Sumário:
I – O fundamento da regularização de IVA por incobrabilidade de créditos é a devolução ao sujeito passivo de imposto que liquidou, mas que não lhe foi possível cobrar – um aspeto que não é de somenos importância para o Estado Português, que entendeu regular esse direito.
II – Desde logo por um imperativo de justiça material – um princípio que a tributação deve respeitar por mandato expresso do n.º 2 do artigo 5.º da LGT – a alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º deve ser interpretada no sentido de a prova da incobrabilidade poder ser feita de outra forma nos casos em que não seja possível proceder ao RIE nos termos ali prescritos.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins (presidente), Sofia Ricardo Borges e Raquel Montes Fernandes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 27 de fevereiro de 2024, acordam no seguinte:
-
Relatório
A..., S.A., titular do número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de Identificação de Pessoa Coletiva ..., com sede na ..., n.º ..., ..., no..., ...-... Lisboa (doravante designada “Requerente”), notificada da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada para apreciação da legalidade das liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos de janeiro, novembro e dezembro de 2019 identificadas no pedido da Requerente, vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL com designação de árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do referido diploma.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 21 de dezembro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, do que foi notificada a AT.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 27 de fevereiro de 2024.
Em 12 de abril de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por impugnação, e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”).
Por despacho deste Tribunal, de 26 de abril de 2024 foi proferido o seguinte:
“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é essencialmente de direito e a prova produzida é meramente documental.
2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação do acórdão.
3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.”
Posição da Requerente
A Requerente é uma sociedade com sede e direção efetiva em território português, que tem como atividade principal o estabelecimento, gestão e exploração de infraestruturas, prestação de serviços de comunicações eletrónicas e exercício da atividade de televisão, bem como de qualquer atividade complementar ou acessória a estas.
Em sede de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal, em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA.
Os seus argumentos são, resumidamente, os seguintes:
Como é recorrente neste setor de atividade, a Requerente depara-se com um nível considerável de incumprimento por parte dos seus clientes, existindo inúmeras faturas emitidas que nunca chegam a ser liquidadas por estes.
Uma parte desses créditos incobráveis foram objeto de processo de execução em que a Requerente não recebeu qualquer quantia em dívida, por não terem sido encontrados bens penhoráveis.
Sempre que as faturas emitidas pela Requerente não são pagas, no caso, por falta de bens penhoráveis no âmbito de um processo de execução, o IVA liquidado é pago ao Estado pela Requerente sem que, no entanto, esta tenha recebido a contrapartida dos serviços prestados (incl. o IVA devido).
Nestes casos, a Requerente procede à regularização do respetivo IVA, nos termos da alínea a) do n.º 7.º do artigo 78.º do Código do IVA – visto que estamos perante créditos vencidos antes de 01.01.2013.
Todos os créditos cujo IVA a AT corrigiu, originando as liquidações de imposto colocadas em causa na reclamação graciosa que antecedeu a presente impugnação arbitral, foram objeto de processos de execução que foram extintos por inutilidade superveniente da lide por força da extinção das respetivas sociedades executadas (cf. certidões juntas aos autos pela Requerente como documento n.º 1).
Em detalhe, as certidões juntas resultam, refere, da notificação do Agente de Execução à Requerente da extinção dos processos executivos em questão, mediante a emissão de certidões de incobrabilidade dos créditos em apreço no âmbito das quais e para o que aqui releva certifica:
-
que a Requerente não recebeu, no âmbito dos autos em questão, qualquer importância para pagamento total ou parcial da quantia em dívida;
-
que se mostra comprovada a extinção da sociedade executada, por força da dissolução e encerramento da liquidação e cancelamento da matrícula em procedimento administrativo de dissolução;
-
que é de presumir a inexistência de bens suscetíveis de penhora pertencentes à executada; e
-
que uma vez que se mostrou inútil a prossecução da execução, face à inexistência de bens e à dissolução da sociedade executada, a presente execução se extinguiu por inutilidade superveniente da lide.
Nesse sentido, por resultar manifestamente comprovada a incobrabilidade definitiva dos créditos em questão, a Requerente declarou no campo 40 das declarações periódicas de IVA, regularizações de imposto a seu favor no valor de EUR 138.926,89, as quais foram efetuadas nos termos do artigo 78.º e seguintes do Código do IVA e no âmbito das quais estavam incluídas regularizações da base tributável de serviços, no valor de EUR 6.036.132,72.
A Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção de âmbito geral (OI2021...), com incidência temporal no período de tributação de 2019 e com o objetivo de verificar o cumprimento das obrigações tributárias relativas ao aludido exercício.
Na sequência do referido procedimento de inspeção foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária emitido pela AT no âmbito do qual foi proposta uma correção em sede de IVA no valor de EUR 138.926,89 relativa ao IVA de créditos anteriores a 2013, que foi regularizado a favor do sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA.
Tal correção resulta, no entendimento da AT, e segundo refere, do facto de a Requerente não ter feito prova de que foi efetuado o registo dos respetivos processos de execução no RIE.
Refere que em fase alguma do procedimento de inspeção a AT colocou em causa que as faturas subjacentes às liquidações objeto dos presentes autos não foram pagas e/ou que os processos de execução em causa não determinaram a incobrabilidade dos créditos.
Não tendo a Requerente exercido o seu direito de audição, foi posteriormente notificada do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) emitido pela AT, o qual manteve a correção proposta em sede de IVA.
De acordo com a posição dos SIT “Podendo os sujeitos passivos deduzir o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis, nas condições definidas no Código do IVA, é-lhes imposta a obrigação (créditos vencidos anteriormente a 2013) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA, que prevê que o imposto só pode ser deduzido após o registo de extinção da execução por não terem sido encontrados bens penhoráveis no RIE.
Desta forma, para os clientes com processos de execução extintos por não terem sido encontrados bens penhoráveis seria necessário que essa informação constasse do Registo Informático de Execuções previsto no Código de Processo Civil, de acordo com a alínea a) do n.º 7 do Código do IVA, e o devedor consta na Lista Pública de Execuções pelo crédito em causa.”.
(…)
Assim, a inexistência de informação do RIE não permite a dedução, uma vez que conforme esclarece o Oficio-Circulado “A incobrabilidade considera-se (sic) verificada na data do registo informático de execuções do trânsito em julgado da sentença ou homologação, ou do acordo previsto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 178/2012, consoante o caso.
(…)
Assim, o IVA em causa, no montante de €138.926,89, conforme Anexo III, não pode ser objeto de regularização a favor da A... por tal situação não se encontrar prevista no artigo 78.º do Código do IVA, nomeadamente, na alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA.”
Conclui, assim, a AT que “Conforme demonstrado, os créditos considerados incobráveis em processos de execução são créditos que não têm enquadramento no n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA, porquanto não se verifiquem as condições aí referidas”.
A Requerente foi notificada dos seguintes atos tributários (cf. documento n.º 3):
Período
|
Liquidação de IVA
|
Demonstrações de acerto de contas
|
Valor
|
012019
|
2022...
|
2022 ...
|
57.275,00
|
112019
|
2022 ...
|
2022...
|
34.524,74
|
122019
|
2022...
|
2022 ...
|
47.154,14
|
TOTAL
|
138.953,88
|
Período
|
Liquidação de Juros compensatórios
|
Demonstrações de acerto de contas
|
Valor
|
012019
|
2022...
|
2022 ...
|
8.486,11
|
112019
|
2022 ...
|
2022 ...
|
3.942,44
|
122019
|
2022 ...
|
2022 ...
|
5.174,47
|
TOTAL
|
17.603,02
|
O prazo para pagamento voluntário das liquidações de IVA em causa, bem como das respetivas demonstrações de acerto de contas e demonstrações de liquidação de juros que lhes estão subjacentes, terminou a 30 de janeiro de 2023.
Não obstante a discordância com as correções propugnadas pela AT, pagou o montante de imposto e respetivos juros indevidamente liquidados.
No dia 30 de maio de 2023 apresentou reclamação graciosa dos atos tributários acima melhor identificados junto da Unidade dos Grandes Contribuintes - “UGC” (cf. documento n.º 5).
O processo correu termos sob o n.º ...2023... .
Através de Ofício, com data de 01.08.2023, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento da reclamação e para, querendo, exercer o seu direito de audição.
A 23.08.2023 exerceu o seu direito de audição prévia, no qual contestou os fundamentos da decisão proposta, juntando, nomeadamente, cópia da decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 323/2022-T, no qual se discutiu a legalidade das liquidações de IVA emitidas na sua esfera relativamente ao ano de 2018 e que assentaram em idêntica fundamentação de facto e de direito.
