S.A., titular do NIPC..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, 6.º, n.º 2 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade da decisão de deferimento parcial proferida, em 06.09.2023, pela Senhora Diretora Adjunta da Área da Justiça da Unidade dos Grandes Contribuintes, que recaiu sobre a Reclamação Graciosa apresentada contra os atos de liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios referentes aos períodos de maio de 2019 a janeiro de 2020, bem como, destes atos de liquidação propriamente ditos, e bem assim, que se determine a condenação da Requerida na anulação da referida decisão na parte que indeferiu o pedido quanto à anulação parcial dos atos tributários de IVA no montante total de € 2.075.248,28 e na respetiva anulação parcial dos atos tributários.
De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 1 de março de 2024, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 15 de abril de 2024.
Em 3 de junho de 2024 realizou-se a reunião arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT:
-
tendo a Requerida ficado notificada para, no prazo de 10 dias, proceder à junção do processo administrativo aos autos, o que não se verificou;
bem como,
-
tendo as partes ficado notificadas para, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que a Requerente exerceu no dia 1 de junho de 2024 e a Requerida não exerceu.
SÍNTESE DA POSIÇÃO DAS PARTES
O objeto imediato do pedido de pronuncia arbitral é a decisão de deferimento parcial que recaiu sobre a reclamação graciosa apresentada contra os atos de liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios referentes aos períodos de maio de 2019 a janeiro de 2020, e o objeto mediato são os atos de liquidação propriamente ditos, estando em causa duas correções promovidas pela AT em sede inspetiva.
Para fundamentar a sua posição, a Requerente invocou, em suma, o seguinte:
-
Da regularização a favor da Requerente e da prova do conhecimento pelo adquirente (artigo 78.º, n.º 5, do Código do IVA) - € 28.896,80:
- falta de fundamentação da AT por absoluta ausência de identificação dos motivos pelos quais, em substância, entende que a Requerente não pode regularizar o imposto, em clara violação do disposto nos artigos 77.º da LGT e 163.º do CPTA;
- no que se refere às notas de crédito n.ºs DLF / ACLIC-000030554-L, DLF / ACLIC-000030552-L e DLF / ACLIC-000030550-L, a Requerente invoca que procedeu à junção da cópia dos originais das faturas em causa e das respetivas cópias dos originais e duplicados na reclamação graciosa apresentada, esclarecendo que as mesmas nunca foram remetidas ao cliente na medida em que foram emitidas, unicamente, devido a um lapso interno na emissão das respetivas faturas;
- errada interpretação dos factos e do mecanismo vertido no artigo 78.º do Código do IVA, pois, atendendo que o adquirente não teve conhecimento da emissão da fatura, não tendo consequentemente deduzido qualquer imposto a seu favor, não existem razões para que a Requerente estivesse obrigada a dar conhecimento da emissão da nota de crédito e da correspondente regularização do IVA;
- por forma a dar cumprimento do princípio da verdade material a que se encontra vinculada, nos termos do disposto no artigo 55.º da LGT e, concretamente em sede de procedimento inspetivo, do disposto no artigo 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT), a AT poderia, ou deveria mesmo, ter indagado, junto do cliente da Requerente, se o mesmo tomou conhecimento da fatura e/ou procedeu à dedução de imposto;
- já no que se refere à nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L, a Requerente referiu, em sede de reclamação graciosa, que a mesma foi emitida no âmbito da execução de um plano de restruturação financeira, no qual foi acordado com o adquirente (a sociedade “B..., Lda.”) a renegociação do capital vincendo por forma a incluir o capital vencido, motivo pelo qual foi emitida a nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L, tendo a adquirente tomado conhecimento da retificação do imposto, nomeadamente, por via do acordo estabelecido;
- a AT não coloca em causa que as notas de crédito em causa foram registadas e que constavam da contabilidade da Requerente, nas contas referentes aos pagamentos efetuados pelo cliente em questão, pelo que deveria ter presumido a sua veracidade, nos termos do disposto no artigo 75.º da LGT.
- A AT incorreu novamente na violação do princípio da verdade material, previsto nos artigos 55.º da LGT e 6.º do RCPIT, bem como, do ónus probatório decorrente do disposto no artigo 74.º da LGT, pois, uma vez mais, caso dúvidas tivesse quanto à efetiva receção das notas de crédito, então deveria ter indagado, junto do próprio cliente, se o mesmo tinha tido ou não efetivo conhecimento da renegociação do plano de pagamentos e da consequente regularização do imposto.
-
Da reversão de regularizações de IVA - € 2.046.351,48:
-
está em discussão a reversão das regularizações reportadas aos anos 2015, 2016 e 2017, que a AT qualificou como indevidas, porque, no seu entendimento, deveriam constar na declaração do último período do ano a que respeitam, atento o disposto nos n.ºs 5 e 8 do artigo 24.º do Código do IVA, conjugado com o n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro de 2007, ou seja, nas declarações periódicas de IVA de dezembro de 2015, de 2016 e de 2017, ou, em alternativa, deveriam ter sido objeto de pedido de revisão oficiosa do ato tributário, deduzido no prazo estabelecido no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA;
-
o que terá de ser avaliado é o direito à regularização de imposto, comprovadamente entregue ao Estado de forma indevida, tendo como limite o prazo de 4 anos vertido no artigo 98.º do Código do IVA;
-
para a reversão do erro que motivou a entrega de imposto em excesso, não se pode aplicar o disposto no artigo 78.º do Código do IVA, mas sim o disposto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, o qual estabelece um prazo limite para o reembolso de imposto entregue em excesso de 4 anos;
-
também não é aplicável o regime previsto no n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro, conjugado com o disposto nos n.ºs 5 e 8 do artigo 24.º do Código do IVA, uma vez que as regularizações realizadas pela Requerente, nas declarações periódicas de IVA de maio, outubro e dezembro de 2019, não consubstanciaram regularizações de IVA de bens do ativo imobilizado, mas sim a reversão das mesmas;
-
não se encontrando expressamente previsto um procedimento para a reversão de regularizações, nem para o pedido de reembolso do IVA pago em excesso, com exceção, como vimos, do regime vertido no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, mas que apenas estabelece o prazo de caducidade desse reembolso e não define, nem obriga, à utilização de qualquer meio específico para solicitar o reembolso de imposto entregue em excesso, conclui-se que as correções e as liquidações adicionais em causa não têm fundamento legal;
-
a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do Código do IVA também não tem qualquer fundamento, visto que aquela norma versa sobre o momento em que deve ser efetuada a dedução do IVA incorrido e mencionado em faturas emitidas aos sujeitos passivos no âmbito das suas operações passivas, não sendo, por isso, aplicável, pois não estamos perante uma situação de dedução de IVA, mas, sim e tal como se viu, perante um pedido de reembolso de IVA entregue em excesso, decorrente da reversão de regularizações de IVA incorretamente efetuadas a favor do Estado. Reversões essas que tiveram origem num erro de direito na interpretação das normas tributárias aplicáveis.
-
o pedido de reembolso do IVA pago em excesso, realizado pela Requerente, foi tempestivo, por ter sido realizado dentro do prazo de caducidade de 4 anos, nos termos gerais estabelecidos no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, o qual, recorde-se, define um prazo máximo para o exercício dos direitos nele previstos e não estabelece qualquer procedimento específico para esse efeito;
-
no que concerne à regularização relativa ao imóvel com o artigo matricial U-..., o valor do IVA, de € 391.000,00, também foi regularizado a favor da Requerente, na declaração periódica de IVA relativa a dezembro de 2019, com base nos mesmos fundamentos dos demais imóveis, mas a Requerente celebrou, em 2020, um contrato de locação isento de IVA (contrato n.º...), quanto a este imóvel, tendo nesta sequência procedido ao apuramento do montante de regularização de imposto que seria devida nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do Código do IVA, o qual ascendeu a € 253.000,00 (correspondente a 11 anos);
-
a Requerente procedeu ao registo da referida regularização e incluiu a mesma, na declaração periódica de IVA de dezembro de 2020, conforme detalhado na linha “Outras Regularizações (Ex. Fusão)” do quadro 2 do Anexo ao campo 41 (cf. Documentos n.ºs 12 e 13 juntos);
-
ou seja, relativamente ao imóvel com o artigo matricial n.º U-..., a Requerente regularizou a seu favor o montante de € 138.000,00, pelo que a liquidação adicional de IVA, neste caso, nunca poderia ser emitida por um montante superior a esse (correspondente a € 391.000,00 deduzido do montante regularizado a favor do Estado de € 253.000,00), pelo que, sem prejuízo da ilegalidade da totalidade das correções realizadas pela AT, a este título, no que se refere ao montante aqui em causa, entende a mesma que ficou demonstrado que a liquidação deste valor levaria a uma duplicação de montante de IVA entregue ao Estado, uma vez que o mesmo já foi entregue aquando da sua inclusão na declaração periódica de IVA de dezembro de 2020.
-
a Requerente entende, por fim, que poderão ser colocadas as seguintes questões ao TJUE:
-
Os princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade, impedem que sejam feitas, no ano de 2019, reversões de regularizações de imposto realizadas nos anos 2015, 2016 e 2017, com fundamento no facto de que as mesmas deveriam ser efetuadas na declaração do último período do ano a que respeitam, atento o disposto nos n.ºs 5 e 8 do artigo 24º do Código do IVA, conjugado com o n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro de 2007?
