Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 80/2024-T
Data da decisão: 2024-07-22  IVA  
Valor do pedido: € 2.121,11
Tema: IVA; Transferência e legalização de veículo de outro Estado-Membro para território nacional; Aquisição intracomunitária de bens.
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SUMÁRIO

 

I – A mera transferência de veículo automóvel para legalização em território nacional por contribuinte residente noutro Estado-Membro da União Europeia, que mude de residência para Portugal, pode ser objeto de isenção em IVA.

 

II – Na ausência de alteração de residência, a transferência de veículo automóvel originário de um Estado-Membro da União Europeia para o território nacional, em que será legalizado, consubstancia uma aquisição intracomunitária de bens, tributável em sede de IVA no país de registo do veículo, não beneficiando de isenção aquando da entrada definitiva em Portugal, independentemente da detenção pelo contribuinte de habitação para férias em território nacional.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A árbitra Adelaide Moura, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral singular, decide o seguinte:

 

  1. Relatório

 

A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., Rue ..., Luxemburgo, doravante denominado “Requerente”, no seguimento da liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2020/..., emitida em 28-08-2020, no valor de 2.121,11 EUR, e da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., submetido em 29-11-2023, veio, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra os atos tributários impugnados, peticionando a respetiva anulação e a restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida”, “Autoridade Tributária” ou “AT”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 22-01-2024 e notificado à AT em 26-01-2024.

 

O Requerente não procedeu expressamente à nomeação de árbitro.

 

Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 do RJAT foi designada a árbitra do presente Tribunal Arbitral singular, que comunicou ao Conselho Deontológico do CAAD a aceitação do encargo no prazo legalmente estipulado.

 

As partes foram notificadas da nomeação, não tendo qualquer delas manifestado vontade de a recusar, tendo o Tribunal sido constituído em 01-04-2024, por despacho do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em harmonia com as disposições contidas no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.

 

Notificada em 08-04-2024, a AT apresentou a sua resposta em 10-05-2024. Foi junto o respetivo processo administrativo.

 

Em 13-05-2024, ao abrigo dos princípios subjacentes ao processo arbitral, o Tribunal dispensou, por despacho, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações finais escritas.

 

  1. Posições das Partes

 

1.    Requerente

         

  1. O Requerente tem nacionalidade portuguesa, mas reside desde, pelo menos, 1996 no Luxemburgo, um Estado-Membro da União Europeia, onde exerce a sua atividade profissional.

 

  1. Apesar da residência no Luxemburgo, o Requerente mantém uma habitação em Portugal, onde se desloca regularmente em férias e por ocasião de eventos festivos.

 

  1. Em 01-03-2017, o Requerente adquiriu um veículo automóvel, em estado novo, marca HYUNDAI, com a matrícula luxemburguesa ... .

 

  1. Posteriormente, o Requerente, por se deslocar com maior regularidade a Portugal, transferiu este veículo automóvel para Portugal, conduzindo-o durante as suas estadias em território nacional.

 

  1. Em 25-08-2020, o Requerente declarou a introdução do veículo automóvel em Portugal e requereu a sua legalização e atribuição da respetiva matrícula.

 

  1. Os serviços alfandegários emitiram a competente Declaração Aduaneira de Veículo (“DAV”), tendo ao veículo automóvel sido atribuída a matrícula ... .

 

  1. Em 25-08-2020, o Requerente efetuou o pagamento de ISV, no valor de 252,57 EUR, e de IVA, no valor de 2.121,11 EUR, conforme DAV emitida.

 

  1. Com o pagamento dos impostos, o processo de legalização do veículo foi concluído, encontrando-se a propriedade do mesmo registada em nome do Requerente.

 

  1. Não obstante, o Requerente considera que o IVA liquidado não era devido, o que motivou a submissão de pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT.

 

  1. Atendendo ao disposto no artigo 6.º, n.º 2 do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (“RITI”) e, em especial, ao teor da Circular n.º 54/2005, da Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (“DGAIEC”), o Requerente entende que, em caso de mera transferência de veículo para território nacional, adquirido por particular com residência noutro Estado-Membro da UE, sem alteração da titularidade, não constitui uma operação tributável, independentemente de possuir residência em território nacional.

 

  1. O Requerente preenche todos os pressupostos e requisitos de não tributação do veículo em sede de IVA, pelo que não podia a AT ter liquidado este imposto, nomeadamente por força da Circular acima mencionada, que se afigura vinculativa para os respetivos serviços, conforme doutrina e jurisprudência constante.