Não obstante os argumentos expostos, através de carta registada de 20.09.2023, foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação, nos termos da qual se mantiveram as conclusões de facto e de direito constantes do projeto de decisão.
Em concreto, refere-se na mencionada decisão:
“30. Como é consabido, o IVA tem carater formalista. Razão pela qual, o legislador previu a exigência do RIE nos casos como o presente, consubstanciando-se, assim, numa formalidade constitutiva do direito à regularização do IVA.
31. Trata-se de uma exigência com expressa consagração legal e que, como tal, importa o seu estrito cumprimento.
32. A AT no exercício das atribuições que lhe foram conferidas, encontra-se sujeita ao princípio da legalidade, cumprindo observar o que se encontra expressamente disposto nos diversos diplomas que regulam as matérias que lhe são submetidas a apreciação.
33. Neste sentido, não se verificando preenchidos os requisitos em análise, fica precludida a possibilidade de a Reclamante efetuar a regularização do IVA quanto aos valores em questão.”
Não pode concordar com a decisão que lhe foi notificada, o que motiva a apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral.
Posição da Requerida
A decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., de 2023-09-15, corrobora, na íntegra, a fundamentação legal expendida no RIT.
Mais refere que, na alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, o legislador não deixou qualquer margem de discricionariedade ao aplicador da lei quanto à definição do momento em que o IVA se torna dedutível.
E que, a exigência do registo informático das execuções com a indicação da extinção da execução por não terem sido encontrados bens penhoráveis, visa garantir a definitividade do não pagamento. Pelo que, deve ser entendida no sentido de que, não se cumprindo este requisito, inexiste suporte legal para a regularização por parte do sujeito passivo credor. Atento o caráter formalista do IVA, o legislador previu a exigência do RIE, consubstanciando-se, assim, numa formalidade constitutiva do direito à regularização do IVA.
Como indicado no RIT, foi veiculado, pela Área de Gestão Tributária do IVA, o Ofício-Circulado n.º 30161/2014, de 8 de julho, sobre o entendimento da AT a respeito do regime de regularização do IVA relativo a créditos de cobrança duvidosa e créditos incobráveis, vencidos antes de 1 de janeiro de 2013, e depois dessa data.
Esclarece a referida instrução administrativa, na pág. 2, por referência à norma do art.º 78.º, n.º 7, al. a), que, “a incobrabilidade considera-se verificada na data do registo informático de execuções”.
O que significa, a contrario, que inexistindo o registo informático da execução, a incobrabilidade definitiva dos créditos não se pode dar por verificada.
A condição formal é, assim, uma condição sine qua non, para o reconhecimento da condição material da regularização do IVA.
Portanto, a falta de registo no RIE preclude o direito à regularização do imposto, ao contrário do que é defendido no PPA.
O Ofício-Circulado n.º 30161/2014, de 8 de julho é um diploma normativo interno de natureza não legislativa, porém, vinculativo para a AT, nos termos do art.º 68.º-A, n.º 1 da LGT.
Como mencionado na decisão impugnada, a atuação da AT no procedimento tributário pauta-se pela sujeição ao princípio da legalidade tributária [art.º 8.º, n.º 2, al. e) e art.º 55.º da LGT, consagrado no n.º 2 do art.º 103.º, no n.º 5 do art.º 112.º e na al. i) do n.º 1 do art.º 165.º, todos da Constituição da República Portuguesa].
Daqui decorre que a AT se encontra vinculada ao que se encontra expressamente exigido na letra da lei, que no caso em apreço, é clara e explícita.
Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (art.º 11.º, n.º 1 da LGT).
Nos termos do art.º 9.º, n.º 2 e n.º 3 do Código Civil, aplicável ex vi do art.º 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, porque na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Sublinhe-se, a este respeito, que a Lei do Orçamento do Estado para 2015 (Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro) alterou a redação das normas relativas ao regime dos créditos incobráveis, nomeadamente, do art.º 78.º, n.º 7, al. a) e do art.º 78.º-A, n.º 4, al. a) do Código do IVA, mas apenas para efeitos de atualização do artigo do Código de Processo Civil, mantendo a exigência do requisito formal do RIE, em ambos os casos (quer para créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013, quer depois dessa data).
