SUMÁRIO:
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O decurso de procedimento inspetivo externo por período superior ao previsto no n.º 2 do artigo 36º do RCPITA, sem a necessária notificação prorrogação, tem como consequência a cessação do efeito suspensivo da contagem do prazo de caducidade, previsto no n.º 1 do artigo 46º da LGT, não conferindo qualquer efeito invalidante sobre o procedimento, respetivo relatório e subsequente ato tributário que neste se funde.
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A omissão de notificação prévia prevista no art.º 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento, do seu objeto, a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de nele intervir, designadamente, para efeitos de audição prévia.
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Integram o conceito de «despesas não documentadas», para efeitos do n.º 1 do artigo 88º do CIRC, as saídas de dinheiro, quando apenas contabilisticamente tituladas por extratos bancários do sujeito passivo e do respetivo destinatário, por força da inexistência de qualquer documentação que justifique a causa/origem, finalidade e natureza das operações financeiras em causa.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros José Poças Falcão (árbitro presidente), Luísa Anacoreta e Luís Sequeira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 2 de janeiro de 2024, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
A... LDA., doravante designada “Requerente”, NIPC, ..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Queluz, veio, no dia 18 de outubro de 2023, ao abrigo do disposto no artigo 10º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n. 10/2011 de 20 janeiro (doravante designado RJAT), e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a Constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), visando a declaração de ilegalidade e consequente impugnação arbitral da Nota de Liquidação com o n.º 2023..., referente ao Imposto sobre o Rendimento de Pessoa Singular da Requerente, do exercício de 2019/01/01 a 2019/12/31.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 20 de outubro de 2023, sendo de imediato notificada a AT.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.°1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo o Juiz José Poças Falcão, como árbitro presidente, e a Prof.ª Doutora Luísa Anacoreta e o Dr. Luís Ricardo Farinha Sequeira, como árbitros vogais, tendo todos comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 11 de dezembro de 2023 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação em vigor, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 2 de janeiro de 2024.
Submeteu a Requerente à apreciação deste Tribunal Arbitral a liquidação oficiosa de IRC, com o n.º 2023..., referente no período de tributação de 2019, que ascende ao montante de € 477.510,09.
A liquidação de IRC, do qual faz parte integrante a Demonstração de Acerto de Contas e respetiva Nota de Cobrança com o n.º 2023..., de 16 de junho de 2023, foi definitivamente confirmada por despacho da Senhora Diretora Geral da AT, tendo a Requerente sido notificada da respetiva data limite de pagamento, 31 de agosto de 2023.
Em suporte das suas pretensões alega a Requerente, por um lado, a existência de irregularidades no procedimento inspetivo suscetíveis de anular o ato tributário e, por outro, a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC por inexistência de fundamentos passíveis para corrigir a matéria tributável e imposto considerado em falta relativamente ao IRC do exercício de 2019.
No que se refere a irregularidades no procedimento inspetivo, alega a Requente, em síntese:
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Inexistência de notificação prévia pela AT, violando-se o disposto no artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA);
Considera a Requerente que apenas foi informada da existência de procedimento inspetivo em 5 de maio de 2022, data em que o Sócio-Gerente da Sociedade assinou a Ordem de Serviço n.º OI2022... . Relativamente a este ponto, explicou a AT que o foram seguidos procedimentos ao abrigo de duas ordens de serviços distintas, uma de natureza interna, outra de natureza externa. Primeiramente procedeu-se ao procedimento inspetivo correspondente à ordem de serviço interna (OI2021...), da qual a Requerente foi oportunamente notificada, em 14 de setembro e 26 de outubro de 2021. Por ter sido considerado pela AT que a empresa não tinha facultado todos os esclarecimentos e documentos solicitados, não tendo sido possível aferir a validado do declarado, decidiu esta dar por encerrada aquela ordem de serviço, tendo sido notificado o mandatário da sociedade deste ato de encerramento. A impossibilidade de aferição da validade do declarado originou a necessidade de abertura de nova ordem de serviço, desta vez externa, da qual a empresa foi atempadamente notificada pela correspondente carta aviso datada de 6 de abril de 2022.
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Impossibilidade de validação no âmbito da ação inspetiva, violando-se o disposto no artigo 14º do RCPITA;
Alega ainda a Requerente que se viu na impossibilidade de validar o âmbito da ação inspetiva dado a AT, nos Relatórios de Inspeção, aludir a existência de incongruências, mas não as explicitar. Assim, considera a Requerente vício da AT ao referir, expressamente “(…) ter-se constatado, valores de fornecimentos e serviços externos elevados, pelo que, para validar os mesmos, bem como outras incongruências existentes (…)”, omitindo-se, posteriormente, a que se referem tais incongruências.
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Incumprimento, por excesso, do prazo de seis meses previsto no n.º 2 do artigo 36º do RCPITA, sem prorrogação.
Alega ainda a Requerente, no que se refere a irregularidades no procedimento inspetivo, que foi ultrapassado o prazo legalmente previsto para conclusão do procedimento inspetivo (que decorreu entre 5 de maio de 2022, data da notificação à Requerente e 20 de março de 2023, data constante da assinatura digital do Relatório de Inspeção), sem que a Requerente tenha sido previamente notificada.
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Ausência de audiência prévia.
Por fim, termina a Requerente as suas alegações no que respeita a vícios no procedimento inspetivo argumentando não lhe ter sido assistido o direito a audiência antes de finalizado o Relatório de Inspeção Tributária.
Contrapõe a AT mencionando que “(…) foi elaborado o projeto de relatório de inspeção e notificada a Requerente, através do seu mandatário Dr. B..., via ofício nº ... de 30/01/2023, por carta registada (RH ... PT), enviado para o seu domicílio profissional, para exercer, se quisesse, o seu direito de participação, no prazo de 15 dias (…)” e que “o direito de audição foi exercido no prazo concedido para o efeito, conforme documento que constitui o anexo 13 do RIT, tendo dado entrada na Direção de Finanças de Lisboa em 2023.02.16 (2023...) e que foi subscrito pelo mandatário do sujeito passivo”. Explica seguidamente a AT que os Serviços de Inspeção Tributária entenderam “(…) ser de manter as correções projetadas porquanto a argumentação apresentada pelo sujeito passivo no exercício do seu Direito de Audição prévia não foi suscetível de alterar os factos e os fundamentos apresentados no projeto de relatório de inspeção”.
No que se refere à ilegalidade das correções apuradas no relatório de inspeção e transpostas para a liquidação de IRC e juros relativos ao período de tributação de 2019, vem a Requerente alegar o seguinte:
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Erro no apuramento de mais e menos valias contabilísticas.
Alega a Requerente a inexistência de erro no apuramento e consequente registo no Quadro 7 da Modelo 22 de IRC de 2019 no que se refere a mais e menos valias fiscais pelo facto de ser do ser intuito a intenção de proceder ao reinvestimento “das referidas mais valias“ na sua atividade com vista ao melhoramento de instalações e que tal reinvestimento não havia sido efetuado naquele ano pois aguardavam-se as devidas autorizações da Segurança Social e Câmara Municipal. Invoca a Requerente a ausência de menção na declaração anual da intenção de reinvestimento “(…) não é essencial à verificação material do reinvestimento subsequente (…)” e que a “(…) preterição da obrigação formal de comunicação não põe em causa a verificação material dos pressupostos que permitem o reinvestimento dos valores apurados no capítulo mais e menos valias fiscais contabilistas (…)”.
Contrapõe a AT afirmando que a Requerente “menciona que em 2019 já havia uma clara intenção de reinvestimento (cfr. articulado apresentado em sede do exercício do direito de audição, em anexo 13 do RIT), relacionando esse reinvestimento com os gastos reconhecidos em resultados e que foram também objeto de correção”.
