Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1005/2023-T
Data da decisão: 2024-08-20  IRC  
Valor do pedido: € 55.559,22
Tema: IRC. Benefício fiscal. Fundo de investimento imobiliário não residente. Liberdade de circulação de capitais.
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Sumário:

As normas do n.º 1, parte final, e do n.º 3 do artigo 22.º  do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

      1. A... (anteriormente designado B...), Organismo de Investimento Coletivo (OIC), constituído e a operar de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português ..., com sede em ..., ... Frankfurt am Main, Alemanha, (doravante "Requerente"), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciação da legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa por esta apresentada, e consequente anulação de tal indeferimento tácito  e bem assim das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas ("IRC") por retenção na fonte ocorridas em 2021 e 2022 – vide identificação das respetivas guias de pagamento constantes de al.c) dos factos provados - requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo, com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária, sendo um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país.

 

A Requerente detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal, sendo que nos anos de 2021 e 2022 A Requerente era detentora de participações sociais nas seguintes sociedades residentes em Portugal: C... S.A., D... SGPS S.A., E... SGPS e F..., SGPS S.A.

 

Ora, nos referidos anos, a Requerente, na qualidade de acionista destas sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos.

 

Os dividendos recebidos no decorrer dos anos de anos de 2021 e 2022, foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, prevista no n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC (“CIRC”), tendo a Requerente efetuado pedidos de reembolso do imposto retido na fonte em excesso face à taxa prevista no Acordo para Evitar a Dupla Tributação (“ADT”) celebrado entre Portugal e a Alemanha (correspondente a 10%, pois a taxa prevista no ADT para os dividendos é de 15%), através da entrega do formulário Modelo 21 RFI.

 

Assim, face aos pedidos de reembolso ao abrigo do ADT junto da Administração Tributária Portuguesa, o presente pedido incide sobre o montante das retenções suportadas pelo Requerente em Portugal nos anos de 2021 e 2022, correspondente à diferença entre o valor total retido na fonte à taxa interna prevista no CIRC - 25% - e o valor objeto dos pedidos de reembolso efetuados ao abrigo do ADT - 10%

Na ótica da Requerente – e conforme já foi confirmado pelo TJUE em acórdão proferido no passado dia 17 de março de 2022, no processo n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN) –, Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos OIC estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (“UE”) (in casu a Alemanha), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia.

 

O regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º  4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes estão sujeitos a retenção na fonte liberatória em sede de IRC a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes) não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, tal como resulta expresso e inequívoco da decisão do TJUE.

 

Ora, entende a Requerente que a decisão do TJUE no referido processo implica a necessária procedência da reclamação graciosa anteriormente apresentada e, bem assim, do presente pedido de pronúncia arbitral, uma vez que a questão a dirimir é materialmente igual.

 

Sustenta assim a Requerente no sentido da desconformidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º do TFUE, em particular, da restrição à liberdade de circulação de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE, sendo entendimento pacífico e unânime que o Direito da UE prevalece sobre o direito ordinário nacional, quer esteja em causa legislação adotada anteriormente, quer estejam em causa atos legislativos, entre outros (neste sentido, v., entre outros, o acórdão de 14 de julho de 1964, Costa vs Enel, C-65/64 e, ainda, acórdão do STA de 03.02.2016, tirado no processo n.º 01172/14),

 

Razão pela qual, a consequência jurídica do princípio do primado do Direito da UE é a não aplicação, em caso de conflito entre leis, das disposições internas contrárias à disposição comunitária bem como a proibição da introdução de disposições de direito interno contrárias à legislação comunitária, pelo que se impõe a anulação por ilegal da decisão silente de Reclamação Graciosa e bem assim as respetivas liquidações de retenção na fonte que em tal legislação contrária ao direito da Eu se basearam.

 

Termina, peticionando ainda o pagamento de juros indemnizatórios e bem assim o estorno dos valores ilegalmente retidos na fonte.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, defendeu-se por impugnação, referindo que o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.

 

Não podendo concluir-se que o regime fiscal dos OIC, que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, se não encontre em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE, sendo que o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida por aquela disposição do TFUE.

 

Acresce que a Requerida encontra-se vinculada ao princípio da legalidade, não lhe competindo apreciar a desconformidade das normas internas com o TFUE, nem desaplicar normas por suposta violação do direito europeu, competência essa que apenas é atribuída aos tribunais.

 

Terminando o contraditório, em sede de Resposta, pugnando pela total improcedência dos pedidos pela Requerente formulados.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 5 de fevereiro de 2024.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

 

 

II.        Saneamento

O tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, não enfermando o processo de nulidades.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

 

A cumulação de pedidos efetuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em que está em causa decisão de indeferimento tácito de reclamação graciosa, baseada em  liquidações de um mesmo imposto – IRC, Retenções na fonte - assentes em similar base factual e aplicando as mesmas regras de direito, encontra-se destarte plenamente justificada a cumulação de pedidos efetuada,  face ao princípio da economia processual consagrado no artigo 3º do RJAT.