Pelo que, não tendo havido revogação do requisito legal exigido não pode a AT proceder em sentido diverso.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT, contado da notificação da decisão de indeferimento da reclamação deduzida contra os atos tributários impugnados.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, assistindo ao substituído o direito de ação, nos termos do disposto nos artigos 20.º e 65.º da LGT e 9.º e 132.º do CPPT, e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Não foram identificadas nulidades ou outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
-
Fundamentação de Facto
-
Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
-
A Requerente é uma sociedade com sede e direção efetiva em território português, que tem como atividade principal o estabelecimento, gestão e exploração de infraestruturas, prestação de serviços de comunicações eletrónicas e exercício da atividade de televisão, bem como de qualquer atividade complementar ou acessória.
-
Em sede de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal, em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA.
-
Na sua actividade a Requerente depara-se com incumprimentos de faturas emitidas que nunca chegam a ser pagas pelos seus clientes.
-
Uma parte desses créditos foram objeto de processo de execução em que a Requerente não recebeu qualquer quantia em dívida.
-
Quando as faturas emitidas pela Requerente não chegam a ser pagas no âmbito de um processo de execução, o IVA liquidado é entregue ao Estado pela Requerente sem que, no entanto, esta tenha recebido a contrapartida dos serviços prestados (incl. o IVA devido).
-
Nestes casos a Requerente procede à regularização do respetivo IVA, nos termos da alínea a) do n.º 7.º do artigo 78.º do Código do IVA por se tratar de créditos vencidos antes de 01.01.2013. (cfr. PA e Doc. 1 junto pelo SP)
-
Os créditos cujo IVA a AT corrigiu, identificados no Anexo III do RIT, e que originaram as liquidações de imposto colocadas em causa na presente impugnação arbitral e na reclamação graciosa que a antecedeu, foram objeto de processos de execução que foram subsequentemente extintos por inutilidade superveniente da lide por força da extinção das respetivas sociedades devedoras executadas (cf. Declarações emitidas por Agente de Execução – Doc.1 junto pelo SP).
-
A Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção tributária reportado ao período fiscal de 2019 e foi notificada do respetivo RIT por Ofício da Requerida de 23.11.2022. (cfr PA e Doc. 2 junto pelo SP)
-
Do RIT consta, entre o mais (e tudo se dando por reproduzido): “(...) verificou-se que a A... regularizou a seu favor IVA no montante de € 138.926,89 relativo a créditos incobráveis, em processos de execução, nos termos da alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA. / Verificou-se a existência de alguns créditos incobráveis cuja regularização do IVA a favor da sociedade não tem enquadramento no Código do IVA. / (...) No entanto, ao não ter o RIE (Registo Informático da Execução), a A... não apresenta suporte legal para a dedução ao abrigo daquela alínea, conforme se demonstra de seguida. / (...) Desta forma, para os clientes com processos de execução extintos por não terem sido encontrados bens penhoráveis seria necessário que essa informação constasse do Registo Informático de Execuções previsto no Código de Processo Civil, de acordo com a alínea a) do artigo 78.º do Código do IVA, e o devedor conste na Lista Pública de Execuções pelo crédito em causa. / Sendo que a disposição constante na alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA reflete na nossa ordem jurídica a situação em que se pode regularizar o IVA em créditos considerados incobráveis no caso de processos de execução extintos “por não terem sido encontrados bens penhoráveis.” /(...) a empresa regularizou IVA a seu favor não obstante não existir uma previsão legal no Código do IVA que contemple as situações em análise. / (...) por tal situação não se encontrar prevista (...) nomeadamente na alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA.” (cfr PA e Doc. 2 junto pelo SP)
-
A Requerente dispõe de declarações emitidas por Agente de Execução em que este atesta, no exercício das suas funções, estar comprovada a extinção das sociedades executadas e, bem assim, atesta a extinção dos processos executivos em questão por inutilidade superveniente da lide “face à inexistência de bens e à dissolução da Sociedade executada” - juntas aos autos e que se dão por integralmente reproduzidas. (cfr. Doc. 1 junto pelo SP)
-
Com referência às regularizações de IVA a que a Requerente procedeu com base na alínea a) do art.º 78.º do CIVA, e que estão na origem das liquidações em crise, não se encontra efetuado o registo a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 717.º do CPC. (cfr. PA)
-
Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos.
Não existem factos alegados com relevância para a apreciação da causa que devam considerar-se não provados.
