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SUMÁRIO:
I - Tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia decidido que o artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação nacional que determina que os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo em valores mobiliários (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção, mesmo incidindo sobre estes outras formas de tributação, têm os tribunais nacionais de invalidar as liquidações correspondentes – ainda para mais depois de uniformizada a jurisprudência pelo STA (Acórdão n.º 7/2024).
II – A responsabilidade da desconformidade da legislação nacional com o Direito da União é do legislador, não da AT – como resulta do acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 30 de Janeiro 2019.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
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No dia 18 de Dezembro de 2023, A..., Organismo de Investimento Colectivo constituído de acordo com o Direito luxemburguês, com sede em..., ... Luxemburgo, com o número de contribuinte português ... (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
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Pretendia que fosse apreciada a “legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2021 e 2022, bem como da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa previamente apresentada para o efeito”.
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Nomeados os presentes árbitros, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 27 de Fevereiro de 2023.
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Seguindo-se os normais trâmites, em 16 de Abril a AT apresentou resposta em que, entre o mais, suscitou uma questão prévia sobre os montantes efectivamente retidos no ano de 2022, tendo junto o processo administrativo (PA).
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Em 17 de Abril foi proferido despacho a dar oportunidade à Requerente para, querendo, se pronunciar sobre tal questão, o que veio a fazer em 3 de Maio, nos termos que adiante serão relatados.
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Em 7 de Maio fixou-se prazo para apresentação simultânea de alegações, que vieram a ser juntas ao processo nos dias 3 (Requerente) e 4 (Requerida) de Junho.
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PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO DO LITÍGIO
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
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Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias[1], são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
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O pedido de pronúncia arbitral (PPA) foi tempestivo.
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Como “Questão Prévia”, a AT invocou na sua Resposta, designadamente, que
“consultada a declaração Mod.30 (Relação de Beneficiários do rendimento), submetida pelo B..., NA QUALIDADE DE SUBSTITUTO TRIBUTÁRIO, COM REFERÊNCIA AO PERÍODO DE 2022, VERIFICOU-SE QUE FOI DECLARADO, A TÍTULO DE RENDIMENTO PAGO, APENAS O VALOR DE €23.800,00, SEM QUALQUER RETENÇÃO NA FONTE CORRESPONDENTE.
Por sua vez, a Requerente indica no pedido arbitral, relativamente ao mesmo período, a título de rendimento pago, um valor total de €153.246,21 e respetiva retenção na fonte (antes do pedido de reembolso ao abrigo da CDT) no montante de €38.311,56.”.
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Retorquiu a Requerente, em síntese, que os montantes indicados no PPA foram acompanhados de documentos emitidos pelo B (“tax vouchers”) que atestavam “que o valor de imposto retido na fonte foi declarado à AT com a identificação do beneficiário do rendimento (A..., NIF:...), tendo sido entregue nos cofres da AT através da guia de pagamento número ..., de 20.05.2022” e que isso resultava “igualmente do documento emitido pelo C... GmbH, entidade responsável pela custódia dos títulos.”
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Tendo em conta:
- que nas suas alegações, onde se poderia voltar a pronunciar sobre o aparente dissídio, a AT se limitou a remeter para “o aduzido em sede de Resposta e aí peticionado”;
- que a origem da discrepância, segundo a Informação citada na Resposta da AT, teve como origem a “declaração Mod.30 (Relação de Beneficiários do rendimento), submetida pelo C..., NA QUALIDADE DE SUBSTITUTO TRIBUTÁRIO, COM REFERÊNCIA AO PERÍODO DE 2022;
- que essa mesma Informação incluía a seguinte passagem (que seguia imediatamente o trecho transcrito no número anterior): “Não obstante, estes valores estão em consonância com os indicados pelo B... nas declarações por ele emitidas e constantes dos autos.” (passagem que foi igualmente transcrita na Resposta da AT e que foi invocada na réplica da Requerente como reconhecimento da fidedignidade dos documentos apresentados),
entende o presente Tribunal Arbitral que qualquer eventual incumprimento das obrigações declarativas do B... na declaração Modelo 30 “COM REFERÊNCIA AO PERÍODO DE 2022” é alheia aos presentes autos e pode ser averiguada pela AT em outra sede.