-
Pode a Autoridade Tributária e Aduaneira, à luz daqueles princípios, impor ao sujeito passivo que faça essa regularização através de uma declaração periódica de substituição ad hoc e/ou pedido de revisão oficiosa do ato tributário, à luz do disposto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, ou tal configura uma limitação do exercício do direito à dedução do IVA?
Por sua vez, a Requerida respondeu nos seguintes termos:
-
Da regularização a favor da Requerente e da prova do conhecimento pelo adquirente (artigo 78.º, n.º 5, do Código do IVA) - € 28.896,80:
-
no momento em que o transmitente do bem ou prestador do serviço exerce a opção de regularizar a seu favor o imposto tem, obrigatoriamente, de ter em sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da redução para menos ou de que foi reembolsado do imposto, sob pena de não ser admitido o direito à respetiva dedução;
-
o ponto que importa, na situação em apreço, situa-se na produção de conhecimento do adquirente em face da regularização a favor do sujeito passivo e essa prova não foi efetuada, porque a Requerente não prova que o adquirente tomou conhecimento da retificação nem da prova de que aquele foi reembolsado do imposto, motivo pelo qual fica precludida a possibilidade da Requerente efetuar a regularização do IVA quanto aos valores em questão;
-
Da reversão de regularizações de IVA - € 2.046.351,48:
-
a questão controvertida assenta em aferir se a Requerente podia, em termos fiscais, deduzir nas declarações periódicas de maio, outubro e dezembro de 2019, o imposto anteriormente regularizado a favor do Estado, nas referidas declarações periódicas, decorrente de um erro de direito quanto regime jurídico aplicável às operações em causa;
-
da conjugação do disposto no artigo 10.º do regime de renuncia à isenção, bem como, no artigo 24.º do CIVA (n.º 5 e 8), normas específicas que preveem regras próprias para o exercício do direito à regularização, resulta que as regularizações em causa deveriam ser efetuadas nas declarações periódicas do último período do ano a que respeitam;
-
não tendo o sujeito passivo apresentado uma declaração de substituição ou um pedido de revisão oficiosa no respetivo período, não o poderia ter feito nas declarações periódicas de imposto como se de uma situação normal de liquidação e dedução do IVA no correspondente período de imposto se tratasse.
SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral coletivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar o pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos do previsto nos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo arbitral não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que devam ser conhecidas pelo Tribunal Arbitral e que obstem à apreciação do mérito da causa.
QUESTÃO PRÉVIA: Falta de junção do processo administrativo pela Requerida
Embora tenha sido devidamente notificada para junção do processo administrativo, a Requerida não procedeu à sua junção.
De acordo com o disposto no artigo 17.º, n.º 2, do RJAT, “A administração tributária remete ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta, aplicando-se, na falta de remessa, o disposto no n.º 5 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Sucede que, conforme bem explica JORGE LOPES DE SOUSA “Relativamente à ordem de envio do processo administrativo, prevista no n.º 5 deste art. 110.º do CPPT, não se prevendo um regime especial para o seu não acatamento, deverá aplicar-se subsidiariamente o regime previsto no art. 84.º, n.ºs 4, 5 e 6, do CPTA. Assim, na falta de envio do processo, sem justificação aceitável, o juiz pode determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, nos termos do art. 169.º do CPTA, sem prejuízo do apuramento da responsabilidade civil, disciplinar e criminal a que haja lugar (art. 84.º, n.º 4, do CPTA). A falta de envio do processo administrativo não obsta ao prosseguimento do processo e determina que os factos alegados pelo impugnante se considerem provados, se aquela falta tiver tornado a prova impossível ou de considerável dificuldade (art. 84.º, n.º 5, do CPTA)” (cf. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Volume II, Áreas Editora, 2011, p. 237).
Com especial interesse para a decisão do presente processo identificaram-se os documentos n.º 3 e 4 juntos pela Requerente na reclamação graciosa, que integrariam o processo administrativo, tendo tal sido inclusive discutido na reunião arbitral de dia 3 de junho de 2024.
No entanto, em face da inércia da Requerida quanto à junção do processo administrativo, e atendendo à importância dos referidos documentos, a Requerente procedeu à sua junção aos autos com as respetivas alegações escritas.
Deste modo, o alegado pela Requerente que tenha fundamento nos documentos n.º 3 e 4 da reclamação graciosa poderá ser valorado tendo em consideração a respetiva prova documental. Os demais factos alegados pela Requerente com fundamento em elementos na posse da AT (Requerida) que integrem o processo administrativo em falta, serão considerados provados nos termos do disposto no artigo 84.º, n.º 6, do CPTA, aplicável subsidiariamente.
MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
-
A Requerente é uma instituição financeira, cuja atividade se encontra sujeita e regulada pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto‐Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro;
-
As operações realizadas pela Requerente, no âmbito da sua atividade principal, encontram-se, regra geral, sujeitas a IVA, podendo, contudo, beneficiar de isenções, nomeadamente das que se encontram previstas nos n.ºs 27 a 30 do artigo 9.º do Código do IVA;
-
A Requerente detém vários imóveis, no âmbito da atividade de locação financeira imobiliária por si prosseguida, o que implica a realização de operações de locação e de transmissão daqueles imóveis no âmbito dos respetivos contratos que, nos termos dos n.ºs 29 e 30 do artigo 9.º do Código do IVA, se encontram isentas de imposto, podendo os sujeitos passivos, no caso de utilizarem os imóveis em atividades que conferem direito à dedução, renunciar à isenção, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 12.º do Código do IVA;
-
A Requerente aplica a parte dos contratos de locação financeira imobiliária o regime de renúncia à isenção do IVA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro, motivo pelo qual deduz o IVA incorrido na aquisição e/ou construção dos imóveis em que exerceu a opção pela renúncia à isenção;
-
Na sequência de incumprimentos contratuais, a Requerente rescindiu alguns dos contratos de locação financeira em causa, permanecendo os correspondentes imóveis na sua esfera, com o intuito de realizar futuras locações (ou vendas), no âmbito da sua atividade principal;
-
Num primeiro momento, em face da rescisão destes contratos de locação, entendeu a Requerente que deveria regularizar, a favor do Estado, parte do IVA deduzido inicialmente quanto aos imóveis objeto de contratos de locação que foram rescindidos e se encontravam na sua posse nos anos em análise;
-
As regularizações a favor do Estado foram realizadas nas declarações periódicas de IVA de dezembro dos anos de 2014 a 2017, submetidas entre 22.02.2016 e 12.02.2018, no montante total de € 2.155.778,44 (cf. cópia das declarações de dezembro de 2015 a 2017, juntas pela Requerente como Documentos n.ºs 3 a 5), relativamente aos seguintes imóveis:
Identificação do imóvel
|
Montante de IVA regularizado
|
U-…
|
512.202,35
|
U-…
|
109.426,96
|
U-…
|
372.600,00
|
U-…
|
304.251,97
|
U-…
|
276.167,68
|
U-…
|
12.491,59
|
U-…
|
56.877,86
|
U-…
|
4.309,94
|
U-…
|
936,32
|
U-…
|
3.329,25
|
U-…
|
21.432,61
|
U-…
|
391.000,00
|
U-…
|
2.347,29
|
U-…
|
5.604,62
|
U-…
|
82.800,00
|
Total
|
2.155.778,44
|
-
Após ter finalizado as regularizações a favor do Estado mencionadas no artigo anterior, a Requerente concluiu, em face da análise da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), proferida no âmbito do processo C-672/16, de 28 de fevereiro de 2018, que afinal as regularizações por si efetuadas não eram devidas, tendo procedido, no ano de 2019, à revisão dos próprios procedimentos relativos às regularizações a favor do Estado acima mencionadas, bem como à recuperação, a seu favor, nas declarações periódicas de maio, outubro e dezembro de 2019, do imposto que havia sido indevidamente regularizado, a favor do Estado, nas declarações periódicas de dezembro de 2014, 2015, 2016 e 2017, revertendo essas regularizações, no montante total de € 2.155.778,44 (cf. Documento n.º 6 junto pela Requerente).