 

Não existem quaisquer exceções ou vícios que obstem ao conhecimento do mérito do pedido arbitral formulado.

   

Cabe apreciar e decidir.

 

III - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

  1. A Requerente é um fundo de investimento constituído e a operar de acordo com o direito da Alemanha, com sede em ..., ... Frankfurt am Main, Alemanha, sendo aí também considerada como residente para efeitos fiscais, anteriormente denominada por  B... e que em Portugal tem o NIF... .
  2. A Requerente investiu em participações sociais de sociedades com sede em Portugal, tendo auferido, durante os anos de 2021 e 2022, dividendos de participações no capital social das sociedades C... S.A., D... SGPS S.A., E... SGPS e F..., SGPS S.A..
  3. Os dividendos auferidos pela Requerente sobre as sociedades supra foram objeto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 25%, nos termos do n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC e entregue nos cofres do Estado pelo G... (G...), com o NIF ..., através das guias de retenção na fonte infra identificadas, na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC, conforme declarações de responsabilidade que se deixam aqui parcialmente transcritas

 

 

  1. Por sua vez, em 02.05.2023, o H..., entidade depositária e custodiante de valores mobiliários da Requerente, emitiu declarações a favor da Requerente, onde se discriminam os valores de dividendos auferidos e retidos na fonte que se passam a parcialmente transcrever

 

 

  1. A Requerente não beneficiou de qualquer crédito de imposto, nem deduziu na Alemanha, Estado da residência, o imposto retido na fonte em Portugal relativamente aos supra identificados dividendos.
  2. A Requerente requereu reembolso ao abrigo do Acordo sobre Dupla Tributação (ADT) junto da Administração Tributária Portuguesa, correspondente ao remanescente entre a taxa de retenção na fonte à taxa interna prevista no CIRC - 25% - e a taxa aplicável ao abrigo do ADT (15%), diferencial (25% -15%) remanescente esse de 10%, pelo que a Requerente suportou efetivamente um imposto de 15%, a que corresponde o montante € 55.559,22, conforme tabela-resumo infra:

 

  1. No dia 19 de Maio de 2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte supra identificados, à qual coube o n.º ...2023... .
  2. A reclamação graciosa não foi objeto de decisão expressa. 

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados que se considerem relevantes para a decisão da causa.

 

Motivação da matéria de facto

 

Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.

 

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

 

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

 

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

 

            Matéria de direito

 

5. Sustenta a Requerente que o regime especial de tributação aplicável aos fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º  do EBF, implicando a exclusão desse regime jurídico dos organismos equiparáveis que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa mas tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou de Estado terceiro, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A Autoridade Tributária contrapõe que o artigo 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias, deslocando a tributação para a esfera do imposto do selo, além de que sujeita os OIC às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC.

Não podendo afirmar-se, neste condicionalismo, que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente.

 

A questão que nestes termos vem colocada foi analisada no acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido no Processo n.º C-545/19, em reenvio prejudicial suscitado no Processo n.º 93/2019-T   em que se extrai a seguinte conclusão:

 

O artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

E não pode deixar de se sufragar esse entendimento, que, aliás, vem na linha de anterior jurisprudência do TJUE, ainda que não sobre a específica questão que está em análise nos presentes autos.

 

O citado artigo 22.º do EBF, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro, e pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

 

Artigo 22.º

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

  4 - Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

(…)

8 - As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.

            (…).

 

Como resulta, em especial, do disposto nos n.ºs 3 e 6, as entidades referidas no n.º 1, beneficiam de um regime consideravelmente mais favorável que o regime geral de tributação em IRC, porquanto não são considerados, para efeitos do apuramento do lucro tributável, os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e mais-valias, além de que essas entidades estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.  Por outro lado, nos termos do transcrito n.º 1, o benefício fiscal assim estabelecido aplica-se aos organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, o que conduz a afastar, numa interpretação literal do preceito, os organismos equiparáveis que operem no território nacional segundo o direito interno mas tenham sido constituídos segunda legislação de um outro Estado-membro da União Europeia ou de Estado terceiro.

 

A questão carece de ser analisada, nestes termos, à luz da alegada violação do princípio da proibição da liberdade de circulação de capitais.

 

6. No caso, como resulta da matéria de facto tida como assente, a Requerente é um organismo de investimento coletivo mobiliário, constituída segundo o direito dos Estados Unidos da América, desempenhando em Portugal o mesmo papel económico que as sociedades de investimento mobiliário de capital variável heterogeridas, efetuando a angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus clientes o mesmo tipo de condições de mercado.

 

Alega a Requerente, neste contexto, que as normas do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF se tornam incompatíveis com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.

 

Conforme tem sido entendimento comum, o princípio da proibição de discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.º do TFUE apenas deve ser objeto de aplicação autónoma quando esse mesmo princípio se não encontre concretizado em disposições específicas do Tratado relativas às liberdades de circulação. E, nesse sentido, pode dizer-se que o princípio da não discriminação se realiza, designadamente, por via do direito à livre circulação de movimentos de capitais a que se refere o artigo 63.º do Tratado (cfr. Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Coimbra, 2011, pág. 254).