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Erro no apuramento dos valores de tributações autónomas
Relativamente a valores qualificados pela AT como despesas não documentadas, sujeitando-os, consequentemente, a tributação autónoma à taxa de 50%, contrapõe a Requerente afirmando tais valores correspondem a pagamentos de empréstimos de sócios, factos observáveis pelos registos da contabilidade.
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Dedução fiscal de perdas e gastos
Por fim, procedeu a AT a uma correção à matéria coletável corresponde à não aceitação como gasto fiscal de um valor inscrito na demonstração de resultados apresentando a seguinte argumentação:
“86º - Com efeito, conforme se já explicitou, a Requerente no ano de 2019 decidiu reinvestir as mais valias contabilistas realizadas na sua atividade, em particular no melhoramento das suas instalações.
87º - Nesse contexto apresentou um plano plurianual de investimentos, tendo fixado como valor imputado ao exercício de 2019 exatamente naquele montante de € 590.000,00
88º - Teve até oportunidade de explicar aos Senhores inspetores que o fazia daquela forma em obediência ao princípio da especialização dos exercícios fiscais tal quando determinam as normas de SNC.”
A Requerida apresentou Resposta nos termos do artigo 17º do RJAT, onde pugnou pela improcedência total da pretensão anulatória aduzida pela Requerente.
Em 01.04.2023, foi junto aos autos foi junto o respetivo processo administrativo instrutor.
Em 10.04.2023 realizou-se a reunião que se encontra prevista no artigo 18º do RJAT e procedeu-se, do mesmo passo, à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes e à prestação de declarações pelo legal representante da Requerente.
Ambas as partes apresentaram alegações, concluindo e reiterando, no essencial, as posições já veiculadas nos respetivos articulados.
Suscitando-se questão relativa à duração do procedimento inspetivo, foi proferido despacho arbitral, em 26.06.2024, no qual se determinou a notificação da Requerida para, em 10 dias, esclarecer/documentar eventual notificação de prorrogação do respetivo procedimento, nos termos do artigo 36º do RCPITA.
Face a tal prazo concedido, proferiu na supra referida data, este tribunal arbitral coletivo despacho no qual se prorrogou por 2 meses o prazo para a prolação da decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 21º do RJAT.
A Requerida veio a apresentar requerimento a 12.07.2024: “verifica-se que não foi efetuado pedido de prorrogação do prazo do procedimento inspetivo realizado ao abrigo da OI2022..., dado que no decorrer do prazo dos 6 meses, foram recolhidos os documentos/elementos tidos como necessários para a elaboração do respetivo projeto / relatório final de inspeção, não se tendo realizado diligências externas nas instalações do sujeito passivo, posteriormente a esse prazo.”, informando manter-se, quanto ao mais, o posicionamento já vertido na Resposta oferecida.
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SANEAMENTO
O tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
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DOS FACTOS:
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Factos Provados:
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade comercial com sede em Portugal, que desenvolve a atividade de apoio social a pessoas idosas e atividades similares.
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A Requerente foi notificada do procedimento de inspeção externo, de âmbito parcial, relativo a IVA e IRC de 2019, tendo assinado a Ordem de Serviço n.º OI2022..., em 05 de Maio de 2022 – vide RIT 4 do PA - o qual teve origem na deteção no âmbito de procedimento de inspeção interna com a OI2021..., de fornecimentos e serviços de externos de valor considerados pela AT como «elevados» e bem assim outras incongruências, circunstâncias essas que desencadearam a proposta para abertura daquele procedimento externo,
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Previamente, a Requerente e o seu mandatário haviam sido notificados – nos termos do artigo 62º do RCPITA - da decisão de encerramento do procedimento interno, dando-se nota da proposta para abertura de procedimento externo -cfr. Processo Administrativo – OI 722.
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A Requerente foi notificada do projeto de relatório inspetivo, datado de 27.01.2023 – vide RIT 13 - e exerceu o respetivo direito de audição (RIT 15).
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A AT procedeu à análise de tal exercício do contraditório – vide capítulo X do relatório de inspeção (RIT) - tendo concluído pela manutenção das correções constantes do projeto de relatório inspetivo.
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No âmbito do procedimento inspetivo externo acima identificado, em sede de IRC de 2019, procederam os serviços inspetivos da AT, no que releva para estes autos, através do RIT assinado e comunicado à Requerente através de ofício, ambos datados de 20.03.2023, às seguintes correções:
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à matéria tributável:
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mais-valia fiscal: € 48.098,22;
Correção fiscal – sem reinvestimento
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2019
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Mais-valia contabilística a deduzir ao resultado
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- € 744 529,30
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Mais-valia fiscal a acrescer ao resultado
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€ 792 627,52
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Impacto da correção no Quadro 07 da Mod 22
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+ € 48 098,22
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ii) Gastos não aceites fiscalmente: € 590.000,00
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a título de imposto em falta:
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Tributação autónoma – despesas não documentadas: € 282.500,00
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A Requerente procedeu à alienação em 01.02.2019 de prédio urbano pelo valor de € 1.150.000, o qual tinha um valor patrimonial tributário de € 540.139,20.
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A Requerente não registou qualquer valor a título de mais ou menos valia no quadro 07 da Modelo 22 referente ao exercício de 2019, resultante da alienação de tal imóvel.
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O imóvel alienado e vindo de referir foi adquirido em 2013 por um valor de € 879.300,00.
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A Requerente não procedeu, em sede de Modelo 31, aos cálculos das mais e menos valias fiscais.
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Tal cálculo veio a ser efetuado no âmbito do procedimento inspetivo já supra identificado, com base na mais-valia contabilística relevada pela conta 78, no montante de € 744.529,30, tendo resultado, com base nos dados da modelo 31, uma mais-valia fiscal de € 792.627,52.
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A AT procedeu, em sede inspetiva, à correção nos termos do ponto 6. A), i) que antecede, procedendo ao acréscimo ao lucro tributável, no quadro 07 da Modelo 22 de 2019, do montante de € 48.098,22 – diferencial entre a mais-valia contabilística e a mais-valia fiscal.
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Em matéria de despesas não documentadas, verificou a AT, no versado procedimento inspetivo, por confronto entre a IES, o balancete analítico e o extrato bancário da conta ... do banco H... titulada pela Requerente, os seguintes montantes:
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Solicitados que foram esclarecimentos – anexo 6 ao RIT – que aqui se dá por reproduzido - entre outra informação, sobre os diferentes quantitativos advenientes de cada uma das três fontes de informação, veio a Requerente a remeter extrato de conta 25821 relativo ao sócio E..., no qual se evidenciava que o sócio iniciou o ano com um crédito sobre a empresa no valor de 194 103,88 euros, crédito esse que terá sido pago pela Requerente em 28 de fevereiro, fazendo com que no final de 2019 não se identificasse qualquer verba em dívida de/para com o referido sócio, tudo conforme se releva da tabela infra:
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No âmbito do pedido de esclarecimentos que antecede, foi a Requerente instada a justificar através de nota explicativa, a origem, destino e detalhe dos mesmos, juntando os documentos que titulassem os seguintes movimentos bancários:
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Quanto aos movimentos de saída de dinheiro, veio a Requerente a apresentar extratos de conta de movimentos bancários dos destinatários das seguintes operações, tal como se colhe dos documentos anexos ao direito de audição – identificados pela Requerente como alíneas a), b), c), d), e) e f), respetivamente e cujo teor se dá aqui por reproduzido:
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Pese embora, do quadro supra conste em aberto o destinatário da transferência de 08.10.2019, no valor de € 250.000,00, foram juntos extratos de movimentos bancários da Requerente e do destinatário da transferência, no caso, transferência efetuada à sociedade C... LDA, conforme resulta dos extratos bancários referidos no ponto antecedente.
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A AT procedeu, em sede inspetiva, à correção nos termos do ponto 6. b), i) que antecede, procedendo ao cálculo da tributação autónoma de 50% sobre o valor das transferências constantes do quadro identificado no ponto 16.