-
No que concerne ao imóvel com o artigo matricial U-..., o valor do IVA, de € 391.000,00, também foi regularizado a favor da Requerente, na declaração periódica de IVA relativa a dezembro de 2019, com base nos mesmos fundamentos dos demais imóveis, mas a Requerente celebrou, em 2020, um contrato de locação isento de IVA (contrato n.º ...), quanto a este imóvel, tendo nesta sequência procedido ao apuramento do montante de regularização de imposto que seria devida nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do Código do IVA, motivo pelo qual a Requerente procedeu ao apuramento do montante de IVA a regularizar com referência aos anos ainda não decorridos do período de regularização do referido imóvel, o qual ascendeu a € 253.000,00 (correspondente a 11 anos) (cf. Documento n.º 11 junto pela Requerente);
-
Nessa sequência, a Requerente procedeu ao registo da referida regularização e incluiu a mesma, na declaração periódica de IVA de dezembro de 2020, conforme detalhado na linha “Outras Regularizações (Ex. Fusão)” do quadro 2 do Anexo ao campo 41 (cf. Documentos n.ºs 12 e 13 juntos pela Requerente);
-
Em 2019 a Requerente procedeu também à regularização do IVA mencionado em notas de crédito emitidas, nas declarações periódicas de maio, agosto e dezembro de 2019, ascendendo esse montante a € 35.298,69, nos seguintes termos:
Período
|
Nª de Documento
|
Data
|
NIF do cliente
|
Valor Bruto (Euros)
|
IVA (Euros)
|
Total (Euros)
|
082019
|
DLF / ACLIC-000030209-L
|
13/08/2019
|
…
|
27 834,33
|
6 401,89
|
34 236,22
|
122019
|
DLF / ACLIC-000030554-L
|
02/12/2019
|
…
|
7 572,74
|
1 741,73
|
9 314,47
|
122019
|
DLF / ACLIC-000030552-L
|
02/12/2019
|
…
|
17 900,69
|
4 117,16
|
22 017,85
|
122019
|
DLF / ACLIC-000030550-L
|
02/12/2019
|
…
|
6 003,96
|
1 380,91
|
7 384,87
|
052019
|
DLF / NCR-00002610-L
|
20/05/2019
|
…
|
94 160,85
|
21 657,00
|
115 817,85
|
Total
|
|
|
|
-
472,57
|
35 298,69
|
188 771,26
|
-
Em 2021 a Requerente foi objeto de procedimento inspetivo, realizado pela Divisão de Inspeção a Bancos e Outras Instituições Financeiras (“DIBIF”), da Unidade dos Grandes Contribuintes, por referência ao ano de 2019 e em cumprimento da Ordem de Serviço n.º 2021..., no âmbito do qual a AT viria a proceder à análise de algumas das operações realizadas pela Requerente nesse ano, tendo efetuado correções, em sede de IVA, no montante total de € 2.599.668,17 (cf. Documento n.º 7 junto pela Requerente).
-
Em concreto, tais correções foram as seguintes:
-
“III.3.1. Regularizações indevidas a favor do sujeito passivo - campo 40 da declaração periódica – métodos de dedução relativamente a bens de utilização mista (n.º 6 do art.º 23.º e n.º 6 do art.º 78.º, ambos do CIVA)”, no montante de € 407.265,58;
-
“III.3.2. Regularizações indevidas a favor do sujeito passivo - campo 40 da declaração periódica - falta de prova de que o adquirente tomou conhecimento (n.ºs 2 e 5 do art.º 78.º do CIVA)”, no montante de
€ 35.298,69;
-
“III.3.3 (A1) Regularizações indevidas a favor do sujeito passivo – campo 40 da declaração periódica – regime de renúncia à isenção (n.º 2 do art.º 10.º do Anexo do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro conjugado com os n.os 5 e 8 do art.º 24.º e art.º 98, ambos do CIVA e 78.º LGT)”, no montante de € 2.155.778,44;
-
“III.3.3. (A2) Regularizações indevidas a favor do sujeito passivo – campo 40 da declaração periódica – regime de renúncia à isenção (n.º 2 do art.º 10.º do Anexo do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro conjugado com os n.os 5 e 8 do art.º 24.º e art.º 98, ambos do CIVA e 78.º LGT)”, no montante de € 1.325,46.
-
Na sequência do procedimento inspetivo, a Requerente foi notificada das respetivas liquidações adicionais de IVA e demais documentos de correção, bem como das inerentes liquidações de juros compensatórios (cf. Documento n.º 2 junto pela Requerente);
-
A Requerente procedeu ao respetivo pagamento, dentro do prazo de pagamento voluntário, em 13.02.2023 (cf. Documento n.º 8 junto pela Requerente).
-
Em 11.05.2023, a Requerente procedeu à apresentação de Reclamação Graciosa contra os atos de liquidação em causa, contestando apenas duas das correções realizadas pela AT:
-
Falta de prova de que o adquirente tomou conhecimento da regularização (n.ºs 2 e 5 do artigo 78.º do CIVA) - € 35.298,69; e
-
Regime de renúncia à isenção (n.º 2 do artigo 10.º do Anexo do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro conjugado com os n.ºs 5 e 8 do artigo 24.º e artigo 98, ambos do CIVA e 78.º LGT) - € 2.045.351,48.
-
Sobre essa Reclamação recaiu o Projeto de Decisão de Deferimento Parcial, no qual a AT apenas aceitou a anulação de correções, no montante de € 6.401,89, relativamente ao cumprimento das regras vertidas no artigo 78.º, n.ºs 2 e 5, do CIVA e, em concreto, à prova de que o adquirente tomou conhecimento daquela regularização (cf. Documento n.º 9 junto pela Requerente).
-
A Requerente exerceu o respetivo Direito de Audição, apenas no que concerne ao montante de € 253.000,00, referente à correção constante do ponto III.3.3 (A1) do Relatório de Inspeção Tributária, com fundamento no facto de esse montante ter sido regularizado e devolvido ao Estado, na Declaração Periódica de IVA de dezembro de 2020, juntando a respetiva documentação de suporte.
-
A AT não aceitou a argumentação da Requerente, convolando o Projeto de Decisão em definitivo, determinando apenas a anulação da correção referente à falta de prova de que o adquirente tomou conhecimento da regularização (n.ºs 2 e 5 do artigo 78.º do CIVA) no montante de € 6.401,89 (cf. Documento n.º 1 junto pela Requerente).
-
As notas de crédito n.ºs DLF / ACLIC-000030554-L, DLF / ACLIC-000030552-L e DLF / ACLIC-000030550-L, foram emitidas, unicamente devido a um lapso interno na emissão da fatura, pois os documentos têm a mesma data, tendo a nota de crédito sido emitida logo após a emissão da respetiva fatura (cf. Documento n.º 3 que foi junto com a Reclamação Graciosa, junto aos presentes autos pela Requerente).
-
A Requerente sempre se encontrou na posse dos originais, tanto das faturas como das notas de crédito, não tendo estes documentos sido remetidos ao adquirente (cf. Documento n.º 3 que foi junto com a Reclamação Graciosa, junto aos presentes autos pela Requerente).
A.2. Factos dados como não provados
Atendendo à prova produzida nos presentes autos, não se considera provado que:
-
A nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L foi emitida no âmbito da execução de um plano de restruturação financeira, no qual foi acordado com o adquirente – a sociedade “B..., Lda.” - a renegociação do capital vincendo por forma a incluir o capital vencido.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, e a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
A prova testemunhal produzida na audiência não alterou a convicção do tribunal formada pela análise dos documentos juntos pela Requerente.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
O facto dado como não provado decorre da falta de prova suficiente nesse sentido, não bastando, manifestamente, o documento n.º 4 junto à reclamação graciosa e junto aos presentes autos pela Requerente, nem o depoimento da testemunha ouvida, para que o alegado pela Requerente se considerasse provado.
DO DIREITO
Nos presentes autos controverte-se parte dos atos tributários de IVA referentes aos períodos de 05/2019, 08/2019, 10/2019, 12/20219 e 12/2020, no montante total de
€ 2.075.248,28, bem como a decisão de reclamação graciosa que recaiu sobre os mesmos.
A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade de duas correções promovidas e mantidas pela AT:
-
€ 28.896,80, referente a notas de crédito relativamente às quais, segundo a AT, não foi apresentado o comprovativo de que o adquirente tomou conhecimento da regularização do imposto, em cumprimento do n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA; e
-
€ 2.046.351,48, respeitante à reversão de regularizações de IVA que a AT subsumiu no artigo 10.º do Regime de Renuncia à Isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis (anexo ao Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro).
A questão decidenda quanto à primeira das correções contestadas pela Requerente consiste em saber se ficou demonstrado que os adquirentes tiveram conhecimento da regularização efetuada, conforme decorre do artigo 78.º, n.º 5, do Código do IVA.
Já quanto à segunda das correções contestadas pela Requerente, a questão decidenda prende-se com a interpretação dos artigos 10.º do Decreto-Lei n.º 21/2007, e 78.º e 98.º do Código do IVA. Em concreto, está em causa saber se a Requerente podia ter realizado a dedução de imposto, inerente à reversão da regularização anteriormente realizada a favor do Estado, referente à dedução de IVA suportado em 2015, 2016 e 2017 na aquisição e/ou construção dos imóveis em que exerceu a opção pela renúncia à isenção, nas declarações periódicas de maio, outubro e dezembro de 2019.
-
Da regularização a favor da Requerente e da prova do conhecimento pelo adquirente (artigo 78.º, n.º 5, do Código do IVA) - € 28.896,80
-
Da falta de fundamentação
A Requerente principia por arguir vício formal de fundamentação da decisão da reclamação graciosa apresentada, por entender que aquela não identifica os motivos pelos quais, em substância, a AT entende que a Requerente não podia regularizar o imposto, em violação dos artigos 77.º da LGT e 163.º do CPTA.
No entanto, compulsado tanto o relatório de inspeção tributária como a decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa, verifica-se que a referida fundamentação contém as normas do Código do IVA consideradas aplicáveis pela AT – o artigo 78.º, n.º 2, n.º 4 e n.º 5, na interpretação de que a exigência de prova configura uma formalidade ad substantiam e a sua não verificação impede a legalidade da regularização do IVA efetuada – e é perfeitamente explícita e compreensível.