-
Do Mérito
O caso sub judice centra-se na discussão dos requisitos substantivos e formais das regularizações de IVA respeitantes a créditos considerados incobráveis ao abrigo da alínea a) do n.º 7 do art.º 78 do CIVA.
Antes de se entrar na sua análise individualizada, importa proceder ao enquadramento teórico do tema, o que se fará de seguida em alguns traços breves.
Em primeiro lugar, convém notar que, no âmbito do IVA, o paradigma de quantificação da obrigação tributária é a contraprestação efetiva. Este princípio consta do artigo 73.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”) e é função direta da medida da contrapartida que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva vir a receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.
Do princípio da contraprestação efetiva deriva a obrigação de corrigir a matéria tributável (e o próprio imposto), quando se constate, depois de efetuada uma transação, que a contraprestação não vai ser recebida, no todo ou em parte, seja porque foi reduzida ou anulada a sua base tributável, seja porque se conclui que não vai ser paga pelo adquirente. É por esse motivo que o artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA obriga os Estados-Membros a reduzir o valor tributável em conformidade, nas condições que sejam por si fixadas, por forma a que as autoridades tributárias não cobrem um montante de IVA superior ao recebido pelo sujeito passivo do seu adquirente ou de um terceiro. De facto, e “[s]egundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva 2006/112, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação que deu origem ao pagamento do imposto, obriga os Estados‑Membros a reduzirem o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (v., nomeadamente, Acórdão de 6 de dezembro de 2018, Tratave, C‑672/17, EU:C:2018:989, n.o 29 e jurisprudência referida)”[1].
O artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA é suficientemente claro e preciso ao estabelecer a obrigação de redução do valor tributável nos casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento ou redução do preço das operações, ainda que remeta tal obrigação para as condições a fixar por cada Estado-Membro. Note-se, no entanto, que a liberdade aqui concedida aos Estados-Membros para a fixação das respetivas condições de exercício da redução do valor tributável das operações não afeta o caráter preciso e incondicional daquela obrigação e o direito assim estabelecido, cujos beneficiários estão em condições de conhecer e de invocar, se for o caso, perante os órgãos jurisdicionais nacionais.
Contudo, o n.º 2 da mesma disposição da Diretiva permite aos Estados-Membros derrogar aquele n.º 1, nos casos de não pagamento total ou parcial das operações. O objetivo deste regime de exceção é o de atender ao caráter incerto, não definitivo, do não pagamento de uma fatura, na medida em que subsiste a possibilidade de o prestador acabar por ver satisfeito o seu direito de crédito, nomeadamente por dispor de meios legais para o tentar efetivar. Nas palavras do TJUE, “[é] certo que o artigo 90.º, n.º 2, desta diretiva permite que os Estados‑Membros derroguem esta regra em caso de não pagamento total ou parcial do preço da operação. Todavia, como já foi declarado pelo Tribunal de Justiça, tal faculdade de derrogação em caso de não pagamento total ou parcial, baseia‑se na ideia de que o não pagamento da contrapartida pode, em determinadas circunstâncias e em virtude da situação jurídica existente no Estado‑Membro em causa, ser difícil de verificar ou ser meramente transitório (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de julho de 1997, Goldsmiths, C‑330/95, EU:C:1997:339, n.o 18; de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C‑246/16, EU:C:2017:887, n.o 17; e de 22 de fevereiro de 2018, T‑2, C‑396/16, EU:C:2018:109, n.o 37). Daqui resulta que exercício dessa faculdade de derrogação deve ser justificado por forma a que as medidas adotadas pelos Estados‑Membros para lhe dar execução não perturbem o objetivo de harmonização fiscal prosseguido pela Diretiva 2006/112 (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de julho de 1997, Goldsmiths, C‑330/95, EU:C:1997:339, n.o 18; de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C‑246/16, EU:C:2017:887, n.º 18; e de 22 de fevereiro de 2018, T‑2, C‑396/16, EU:C:2018:109, n.º 38) e que esta não pode permitir a estes últimos excluir pura e simplesmente a redução do valor tributável do IVA em caso de não pagamento (v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C‑246/16, EU:C:2017:887, n.os 20 e 21). Esta conclusão é confirmada por uma interpretação teleológica do artigo 90.º, n.º 2, da Diretiva 2006/112. Com efeito, embora seja pertinente que os Estados‑Membros possam combater a incerteza quanto ao não pagamento de uma fatura ou ao caráter definitivo deste, tal faculdade de derrogação não pode ser alargada para além dessa incerteza, designadamente à questão de saber se a redução do valor tributável pode não ser efetuada em caso de não pagamento (Acórdãos de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C‑246/16, EU:C:2017:887, n.o 22, e de 22 de fevereiro de 2018, T‑2, C‑396/16, EU:C:2018:109, n.o 40).”[2].