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MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
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A Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo (OIC), com residência fiscal no Luxemburgo, sendo um sujeito passivo de IRC não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país (Doc. 1 junto com o PPA, artigos 1.º e 2.º do PPA e §6. da Resposta da AT);
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Das duas espécies essenciais de OIC previstos na Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009 (“Fundos Comuns de Investimento” e “Sociedades de Investimento”[2]), a Requerente é uma sociedade de investimento - SICAV (Doc. 1 junto com o PPA);
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Em 2021 e 2022, a Requerente detinha participações sociais na E..., S.A., sociedade residente, para efeitos fiscais, em Portugal (Doc. 2 junto com o PPA);
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Em 2021 o “agente pagador” dos montantes retidos foi o D..., e em 2022 foi o B... (Doc. 3 junto com o PPA, artigo 12.º (ii) do PPA e, quanto ao B..., §5. da Resposta da AT e Doc. 1 junto com esta);
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Nesses anos, recebeu dividendos dessa empresa, sujeitos a tributação em Portugal, tendo suportado IRC por retenção na fonte à taxa liberatória de 25% nos montantes especificados no quadro seguinte (artigo 9.º do PPA e §2. da Resposta da AT[3]), que contempla também os valores de que pediu devolução ao abrigo do Acordo para Evitar a Dupla Tributação (ADT) celebrado entre Portugal e o Luxemburgo (correspondente a 10% do valor retido, em conformidade com a taxa de 15% aí prevista para os dividendos):
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Em 18 de Maio de 2023 deu entrada no Serviço de Finanças de Lisboa ... reclamação graciosa dos atos de retenção na fonte de IRC relativos aos anos de 2021 e 2022 (Doc. 4 junto com o PPA);
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Não houve decisão da reclamação graciosa apresentada, que correu termos sob o n.º ...2023... (Doc. 1 junto com a Resposta da AT);
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Em 18 de Dezembro de 2023 a Requerente dirigiu ao CAAD o pedido de pronúncia arbitral (Sistema de Gestão Processual do CAAD).
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Tendo em conta as posições das partes e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, o único facto não provado foi o da, já apreciada, eventual discrepância entre os valores dos dividendos distribuídos e de retenção na fonte referentes ao ano de 2022, constantes dos documentos juntos aos autos, com os alegados valores indicados pelo B... na sua declaração Modelo 30 (que não foi junta aos autos) com referência ao período de 2022, enquanto substituto tributário da Requerente.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo das posições de Requerente e Requerida, como referido a propósito de cada um.
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DIREITO
IV.1. Questões a decidir
A primeira questão a discutir é a da conformidade das retenções na fonte impugnadas com o Direito aplicável.
Caso proceda a alegação da desconformidade da liquidação efectuada com as normas do Direito da União Europeia, haverá que decidir sobre a indemnização devida à Requerente.