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Quanto à correção relativa a gastos não aceites fiscalmente, verificou a AT que a Requerente havia contabilizado na conta 62213 um gasto (num único lançamento), no montante de € 590.000,00.
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Notificada que foi a Requerente para justificar tal lançamento contabilístico, veio esta a juntar o documento constante de Anexo 12 ao RIT, o qual respeita a orçamento emitido pela sociedade D... LDA, com o seguinte descritivo: “Construção chave na mão do empreendimento projeto da C..., Lda, no montante de 1.180.0000,00”.
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Conforme consta do balancete – conta 2788 – Devedores e Credores Diversos – o valor de € 590.000,00 encontra-se por saldar, isto é, figura na contabilidade como não tendo sido objeto de pagamento pela Requerente.
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A AT procedeu, em sede inspetiva, à correção nos termos do ponto 6. a), ii) que antecede, não aceitando assim o gasto fiscal.
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A Requerida não procedeu à notificação da Requerente quanto a eventual prorrogação do prazo do procedimento de inspeção externo.
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Após ter tomado conhecimento do teor do RIT, veio a Requerente a ser notificada da demonstração de liquidação de IRC do ano de 2019, com o n.º 2023... , no valor total de € 477.510,00, respeitando € 283.318,46 a título de tributações autónomas e € 44.264,80 a título de juros compensatórios e .
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Inconformada, veio a Requerente a apresentar, em 18.10.2023, pedido de constituição e de pronúncia arbitral, tendo por objeto a liquidação de IRC de 2019 vinda de identificar no ponto precedente.
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A Requerente procedeu ao pagamento da taxa arbitral inicial e subsequente.
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Factos Não Provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
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Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, e na prova testemunhal.
Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
Nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam.
Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
Cumpre apreciar e decidir.
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DO DIREITO
Encontrando-se fixada a matéria de facto dada como provada, importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, em concreto aferir se:
- ocorreram irregularidades no procedimento inspetivo suscetíveis de anular a liquidação arbitralmente impugnada;
- as correções efetuadas que originaram a liquidação sub judicio de imposto estão em conformidade com as regras contabilístico-fiscais pelas quais se rege o IRC;
I. Das alegadas preterições de formalidades ocorridas no âmbito do procedimento inspetivo:
a) Da falta de notificação prévia – artigo 49º, n.º 1 do RCPITA:
Invoca a Requerente a existência de preterição de formalidade essencial por falta de notificação prévia, nos termos do artigo 49º do RCPITA, do qual conclui estar a liquidação de IRC, emitida na sequência das correções apuradas em sede de procedimento inspetivo externo, inquinada, pelo que não pode deixar de ser anulada.
Antes de mais, atentemos no normativo invocado pela Requerente, no âmbito da suposta omissão que lhe serve de causa de pedir:
Artigo 49.º
Notificação prévia para procedimento de inspecção
1 - O procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início.
2 - A notificação prevista no número anterior efetua-se por carta-aviso elaborada de acordo com o modelo aprovado pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, contendo os seguintes elementos: a) Identificação do sujeito passivo ou obrigado tributário objecto da inspecção; b) Âmbito e extensão da inspecção a realizar.
3 - A carta-aviso conterá um anexo contendo os direitos, deveres e garantias dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários no procedimento de inspecção.
4 - A notificação prevista no n.º 1 fixa a competência territorial determinada nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º
5 - À notificação prevista nos números anteriores é aplicável o n.º 10 do artigo 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Como decorre do normativo supra, a instauração de um procedimento de inspeção externa gera diversos direitos e também deveres de colaboração e sujeição para o contribuinte, como, por exemplo, o dever de fornecer os elementos mencionados nas alíneas c) e d), e o de permitir a inspeção em suas instalações conforme descrito nas alíneas a) e b), todas do n.º 2 do artigo 28.º do RCPITA.
Acresce que, um procedimento de inspeção externa é apto a suspender o decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação.
Portanto, conforme mencionado, a normatização que regula o procedimento de inspeção tributária visa, em primeiro lugar, disciplinar os termos em que é legítimo para a Autoridade Tributária impor ao contribuinte os deveres, obrigações que possam dimanar de tal procedimento de inspeção.
Decorre assim do normativo vindo de citar, o propósito central de assegurar ao contribuinte conhecer o âmbito do procedimento de inspeção, de modo a determinar e adequadamente enquadrar os deveres e obrigações que legalmente lhe são atribuídos no âmbito do mesmo, além de produzir efeitos em relação ao prazo de caducidade do direito à liquidação, conforme disposto no artigo 46.º da LGT.
Sobre esta temática quanto à preterição da formalidade prevista no artigo 49ºdo RCPITA, importa considerar a jurisprudência que vem emanando dos tribunais superiores a este respeito.
Conforme se acordou no aresto do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul) de 09.03.2017, proferido no processo 05458/12, “A falta da notificação prévia prevista no art. 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento e do seu objecto a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição durante o procedimento inspectivo.”
Veja-se em idêntico sentido, o acordado pelo supra referido TCA Sul[1]: “4. A notificação que permite suspender nos termos legais (cfr.art.º46.º, nº.1, da L.G.T.) o prazo de caducidade da liquidação é o da ordem de serviço ou do despacho no início da acção de inspecção externa, a efectuar nos termos do art.º51.º, do R.C.P.I.T., sendo que a assinatura de tal ordem de serviço pode ser realizada pelo técnico oficial de contas, nos termos do nº.3 do preceito, independentemente de o sujeito passivo em causa ser uma pessoa singular ou colectiva.
5. A falta de menção dos poderes ao abrigo dos quais foram emitidas as ordens de serviço, tal como a consequente comunicação do início de procedimento de inspecção externo não gera qualquer invalidade se, não obstante a sua falta, se demonstrar que o interessado teve conhecimento do procedimento (e do respectivo objecto) a tempo de nele poder intervir. E se houver lugar a notificação para o exercício do direito de audição prévia, o vector em causa poderá ficar, desde logo, satisfeito (pese a falta de comunicação), se o interessado considerar que não tem nada a acrescentar àquilo que resultou da anterior instrução do procedimento. E não poderia ser de outro modo na medida em que as formalidades processuais são meios de garantir objectivos e não finalidades em si mesmas, assim se podendo visualizar como meras irregularidades sem efeitos invalidantes de acordo com o princípio do aproveitamento do acto administrativo.”
Também sobre esta matéria e no sentido da degradação de formalidade essencial em mera irregularidade, se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo (STA)[2]:
“A falta da notificação prévia prevista no art.º 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento e do seu objecto a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição durante o procedimento inspectivo.”.
Resulta assim do entendimento jurisprudencial supra vindo de citar, o qual aqui se secunda, a conclusão segundo a qual a omissão da notificação prévia nos termos do artigo 49º do CIRC não é suscetível de, por si só, gerar a invalidade do procedimento inspetivo e bem assim de eventual consequente liquidação de imposto.
Mas para tal degradação em mera irregularidade, imprescindível se torna que ao contribuinte visado por tal diligência inspetiva tenha sido dado conhecimento sobre a realização do procedimento e do seu objeto e bem assim que nele tenha podido participar, por exemplo, em sede de direito de audição prévia.
Revertendo para o caso vertente, independentemente de se dever ou não considerar notificada a Requerente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 49º do RCPITA, dúvidas não subsistem de que foram a Requerente e o seu então mandatário notificados do encerramento da ordem de serviço relativa a anterior procedimento inspetivo interno e informados que os serviços da AT iriam proceder à proposta de abertura de ação inspetiva externa para aferir da veracidade do declarado fiscalmente (vide ponto 3 dos Factos Provados), notificações essas que foram expedidas por carta registada em 26.01.2022.