Nos casos de não pagamento total ou parcial da operação, pode, portanto, vir a concluir-se que o crédito é definitivamente irrecuperável. Numa tal situação, o princípio da neutralidade obrigará a que seja operada a redução do valor tributável, pois, na qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o sujeito passivo deve ficar totalmente aliviado do peso do imposto. Conforme referiu o TJUE no ponto 23 do caso C-246/16, de 23 de novembro de 2017, na senda de jurisprudência constante sobre o tema, “admitir a possibilidade de os Estados‑Membros excluírem qualquer redução da matéria coletável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente aliviado do peso do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de março de 2008, Securenta, C‑437/06, EU:C:2008:166, n.o 25, e de 13 de março de 2014, Malburg, C‑204/13, EU:C:2014:147, n.o 41)”.
Em particular, quando ocorra a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade devedora, e o consequente encerramento da sua matrícula, comprovando-se, em simultâneo, a inexistência de bens para pagamento das dívidas nessa data, haverá uma forte presunção de incobrabilidade definitiva da operação.
Uma última nota, no que respeita às normas europeias, para referir que o art.º 273.º da Diretiva IVA determina que “[o]s Estados‑Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados‑Membros por sujeitos passivos (…)”.
O legislador português instituiu um regime de redução a posteriori do valor tributável das operações e de regularização de IVA a favor dos sujeitos passivos fornecedores e prestadores dos bens e serviços, abrangendo os casos designados de “não pagamento” contemplados na regra geral do artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA.
A disciplina atualmente consagrada no Código do IVA compreende quer as situações de não pagamento caracterizadas por algum grau de incerteza (mora) - os denominados “créditos de cobrança duvidosa” - quer aqueles casos em que existe uma probabilidade (mais do que) razoável de não pagamento - denominados “créditos incobráveis”. Em ambos os casos, o Código do IVA permite que os sujeitos passivos regularizem a seu favor imposto anteriormente liquidado e não recebido na sua esfera, estabelecendo, para o efeito, determinadas condições, as quais são diferentes consoante se trate de créditos de cobrança duvidosa ou créditos considerados incobráveis.
Recorde-se que, no que diz respeito aos créditos considerados incobráveis, os Estados-Membros não podem afastar a obrigação de reduzir o valor tributável. O valor tributável deve ser reduzido pelos sujeitos passivos e o correspondente IVA regularizado, sob pena de violação do princípio da contraprestação efetiva e do artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA, que constitui seu postulado, bem como dos princípios da neutralidade, da proporcionalidade e do objetivo de harmonização fiscal prosseguido com a Diretiva.
Feito o enquadramento teórico do caso, passemos à análise da situação que, concretamente, é colocada ao Tribunal.
Dispõe a al. a) do n.º 7 do art.º 78 do CIVA que os sujeitos passivos podem deduzir o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis em processo de execução, após o registo a que se refere a alínea b) do n.º 2 do art.º 717 do Código de Processo Civil (“CPC”).
Este artigo do CPC regula o registo informático de execuções (“RIE”) e o tipo de informação (identificação do processo, identificação do agente de execução, etc.) que este registo deve conter, competindo, em geral, aos agentes de execução a atualização do mesmo.
Por sua vez, dispõe a al. b) do n.º 7 do art.º 78 do CIVA que os sujeitos passivos podem deduzir o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de âmbito limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”) ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no art.º 156 desse código.
Por último, o n.º 11 do mencionado art.º 78 determina que, nos casos previstos no seu n.º 7, o credor deve comunicar ao adquirente do bem ou serviço, que seja sujeito passivo do IVA, a anulação total ou parcial do imposto, para efeitos de retificação da dedução inicialmente efetuada, devendo essa comunicação identificar as faturas, o montante do crédito e do imposto a regularizar, o processo ou acordo em causa, bem como o período em que a regularização é efetuada.