 

  • Os atos impugnados padecem de manifesta ilegalidade, devendo o pedido do Requerente ser julgado procedente, anulando-os, com a restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios.

 

2.     Requerida

 

  1. Em 25-08-2020 foi apresentada na Alfândega de Leixões a respetiva DAV n.º 2020/..., no âmbito da introdução no consumo do veículo automóvel, tendo-lhe sido atribuída a matrícula nacional ... .

 

  1. O IVA respeita à introdução no consumo, por parte do Requerente, do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca HYUNDAI, com o quadro n.º ..., originário e com matrícula luxemburguesa... .

 

  1. A liquidação de IVA n.º 2020/..., de 28-08-2020, no montante de 2.121,11 EUR, no âmbito da DAV n.º 2020/..., de 25-08-2020, teve por fundamento o facto do veículo declarado ser considerado um veículo novo, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do RITI, e, como tal, sujeito a IVA, nos termos da alínea b) do artigo 1.º do mesmo regime jurídico-fiscal.

 

  1. O regime de tributação de IVA aplicável aos meios de transporte novos adquiridos num Estado-Membro da UE e expedidos ou transportados para outro Estado-Membro, previsto no RITI, tem uma base eurocomunitária.

 

  1. Este regime especial tem por objetivo evitar ou limitar desvios de procura e riscos de distorção de concorrência proporcionados por um défice de harmonização das taxas do IVA e pela existência de regimes não harmonizados de impostos sobre os veículos.

 

  1. Na sequência da transposição para a ordem interna das normas da Diretiva IVA, a alínea b) do artigo 1.º do RITI estatui que estão sujeitas a IVA “as aquisições intracomunitárias de meios de transporte novos efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo, ainda que se encontre abrangido pelo disposto no n.º 1 do artigo 5.º, ou por um particular”.

 

  1. Estando em causa um veículo novo, a entrada deste veículo, em território nacional, constitui per si um facto gerador de imposto em sede de ISV, bem como, para o que interessa ao caso sub judice, de IVA, a título de aquisição intracomunitária, nos termos do artigo 12.º, n.º 1 do RITI.

 

  1. Com efeito, a incidência objetiva do imposto encontra-se perfeitamente definida na lei, nomeadamente atendendo à alínea b) do artigo 1.º do RITI, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, ponto ii) da alínea b), n.º 2, ponto i) da alínea a) e n.º 2, ponto i) da alínea b) da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado.

 

  1. Sendo pacífico que se trata, para efeitos de IVA, de um meio de transporte novo, a questão controvertida reside na não sujeição a imposto, tendo em conta a sua transferência para território nacional.

 

  1. É certo que constavam na Circular n.º 54/2005, da DGAIEC, que revogou, entre outras, a Circular n.º 70/2001, instruções relativas ao regime do IVA aplicável às aquisições intracomunitárias e importações de veículos, nomeadamente a transferência de automóveis para território nacional sem alteração de titularidade.

 

  1. Porém, através da Circular n.º 41/2010, referente à divulgação do Manual do IVA – Vertente Aduaneira, da DGAIEC, a Circular n.º 54/2005, entre outras, foram dadas sem efeito, por estarem desatualizadas face à legislação vigente.

 

  • Com a republicação do Manual do IVA – Vertente Aduaneira, através da Circular n.º 36/2011, a doutrina administrativa foi atualizada, incluindo no âmbito da legalização de meios de transporte novos e transferência de veículos provenientes de outro Estado-Membro da UE.

 

  1. Acresce que o Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15-03-2011, diploma que estabelece medidas de aplicação da Diretiva IVA, faz depender, a entrada em Portugal de meios de transporte novos, adquiridos por particulares, que não constitua uma operação tributável em sede de IVA, da conditio sine qua non que o proprietário do veículo transfira a sua residência habitual para Portugal.

 

  • Constatamos que o Requerente, proprietário do veículo, não comprovou o estabelecimento de residência em território nacional, pelo que esse facto impede tout court a aplicação do referido Regulamento.

 

  • Sendo que o disposto no artigo 2.º do referido Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 prevalece sobre a legislação interna e quaisquer orientações administrativas.

 

  1. Acresce que, estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo efetuado a liquidação de IVA em estrita observância da legislação nacional e europeia em vigor à data dos factos, no caso em apreço não se verifica qualquer tipo de erro imputável aos serviços, pelo que nunca poderia o Requerente fazer valer-se do prazo de 4 (quatro) anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, segunda parte da LGT.