Acresce ainda que, conforme igualmente resulta da prova produzida nestes autos que, mesmo que não com 5 dias de antecedência, a Requerente tomou efetivo conhecimento do início do procedimento externo de inspeção, cfr, ponto 2 dos Factos Provados, do qual flui a notificação pessoal da Requerente, ocorrida na pessoa do seu legal representante, em 05.05.2022.
Face ao exposto, é inequívoco que a Requerente, na pessoa do seu gerente, esteve presencialmente com os inspetores responsáveis pelo procedimento, pelo que teve, nessa ocasião, de tomar não só conhecimento do objeto e âmbito da ação, como a oportunidade de tomar contacto e ver esclarecida qualquer questão ou dúvida que eventualmente sobrelevasse em matéria do desenrolar do procedimento que então se iniciava.
Assim, do exposto se conclui que, pese embora a alegada omissão de notificação nos termos do artigo 49º do RCPITA, certo é que à Requerente foi dada a conhecer previamente a provável abertura de procedimento externo de inspeção e cerca de 3 meses após, tomou pessoalmente conhecimento do início do procedimento inspetivo, onde se dava a conhecer o objeto e âmbito do mesmo.
Analisado atentamente o teor do relatório de inspeção, flui com evidente clareza e objetividade que a Requerente foi sendo, não só notificada no âmbito do seu dever de colaboração para com o sujeito ativo da relação tributária, mas inclusivamente tomou parte ativa nesse mesmo procedimento, influenciando o seu rumo, na medida em que fez chegar à AT esclarecimentos, informação e demais documentação que esta entendeu por pertinentes para o desenvolvimento do procedimento inspetivo.
Inclusivamente, no caso em apreço, a Requerente tomou igualmente parte ativa na formação da decisão, notificada que foi do projeto de relatório, ao exercer o seu direito de audição, nos termos previstos nos artigos 60º da LGT e do RCPITA.
Perante este acervo factual, o qual flui claramente demonstrado dos factos provados, não consegue este tribunal arbitral alcançar em que medida a eventual omissão de tal notificação prévia pode ter coartado os direitos e garantias da Requerente no âmbito de tal procedimento externo de inspeção, no sentido de permitir legitimar que, não obstante toda a intervenção ativa havida no seio deste, se possa ou deva concluir pela não degradação de tal pretensa preterição de formalidade essencial em mera irregularidade, não invalidante do procedimento e do subsequente ato tributário.
Lido com atenção o teor do PPA, não se descortina qualquer densificação quanto a quaisquer concretas consequências ou lesões em matéria do exercício dos deveres, garantias e direitos da Requerente advenientes de tal omissão de notificação prévia.
Resultando antes e pelo contrário, que à Requerente foi dado a conhecer o âmbito e objeto do procedimento externo inspetivo e que, tomou parte ativa no mesmo, fornecendo informação e documentos e inclusivamente, tendo exercido o respetivo direito de audição, forçoso é concluir pela degradação em mera irregularidade, não invalidante dos termos subsequentes, da ausência de notificação prévia a que alude o artigo 49º do RCPITA.
b) Duração do procedimento de inspeção, por período superior ao previsto no n.º 2 do artigo 36º do RCPITA:
Sustenta a Requerente que o procedimento inspetivo teve uma duração de cerca de 10 meses, logo, haverá ultrapassado o prazo de 6 meses estipulado no artigo 36º do RCPIT, omissão essa que entende configurar um vício gerador de anulabilidade da liquidação fundada em tal procedimento inspetivo.
Por seu turno, a Requerida não juntou aos auto qualquer documento em que se pudesse consubstanciar a notificação da prorrogação do procedimento inspetivo, sustentando que não foi suscitada a caducidade do direito a liquidação, defendendo que o efeito decorrente de tal invocada omissão de prorrogação é o da não suspensão do prazo de caducidade por força do decurso de tal ação inspetiva.
Analisemos,
O artigo 36, n.º 2 do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) define um prazo máximo de 6 meses para a conclusão de uma inspeção tributária, iniciando-se tal prazo com a entrega da Ordem de serviços nos termos do artigo 46º de tal diploma, o que sucedeu em 05.05.2022.
Tal prazo pode ser prorrogado duas vezes, por um período de 3 meses cada, resultando num tempo máximo de 12 meses para a conclusão do procedimento de inspeção.
Nos termos do art.º 62, n.º 2 do RCPIT, o procedimento apenas se considera concluído quando o relatório de inspeção é notificado ao contribuinte por carta registada – o que, no caso, sucedeu acompanhado com a notificação que se encontra assinada de 20.03.2023.
Entre o termo inicial do procedimento inspetivo e o seu final transcorreu um período inferior a 12 meses, logo, não se mostra ultrapassado o prazo máximo legalmente consagrado, mas seguramente que o procedimento ultrapassou o prazo inicial de 6 meses previsto no n.º 2 do artigo 36º do RCPITA.
No entanto, do acervo probatório constante dos autos não consta qualquer documentação que permita colher a evidência de que os serviços da AT procederam a tal notificação à Requerente, leia-se, no sentido da prorrogação do procedimento, o que teria de suceder por duas vezes, visto entre o início e o terminus terem decorrido, aproximadamente, de 10 meses.
Importando a este respeito coligir o disposto no n.º 7 do artigo 36º do RCPITA, segundo o qual: “o decurso do prazo do procedimento de inspeção determina o fim dos atos externos de inspeção, não afetando, porém, o direito à liquidação dos tributos”, normativo aditado pela Lei nº 75-A/2014, de 30 de Setembro.
No caso dos autos que nos atém, não há indícios, nem nada tendo sequer sido invocado pela Requerente no sentido que tenham tido lugar atos externos de inspeção para lá do decurso dos seis iniciais meses de duração do procedimento inspetivo.
Por outro lado e não menos relevante, a alteração legislativa de 2014 ao n.º 7 do artigo 36º do RCPITA vai justamente no sentido da orientação jurisprudencial do STA nesta matéria e que adiante abordaremos, fundada no entendimento de que a ultrapassagem do prazo legal do procedimento inspetivo relevará para efeitos de contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação, não tornando endogenamente inválido o procedimento ou o relatório que dele emerge, nem tampouco os subsequentes atos tributários que neste último se fundam.
Importa assim atentar naquele que vem sendo o entendimento jurisprudencial sobre a matéria do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e dos demais tribunais superiores.
No âmbito do STA, os arestos de 29/11/96, proferido no processo n.º 0695/06, o acórdão de 27.02.2008, no processo n.º 0955/07, e o acórdão de 07/05/2008, no âmbito do processo n.º 0102/08, vão expressamente no sentido de que o prazo a que se refere o art.º 36 do então RCPIT é meramente ordenador e que o seu desrespeito não constitui irregularidade procedimental suscetível de tornar inválidas os atos tributários subsequentes advenientes das correções apuradas em sede inspetiva, sustentando assim o entendimento de que os vícios endógenos ao procedimento inspetivo não são comunicáveis com os subsequentes atos tributários que nesse procedimento têm a sua base de apuramento.
Assim, atentando-se no acórdão do STA, de 27.02.2008, processo n.º 0955/07, aí se sustenta que “a ultrapassagem do prazo de seis meses previsto no n° 2 do artigo 36° do RCPIT para o procedimento de inspecção, não tem qualquer efeito na validade dos actos tributários que sejam praticados com base nas conclusões do relatório de inspecção, pelo que o acto de liquidação impugnado não padece de qualquer ilegalidade”.
Igualmente se colhe que “os procedimentos inspectivo e de liquidação são distintos entre si, ainda que este tenha carácter meramente preparatório ou acessório, o que não significa que as ilegalidades nele cometidas se projectem, fatalmente, na liquidação, invalidando-a”, e que “o vício (…) é próprio do procedimento inspectivo, não se comunica ao de liquidação”.