A AT alega o seguinte:
-
Como indicado no RIT, foi veiculado, pela Área de Gestão Tributária do IVA, o Ofício-Circulado n.º 30161/2014, de 8 de julho, sobre o entendimento da AT a respeito do regime de regularização do IVA relativo a créditos de cobrança duvidosa e créditos incobráveis, vencidos antes de 1 de janeiro de 2013, e depois dessa data.
-
Esclarece a referida instrução administrativa, na pág. 2, por referência à norma do art.º 78.º, n.º 7, al. a), que, “a incobrabilidade considera-se verificada na data do registo informático de execuções”.
-
O que significa, a contrario, que inexistindo o registo informático da execução, a incobrabilidade definitiva dos créditos não se pode dar por verificada.
-
A condição formal é, assim, uma condição sine qua non, para o reconhecimento da condição material da regularização do IVA.
-
Portanto, a falta de registo no RIE preclude o direito à regularização do imposto, ao contrário do que é defendido no PPA.
-
O Ofício-Circulado n.º 30161/2014, de 8 de julho é um diploma normativo interno de natureza não legislativa, porém, vinculativo para a AT, nos termos do art.º 68.º-A, n.º 1 da LGT.
-
Como mencionado na decisão impugnada, a atuação da AT no procedimento tributário pauta-se pela sujeição ao princípio da legalidade tributária [art.º 8.º, n.º 2, al. e) e art.º 55.º da LGT, consagrado no n.º 2 do art.º 103.º, no n.º 5 do art.º 112.º e na al. i) do n.º 1 do art.º 165.º, todos da Constituição da República Portuguesa].
-
Daqui decorre que a AT se encontra vinculada ao que se encontra expressamente exigido na letra da lei, que no caso em apreço, é clara e explícita.
A Requerente contrapõe que todos os créditos cujo IVA a AT corrigiu, originando as liquidações de imposto colocadas em causa nos presentes autos e na reclamação graciosa que os antecedeu, foram objeto de processos de execução que foram extintos por inutilidade superveniente da lide por força da extinção das respetivas sociedades executadas e respetiva atestação de inexistência de bens (remetendo para as declarações de Agente de Execução que juntou como doc. n.º 1).
Para além disso, resulta das declarações (certidões) do Agente de Execução juntas pela Requerente, emitidas pelo mesmo no exercício das suas funções, e referentes à extinção dos processos executivos para pagamento de quantia certa em cada caso:
-
que a Requerente não recebeu, no âmbito desses autos, qualquer importância para pagamento total ou parcial das quantias em dívida;
-
que se mostra comprovada a extinção das sociedades executadas, por força da dissolução e encerramento da liquidação e do cancelamento das respetivas matrículas, em procedimento administrativo de dissolução cuja data se identifica;
-
que é de presumir a inexistência de bens suscetíveis de penhora pertencentes aos executados; e
-
que uma vez que se mostrou inútil a prossecução dos processos de execução em causa, face à inexistência de bens e à dissolução das respetivas sociedades executadas, tais processos de execução se extinguiram por inutilidade superveniente da lide.
A questão controvertida diz, portanto, respeito a saber se o registo da execução no RIE é preclusivo do direito a efetuar a regularização de imposto pelo sujeito passivo, isto é, se deve considerar-se, por interpretação do disposto na alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, que a única forma de provar a incobrabilidade do crédito para efeitos de regularização, nesta sede, é apresentar prova de que esse registo foi efetuado.
A AT sustenta a sua posição na formulação da norma contida naquela alínea a), dizendo que a mesma não permite ao aplicador qualquer margem de livre apreciação no caso concreto. Ou seja, a AT interpreta a norma em causa como um comando absoluto e definitivo: em todos os casos de créditos considerados incobráveis em processo de execução, ou o sujeito passivo apresenta o registo no RIE e pode deduzir o imposto neles contido ou não apresenta o registo no RIE e não tem direito a efetuar a regularização do IVA correspetivo.