É pacífico entre a doutrina e a jurisprudência que a fundamentação para ser suficiente, clara e precisa, deverá permitir a um destinatário normal entender o itinerário cognoscitivo e valorativo constante do ato, de modo a que se fique a saber a razão pela qual se decidiu assim e não de outro modo (cf., entre outros, RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014 e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.03.2014, proferido no processo n.º 01674/13). Ou seja, basta que o sujeito passivo tenha entendido o itinerário cognoscitivo e valorativo constante do ato, de forma a poder contestá-lo seja pela via da reclamação graciosa ou pela via contenciosa.
Ora, a Requerente não viu frustrado o seu direito de defesa pela forma como o dever de fundamentação foi exercido pela Requerida na decisão de reclamação graciosa, pois contestou o decidido no presente pedido de pronúncia arbitral.
Assim, não se verifica falta de fundamentação da decisão de reclamação graciosa. Questão distinta é a de saber se a Requerente discorda da fundamentação, não se tratando de aferir o vício formal de falta de fundamentação, mas a validade substantiva da correção espelhada nos atos tributários contestados, o que se analisará de seguida.
-
Da exigência da prova do conhecimento da regularização pelo adquirente (enquadramento jurídico do n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA)
Nos termos do n.º 2 do artigo 78.º do Código do IVA “Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável”. De facto, como complemento desta norma, o n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA determina que “Quando o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução”.
O n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA é uma disposição anti-abuso, que tem como objetivo evitar que o sujeito passivo fornecedor regularize a seu favor o imposto já deduzido pelo adquirente sem que este proceda à correção do correspondente valor a favor do Estado. Com efeito, se o fornecedor regularizasse a seu favor imposto já deduzido pelo adquirente, sem qualquer correção na esfera deste último, o Estado sairia lesado, pois haveria uma dedução de imposto sem qualquer operação na cadeia que a legitimasse.
A este respeito destaca-se a decisão arbitral do processo n.º 484/2019-T, na qual se explica que “(…) quando o fornecedor corrige para menos o imposto entregue ao Estado deverá o adquirente fazer a correcção simétrica na sua declaração de forma a entregar ao Estado o imposto indevidamente deduzido, pois só assim estará garantida a neutralidade do imposto e só assim estará protegido o erário público. Naturalmente, o adquirente só poderá corrigir o imposto deduzido se o fornecedor lhe der a saber que a factura foi retificada”.
A jurisprudência tributária é pacífica quanto a esta questão, destacando-se, ainda, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 06602/13: “(…) a regularização do IVA a favor do sujeito passivo nos casos em que o valor tributável da operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, depende de um pressuposto legal, sob pena de se considerar indevida a respectiva dedução do IVA: ter na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto.” Clarifica o mesmo Acórdão que “(…) estamos perante um requisito legal de natureza formal do qual depende o exercício do direito à dedução do IVA (regularização) (…)”, competindo assim ao sujeito passivo, “(…) ter na sua posse prova de que o destinatário da nota de crédito tomou conhecimento da mesma vinculando-se, deste modo, a efectuar a respectiva regularização em causa. Com efeito, trata-se de uma exigência de cariz formal que tem em vista permitir à AT o controlo dos pressupostos do direito à dedução reportados ao momento em que o direito à dedução é exercido, e por essa razão, a natureza dessa prova deverá ser inequívoca, ou seja, no momento da regularização do IVA deve ser claro que o adquirente tomou aquele conhecimento (…)”.
É de salientar que o processo de regularização previsto no artigo 78.º, n.º 5 do Código do IVA, nomeadamente a obrigação de dar a conhecer ao adquirente a retificação efetuada, apenas se aplica relativamente a adquirentes que, também eles, são sujeitos passivos (neste sentido vide a decisão arbitral proferida no processo n.º 170/2016-T). O que se pretende assegurar com esta norma, como se viu, é que o IVA suportado e o IVA deduzido ao longo da cadeia de produção se baseiam nos mesmos valores. Assim, para aferir da aplicabilidade ou não do n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA, é necessário perceber se o adquirente é também ele sujeito passivo de IVA ou, ao invés, se é um cliente final a quem não é permitido deduzir imposto. Na presente situação as faturas cujas notas de crédito foram objeto de correção pela AT têm como adquirentes duas sociedades (a C..., Lda. e a B..., Lda.), não decorrendo dos presentes autos qualquer elemento que indicie que as mesmas são os clientes finais. Ao que acresce a circunstância de esta questão não ter sido suscitada pelas partes, estando ambas de acordo quanto à aplicabilidade da formalidade prevista no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA, na retificação realizada, estando apenas em dissídio a existência de prova (ou não) de que o adquirente teve conhecimento da retificação.
Esta exigência formal exigida pelo n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA que, de certo modo, pode condicionar o direito à dedução, é permitida pelas regras da União Europeia, em concreto, pelos artigos 184.º, 185.º e 186.º da Diretiva 2006/112/CE, de 26 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”), relativa ao sistema comum do IVA.
Dispõe o artigo 184.º da Diretiva IVA que “A dedução inicialmente efetuada é objeto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito”.
O artigo 185.º da mesma Diretiva prevê que “A regularização é efetuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções (…)”.
Por último, e para o que releva na presente análise, de acordo com o artigo 186.º da Diretiva IVA “Os Estados-Membros determinam as normas de aplicação dos artigos 184.º e 185.º”. O que significa que cabe aos Estados-Membros a determinação das normas de aplicação relativas ao procedimento de regularização.
O TJUE já apreciou esta norma, tendo concluído, no Acórdão de 19 de setembro de 2000, proferido no processo C-454/98, que “(…) compete aos Estados-Membros definir o processo para regularização do imposto sobre o valor acrescentado indevidamente faturado, desde que essa regularização não dependa do poder de apreciação discricionário da administração fiscal”. Ou seja, em obediência ao princípio da proporcionalidade, o único limite à liberdade concedida aos Estados-Membros para definir o procedimento de regularização prende-se com a impossibilidade de concessão de um poder de apreciação discricionário à administração fiscal nesse âmbito.
Importa ter presente que o n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA não menciona o meio de prova a considerar para que se considere provado o conhecimento da regularização pelo adquirente.
O TJUE refere, a título meramente exemplificativo, no Acórdão proferido no processo n.º C-588/10 que os sujeitos passivos podem utilizar como meios de prova “(…) cópias da factura retificada e do lembrete dirigido ao adquirente dos bens e serviços para efeitos de envio do comprovativo da receção, provas dos pagamentos ou a apresentação dos registos contabilísticos que permitam identificar o montante efetivamente pago ao sujeito passivo a título da operação em causa, pelo adquirente dos bens ou serviços”.
Também a AT se tem pronunciado sobre esta questão, destacando-se o Ofício-Circulado n.º 33129/1993, de 2 de março, da DSCA, de onde decorre: “(…) são considerados idóneos, satisfazendo os condicionalismos aí enunciados, os seguintes documentos emitidos pelo cliente e na posse do fornecedor do bem ou prestador do serviço: a) Qualquer um dos meios de comunicação escrita - carta, ofício, telex, telefax, telegrama - com referência expressa ao conhecimento da rectificação do IVA. b) Nota de devolução ou nota de recebimento do cheque, com menção à regularização do IVA. c) Fotocópia da nota de crédito, após assinatura e carimbo do adquirente, constituindo documento por ele enviado após tomada de conhecimento da regularização do imposto a efectuar”. No mesmo sentido, de acordo com a Informação Vinculativa n.º 8063, de 20 de março de 2015, “(…) são considerados idóneos, satisfazendo os condicionalismos aí enunciados, os seguintes documentos emitidos pelo cliente e na posse do fornecedor do bem ou prestador do serviço (…)” elencando os documentos identificados no referido Ofício-Circulado e acrescentando-se que “(…) estes meios de prova são exemplificativos, pelo que podem, ainda, ser realizados através de outros instrumentos”. No entanto, os meios de prova indicados pela AT não decorrem da legislação aplicável, motivo pelo qual o entendimento espelhado na doutrina administrativa identificada não é vinculativo, não podendo realizar-se qualquer restrição aos meios de prova apresentados pelo sujeito passivo.
Assim, em concordância com a decisão arbitral proferida no processo n.º 484/2019-T, «(…) é legítimo concluir que a prova que o sujeito passivo deve possuir poderá ser efectuada por qualquer documento idóneo a demonstrar “que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto”». Destaca-se igualmente a decisão arbitral proferida no processo n.º 698/2014-T, na qual se concluiu que «A prova que o sujeito passivo que proceda a uma regularização de IVA deve possuir terá de ser documental, podendo, todavia, consistir em qualquer documento idóneo a demonstrar “que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto”. O que vem de se dizer – relativamente à exclusividade do meio documental como prova do conhecimento, pelo adquirente, da rectificação – não quer dizer que a prova testemunhal seja de todo inadmissível ou irrelevante na matéria em questão. Com efeito, como decorre, desde logo, do artigo 393.º/3 do Código Civil, as regras relativas à prova legal “não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento”. Esta idoneidade terá, com efeito, de ser aferida em concreto, verificando-se se dos documentos apresentados, e tendo em conta o contexto da respectiva produção, se retira, ou não, “que o adquirente tomou conhecimento da rectificação”, com a segurança necessária a poder afirmar-se que na esfera do adquirente do bem ou serviço vendido pelo sujeito passivo, se gerou a supra-referida obrigação de não deduzir o imposto regularizado pela Requerente, ou de, tendo-o entretanto deduzido, entregá-lo ao Estado.».