Já em idêntico sentido se pronunciava também a doutrina, veja-se a este respeito o posicionamento de Martins Alfaro, em comentário ao art.º 36 do RCPIT (Anotado), o qual refere que a falta de notificação de prorrogação gera apenas ineficácia desta prorrogação, e que o termo da inspeção tem “natureza de previsão e, por isso, a ultrapassagem do termo previsto não implica qualquer consequência jurídica”[3]
Em similar sentido se pronunciou recentemente o STA[4], sob o relato de Gustavo Lopes Courinha, o qual perante uma notificação de prorrogação sem qualquer fundamentação para essa extensão do prazo inicial inspetivo, entendeu: “Em segundo lugar, convém sublinhar – como faz a jurisprudência (veja-se, entre muitos outros, os Acórdãos proferido pela 2.º Secção deste Supremo Tribunal em 10/12/2008, no processo n.º 080/08, ou em 25-02-2015, no processo n.º 0709/14, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) – que é pacífica a natureza meramente ordenadora daquele prazo de seis meses e que o respectivo incumprimento (acaso, porventura, se verificasse) teria apenas como consequências a não suspensão do prazo de caducidade e o impedimento de actos externos de inspecção, nos termos, respectivamente, do n.º 1 do artigo 46.º da LGT e do n.º 7 do artigo 36.º do RCPITA.”
Entendimento este que havia sido sustentado pelo parecer do Ministério Público nesses autos, no qual, a propósito de uma eventual omissão de prorrogação do procedimento inspetivo, considerou ser: “…um facto que a Recorrente não foi notificada do teor do despacho de prorrogação. No entanto, tal irregularidade ficou sanada pelo não uso do mecanismo do artigo 37º do CPPT, não fazendo operar a caducidade do procedimento inspectivo. Mas mesmo que se entendesse que o prazo tinha sido ultrapassado, tal circunstância não teria por efeito inelutável a ilegalidade do procedimento, conduzindo apenas, como pacífica e reiteradamente a doutrina e a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores vem explicando, a que o efeito suspensivo, produzido pela instauração do procedimento, cesse. (cf. os Acórdãos do TC nº 457/2008, de 25/09, e do STA de 25/02/2015, proc. nº 0709”.
Em idêntico sentido, no âmbito da instância arbitral – CAAD - diversas decisões arbitrais têm sido proferidos, aqui se destacando pela sua acuidade ao caso vertente, a decisão proferida no processo n.º 42/2022-T, 29.06.2022: “De facto, a alegada violação do prazo para a ação inspetiva apenas teria como consequência o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 46º da LGT, ou seja, o prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção, por conseguinte não originaria a ilegalidade da liquidação de imposto emitida.
Não se estando no caso dos autos em apreciação perante a caducidade do direito à liquidação, nem a preclusão sobre tal direito tendo sido invocada em apoio da suposta ilegalidade do ato tributário de IRC, não pode obter provimento o pedido de anulação desta última, fundada na ultrapassagem do prazo inicial de 6 meses, sem as necessárias prorrogações, em linha com aquele que vem sendo o entendimento do STA sobre esta temática.
Secundando-se assim o posicionamento daquele douto tribunal no sentido de que o efeito dimanante da não prorrogação do procedimento inspetivo não acarreta qualquer efeito invalidante do procedimento, nem, consequentemente, dos ulteriores termos, leia-se relatório e atos tributários nele fundados, mas antes dita a não suspensão do prazo de caducidade por força do procedimento inspetivo; não se suscitando no caso dos autos divergências quanto ao facto de a Requerida ter exercido o seu direito à liquidação e respetiva notificação dentro do respetivo prazo de caducidade previsto no artigo 45º da LGT, não poderá deixar de improceder o invocado nesta matéria pela Requerente.
c) Da omissão de audição prévia antes da conclusão do relatório de inspeção:
Sustenta a Requerente que foi violado o preceituado na al. e) do artigo 60º da LGT, na medida em que não foi dada relevância ao teor do direito de audição prévia exercido por esta. Vejamos,
Decorre da matéria de facto provada que foi conferido à Requerente o direito a se pronunciar – em sede audiência prévia – antes da conclusão do relatório de inspeção tributária.
Sendo que, a Requerente veio a exercer esse mesmo direito, conforme igualmente decorre destes autos (processado junto ao PA – RIT 15).
Analisado o teor do relatório final inspetivo (RIT), resulta do teor do mesmo, designadamente do capítulo X, uma análise individualizada e concretizada quanto às questões sobre as quais versou o direito de audição, análise essa em que os serviços de inspeção tributária explicitam, ao longo de 5 páginas, o porquê de inexistirem [na ótica desta] fundamentos que permitissem reverter as correções previstas no projeto de relatório de inspeção de que a Requerente foi notificada.
Pelo exposto, a este respeito, mostra-se perfeitamente percetível que a AT curou de analisar o direito de audição apresentado pela Requerente, dele retirando, no entanto, conclusões distintas daquela que seria a pretensão da Requerente, divergência essa que nada aduz em abono da ilegalidade invocada.
De resto, o que a factualidade provada nestes autos deixa patenteada é a de que a Requerente foi objeto de notificação para o exercício do direito de audição, nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 60º da LGT: “Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária.”
Isto porque, uma vez elaborado o projeto de relatório foi a Requerente notificada para, querendo, exercer, o seu direito de participação, o que esta veio a exercer, seguindo-se depois a elaboração do relatório final, o qual teve já em consideração o posicionamento e elementos carreados para o procedimento pela Requerente.
Resulta assim de forma insofismavelmente objetiva o facto de à Requerente ter sido conferido o direito a participar na formação do procedimento, o que no caso teve lugar nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 60º da LGT, pelo que não pode lograr provimento a meramente alegada preterição de formalidade essencial.
d) Impossibilidade de validação do âmbito da ação inspetiva – artigos 2º e 49º, nº 1 RCPITA:
Entende a Requerente por lesivos, os atos praticados no procedimento inspetivo, por violação do artigo 14º do RCPITA, considerando inaceitável à referência efetuada pela AT a «outras incongruências existentes» “pois esta alegação não é subsumível a um tipo legal de tributo, o que constitui clara violação da obrigação legal de definição do âmbito da intervenção inspetiva.”,
Vejamos, antes de mais, o quadro legal atinente à invocada desconformidade, aqui se convocando o previsto nos artigos 13º, 14º e 15º do RCPITA:
Artigo 13.º
Lugar do procedimento de inspecção
Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:
a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.
Artigo 14.º
Âmbito e extensão
1 - Quanto ao âmbito, o procedimento de inspecção pode ser:
a) Geral ou polivalente, quando tiver por objecto a situação tributária global ou conjunto dos deveres tributários dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários;
b) Parcial ou univalente, quando abranja apenas algum, ou alguns, tributos ou algum, ou alguns, deveres dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários.
2 - Considera-se ainda procedimento parcial o que se limite à consulta, recolha de documentos ou elementos determinados e à verificação de sistemas informáticos dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, ou ao controlo de bens em circulação. .
3 - Quanto à extensão, o procedimento pode englobar um ou mais períodos de tributação.
ARTIGO 15º
Alteração dos fins, âmbito e extensão do procedimento
1 - Os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada.
2 - O âmbito e extensão do procedimento de inspecção pode ser determinado a solicitação dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, nos termos do Decreto-Lei n.º 6/99, de 8 de Janeiro.
Descendo ao caso dos autos, resulta da matéria de facto dada como provada que a Requerente foi objeto, primeiramente, de um procedimento interno inspetivo, no qual foram analisados e recolhidos os elementos tidos por pertinentes.
Em face de tal análise interna documental, decidiram os serviços inspetivos da AT propor a abertura de procedimento externo, com vista ao apuramento da veracidade do fiscalmente declarado pela Requerente, tendo esta desse facto sido notificada, conforme decorre da matéria de facto dada como provada.