IV.2. Posição da Requerente
Depois de expor os factos do caso, de pugnar pela adequação do meio processual, da competência material do Tribunal Arbitral e da cumulação de pedidos, a Requerente entendeu, essencialmente, que:
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A decisão de 17 de Março de 2022 do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), suscitada pelo reenvio de questões prejudiciais idênticas às dos presentes autos no processo n.º 93/2019-T, estabeleceu que “O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”;
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No mesmo sentido, invocava, já “vinham os tribunais arbitrais emitindo pronúncia de forma uniforme, designadamente, nos processos n.ºs 528/2019-T, 548/2019-T, 11/2020-T, 68/2020-T, 926/2019-T, 922/2019-T e 32/2021-T”;
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Passando ao “enquadramento normativo”, afirmava que “nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea c), do CIRC, os dividendos são considerados rendimentos de natureza financeira.” e que, quando “pagos por uma entidade residente a um sujeito passivo residente em Portugal, tais rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte por conta do imposto devido a final a uma taxa de 25% (cfr. artigos 94.º, n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b) e 94.º, n.º 4, todos do CIRC).”, excepto quando abrangidos pelo artigo 22.º, n.os 1 e 3, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), caso em que estavam isentos;
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Como tal artigo do EBF contempla “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário, sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, e como “a constituição de um fundo de investimento de acordo com a ordem jurídica nacional implica a sua residência em Portugal” estava “vedada a possibilidade de um OIC residente noutro EM da UE beneficiar da norma de isenção prevista no artigo 22.º do EBF.”;
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Donde resultava a disparidade de tratamento de OIC nacionais e estrangeiros que os tribunais arbitrais e o TJUE tinham recusado ser conforme com “o artigo 63.º do TFUE. Em particular: [com a] restrição à liberdade de circulação de capitais”;
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Recorrendo de novo a uma transcrição do caso n.º C-545/19: “Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes”;
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Afastava de seguida, ainda com base na mesma decisão, que tal disparidade de tratamento pudesse ser reconduzida aos dois tipos de casos que a podiam admitir: não serem as situações em causa objetivamente comparáveis ou poderem justificar-se por qualquer razão imperiosa de interesse geral;
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A última linha argumentativa assentava na afirmação do princípio do primado do Direito da União sobre o Direito nacional;
Nas suas alegações a Requerente manteve a mesma linha argumentativa acrescentando críticas à argumentação da AT e invocando a “decisão uniformizadora da jurisprudência, proferida através do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de setembro de 2023, no âmbito do processo n.º 93/19.7BALSB.”
IV.3. Posição da Requerida
Em contrapartida a Requerida apresentou defesa por impugnação com as seguintes conclusões:
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AT encontra-se subordinada ao princípio da legalidade, pelo que não poderia aplicar de forma direta e automática as decisões do TJUE proferidas sobre casos concretos que não relevam do direito nacional, para mais não estando em causa situações materialmente idênticas, e em que a aplicação correta do direito comunitário não se revela tão evidente (Ato Claro) que não deixe margem para qualquer dúvida razoável quanto ao modo como deve ser resolvida a questão suscitada.
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O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
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Assim, não pode concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE.
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Por conseguinte, a retenção na fonte efetuada sobre os dividendos pagos à Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação, devendo ser mantida na ordem jurídica.
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Acrescentamos ainda que, admitindo-se a comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, entende-se, porém, seguindo a doutrina expendida no Acórdão proferido no proc. 1435/12 do STA de 9.07.2014, que o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida pelo n.º 1 do artigo 63.º do TFUE.
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Na verdade, seguindo-se o entendimento expresso no Acórdão do STA, proc.19/10.3BELRS, de 07-05, “Para que se pudesse concluir, in casu, no sentido do carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as entidades financeiras não residentes, a recorrida teria que demonstrar que suportara uma tributação mais elevada no seu conjunto, o que não se verificou. Neste sentido, vide o Acórdão Gerritse, de 12 de Junho de 2003 (Processo C- 234/01). É de sublinhar que estando perante matéria de direito, como entendido pela sentença proferida pelo Tribunal a quo, cabia à impugnante ter demonstrado a existência dos factos constitutivos dos direitos, prova a fazer por quem os invoca, tal como o que se encontra firmado no ordenamento fiscal português, no art.º 74.º da LGT e 342.º do Código Civil, subsidiariamente aplicável às relações jurídico-tributárias. Não o tendo feito, não é possível invocar de modo assertivo o carácter discriminatório da norma em discussão.”.
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No caso sub judice, em face da matéria de facto e dos documentos juntos aos autos entende-se que a Requerente não fez prova da discriminação proibida,
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Assim sendo, considerando-se que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo, o Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada.
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Recordando a este propósito os Acórdãos do STA proferidos nos processos n.º 1192/13, de 21.05.20215, n.º 1435/12, de 9.07.2014, n.º 884/17, de 12.09.2018, e o já citado proc. 19/10.3BELRS, de 7.05.