As partes não contestam o enquadramento da regularização efetuada pela Requerente no n.º 2 do artigo 78.º do Código do IVA, nem a circunstância de ser exigida a “(…) prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto (…)” (cf. n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA), para que a referida regularização seja permitida, estando somente sob dissídio a questão de saber se, no caso concreto, tal prova foi efetuada quanto às notas de crédito n.ºs DLF / ACLIC-000030554-L, DLF / ACLIC-000030552-L, DLF / ACLIC-000030550-L e DLF / NCR-00002610-L[1].
Apesar de a Requerente ter junto documentação à reclamação graciosa apresentada contra os atos tributários de IVA de 2019 e de 2020 com o intuito de comprovar que o adquirente teve conhecimento da retificação realizada, a AT considerou que a exigência prevista no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA não se encontrava cumprida.
Vejamos a quem assiste razão,
A correção promovida pela AT a respeito da impossibilidade de dedução do imposto titulado pelas quatro notas de crédito ora em apreço assentou na conclusão de que “(…) o sujeito passivo não demonstrou que remeteu ao seu cliente as notas de crédito aquando da sua emissão e que o mesmo, consequentemente, teve conhecimento da respetiva retificação do IVA, nos termos e nos prazos estabelecidos (…)” (cf. relatório de inspeção tributária junto pela Requerente como Documento n.º 7).
Em sede de reclamação graciosa a Requerente apresentou documentação tendente a comprovar a prova de que os adquirentes tiveram conhecimento da regularização, mas a AT não aceitou tal prova referindo a esse respeito: “(…) reitera-se o que ficou dito em sede de conclusões do RIT, não se concebendo que tenha logrado suprir a exigência prevista no artigo mencionado [n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA]” e que “(…) não tendo sido devidamente cumprido o dever (legal) de comunicação, fica precludida a possibilidade da Reclamante efetuar a regularização do IVA quanto aos valores em questão” (cf. decisão da reclamação graciosa junta pela Requerente como Documento n.º 1).
A.1. Notas de crédito n.ºs DLF / ACLIC-000030554-L, DLF / ACLIC-000030552-L, DLF / ACLIC-000030550-L
Sustenta a Requerente que as notas de crédito n.ºs DLF / ACLIC-000030554-L, DLF / ACLIC-000030552-L e DLF / ACLIC-000030550-L, foram emitidas, unicamente devido a um lapso interno na emissão da fatura, pois os documentos têm a mesma data, tendo a nota de crédito sido emitida logo após a emissão da respetiva fatura e que sempre se encontrou na posse dos originais, tanto das faturas como das notas de crédito, não tendo estes documentos sido remetidos ao adquirente (cf. Documento n.º 3 que foi junto com a Reclamação Graciosa, junto aos presentes autos pela Requerente).
A análise do documento n.º 3 apresentado pela Requerente no procedimento de Reclamação Graciosa, junto aos presentes autos pela Requerente com as alegações escritas, permite concluir que o mesmo se consubstancia, de facto, em cópia dos originais das faturas e das respetivas cópias dos originais e duplicados das notas de crédito. Ora, para a Requerente ter em sua posse os originais das faturas sem estas terem sido assinadas pelo adquirente é porque as mesmas não chegaram a ser enviadas. Ao que acresce a circunstância de as faturas e as notas de crédito em causa terem as mesmas datas, o que evidencia que as notas de crédito foram emitidas imediatamente após as respetivas faturas, com o intuito de corrigir um lapso interno. Reconhece-se, assim, que as três faturas em causa foram emitidas apenas devido a um lapso interno. Ou seja, se tal lapso não tivesse ocorrido, as faturas não teriam sido geradas. Por esse motivo, a Requerente corrigiu de imediato (no mesmo dia – cf. Documento n.º 3 junto com a Reclamação Graciosa, apresentado pela Requerente nos presentes autos) a situação, mediante a emissão das notas de crédito. Uma vez que estes registos apenas foram motivados por um lapso interno, a Requerente não remeteu nem as faturas, nem as notas de crédito, ao adquirente.
Estando fixada a factualidade nestes termos, concorda-se com o decidido no âmbito do já mencionado processo n.º 484/2019-T numa situação semelhante, que por facilidade, se cita: «É certo que, nos termos do disposto no n.º1 do artigo 74.º da LGT, “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, contudo, importa em especial notar que, à data da emissão dos documentos em causa, de acordo com o software utilizado pela Requerente, a impressão de uma 2.ª via das facturas implicava a aposição de uma expressão que indicava não se tratar do documento original. Todas as facturas emitidas pelos programas de facturação certificados, como é o caso, aparecem no SAF-T e são originais. Nos programas de facturação certificados as segundas vias aparecem identificadas como tal. É certo que, nos termos das regras constantes do CIVA, impendia sobre a Requerente a obrigação de emissão de factura e respectivo envio ao adquirente, assim como da nota de crédito, o que não veio a acontecer em parte dos casos, alegando a Requerente que as facturas nunca chegaram a ser enviadas encontrando-se na posse dos originais das facturas e das respetivas notas de crédito, tendo procedido a uma anulação interna de um documento. Contudo, sempre se perguntará se será proporcional e adequado, no contexto legal, jurisprudencial e doutrinal que acabámos de citar e atentos os factos vindos de dar como provados, impedir o direito à dedução num caso como o vertente e afigura-se-nos que não. Com efeito, tal como a Requerente alega, não tendo sido enviadas as facturas nem as notas de crédito, e podendo a AT certificar-se de tal facto através do sistema SAF-T, não poderia ser exigido comprovativo de o adquirente ter tomado conhecimento da rectificação de IVA.» (sublinhado e negrito nossos).
Em face do exposto, conclui-se pela errada interpretação dos factos e do mecanismo vertido no artigo 78.º do Código do IVA por parte da AT, ora Requerida, e julga-se procedente esta parte do pedido, dando-se por prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.
Em conformidade, declara-se que a decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa, bem como os atos tributários contestados, são ilegais nesta parte.
A.2. Nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L
A.2.1. Da errada interpretação dos factos e do mecanismo previsto no artigo 78.º do Código do IVA
No que concerne à nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L, a Requerente alega que a mesma foi emitida no âmbito da execução de um plano de restruturação financeira, no âmbito do qual foi acordado com o adquirente – a sociedade “B..., Lda.” – a renegociação do capital vincendo por forma a incluir o capital vencido em conjunto com um incremento do prazo de execução do contrato e que foi para dar cumprimento a este acordo, bem como ao ajuste das prestações vincendas, que procedeu à emissão da referida nota de crédito.
Importa ter presente que o acordo referido pela Requerente (cf. documento n.º 4 junto na reclamação graciosa e que foi junto pela Requerente aos presentes autos nas suas alegações) não comprova a renegociação do capital vincendo, motivo pelo qual não serve como meio de prova idóneo do conhecimento da regularização pelo adquirente. De facto, do acordo consubstanciado no “Aditamento ao contrato de locação financeira n.º...” (cf. documento n.º 4 junto na reclamação graciosa e que foi junto pela Requerente aos presentes autos nas suas alegações), apenas resulta que:
-
foi alterada a cláusula IV das condições particulares do contrato de locação financeira, passando a ter a seguinte redação “IV – Prazo do contrato: Passando a ter o seu termino em 02 de Dezembro de 2027, com o vencimento do valor residual”.
-
foi incluída a cláusula XI nas condições particulares do contrato de locação financeira, que determina o seguinte: “XI – Elegibilidade para operações de política monetária: UM – Os direitos de crédito que emergem para o locador do presente contrato constituem um activo elegível como garantia de operações de politica monetária do Eurosistema, nos termos e condições definidos na Instrução do Banco de Portugal n.º 3/2015 e na Instrução do Banco de Portugal n.º 7/2012, ou noutras normas que as substituam, modifiquem ou complementem. DOIS – Em conformidade com o disposto nas Instruções do Banco de Portugal anteriormente referidas, o Locador pode, nos termos do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio, constituir penhor financeiro a favor do Banco de Portugal sobre os direitos de crédito para si emergentes do presente contrato. TRÊS: Para a eventualidade prevista no número anterior, em conformidade e para os efeitos previstos nos referidos normativos, a Locatária: a) renuncia aos direitos decorrentes das regras de segredo bancário, ficando o Locador incondicionalmente autorizado a transmitir ao Eurosistema, incluindo ao Banco de Portugal, os documentos e outros meios probatórios dos direitos de crédito, bem como os elementos, dados e condições estabelecidos neste contrato; e b) renuncia expressamente ao direito de proceder à compensação entre o montante de que seja devedor ao abrigo do presente contrato com eventuais montantes de que seja ou venha a ser credor sobre o Locador e/ou Banco de Portugal”.