Já no âmbito do procedimento inspetivo externo, veio a AT a notificar a Requerente pessoalmente do início da ação inspetiva – em 05.05.2022 – a qual teve por objeto e âmbito o decorrente do teor de RIT 4, junto com o PA instrutor, isto é, aí ficou definido o âmbito – parcial – nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 14º do RCPITA, recaindo sobre o IRC e IVA, do exercício/ano de 2019.
No âmbito do relatório de inspeção, menciona a AT que a emissão da Ordem de Serviço para procedimento externo teve por base a deteção de valores de fornecimentos externos elevados e bem assim outras incongruências.
Ora, não pretenderia tal menção dilucidar sobre que impostos recairia o procedimento externo, uma vez que o âmbito e objeto do mesmo já se encontrava fixado e oportunamente dado a conhecer pessoalmente à Requerente, pelo menos, em 05.05.2022, antes tendo subjacente o propósito de consubstanciar o entendimento da AT que esteve na base para a emissão de Ordem de Serviço com vista à abertura de tal procedimento externo.
Atenta a factualidade supra, não é possível descortinar em que medida «outras incongruências» referidas no relatório de inspeção alteraram aquele que foi o objeto e âmbito, também temporal, do procedimento, o qual foi ab initio e até final, uno: parcial, incidente sobre IVA e IRC, do ano/exercício de 2019.
Lido o teor do relatório e as correções que do mesmo resultaram, temos por pacífico que a AT não procedeu a qualquer extravasar de tal âmbito e objeto, tendo, de reto, resultado correções apenas ao nível do IRC, do exercício de 2019, em nada se encontrando extravasado os termos inicialmente definidos pela AT para a realização do procedimento.
Não se alcança assim como possa mostrar-se violado o artigo 14º do RCPITA, visto a entrega da Ordem de Serviço entregue à Requerente pessoalmente é clara na definição do âmbito e objeto do procedimento, pelo que não se vislumbra qualquer mácula legal quanto a esta matéria, improcedendo assim a ilegalidade invocada.
II. Das correções em sede de IRC:
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Enquadramento fiscal das mais e menos valias geradas com alienação de ativos
Interessa, numa primeira análise, atentar à diferente calculatória aplicável às mais-valias geradas pelas empresas com vendas de ativos atendendo à normalização contabilística, por um lado, ou Código do IRC, por outro.
Contabilisticamente, referem as normas NCRF 6 – Ativos intangíveis e NCRF 7 - Ativos fixos tangíveis nos seus parágrafos 108º e 66º, respetivamente (sublinhado nosso):
“108 — Um ativo intangível deve ser desreconhecido:
a) No momento da alienação; ou
b) Quando não se esperam futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação.”
“66 — A quantia escriturada de um item do ativo fixo tangível deve ser desreconhecida:
a) No momento da alienação; ou
b) Quando não se espere futuros benefícios económicos do seu uso ou alienação.”
Ainda com relevância para a matéria em estudo, referem as mesmas normas NCRF 6 e NCRF 7, nos seus parágrafos 109º e 80º, respetivamente (sublinhado nosso):
“109 - O ganho ou perda decorrente do desreconhecimento de um ativo intangível deve ser determinado como a diferença entre os proventos líquidos da alienação, se os houver, e a quantia escriturada do ativo. Deve ser reconhecido nos resultados quando o ativo for desreconhecido (…).”
“70 — O ganho ou perda decorrente do desreconhecimento de um item do ativo fixo tangível deve ser determinado como a diferença entre os proventos líquidos da alienação, se os houver, e a quantia escriturada do item.”
Por seu lado, na perspetiva fiscal prevê o n.º 2 do artigo 46º do Código do IRC:
“As mais-valias e as menos-valias são dadas pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A, 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 3 do artigo 31.º-A.”
E, adicionalmente, dispõe o nº 1 do artigo 47º do mesmo código:
“O valor de aquisição corrigido nos termos do n.º 2 do artigo anterior é atualizado mediante aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda para o efeito publicados em portaria do Ministro das Finanças, sempre que, à data da realização, tenham decorrido pelo menos dois anos desde a data da aquisição, sendo o valor dessa atualização deduzido para efeitos da determinação do lucro tributável.”
Decorre, assim, dos preceitos citados que a calculatória correspondente ao valor a considerar contabilisticamente como mais valias não coincide, necessariamente, com a operação aritmética prevista no Código do IRC, o qual dispõe, para além da aplicação de um coeficiente de atualização monetária que não releva contabilisticamente, outras correções a efetuar ao valor de aquisição, correções essas não necessariamente reproduzidas na quantia escriturada na contabilidade.
A definição de um diferente cálculo aplicável ao apuramento do valor das mais valias consoante se esteja perante normas contabilísticas ou normas fiscais leva a que, no Quadro 7 da Declaração Modelo 22, esteja prevista a seguinte operação simétrica: (1) anulação (via dedução ao resultado contabilístico) das mais valias contabilísticas implícitas no resultado e (2) reposição (via adição ao resultado contabilístico) das mais valias geradas corrigidas em conformidade com o disposto no Código do IRC.
No caso destes autos em concreto, verifica-se que a Requerente, não obstante ter realizado a alienação no decurso de 2019, não procedeu à calculatória devida das mais valias fiscais, nem, tampouco, a operação simétrica acima referida, tendo a AT procedido a tal apuramento, conforme facto provado 6., a), i).
Como forma de fomentar o investimento empresarial, prevê o Código do IRC a possibilidade de tributar as mais valias fiscais em apenas metade do seu valor nos casos em que a empresa proceda ao reinvestimento, em determinado prazo, dos valores de realização da totalidade dos ativos que deram origem às mais-valias.
Nestes casos, deve o sujeito passivo mencionar a intenção de reinvestir e/ou o valor reinvestido no prazo previsto (ano anterior, ano da venda ou dois anos seguintes), considerando assim, em alternativa à correção ao resultado acima apresentada, a seguinte:
Correção fiscal – com intenção de reinvestimento
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2019
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Mais-valia contabilística a deduzir ao resultado
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- € 744 529,30
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Metade da mais-valia fiscal a acrescer ao resultado
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€ 396 313,76
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Impacto da correção no Quadro 07 da Mod 22
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- € 348 215,54
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Decorre assim do exposto que, no caso em apreço, colocavam-se duas alternativas à Requerente em termos de correções a efetuar no Quadro 07 do Modelo 22 de IRC (no qual, recorde-se, a Requerente não inscreveu qualquer correção):
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Não optar pelo reinvestimento, procedendo a uma correção ao resultado contabilístico para apuramento do resultado fiscal no valor de + € 48 098,22 (foi esta a solução adotada pela AT no RIT);
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Optar pelo reinvestimento da totalidade do valor de venda dos ativos que originaram a mais-valia, procedendo a uma correção fiscal favorável à empresa no montante
de - € 348 215,54.
A Requerente alega que, apesar de não ter mencionado a intenção de reinvestir o valor de venda dos ativos que geraram a mais-valia, era sua intenção proceder a tal reinvestimento.
Mas, se assim fosse, sempre teria a Requerente que efetuar a correção indicada em b), facto que nunca refere nas suas alegações.
Limita-se a Requerente a afirmar que tinha intenção de reinvestir, presumindo assim que, caso tivesse manifestado tal intenção no quadro respetivo da Modelo 22, o regime do reinvestimento estaria corretamente aplicado, o que, como se viu, não é o caso.
Acresce que, estando nós em 2024 (na verdade 2023, ano em que o pedido deu entrada no CAAD), sempre poderia a Requerente ter provado o efetivo reinvestimento no prazo legalmente estabelecido, que terminou em 2021.