Nas suas alegações, como já referido, a AT limitou-se a remeter para a sua Resposta.
IV.4. Decidindo
Como já resultava da decisão do TJUE no caso n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), mas decorre agora das “Conclusões” do Acórdão do STA n.º 7/2024[4],
«1 — Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2 — O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3 — A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto -Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.».
Sendo esta a interpretação do Direito que foi estabelecida pela jurisdição da União e pela mais alta instância da jurisdição tributária nacional, cabe a este Tribunal Arbitral aplicá-la, desaplicando a norma invocada pela AT para estabelecer a tributação da Requerente por via de retenção na fonte – seja esta, pela negativa, a do artigo 22.º do EBF, sejam elas, pela positiva, as da alínea c) do n.º 1, da alínea b) do n.º 3 e do n.º 4 do artigo 94.º do Código do IRC.
Naturalmente, a conformação com tal entendimento prejudica a averiguação, que a AT preconizava[5], da efectiva desvantagem do regime de tributação dos OIC não nacionais em comparação com os nacionais e, por maioria de razão, da prova que, a seu ver, a Requerente alegadamente teria de fazer para poder beneficiar da não retenção de IRC.
IV.5. Juros indemnizatórios
A Requerente invoca o seu direito a juros indemnizatórios, fazendo-os derivar de uma desconformidade da legislação nacional com o Direito da União. Como parece claro, não é da responsabilidade da AT uma tal desconformidade, que está contemplada no n.º 1 do artigo 15.º do Regime Responsabilidade Extracontratual do Estado e das Demais Entidades Públicas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro), artigo que tem como epígrafe “Responsabilidade no exercício da função político-legislativa”:
“O Estado e as regiões autónomas são civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos por actos que, no exercício da função político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado.”
De resto, como fez para decidir sobre o mérito do caso, também aqui o Tribunal Arbitral não tem mais do que invocar o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 30 de Janeiro 2019, proferido no âmbito de recurso para Uniformização de Jurisprudência (Proc. 0564/18.2BALSB):
“Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP).”
É que, como resulta da distinção entre responsabilidade extracontratual do Estado por actos administrativos e por actos legislativos e decorre dessa decisão uniformizadora, não pode haver diferença no parâmetro invocado para justificar essas responsabilidades. Como se escreveu na decisão do processo n.º 629/2021-T, “julga o presente Tribunal que, para efeito de desaplicação de normas, não há diferença entre as que violem o Direito da União e as que violem a Constituição. Seria bizarro, aliás, que normas integradas no “bloco de legalidade” gozassem de maior protecção do que normas integradas no “bloco de constitucionalidade”.”.
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DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, anular os actos de liquidação de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas incidente sobre os dividendos recebidos da E..., S.A., relativos aos anos de 2021 e 2022, no montante de € 268.409,62 (duzentos e sessenta e oito mil, quatrocentos e nove euros e sessenta e dois cêntimos);
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Condenar a Requerida à restituição dessa quantia.
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Condenar a Requerida nas custas do processo, nos termos fixados infra.
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VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária), fixa-se o valor do processo em € 268.409,62 (duzentos e sessenta e oito mil, quatrocentos e nove euros e sessenta e dois cêntimos).
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CUSTAS
Custas a cargo da Requerida, no montante de €4.896,00 (quatro mil, oitocentos e noventa e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente procedente.
Lisboa, 13 de Agosto de 2024
O árbitro presidente e relator
Victor Calvete
A árbitro adjunta
Sofia Quental
A árbitro adjunta
Adelaide Moura
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o adoptem.