 

  1. Com efeito, o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente não cumpria com os pressupostos e requisitos do regime geral do procedimento de revisão de atos tributários previsto no artigo 78.º da LGT.

 

  1. É forçoso concluir que não existe erro imputável aos serviços, nem o ato de liquidação de IVA em crise, ou o ato de indeferimento que o manteve na ordem jurídica, padecem de qualquer ilegalidade.

 

  1. Entende a AT que o pedido de pronúncia arbitral carece de qualquer fundamento de facto ou de direito, devendo, consequentemente, ser declarado totalmente improcedente, por não fundado e não provado, mantendo-se os atos impugnados.

 

  1. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral é competente, encontra-se regularmente constituído e o pedido é tempestivo, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1 e 10.º do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

O processo não enferma de nulidades. Não há assim qualquer obstáculo à apreciação da causa. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

 

  1. Matéria de facto

 

(i)   Factos provados

 

  1. O Requerente é nacional português e residente no Luxemburgo desde 1996.

 

  1. O Requerente exerce a sua atividade profissional no Luxemburgo.

 

  1. O Requerente mantém uma habitação em Portugal e desloca-se ao território nacional em férias e por ocasião de eventos festivos.

 

  1. Em 01-03-2017, o Requerente adquiriu um veículo automóvel ligeiro de passageiros, em estado novo, marca HYUNDAI, modelo i10, com o quadro n.º ... e matrícula originária luxemburguesa ... .

 

  1. Em 01-03-2017, a sociedade luxemburguesa X… S.A. emitiu a fatura n.º 2030379, no valor de 8.969,66 EUR + IVA, que titula a aquisição do veículo.

 

  1. Em 01-08-2020, o veículo automóvel adquirido pelo Requerente entrou em território nacional.

 

  1. Em 25-08-2020, o Requerente declarou a introdução do veículo automóvel em Portugal e requereu a sua legalização e atribuição da respetiva matrícula portuguesa.

 

  1. À data, o veículo automóvel registava, no total, 3.895 quilómetros transitados.

 

  1. Em 25-08-2020, o Requerente apresentou a competente Declaração Aduaneira de Veículo (“DAV”) n.º 2020/..., tendo ao veículo automóvel sido atribuída a matrícula nacional ... .

 

  1. No âmbito da DAV, a AT emitiu as seguintes liquidações de ISV e IVA: (i) Liquidação de ISV n.º 2020/..., de 25-08-2020: 252,57 EUR; e, (ii) Liquidação de IVA n.º 2020/..., de 28-08-2020: 2.121,11 EUR.

 

  1. O Requerente efetuou o pagamento de ISV, no valor de 252,57 EUR, e de IVA, no valor de 2.121,11 EUR, conforme DAV emitida.

 

  • Em 28-08-2020, o declarante aduaneiro comunicou à AT que “A... (…) não cancelou a sua residência no Luxemburgo e não fixou a sua residência em Portugal, mantendo ambas com o mesmo estatuto: Luxemburgo - residência efectiva; Portugal - residência secundária”.

 

  1. Apesar do pagamento dos impostos, e discordando da liquidação de IVA, o Requerente submeteu pedido de revisão oficiosa, em 29-11-2023.

 

  • O procedimento de revisão oficiosa correu termos sob o n.º ...2023... .

 

  • Em 14-12-2023, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa.

 

  1. Da decisão de indeferimento emitida pela AT consta que “a liquidação de IVA (…) teve por fundamento o facto do veículo declarado ser considerado um veículo novo”, “não tendo sido provado o estabelecimento de residência em território nacional” por parte do Requerente, pelo que não se dispensa a “sujeição a IVA”.

 

  1. Da decisão de indeferimento também consta que o pedido de revisão oficiosa deve ser “rejeitado por intempestividade”, não existindo “erro imputável aos serviços”.

 

  1. Inconformado com a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, o Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral no CAAD em 18-01-2024.

 

(ii)  Factos não provados

 

Não se verificaram outros factos com relevância para a decisão da causa que não tenham sido considerados provados.

 

(iii) Motivação da matéria de facto

 

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada, nos termos do artigo 123.º, n.º 2 do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão em relação às provas produzidas na sua convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência e conhecimento, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC e regras gerais do CC.

 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra estabelecida na lei é que o princípio da livre apreciação não domina na apreciação das provas produzidas. 

 

Em concreto, a convicção do Tribunal fundou-se na prova produzida nos autos, incluindo os documentos e processo administrativo juntos pelas partes.