Quer em sede de PPA, quer de alegações, jamais a Referente refere, muito menos o demonstra, ter procedido ao efetivo reinvestimento, limitando-se a mencionar que à data, 2019, tinha a intenção de reinvestir, conforme foi referido em pelo Contabilista Certificado e pelo gerente da Requerente. Mas, concretizou tal intenção? Por quanto? E quando?
Não tendo sido apresentada qualquer prova que evidencie a efetiva intenção de reinvestir e muito menos que o reinvestimento já se mostrasse concretizado, considera-se improcedente a invocada ilegalidade suscitada pela Requerente no que se refere a este ponto, não padecendo a correção levada a efeito pela AT de qualquer mácula legal.
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Despesas não documentadas:
O legislador tipificou, no artigo 88º.º do CIRC um conjunto de factos sujeitos a tributações autónomas, os quais se reconduzem a encargos suportados pelos sujeitos passivos que tendencialmente não estão diretamente ou apenas exclusivamente conectados com a prossecução da atividade económica do sujeito passivo de IRC.
Efetivamente, pretendeu-se através deste mecanismo tributário desincentivar os encargos pelos sujeitos passivos que em abstrato apresentam, tipicamente, uma duvidosa «empresarialidade» ou se quisermos utilizar a nomenclatura anglo-saxónica, os denominados «fringe benefits», isto é, encargos que se encontram muitas vezes numa franja onde não é fácil destrinçar se a finalidade foi efetivamente em prol da atividade económica do sujeito passivo de imposto ou em benefício remuneratório daqueles recursos humanos que formam a unidade económico-social de qualquer empresa (quadros, órgãos estatutários, entre outos) ou de terceiros que com o sujeito passivo se relacionem.
Deste modo, o legislador consagrou, entre outras modalidades de tributação autónoma, as denominadas “despesas não documentadas”, constante do n.º 1 do versado preceito legal, sujeitando-as a uma taxa de 50%, com o fito claro de assim desincentivar tais tipificados encargos materialmente imputados ao sujeito passivo de IRC, enquanto instrumento visando o combate à fraude e evasão fiscais e assim obviar à erosão da base tributável.
Quanto ao conceito de «despesas não documentadas», têm os tribunais superiores vindo de forma unívoca a concluir que as mesmas se reconduzem àquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique.[5]
Recorde-se a este propósito, que à data dos factos tributários ora em análise (2019), o legislador já tinha suprimido da previsão de tal regime a menção a «despesas confidenciais», o que sucedeu por via da aprovação da lei do Orçamento de Estado para 2008, de onde se pode concluir com segurança que o legislador pretendeu afastar o desconhecimento quanto ao beneficiário/destinatário de tais despesas enquanto elemento imprescindivelmente presente para efeitos de tipificação e subsunção ao conceito de «despesas não documentadas».
Podendo assim, com segurança, afirmar-se, à luz do entendimento jurisprudencial dimanante dos tribunais superiores que «não documentadas» serão todas as despesas sem qualquer suporte documental que as justifique, nomeadamente, quando não se alcance a sua origem/finalidade e natureza.
Acompanhamos o posicionamento vertido no acórdão do STA[6], que o Tribunal se suporta na sua apreciação ao presente caso, segundo o qual, por um lado, «[q]uando se fala em despesas devidamente documentadas não se refere ao legislador a despesas que constem simplesmente de um documento, mas, neste caso, de despesas que constem de um documento em termos de demonstrar de forma segura que se relacionam com a actividade do contribuinte e que se inserem na actividade que dá a este concreto contribuinte direito a isenção de imposto ou direito a redução de imposto»
Assim, secundando.se o entendimento vindo de supra enunciar, importará descer à análise em concreto do caso dos presentes autos e analisado o acervo documental dele constante, resultam patentes deficiências graves ao nível do sistema de controlo interno destinado ao adequado reconhecimento contabilístico e relato da informação financeira.
A este respeito, veja-se a informação que consta no quadro constante do facto provado 13 no que se refere a saldos bancários à data de 31 de dezembro de 2019 (conforme RIT e respetivos anexos) a relevante disparidade entre os valores dos extratos bancários e os balancetes analíticos produzidos pela contabilidade, como também as diferenças entre quaisquer destes valores e o valor de depósitos bancários constantes da IES.
Perante tais evidentes inconsistências, a AT solicitou à Requerente que, relativamente aos movimentos bancários da conta nº... do Banco H ... constantes do quadro constante do ponto 15. dos Factos Provados, justificasse “através de nota explicativa a origem, destino e detalhe dos mesmos, juntando documentos que o comprovem e mencionando as respetivas contas SNC onde os movimentos em causa foram reconhecidos contabilisticamente”:
Entre a informação enviada a título de resposta, apresentou a Requerente o extrato de conta da contabilidade relativo ao sócio E..., ponto 14 dos Factos Provados:
Verifica-se, assim, que o sócio E... iniciou o ano com um crédito sobre a empresa no valor de 194 103,88 euros, crédito esse que foi pago pela Requerente em 28 de fevereiro, fazendo com que no final de 2019 não se identificasse qualquer verba em dívida de/para com o referido sócio.
Da restante informação enviada, considerou a AT que se encontravam por validar através de documento justificativo os movimentos bancários constantes do ponto 16 dos Factos Provados.
Por não dispor de documento próprio justificativo das despesas, considerou a AT estar perante despesas não documentadas no valor de 565 000 euros, sujeitando-se a tributação autónoma nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC.
Por sua vez, relativamente às operações supra, veio a Requerente afirmar que dos 565 000 euros, 194 103,88 euros destinaram-se ao pagamento dos suprimentos ao sócio E..., não explicando, no entanto, a inconsistência de datas entre tal pagamento e a data de registo na contabilidade conforme extrato de conta constante do ponto 14 dos Factos Provados.
Adicionalmente veio a Requerente alegar que 250 000 euros correspondentes à transferência de 8 de outubro, acima, corresponderam ao pagamento de um empréstimo a uma sociedade do grupo mas a AT alegou não ter recebido qualquer documento identificativo desta transação.
E, na verdade, da análise efetuada por este Tribunal ao balancete analítico de 31 de dezembro de 2019 constante do RIT, não se identifica na contabilidade qualquer dívida que tenha existido, em qualquer momento desse ano, neste montante.
Não obstante, identificou este Tribunal o documento contabilístico com identificação do NIB do destinatário dos 250 000 euros, que é efetivamente, conforme indicado pela Requerente, a sociedade relacionada C..., Lda.
São assim manifestas e incompreensíveis para este Tribunal, no âmbito de um sujeito passivo vinculado às regras da contabilidade organizada, as inconsistências que a Requerente apresenta entre a sua contabilidade e os movimentos financeiros observados.
Temos assim e em síntese que a Requerente se limitou, no que à junção de documentos atinentes a tais saídas de dinheiro, a apresentar extratos de movimentos bancários da Requerente e dos respetivos destinatários, tal como se colhe do facto provado constante do ponto 16. dos quais se permite apenas e tão somente atestar o destinatário de cada uma das transferências bancárias efetuadas pela Requerente.
Isto é, não obstante notificada para documentalmente justificar as transferências de tais montantes (num total de € 565.000,00), certo é que a Requerente não veio a coligir qualquer documentação justificativa da qual se permita alcançar a origem ou finalidade e natureza de tais despesas.
Ante o exposto, poder-se-á considerar que se encontram documentalmente justificadas as despesas referente a tais transferências bancárias ?
Entendemos que não.
Pela sua subsunção ao caso dos autos – junção de extratos bancários - acompanhamos, quanto a esta matéria, a decisão arbitral proferida no processo n.º 29/2020-T, e que o presente tribunal arbitral não encontra fundamento para dele divergir:
“I - As despesas relevantes para efeito do apuramento do lucro tributável em IRC não podem ser comprovadas através de extractos de movimentos bancários, carecendo de suporte documental de nível contabilístico que permita especificar a sua natureza, origem ou finalidade;
II – O poder dever de realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material que incumbe à Administração Tributária é meramente complementar relativamente às obrigações declarativas e contabilísticas do sujeito passivo, apenas se justificando a realização de diligências oficiosas quando os elementos instrutórios que tenham sido recolhidos a partir dos registos contabilísticos do sujeito passivo não permitam esclarecer certos aspectos da relação tributária e se torne necessário uma mais completa indagação.”