Nada constando a respeito da renegociação do capital vincendo, nem sobre o alegado conhecimento do adquirente da regularização efetuada pela nota de crédito.
Para além disso, também a prova testemunhal produzida nos presentes autos não foi suficiente para fazer essa prova do conhecimento pelo adquirente. Aliás, a testemunha referiu que o procedimento seguido pela Requerente nestas situações determina que a retificação dos montantes seja feita por correspondência e que o incremento do prazo seja feito por acordo.
Ora, considerando o depoimento da testemunha, o documento idóneo para comprovar o conhecimento do adquirente da regularização promovida pela Requerente seria, então, a correspondência trocada acerca da renegociação do capital vincendo. Não tendo este documento sido apresentado e uma vez que a restante prova produzida não foi suficiente para demonstrar que o adquirente teve conhecimento da regularização cuja dedução a Requerente pretende, não assiste razão, nesta parte, à Requerente quanto à invocada errada na interpretação dos factos e do mecanismo previsto no artigo 78.º do Código do IVA.
A.2.2. Da violação do princípio da verdade material e do ónus probatório decorrente do artigo 74º.º da LGT
A Requerente sustenta, por último, quanto à nota de crédito em análise, que a AT não coloca em causa que a mesma foi registada e constava da contabilidade da Requerente, nas contas referentes aos pagamentos efetuados pelo cliente em questão, pelo que deveria ter presumido a sua veracidade, nos termos do disposto no artigo 75.º da LGT, terminando com a conclusão de que a AT incorreu em violação do princípio da verdade material, previsto nos artigos 55.º da LGT e 6.º do RCPIT, bem como do ónus probatório decorrente do disposto no artigo 74.º da LGT, pois, caso dúvidas tivesse quanto
à efetiva receção da nota de crédito, então deveria ter indagado, junto do próprio cliente, se o mesmo tinha ou não tido efetivo conhecimento da renegociação do plano de pagamentos e da consequente regularização de imposto.
Conforme decorre do exposto até aqui, o n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA impõe uma exigência formal – a prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação – para que a regularização (e inerente dedução de imposto) seja permitida. Tal exigência é permitida pelo sistema jurídico e é motivada por questões anti-abuso. Decorre expressamente do comando normativo ínsito no n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA que a exigência formal em apreço recai sobre o sujeito passivo: “(…) a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efetuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação (…)” (sublinhado e negrito nosso).
Esta norma especial, com motivações anti-abuso, vai no mesmo sentido da regra geral quanto ao ónus da prova consagrada no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, de acordo com o qual “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Limitando-se a replicar, para as situações concretas de regularização de IVA, que o direito à regularização a favor do sujeito passivo só pode ser concretizado quando este comprove que o adquirente tomou conhecimento da referida regularização. Ou seja, o ónus da prova da formalidade inerente ao seu direito à regularização recai sobre o contribuinte que o invoca.
Sem prejuízo desta distribuição do ónus da prova, reconhece-se que nos termos do n.º 2 do artigo 74.º da LGT, “Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração tributária, o ónus previsto no número anterior considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correta identificação junto da administração tributária”. No entanto, nos presentes autos não consta qualquer elemento que demonstre que a Requerente tenha procedido à correta identificação de elementos de prova do pretendido que se encontrassem em poder da AT.
A Requerente limita-se a referir que a AT não coloca em causa que a nota de crédito foi registada e constava da contabilidade da Requerente, nas contas referentes aos pagamentos efetuados pelo cliente em questão. No entanto, os elementos referidos, apesar de estarem em poder da AT, nunca serviriam para fazer do conhecimento da regularização por parte do adquirente, pois são elementos da própria contabilidade da Requerente.
Admite-se que a Requerente poderia ter diligenciado pela junção dos extratos contabilísticos dos seus clientes, que comprovariam a não contabilização das notas de crédito ou das faturas que estas anulam, tal como sucedeu no processo n.º 484/2019-T, e no âmbito do qual se decidiu que “Quanto às facturas que os clientes/adquirentes comprovadamente não contabilizaram e o mesmo se diga em relação às notas de crédito, a Requerente apresentou os extractos contabilísticos dos seus clientes, que comprovam a não contabilização das notas de crédito ou das facturas que estas anulam, tendo os referidos extractos sido apresentados à AT durante o processo de fiscalização. Logo no decorrer da inspecção tributária, confirmou a Requerente, junto das entidades adquirentes supra identificadas que, quer as notas de crédito, quer as facturas iniciais que foram anuladas por estas, não tinham sido alvo de contabilização pelas respectivas entidades tendo a Requerente promovido a obtenção de elementos probatórios complementares que se afiguram e credíveis.”
Todavia, não o tendo feito, e atendendo ao disposto nos artigos 78.º, n.º 5, do Código do IVA, bem como do artigo 74.º da LGT, não pode proceder a invocada violação do ónus probatório.
Para além disso também não pode proceder a invocada violação do princípio da verdade material na medida em que, sendo certo que a nota de crédito goza da presunção de veracidade prevista no artigo 75.º da LGT, a verdade é que a AT não questiona a veracidade da mesma, mas antes a prova de que o adquirente teve conhecimento dessa regularização. São questões distintas, pelo que a presunção da veracidade dos documentos e o princípio da verdade material não têm impacto na prova do conhecimento pelo adquirente.
Em face do exposto, improcede o pedido da Requerente quanto à regularização titulada pela nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L.
-
Da reversão da regularização de IVA - € 2.046.351,48
Independentemente de estar em causa IVA subjacente à atividade de locação financeira imobiliária, tendo a Requerente optado pela renúncia à isenção do IVA, nos termos do artigo 12.º do Código do IVA, conjugado com o regime de renúncia à isenção do IVA consagrado no Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro, a aplicação do referido regime afigura-se irrelevante para apreciação da questão decidenda subjacente à reversão da regularização de IVA promovida pela Requerente.
O artigo 10.º do referido Decreto-Lei n.º 21/2007 prevê o regime especial da regularização do imposto aplicável nas situações em que “a) o bem imóvel seja afecto a fins alheios à actividade exercida pelo sujeito passivo” ou “b) ainda que não seja afecto a fins alheios à actividade exercida pelo sujeito passivo, o bem imóvel não seja efectivamente utilizado em fins da empresa por um período superior a dois anos consecutivos”. Contudo, este procedimento específico de regularização é aplicável somente nas situações em que “(…) houve direito à dedução total ou parcial do imposto que onerou a respectiva aquisição (…)” (cf. n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 21/2007; sublinhado nosso).
É certo que a Requerente efetuou uma regularização de imposto ao abrigo deste regime especial (realizada nas declarações periódicas de IVA de dezembro dos anos de 2014 a 2017, no montante total de € 2.155.778,44, cf. documentos n.º 3 a 5 juntos pela Requerente). Com efeito, com esta regularização, a Requerente entregou ao Estado o montante que, à data, acreditava que havia deduzido indevidamente.
Assim, a partir daquele momento, a Requerente deixou de beneficiar da dedução do IVA subjacente à atividade de locação financeira imobiliária, relativo aos imóveis que foram objeto da renúncia à isenção do IVA.
Sucede que, considerando a decisão do TJUE proferida no processo n.º C-672/16, de 28 de fevereiro, a Requerente concluiu que afinal lhe era permitida a dedução do IVA, motivo pelo qual concluiu que não deveria ter promovido a regularização de imposto a favor do Estado.
Em face desta constatação, a Requerente reverteu a regularização inicialmente realizada, mantendo a dedução do IVA de que poderia/deveria beneficiar nas declarações periódicas relativas a maio, outubro e dezembro de 2019.
Ou seja, o que está em causa é, em suma, simplesmente a possibilidade de a Requerente exercer o seu direito à dedução, e não a situação prevista no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 21/2007.
Posto isto,
O direito à dedução é uma das traves-mestras do sistema do IVA, garantindo o princípio da neutralidade. Considerando o disposto nos artigos 180.º e 186.º da Diretiva IVA, o legislador europeu conferiu aos Estados-Membros margem de discricionariedade no que concerne aos regimes de dedução e da regularização das deduções. Sem prejuízo de, em regra, este direito à dedução não poder ser limitado, o TJUE tem reconhecido que o princípio da segurança jurídica impõe que a situação jurídica inerente ao IVA esteja delimitada temporalmente (cf. Acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-284/11). Tal limite temporal para exercício do direito à dedução deverá ser “razoável”, i.e., não poderá ser demasiado restritivo ou exigente para o sujeito passivo (cf. Acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-427/08). Portanto, é permitido que a legislação dos Estados-Membros delimite temporalmente a possibilidade de exercer o direito à dedução, sob pena de, não o fazendo, contribuir para a insegurança jurídica e para a indefinição das situações jurídicas dos sujeitos passivos.