A gravidade da consequência alerta-nos, contudo, para o excesso dessa interpretação. Por outro lado, convém não esquecer que o fundamento da regularização de IVA por incobrabilidade de créditos é a devolução ao sujeito passivo de imposto que liquidou mas que não lhe foi possível cobrar – um aspeto que não é de somenos importância para o Estado Português, que entendeu regular esse direito, (exercendo uma opção, tal como se refere no acórdão proferido no processo 317/2016-T, “porventura justificada pelo peso com que os sujeitos passivos já arcam no mecanismo de liquidação e cobrança do IVA”)
Assim, desde logo por um imperativo de justiça material – um princípio que a tributação deve respeitar por mandato expresso do n.º 2 do artigo 5.º da LGT – a alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º deve ser interpretada no sentido de a prova da incobrabilidade poder ser feita por outra forma nos casos em que não seja possível proceder ao RIE, como seja por via de declaração emitida pelo Agente de Execução no exercício das suas funções (o mesmo que procederia ao registo no RIE), que permita comprovar o não pagamento e a forte probabilidade de incobrabilidade definitiva. Com efeito, embora a AT deva poder ter provas seguras de que o crédito se tornou incobrável para aceitar a regularização, e o legislador tenha remetido para o RIE para esse efeito, deve entender-se que aquele registo poderá ser substituído por outros elementos que permitam, igualmente, comprovar a incobrabilidade definitiva ou a forte probabilidade da mesma, atestados, in casu, pelo próprio Agente de Execução. Até porque, como também se refere no acórdão proferido no processo 317/2016-T, “[o RIE é] uma forma de comprovação da extinção do processo de execução, porventura tida pelo legislador como a mais simples de obter e confirmar, mas sem prejuízo de outras forma de o demonstrar, sendo que, consabidamente, os registos são essencialmente formas de publicitação de factos e actos jurídicos.”
De facto, pese embora o caráter (assumidamente) formalista do IVA, e não obstante a letra da lei da norma em causa [alínea a) do n.º 7 do art.º 78 do CIVA], entendemos que a negação do direito à regularização deste montante de imposto na esfera da Requerente se afigura desproporcional, injusta e contrária ao princípio da neutralidade fiscal, atendendo à prova documental apresentada, que não deixa margem para dúvidas quanto ao não recebimento de tais montantes e quanto à forte probabilidade de incobrabilidade dos mesmos.
Ademais, é certo que o legislador assumiu um determinado critério, que terá, porventura, entendido como sendo o mais fiável de controlo e monitorização, a saber, o do registo (no RIE) da extinção da execução por não terem sido encontrados bens penhoráveis, e que tal critério não se encontra formalmente cumprido. No entanto, tendo a Requerente obtido declarações que contêm no mais essencial os elementos da norma (art.º 717.º do CPC) para que a alínea a) do n.º 7 do art.º 78.º do CIVA remete, exaradas por Agente de Execução no exercício das suas funções, que atestam a extinção das execuções por inexistência de bens e a extinção das sociedades executadas por força da sua dissolução e encerramento da liquidação (v. supra al. j) do probatório), e não tendo, por seu lado, a Requerida impugnado a genuinidade nem a autenticidade das mesmas, afigura-se ao Tribunal - face ao princípio da liberdade dos meios de prova, aos elementos carreados nos autos, à teleologia da norma do CIVA em questão, e, ainda, a constituir a extinção da sociedade uma forte presunção da incobrabilidade dos créditos, bem como ao disposto no n.º 12 do mesmo art.º 78.º (visando assegurar a obrigação de entrega do imposto em caso de recuperação dos créditos) -, ser de aceitar a regularização de IVA efetuada pela Requerente.
Assim, tendo em conta a factualidade provada e o mais percorrido, considera este Tribunal ser de concluir pela procedência do pedido, sendo os atos de liquidação em crise de anular.
Para além disso, tem ainda a Requerente direito a juros indemnizatórios, pois, como estatui o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Com efeito, afigura-se que a invalidade dos atos tributários controvertidos, nos termos acima enunciados, é imputável à AT por ter incorrido em vício de violação de lei, gerador de anulabilidade.
-
Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar o pedido totalmente procedente, com as legais consequências;
-
Condenar a Requerida ao pagamento das custas arbitrais.
-
Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 156.529,91, indicado pela Requerente e correspondente ao valor das liquidações de IVA e de juros compensatórios aqui impugnadas (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
-
Custas
Custas no montante de 3.672,00 € (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a suportar integralmente pela Requerida, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Lisboa, 21 de agosto de 2024
Os árbitros,
Guilherme W. d'Oliveira Martins
(Presidente)
Sofia Ricardo Borges
Raquel Montes Fernandes
[1] Ponto 17 do caso C-127/18, de 8 de maio de 2019.
[2] Pontos 18 a 21 do caso C-127/18, de 8 de maio de 2019.