 

O artigo 63.º proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais, bem como todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. O artigo 65.º consigna, todavia, que o artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido (n.º 1), esclarecendo o n.º 3, em todo o caso, que essa possibilidade não deve constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Em relação à liberdade de circulação de capitais, o citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19de 10 de Abril de 2014, esclarece o âmbito de aplicação desse princípio, formulando, na parte que mais interessa reter, os seguintes considerandos:

 

36      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (-).

37      No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38      Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (-).

40      Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

41      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (-).

42      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (-).

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, o Tribunal de Justiça concluiu que o “critério de distinção a que se refere a legislação nacional (…), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes (considerando 73), havendo de entender-se que, “no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis (considerando 74).

E não há motivo para que o tribunal arbitral, face aos elementos factuais conhecidos, deva dissentir do entendimento formulado, quanto a esta matéria, em sede de reenvio prejudicial.

Em relação à possibilidade de uma restrição à livre circulação de capitais ser admitida por razões imperiosas de interesse geral, o Tribunal de Justiça declarou que, para esse efeito, “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78). Concluindo que, no caso, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” e a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional (…) (considerandos 80 e 81).

Em todo este contexto, a doutrina fixada pelo TJUE é a seguinte:

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

7. Revertendo à situação do caso, e como resulta do ponto II e notas explicativas da nomenclatura anexa à Diretiva 88/361/CEE, o conceito de movimentos de capitais, para efeito da liberdade de circulação a que refere o artigo 63.º do TFUE, abrange os investimentos mobiliários (cfr. considerandos 21 e 22 do acórdão do TJUE de 16 de março de 1999, no Processo C-222/97).

 

O artigo 22.º, n.º 1, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento mobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece um regime mais gravoso para as entidades equiparáveis que operem no território nacional mas se tenham constituído segundo o direito de um outro Estado-Membro ou de Estado terceiro, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para esse tratamento discriminatório.

 

Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Havendo de entender-se, tal como refere o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, que a diferença de tratamento na legislação fiscal nacional, em relação à livre circulação de capitais, apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objetivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão de 10 de fevereiro de 2011, nos Processos C-436/08 e C-437/08).

 

De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, e nesse sentido prevalecem sobre as normas do direito nacional, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 1 de julho de 2015, Processo n.º 0188/15).

 

Resta acrescentar que o recente acórdão do STA de 28 de setembro de 2023 (Processo n.º 093/19), tirado em recurso por oposição de julgados entre as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 96/2019-T e 90/2019-T, tomando em consideração o citado acórdão do TJUE proferido no  Processo n.º C-545/19, uniformizou a jurisprudência   no sentido de que a interpretação do artigo 63.º do TFUE é incompatível com o artigo 22.º do EBF, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.

 

 Os atos de liquidação de retenção na fonte - em IRC - impugnados e a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra eles apresentada são assim ilegais por assentarem em disposição legal que viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.

 

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

8. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida e bem assim o estorno do valor indevidamente pago.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Atento os termos em que o pedido se encontra recortado (e o pedido de reembolso diretamente efetuado junto da AT para estorno da diferença entre a taxa inicial aplicada – 25% - e a decorrente da ADT – 15%), impõe-se assim reconstituir a situação tributária tal qual a mesma existiria se o vício agora reconhecido não tivesse sido levado a efeito, o que se consubstancia, em termos práticos, no estorno à Requerente do valor suportado em matéria de retenção na fonte, correspondente à taxa de 15% (taxa aplicável nos termos do artigo 10º da ADT entre Portugal e Alemanha), o que in casu se traduz e se quantifica em € 55.559,22.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

No entanto, em caso de retenção na fonte, o erro imputável aos serviços, que justifica a obrigação de juros indemnizatórios, apenas opera, quando haja lugar a reclamação graciosa, com o indeferimento pela Autoridade Tributária da impugnação administrativa (cfr., neste sentido, os acórdãos do Pleno do STA de 18 de janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16, e de 29 de junho de 2022, Processo n.º 093/21). Tendo havido lugar a indeferimento tácito por não sido proferida decisão no prazo de quatro meses a contar da data de apresentação da reclamação graciosa, em 19 de maio de 2023, o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios apenas se constitui, na situação do caso, em 20 de setembro de 2023.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos tributários de retenção na fonte ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, desde 20 de setembro de 2023, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente (€ 55.559,22), à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

 

 

IV - Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral e anular, por violação de lei, a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa e bem assim os atos tributários de retenção na fonte-IRC impugnados, referentes aos períodos correspondentes aos das guias supra identificadas, de 2021 e de 2022 – no segmento respeitante à retenção na fonte objeto destes autos.

 

b) Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago - € 55.559,22 - e ao pagamento de juros indemnizatórios desde 20 de setembro de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito, sobre a referida quantia.

 

Valor da causa:

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de €  55.559,22, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 20 de agosto de 2024,

  

O Árbitro singular

 

Luís Sequeira