 

 

  1. Matéria de Direito

 

(i)   Objeto e âmbito do processo

 

Face às posições assumidas pelas partes, vertidas nos respetivos articulados, cabe ao Tribunal Arbitral apreciar e decidir sobre a ilegalidade (e anulação) dos atos tributários impugnados, atendendo ao regime de tributação aplicável em sede de IVA.

 

(ii) Apreciação

 

Considerando a matéria controvertida nos presentes autos, e para efeitos de enquadramento jurídico e fiscal, interessa começar por evidenciar as disposições legais e administrativas mais relevantes para a boa decisão da causa.

 

O artigo 1.º, n.º 1, alínea c) do CIVA dispõe que “estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: (…) as operações intracomunitárias efectuadas no território nacional, tal como são definidas e reguladas no Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias”.

 

Ora, o artigo 1.º, alínea b) do RITI dispõe que “estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: (…) as aquisições intracomunitárias de meios de transporte novos efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo, ainda que se encontre abrangido pelo disposto no n.º 1 do artigo 5.º, ou por um particular”.

 

Por força do artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do RITI, são “considerados sujeitos passivos do imposto: (…) os particulares que efetuem aquisições intracomunitárias de meios de transporte novos”.

 

Nos termos do artigo 3.º do RITI, “considera-se, em geral, aquisição intracomunitária a obtenção do poder de dispor, por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, de um bem móvel corpóreo cuja expedição ou transporte para território nacional, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, com destino ao adquirente, tenha tido início noutro Estado-Membro.”

 

Em conformidade com o disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea b) do RITI, “meios de transporte” incluem “os veículos terrestres a motor com cilindrada superior a 48 cc ou potência superior a 7,2 kW, destinados ao transporte de pessoas ou de mercadorias, que sejam sujeitos a registo, licença ou matrícula no território nacional”.

 

O artigo 6.º, n.º 2 do RITI determina ainda que “não são considerados novos os meios de transporte (…) desde que se verifiquem simultaneamente as seguintes condições: a) a transmissão seja efetuada mais de três ou seis meses após a data da primeira utilização, tratando-se, respetivamente, de embarcações e aeronaves ou de veículos terrestres; b) o meio de transporte tenha percorrido mais de 6000 km, tratando-se de um veículo terrestre”.

 

Nos termos do artigo 8.º, n.º 4 do RITI, “são tributáveis as aquisições intracomunitárias de meios de transporte novos sujeitos a registo, licença ou matrícula no território nacional”.

 

Conforme artigo 22.º, n.º 3 do RITI, “Os particulares e os sujeitos passivos referidos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 2.º que não possuam o estatuto de operador registado ou de operador reconhecido, de acordo com o Código do Imposto sobre Veículos, devem pagar o imposto devido pelas aquisições intracomunitárias de meios de transporte novos sujeitos a imposto sobre os veículos junto das entidades competentes para a cobrança deste imposto.”

 

Paralelamente, o artigo 2.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, também dispõe que “estão sujeitas ao IVA as seguintes operações: (…) as aquisições intracomunitárias de bens efectuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro: (…) quando se trate de meios de transporte novos, por um sujeito passivo ou por uma pessoa colectiva que não seja sujeito passivo, cujas outras aquisições não estejam sujeitas ao IVA (…), ou por qualquer outra pessoa que não seja sujeito passivo”, sendo que “entende-se por «meios de transporte» os meios de transporte a seguir enumerados, destinados ao transporte de pessoas ou de mercadorias: (…) os veículos terrestres a motor com cilindrada superior a 48 centímetros cúbicos ou potência superior a 7,2 quilowatts”, que “são considerados «novos» nos seguintes casos: (…) relativamente aos veículos terrestres a motor, quando a entrega for efectuada no prazo de seis meses após a primeira entrada em serviço ou o veículo tiver percorrido um máximo de 6 000 quilómetros”.

 

O artigo 138.º, n.º 2, alínea a) da Diretiva 2006/112/CE prevê que “os Estados-Membros isentam as seguintes operações: (…) as entregas de meios de transporte novos expedidos ou transportados para fora do respectivo território, mas na Comunidade, com destino ao adquirente, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, efectuadas a sujeitos passivos ou a pessoas colectivas que não sejam sujeitos passivos, cujas aquisições intracomunitárias não estejam sujeitas ao IVA por força do disposto no n.º 1 do artigo 3.º, ou a qualquer outra pessoa que não seja sujeito passivo”.