[1] Ainda que na sua Reclamação Graciosa a Requerente se tenha apresentado como uma entidade sem personalidade jurídica (“Por não se tratar de um OIC sob a forma societária (sociedade de investimento), mas antes meramente contratual (fundo de investimento), o Requerente não reveste juridicamente a forma de sociedade comercial, não estando, nos termos da legislação luxemburguesa aplicável, sujeito a qualquer obrigação de registo no Registo Comercial luxemburguês e, como tal, não pode ser titular de direitos ou obrigações.”), voltando a afirmar, no artigo 1.º do PPA, que é “uma entidade jurídica de direito luxemburguês, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal no Luxemburgo, constituída sob a forma contratual e não societária.” (repetindo essa caracterização no artigo 46.º do PPA e no §9. das suas alegações), o seu certificado de residência (junto como Doc. 1 com o PPA) atesta a sua natureza de SICAV (“Société d'Investissement à Capital Variable”), ou seja, de OIC sob a forma societária (cfr. artigo 3.º do Regime de Gestão de Activos (RGA) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28 de Abril), tendo sido essa mesma sociedade que emitiu a procuração junta aos autos (como “23-04-26 AWF - PT - Power of Attorney - Signed (1).pdf (Procuração)”).
[2] Conforme o n.º 3 (“Os organismos a que se refere o n.º 2 podem, por força da respectiva lei nacional, assumir a forma contratual (fundos comuns de investimento geridos por uma sociedade gestora) ou de trust (unit trust) ou a forma estatutária (sociedade de investimento).”) e respectiva alínea a) (“Para efeitos da presente directiva: a) A expressão «fundos comuns de investimento» abrange igualmente os unit trusts;”) do seu artigo 1.º. Tal como no RGA (artigo 3.º) a dicotomia é adoptada na legislação do Luxemburgo (vg, https://www.alfi.lu/en-gb/pages/setting-up-in-luxembourg/alternative-investment-funds-legal-vehicles/sif-(specialised-investment-funds):
“A fonds commun de placement (FCP), i.e. a common contractual fund. The FCP has no legal personality and must be managed by a Luxembourg management company;
A société d’investissement à capital variable (SICAV) or société d’investissement à capital fixe (SICAF), i.e. open- or closed-ended investment companies with variable capital and fixed capital respectively. The creation of such a corporate entity requires the drafting of instruments of incorporation.”).
[3] Como se referiu na Secção anterior, a AT (no Doc. 1 junto com a sua Resposta e na “Questão Prévia” desta) pareceu pôr em dúvida mais os valores constantes da declaração Modelo 30 do B... do que os que constavam dos documentos juntos aos autos pela Requerente.
[4] Publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 26 de Fevereiro de 2024 e proferido em 28 de Setembro de 2023 no Processo n.º 93/19.7BALSB, como invocado pela Requerente. A decisão fundamento era a que foi proferida no processo n.º 90/2019-T e a decisão recorrida a que tinha sido originalmente proferida no processo n.º 96/2019-T (e que foi reformulada na sequência da decisão do STA).
[5] E que, recorde-se, tinha sido sensatamente preconizada pela Advogada-Geral J. Kokott nas conclusões (ECLI:EU:C:2021:372) que apresentou ao TJUE no citado processo C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), destaques aditados:
“60. Por conseguinte, se se verificar que o imposto do selo trimestral, que incide não só sobre os dividendos não distribuídos mas também sobre o stock de capital, corresponde a uma carga fiscal comparável aos 15 % que oneram os dividendos pagos ao requerente, não há tratamento desfavorável e, portanto, nenhuma restrição existe à livre circulação de capitais. Uma vez que o legislador fiscal tem normalmente alguma margem de manobra na conformação de sistemas fiscais diferentes, deverá ser suficiente, para esse efeito, que o nível de tributação, mesmo não sendo exatamente o mesmo, seja apenas comparável.
61. Neste caso, o pedido do requerente assemelhar‑se‑ia mais a uma escolha seletiva, uma vez que pretende beneficiar da isenção do IRC, como um OIC residente, mas sem suportar o imposto do selo introduzido como contrapartida da isenção. Deste modo, exige, não um tratamento igual ao de um OIC estabelecido no território nacional mas um tratamento preferencial. Ora, as liberdades fundamentais não visam favorecer a situação transfronteiriça, mas «só» assegurar a igualdade de tratamento (*).”
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