É neste contexto que a jurisprudência tributária tem desenvolvido a distinção entre dois tipos de conjuntos de prazos para efeitos do exercício do direito à dedução do IVA em função da situação de base em que se alicerce tal direito à dedução, que poderá ser “normal” ou “patológica”. A este respeito pronunciou-se, nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.05.2021 proferido no processo n.º 01023/15.0BELRS, do qual se destaca, no que ora releva, o seguinte: “Para tal exercício do direito à dedução, o legislador português fixou, no Código do IVA, dois conjuntos de prazos para o efeito, consoante tal exercício se processe em termos normais ou patológicos, distinção esta que bem se compreende, se atentarmos à metodologia de auto-liquidação que rege a cobrança deste imposto. Assim, o primeiro conjunto de prazos (situações normais) encontra-se regulado nos artigos 22.º e seguintes – sendo especialmente relevante in casu o artigo 23.º, n.º 6 do Código do IVA – e reporta-se aos casos de relacionamento normal entre o contribuinte e a Administração Fiscal na exigibilidade do imposto; nestes casos, o exercício regular do direito à dedução é regulado consoante o método de dedução adotado, e deve ser exercido num período mais curto (naturalmente), contado a partir do momento em que o imposto se torne exigível. Já o segundo conjunto de casos reporta-se às situações patológicas, em que o exercício do direito à dedução foi inquinado por erros, falhas ou lapsos e, por conseguinte, pressupõe prazos mais longos para a respectiva correcção, devidamente adequados às circunstâncias imponderadas que estão na sua base. Tais prazos encontram-se regulados pelos artigos 78.º, n.º 6 (sob a elucidativa epígrafe “regularizações”) e 98.º, n.º 2 do Código do IVA (sob a epígrafe “revisão oficiosa”), e são de dois e quatro anos, respetivamente.”
É manifesto que na situação que convoca a apreciação deste Tribunal, a situação em apreço configura uma situação “patológica” do direito à dedução, visto que tem na sua génese um erro na aplicação do direito. Efetivamente, a Requerente apercebeu-se de tal erro após se ter deparado com a decisão proferida no processo C-672/16 proferida pelo TJUE.
Assim, os prazos aplicáveis para a dedução pretendida serão, naturalmente, prazos mais alargados e não os que se encontram previstos nos artigos 22.º e seguintes do Código do IVA.
Como tem sido reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, um dos prazos passíveis de ser aplicado a situações “patológicas” é o prazo de 2 anos previsto no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA: “A correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado”.
Contudo, as partes estão de acordo quanto ao facto de não estar em causa uma mera correção de erros materiais ou de cálculo. O que exclui a aplicação do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.
Resta, pois, o artigo 98.º do Código do IVA.
Este artigo 98.º do Código do IVA tem como epígrafe “Revisão oficiosa e prazo do exercício do direito à dedução”.
De acordo com o n.º 1 do referido artigo 98.º do Código do IVA “Quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária”.
Nos termos do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, “Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respetivamente”.
A Requerida sustenta que o prazo de 4 anos previsto no referido n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA é um prazo máximo e é aplicável somente às revisões oficiosas ou às declarações de substituição do período em que o IVA se tornou dedutível.
Todavia, adianta-se já que, esta interpretação propugnada pela Requerida, apesar de ter algum sustento jurisprudencial, não encontra suporte na lei, motivo pelo qual não poderá ser acolhida por este Tribunal.
CONCEIÇÃO GAMITO, RITA SIMÃO LUÍS e NÍDIA REBELO explicam que “(…) dispõe o Código do IVA que o direito à dedução pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução. A aplicação desta norma gera alguma controvérsia, uma vez que se considera que, para lá do prazo de dois anos e até ao limite do prazo de quatro anos, o exercício do direito à dedução apenas pode ser efetuado mediante a apresentação de revisão oficiosa e com fundamento em erro de direito. No entanto (…) refira-se que o Código do IVA fixa de forma muito clara o prazo para o exercício do direito à dedução em quatro anos” (cf. CONCEIÇÃO GAMITO, RITA SIMÃO LUÍS e NÍDIA REBELO, A Caducidade do Direito à Liquidação do IVA por dedução Indevida, em Cadernos IVA 2021, 2021, Almedina, p. 118; sublinhado nosso).
Também RAQUEL MONTES FERNANDES esclarece que “(…) o direito à dedução adicional de imposto que resulte de erro de direito também pode ser exercido pelo mesmo meio da dedução inicial – i.e., por via da inscrição desse valor em declaração periódica. E nos casos em que já não seja possível entregar uma declaração de substituição para o período em que ocorreu o erro ou para o último período desse ano, defendemos que a inscrição desse montante adicional de imposto possa, ainda, ocorrer em declaração posterior, desde que entregue no prazo de 4 anos da dedução inicial. Ou seja, estando em causa um valor a que o sujeito passivo tem direito por via da correção (legítima) de um erro de enquadramento, ao qual não são aplicáveis os mecanismos e prazos previstos no art.º 23.º n.º 6 ou no art.º 78.º n.º 6 do CIVA, e decorrendo da norma do n.º 2 do art.º 98.º do CIVA um direito substantivo ao exercício do direito à dedução no prazo de 4 anos, nada obsta, em nossa opinião, a que o exercício desse direito (a uma dedução adicional para correção do montante inicialmente deduzido) seja efetuado nos mesmos termos, e pelo mesmo meio, que a dedução inicial. Repare-se que (apenas) desta forma se permite, em nossa opinião, uma equiparação, ao abrigo dos princípios da igualdade e da equivalência (este enquanto decorrência do princípio da não discriminação), entre o prazo para o exercício do direito à correção de erros de enquadramento relativos a recursos cujo respetivo IVA tenha sido deduzido ao abrigo dos arts. 20 e 22 n.º 2 (…) e recursos cujo IVA tenha sido deduzido ao abrigo do art.º 23 n.º 6 (…). E, igualmente, apenas desta forma se garante o respeito pelo princípio da efetividade, o qual se opõe a que os Estados-Membros impossibilitem, ou tornem excessivamente difícil, através das suas normas internas, o exercício dos direitos atribuídos pelo ordenamento jurídico da União Europeia” (cf. RAQUEL MONTES FERNANDES, A “Nova” Revisão Oficiosa e o “Atropelo” do Direito à Dedução de IVA, em Cadernos IVA 2023, 2023, Almedina, pp. 376 e 377; sublinhado nosso).
É evidente que, de acordo com a letra da lei o n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA prevê a possibilidade de revisão oficiosa quando tenha sido liquidado imposto superior ao devido, remetendo-se para a LGT os seus trâmites. E que, também de acordo com a letra da lei, o n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA prevê o prazo de 4 anos para o exercício do direito à dedução, salvo disposições especiais em sentido contrário. Todavia, estas são duas situações distintas, previstas em normas distintas, que não devem confundir-se. O n.º 2 do referido artigo 98.º do Código do IVA não consagra qualquer tipo de meio necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do prazo de 4 anos para concretizar o direito à dedução.
Aliás, note-se que este prazo de 4 anos para o direito à dedução (no limite, através da inscrição do montante a deduzir em declaração periódica apresentada nos 4 anos seguintes) se encontra em conformidade com o prazo de caducidade do direito à liquidação (também de 4 anos), previsto no artigo 45.º da LGT. A doutrina tributária tem destacado precisamente que “Faz todo o sentido a solução contida neste preceito legal, uma vez que se o Estado pode determinar o imposto a pagar pelo contribuinte no prazo de quatro anos, podendo exigi-lo em seguida mesmo coercivamente, pelo mesmo raciocínio, o contribuinte pode exigir a dedução do imposto suportado num limite de tempo estabelecido por lei” (cf. JOAQUIM MIRANDA SARMENTO e PAULO MARQUES, IVA – Problemas Actuais, Coimbra Editora, 2014, p. 71).
Destaca-se, ainda, o decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 07.04.2022 proferido no processo n.º 0379/16.2BEVIS, sobre a possibilidade de o sujeito passivo requerer o direito à dedução no prazo de 4 anos através de outro meio que não a revisão oficiosa, “(…) forçosa é a conclusão de que uma correcção motivada pela indevida utilização de um método legal de dedução, quando um outro método legal deveria ser aplicável, configura um forçoso erro de Direito, sendo tempestivo o pedido de correcção/revisão da auto-liquidação se efetuado no prazo de quatro anos, também em sentido idêntico se pronunciou o acórdão datado de 07.04.2021, recurso n.º 0796/15.5BEVIS e o acórdão datado de 03.02.2021, recurso n.º 0228/15.9BEVIS.
Isto para dizer, que o erro na forma de procedimento nunca poderia ser óbice à correcção pretendida pelo contribuinte no caso concreto, quando estamos perante o direito à dedução de IVA, tanto mais que, aqui, sempre prevalecerá o direito à dedução e à proteção do princípio da neutralidade resultantes das normas da União respeitantes ao IVA e aqui aplicáveis, e sendo certo que no caso concreto, ainda que ocorresse o erro de procedimento assinalado na sentença recorrida, sempre seria de atender a pretensão do recorrente por dever prevalecer a substancia sobre a forma” (sublinhado nosso).
Refira-se, por último, que as disposições especiais às quais o legislador faz referência na parte inicial do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA são as que se encontram previstas no artigo 78.º do mesmo Código.