 

Por força do artigo 2.º, alínea a) do Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15-03-2011, que estabelece medidas de aplicação da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, “não se consideram aquisições intracomunitárias na acepção da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º da Directiva 2006/112/CE: (…) a transferência de um meio de transporte novo efectuada por uma pessoa que não seja sujeito passivo por ocasião da mudança de residência, desde que a isenção prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 138.º da Directiva 2006/112/CE não tenha podido ser aplicada no momento da entrega”.

 

Nesse sentido, e de acordo com o considerando (6) do referido Regulamento de Execução, “Quando uma pessoa que não seja um sujeito passivo muda de residência e transfere um meio de transporte novo (…), importa esclarecer que essas operações não constituem uma aquisição intracomunitária de um meio de transporte novo.” Esta medida visa “um tratamento uniforme apenas para esses casos específicos. Por esse motivo, não são transponíveis para outros casos e, atendendo à sua formulação, devem ser aplicadas de forma restritiva”, conforme considerando (5) do mesmo Regulamento.

 

Nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.

 

Em sede administrativa, a AT foi emitindo algumas instruções sobre a temática da transferência de veículos entre Estados-Membros da União Europeia.

 

A Circular n.º 54/2005 da DGAIEC, de 22-07-2005, dispunha que “a transferência de veículos automóveis para território nacional, adquiridos por particulares com residência noutro Estado-Membro, sem alteração da titularidade, não constitui uma operação tributável”, abrangendo “veículos que são legalizados em território nacional em nome do seu titular”.

 

Conforme exposto na referida Circular n.º 54/2005, “consideram-se operações de mera transferência de veículos”, nomeadamente “por ocasião do estabelecimento da residência em território nacional, com ou sem cancelamento da residência no Estado-Membro de procedência” e “quando um particular com residência noutro Estado-Membro pretenda legalizar o veículo em Portugal, em seu próprio nome, independentemente de possuir residência em território nacional”. Sendo que, “caso não se verifiquem, no momento da legalização do veículo automóvel, as condições enunciadas (…), a operação classifica-se como uma aquisição intracomunitária tributável em território nacional”, sujeitando-se a “liquidação e pagamento do IVA”.

 

Atualmente, na vertente aduaneira do atual Manual de IVA emitido pela AT, conforme Circular n.º 36/2011, refere-se que “Beneficiam de isenção do IVA as importações e aquisições intracomunitárias de meios de transporte efectuadas: (…) Por particulares que transferem a sua residência habitual de um país terceiro para o território nacional.”

 

Em concreto, “A entrada em Portugal de meios de transporte novos, em sede do IVA, adquiridos por particulares com residência noutro EM, pode não constituir uma operação tributável, considerando-se, nesse caso, operações de mera transferência de veículos. Dada a dificuldade em tipificar todas essas operações, são referenciadas apenas duas, por serem as mais frequentes, devendo as demais ser apreciadas de forma casuística. Assim: Transferência de veículo: (…) Por estabelecimento de uma residência, em território nacional, do proprietário do veículo (transferência da residência habitual de outro EM para Portugal); (…) deve verificar-se, simultaneamente, as seguintes condições: i) os meios de transporte tenham sido adquiridos nas condições gerais de tributação do respectivo mercado e sejam portadores de matrícula de série normal e/ou registo; ii) o particular faça prova de residência no EM de matrícula do veículo, no momento da respectiva aquisição, através de documento emitido pela competente autoridade administrativa; iii) o número de veículos não traduza qualquer preocupação de ordem comercial. (…) Caso não se verifiquem, no momento da legalização do veículo automóvel, as condições supra enunciadas, a operação considera-se uma aquisição intracomunitária sujeita a imposto em território nacional e não uma mera transferência de veículo”.

 

Nos termos do artigo 68.º-A, n.º 1 da LGT, a “administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias”.

 

Sem prejuízo, nos termos do artigo 33.º do RITI e do artigo 97.º, n.º 1 do CIVA, os sujeitos passivos e as pessoas responsáveis pelo pagamento do imposto podem recorrer hierarquicamente, reclamar contra a respetiva liquidação ou impugná-la, com os fundamentos e nos termos estabelecidos no CPPT.

 

E, em conformidade com o disposto no artigo 98.º do CIVA, quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da LGT.

 

Ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, a “revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.

 

Por força do artigo 99.º do CIVA, anulada a liquidação, restitui-se a respetiva importância e, no caso de pagamento do imposto em montante superior ao legalmente devido resultante de erro imputável aos serviços, são devidos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, a liquidar e pagar nos termos do CPPT.

 

Ora, a Requerida não o invoca expressamente na respetiva resposta em sede do presente processo arbitral, mas coloca em causa a admissibilidade e tempestividade do pedido de revisão oficiosa submetido pelo Requerente quanto à liquidação de IVA.

 

A revisão oficiosa será admissível, no prazo de 4 (quatro) anos após a liquidação, por iniciativa da administração tributária, desde que com fundamento em erro imputável aos serviços. E, não obstante a “iniciativa” ser da administração tributária, nada impede, em conformidade com jurisprudência constante, que a mesma decorra de pedido do próprio contribuinte (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14-03-2012, proferido no processo n.º 01007/11 e acessível em www.dgsi.pt).

 

Acresce que o “erro imputável aos serviços” constante no artigo 78.º, n.º 1 da LGT não compreende apenas o lapso, erro material ou erro de facto imputável aos serviços da administração tributária, mas também o erro de direito ou qualquer ilegalidade, e a imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08-03-2017, proferido no processo n.º 01019/14 e acessível em www.dgsi.pt).

 

Sem prejuízo, materialmente, o Requerente alega que adquiriu um veículo automóvel novo no Luxemburgo, país onde reside e trabalha, tendo-o transferido para território nacional para aqui legalizá-lo e usar em períodos de férias e outros eventos festivos.

 

De acordo com a legislação nacional e eurocomunitária, cujo enquadramento acima se explanou, a transferência de veículos entre um Estado-Membro da UE e Portugal pode configurar-se como uma operação abrangida pelo RITI, sendo que a sujeição a IVA opera no país de registo e utilização do veículo, salvo eventual isenção aplicável.

 

Tendo o veículo novo sido adquirido no Luxemburgo e transferido para território nacional, na ausência de prova que demonstre a mudança ou estabelecimento de residência em território nacional, afigura-se infundada a requerida isenção de IVA.

 

Independentemente da morada cadastrada como domicílio fiscal, o Requerente alega e comprova no presente processo arbitral que reside no Luxemburgo desde, pelo menos, 1996, ali exercendo a sua atividade profissional, e que se desloca ao território nacional, onde dispõe de habitação, para férias e outras ocasiões festivas.

 

Desde já se refira que o facto de o Requerente dispor de habitação em território nacional não significa que aqui resida, nem habitual, nem parcialmente, para efeitos fiscais. Na verdade, dos factos alegados pelo Requerente e da prova produzida apenas resulta que o Requerente reside no Luxemburgo, deslocando-se a Portugal para lazer.

 

Ora, daqui não resulta o estabelecimento de residência habitual em Portugal, nem a perspetiva de aqui se deslocar ”com mais regularidade” configura ou faz supor uma mudança da respetiva residência para território nacional – afigura-se que esta deve reportar-se à residência real e efetiva do interessado, como o local onde a pessoa tem a sua existência organizada e que lhe serve de base de vida, em razão de vínculos pessoais e/ou profissionais, sem prejuízo de daí se poder ausentar ocasionalmente por períodos mais ou menos curtos.

 

Considerando a legislação nacional e eurocomunitária aplicável em sede de IVA, no âmbito da transferência e legalização de veículo automóvel novo noutro Estado-Membro da União Europeia, bem como as mais recentes instruções administrativas quanto a esta temática, afigura-se que o Requerente, nos termos do artigo 74.º da LGT, deveria ter alegado e comprovado a necessária “mudança de residência” para efeitos de isenção de IVA, o que probatoriamente não logrou fazer.

 

É assim forçoso concluir pela sujeição a IVA, sem isenção, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea c) do CIVA, dos artigos 1.º, alínea b), 2.º, n.º 2, alínea a), 3.º, 6.º, n.ºs 1, alínea b), 2 e 3, 8.º, n.º 4 e 22.º, n.º 3 do RITI, em conjugação com o artigo 2.º, alínea a) do Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15-03-2011 e o artigo 2.º, n.º 1, alínea b), ii) da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006.

 

Improcedendo o pedido de pronúncia arbitral, os atos impugnados na ordem jurídica mantêm-se inalterados, não havendo lugar à restituição do imposto pago, nem pagamento de juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

  1. Decisão

 

Face ao exposto, decide este Tribunal Arbitral:

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Condenar o Requerente nas custas do processo.

 

  1. Valor

 

Fixa-se o valor do processo em 2.121,11 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII.   Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelo Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5 do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 22 de julho de 2024

 

 

A Árbitra Singular

 

 

 

Adelaide Moura