Quanto à qualificação do erro, destaca-se a decisão arbitral proferida no processo n.º 117/2013-T: “O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA. Designadamente, o erro de cálculo do pro rata não é um erro de cálculo enquadrável nesta norma porque consubstancia um erro de direito sobre o regime jurídico aplicável e não um erro de natureza aritmética. Assim, não sendo aplicável o regime do referido artigo 78.º, n.º 6, nem existindo qualquer regime limite temporal especial para exercício do direito à dedução com fundamento em erro de direito, será aplicável o regime geral sobre esta matéria que consta do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA que, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-5-2011, proferido no processo n.º 966/10, fixa um limite máximo de quatro anos que não pode ser excedido em nenhum caso”.
Neste mesmo sentido clarificam ALEXANDRA MARTINS e ANDRÉ AREIAS: «A leitura conjugada do artigo 98.°, n.º 2, com o artigo 22.°, n.º 2, ambos do Código do IVA, encaminha-nos para a conclusão, correcta, de que o prazo de exercício do direito à dedução é de quatro anos, já que o mesmo pode ser exercido na "declaração do período ou de período posterior" àquele em que se tiver verificado a recepção das facturas, e de que, no decurso desse prazo de quatro anos, os erros praticados podem ser corrigidos, pelo menos nas situações que não se enquadrem nos prazos especiais encurtados (dois anos) do artigo 78.° do Código do IVA. Aliás, essa é a única conclusão compatível com o entendimento do TJUE de que o direito à dedução não pode, em princípio, ser limitado e de que o mesmo se exerce relativamente à totalidade do imposto que tenha onerado as operações efectuadas pelos sujeitos passivos o que implica a consagração de regimes de regularização que permitam a estes a correcção das suas deduções num prazo razoável quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, independentemente daquelas alterações terem origem em erro material ou de cálculo ou em erro de direito ou enquadramento . Por outro lado, essa leitura é a única que permite a rectificação de uma dedução erroneamente realizada (ou não realizada) em virtude de um incorrecto enquadramento jurídico das operações, já que as normas do artigo 78.° do Código do IVA, especialmente consagradas para a rectificação das deduções de IVA dos sujeitos passivos, apenas prevêem situações de facturas inexactas e de erro material ou de cálculo e não os casos de erro de direito ou de enquadramento. Ou seja, ainda que o artigo 98.°, n.0 2, do Código do IVA consagre um prazo geral de quatro anos para o exercício do direito à dedução, nele se devem compreender quaisquer deduções, sem distinções formais ou valorativas entre deduções iniciais e regularizações das deduções, uma vez que, conforme referido, o direito à dedução é indivisível e deve ser exercido na sua plenitude.» (cf. ALEXANDRA MARTINS e ANDRÉ AREIAS, Os Prazos para a Regularização de Erros: Análise à Luz dos Princípios da Efectividade e Equivalência, em Cadernos IVA 2017, 2017, Almedina)
Também a jurisprudência tem partilhado deste entendimento, considerando que se “(…) estes erros na dedução do IVA não constituem erros materiais ou de cálculo, mas sim erros de enquadramento ou erros de direito e, nessa medida, não lhes é aplicável o regime vertido no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA. Consequentemente, atenta a inaplicabilidade daquela norma ou de qualquer outra disposição especial, no caso de erro de direito na dedução do IVA deverá ser aplicado o prazo geral e supletivo de quatro anos contados do nascimento do direito à dedução, constante do artigo 98.º do Código do IVA” (cf. decisão arbitral proferida no processo n.º 489/2017-T, bem como decisão arbitral proferida no processo n.º 739/2022-T e o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.05.2021, proferido no processo n.º 01023/15.0BELRS).
Como já se referiu, na situação ora em presença, está em causa um erro de direito, não subsumível no artigo 78.º do Código do IVA. Aliás, as partes estão de acordo quanto a esta qualificação do erro. Para além disso, conforme refere a Requerente, a AT não coloca em causa a quantificação dos montantes apurados pela Requerente, nem a legitimidade para regularizar o IVA a seu favor. O que está em dissídio é somente o prazo/procedimento adotado pela Requerente para exercer o seu direito à dedução.
Ora, em face de todo o exposto, a única conclusão possível é a de que a Requerente exerceu o seu direito à dedução tempestivamente e através de um meio admissível para o efeito.
Efetivamente, a aplicação do prazo de 4 anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA não depende da utilização do pedido de revisão oficiosa.
Assim a Requerente, tendo-se apercebido do erro em que havia incorrido ao ter procedido à regularização de imposto a favor da AT, procedeu à dedução desse imposto nas declarações periódicas de maio, outubro e dezembro de 2019.
Tendo em consideração que i) o que motivou esta dedução de IVA fora para lá do ano a que a mesma respeita foi um erro de direito, sendo aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA; e ii) o IVA deduzido respeitava aos anos de 2015, 2016 e 2017, é notório que a Requerente cumpriu o prazo de 4 anos para o direito à dedução.
Neste contexto, não pode tal direito ser negado, motivo pelo qual o ato de indeferimento da reclamação graciosa padece de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado na errada interpretação do artigo 98.º, n.º 2, o que implica a declaração da sua ilegalidade e consequente anulação na parte em que recusou o direito à dedução da Requerente no montante total de € 2.046.351,48. Consequentemente, os atos de liquidação adicional de IVA, objeto mediato do presente pedido de pronúncia arbitral, enfermam de igual vício, o que implica também a declaração da sua ilegalidade e consequente anulação na parte em que não consideraram a referida dedução de imposto a favor da Requerente.
Em face de todo o exposto, conclui-se pela errada interpretação do direito, em particular, do disposto no artigo 98.º, n.º 2, do Código do IVA por parte da AT, ora Requerida, e julga-se procedente esta parte do pedido, dando-se por prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados, nomeadamente o exposto pela Requerente quanto à situação particular da regularização relativa ao imóvel com o artigo matricial U-... .
A Requerente sugere que se faça reenvio prejudicial para o TJUE. A jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objeto questões conexas com o Direito da União Europeia (cf. artigo 267.º do TFUE). No entanto, quando a interpretação do Direito da União Europeia resulta já do chamado acquis jurisprudencial, torna-se desnecessário proceder a essa consulta. Assim, no Caso CILFIT, o TJUE concluiu que não há que fazer o reenvio prejudicial quando a questão for impertinente, quando a lei comunitária seja clara e quando já haja um precedente na jurisprudência europeia (Acórdão de 6 de outubro de 1982, Caso Cilfit, Proc. 283/81, Recueil). No caso em apreço, constata-se que os vícios que são prioritariamente imputados às liquidações impugnadas não têm por fundamento o Direito de União Europeia, mas sim o direito nacional, designadamente a interpretação do artigo 98.º do Código do IVA. Por isso, não se justifica o reenvio requerido.
-
Do direito a juros indemnizatórios
A Requerente peticiona, também, o pagamento de juros indemnizatórios por parte da Requerida.
A LGT estabelece, no seu artigo 43.º, n.º 1, que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Assim, o direito ao recebimento de juros indemnizatórios assenta num conjunto de pressupostos de verificação cumulativa, quais sejam, a existência de um erro imputável aos serviços, em função do qual resulte pagamento de imposto em montante superior ao devido, sendo esse erro analisado em sede de reclamação ou impugnação judicial (encontrando-se hoje estabilizada a jurisprudência segundo a qual tal avaliação pode ser efetuada, também, em sede arbitral).
Como decorre da fundamentação que se expendeu acima, afigura-se patente que o erro que inquina os atos contestados, na parte considerada ilegal, é imputável à AT.
Nessa medida, reconhece-se à Requerente o direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, contados desde a data do pagamento do IVA indevidamente liquidado, até ao integral reembolso do imposto.
DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
julgar parcialmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade da decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa, bem como dos respetivos atos tributários de IVA que lhe estão subjacentes, referentes aos anos de 2019 e 2020, quanto às seguintes correções:
-
falta de prova de conhecimento da regularização pelo adquirente, no que tange às notas de crédito n.ºs DLF / ACLIC-000030554-L, DLF / ACLIC-000030552-L e DLF / ACLIC-000030550-L, no montante total de € 7.239,80; e
-
reversão de regularizações de IVA nos termos do n.º 2 do artigo 98 do Código do IVA, no montante de € 2.046.351,48;
-
julgar parcialmente improcedente o pedido quanto à correção referente à falta de prova de conhecimento da regularização pelo adquirente, no que tange à nota de crédito n.º DLF / NCR-00002610-L, no montante de € 21.657,00;
-
julgar parcialmente procedente o pedido de juros indemnizatórios; e
-
condenar a Requerida e a Requerente nas custas do processo, em função dos respetivos decaimentos.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 2.075.248,28 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 27.234,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento, pela Requerida na proporção de 99% e pela Requerente na proporção de 1%.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de agosto de 2024
Os Árbitros,
O Árbitro Presidente
(Fernanda Maçãs)
O Árbitro Adjunto
(Dr. João Taborda da Gama)
O Árbitro Adjunto
(Dr. José Coutinho Pires)
[1] A nota de crédito n.º DLF / ACLIC-000030209-L, com IVA no montante de € 6.401,89, já não é objeto do pedido de pronúncia arbitral porque foi reconhecido, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, que a carta remetida pela sociedade D..., Lda. e a cópia do referido documento, carimbados e assinados pelos representantes, são suficientes para comprovar a verificação de que o adquirente tomou conhecimento da retificação efetuada.