III – Devem ser tidas como despesas não documentadas, sujeitas a tributação autónoma, as despesas que não se encontram reflectidas na contabilidade do sujeito passivo, através de documento justificativo.”
Em idêntico sentido e por absoluta subsunção ao caso vertente, atente-se no acordado no âmbito do CAAD, através de tribunal arbitral coletivo[7], em que estava igualmente em apreciação a subsunção ou não ao regime do n.º 1 do artigo 88º do CIRC, de despesas apenas ancoradas em extratos bancários:
“Revertendo ao caso concreto, o único argumento aduzido pela Requerente para questionar a qualificação das despesas em causa como não documentadas consiste em considerar que as despesas se encontram suportadas em extractos bancários que, embora não preencham todos os requisitos legalmente exigíveis, permitem identificar os destinatários das operações bancárias, cabendo à Autoridade Tributária o poder dever de diligenciar no sentido dessa identificação em aplicação do princípio do inquisitório e da verdade material, ainda que mediante o recurso ao levantamento do sigilo bancário.
Não pode deixar de reconhecer-se que a Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, a realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, nisso se traduzindo o princípio do inquisitório como meio instrumental da preparação de uma decisão justa e conforme à legalidade.
Um afloramento deste princípio surge no artigo 58.º da LGT, mas consta também do artigo 6.º do RCPITA onde se diz que “o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”. Esse mesmo princípio tem como necessária decorrência que a Administração deva levar a efeito as diligências que entenda serem úteis no âmbito do procedimento sem se encontrar subordinada à iniciativa do contribuinte.
É, no entanto, patente, face a tudo o que já anteriormente se expôs, que esse poder dever é meramente complementar relativamente às obrigações declarativas e contabilísticas do sujeito passivo, apenas se justificando a realização de diligências oficiosas quando os elementos instrutórios que tenham sido recolhidos a partir dos registos contabilísticos do sujeito passivo não permitam esclarecer certos aspectos da relação tributária e se torne necessário uma mais completa indagação.
Ora, como se deixou já entrever, a consideração dos gastos para efeitos fiscais é feita com base na contabilidade que deve reflectir documentalmente as operações realizadas pelo sujeito passivo que tenham conexão com a actividade empresarial. É claro que não preenche essa exigência a mera apresentação dos extractos de movimentos emitidos pela instituição bancária, visto que o contribuinte carece de registar contabilisticamente os gastos e ter devidamente organizados os documentos comprovativos das despesas que pretende que sejam consideradas para o apuramento do lucro tributável.
E não cabe à Autoridade Tributária realizar diligências oficiosas em vista a apurar o tipo de operações que estão subjacentes aos movimentos bancários e identificar os intervenientes nessas operações, visto que não é função da Administração suprir a omissão do cumprimento pelo contribuinte das suas obrigações contabilísticas.
E muito menos se compreende que a Autoridade Tributária devesse realizar essas diligências mediante o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário quando é certo que o poder de aceder a informações ou documentos na posse de instituições bancárias apenas pode ocorrer nas situações especialmente previstas no artigo 63.º-B da LGT, e, designadamente, quando existam indícios da prática de crime em matéria tributária ou da falta de veracidade do declarado ou de acréscimos de património não justificados, competência que se encontra sujeita a controlo jurisdicional e que nunca seria possível exercer para colmatar a não comprovação documental dos gastos declarados pelo contribuinte.”
Haverá de concluir-se, face a todo o exposto, que estando em causa despesas que não têm por base qualquer documento justificativo ou de suporte documental de natureza contabilística que permita especificar a sua natureza, origem ou finalidade, tais despesas devem ser tidas como não documentadas e, como tal, sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, nos termos previstos no artigo 88.º, n.º 1, do Código de IRC, a que acrescem 10 pontos percentuais por se referirem a um período de tributação em que o sujeito passivo apresentou prejuízo fiscal.”
Posicionamento este que bem se entende porquanto, entendimento inverso a este conduziria a um total esvaziamento da norma do n.º 1 do artigo 88º do CIRC, na medida em que, qualquer saída de dinheiro por meio rastreável - como uma mera transferência bancária - obliteraria a subsunção a tal tributação autónoma, mesmo que continuasse por justificar a natureza, origem ou finalidade da operação financeira em causa.
Isto é, tal perspetiva acomodaria um sentimento de velado convite ou subliminar incentivo a que os sujeitos passivos pudessem com um risco fiscal bastante minimizado - o de apenas não ver tal saída de dinheiro elegível enquanto gasto fiscal - efetuar operações de descapitalização (e pagamentos a terceiros) sem qualquer justificação e sem qualquer vinculação em matéria de demonstração quanto à conexão desses movimentos financeiros com a prossecução do objeto social desses mesmos sujeitos passivos.
Em suma, tal solução interpretativa revelar-se-ia como um meio adequado e tributariamente pouco oneroso de deslocação e transferência de capitais, objetivamente suscetível de incentivar a fraude e evasão fiscais e a contribuir destarte para a erosão das bases tributáveis.
Ao mesmo tempo que tal interpretação nem sequer permitiria medianamente assegurar que o destinatário de tais saídas financeiras fosse, efetivamente, a pessoa ou entidade que diretamente o recebeu, sendo certo que a desoneração de demonstração do sujeito passivo (por via do diminuto risco a que ficaria exposto) quanto à natureza e finalidade do movimento financeiro em causa exponenciaria o risco de não tributação no efetivo destino de tais montantes.
Não consente assim o quadro legal e a interpretação que dele vem sendo efetuada pela jurisprudência que a mera exibição de extratos bancários que apenas evidenciam determinado circuito financeiro dos valores transferidos possa ser considerado contabilisticamente apto a densificar o conceito de justificativo quanto à natureza, origem ou finalidade da operação.
Assim, e em linha com o que se vem supra alinhando, não tendo a Requerente justificado documentalmente qualquer uma das operações a que se reporta o ponto 16 dos Factos Provados, não poderá deixar de improceder o peticionado por esta, sendo conforme ao enquadramento jurídico-fiscal aplicável a consideração enquanto despesas não documentados do montante de € 565.000,00 e nessa medida, a sujeição a tributação de autónoma, à taxa de 50%, nos termos do n.º 1 do artigo 88º do CIRC, conforme avançado pela AT, solução essa que se impunha, atento o vindo de expor.
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Encargos não aceites fiscalmente
Quanto a esta matéria, veio a AT a não aceitar o gasto fiscal relativo a lançamento contabilístico no valor de € 590.000,00, conforme decorre da matéria de facto dada como provada, vide pontos 19. a 21.dos Factos Provados.
Refere a Requerente, em abono da ilegalidade da correção efetuada pela AT, que reconheceu como gasto contabilístico e fiscal a quota-parte aplicável ao exercício de 2019 correspondente a um plano futuro de investimento.
Ora, conforme explicitamente refere a própria Requerente, o que aqui está em causa é um “investimento” (logo um ativo), e não gasto.
Em abono de tal contabilização enquanto gasto, a Requerente apresentou apenas enquanto justificação perante a AT, um orçamento para a construção de empreendimento C..., Lda.
Contabilisticamente (e, também, fiscalmente, atento o princípio de dependência parcial da fiscalidade face à contabilidade, que no caso não conhece distinto tratamento), para que um determinado investimento tenha impacto em resultados, é necessário, primeiramente, concretizar tal investimento, depois reconhecer o correspondente ativo e por fim proceder, na medida da utilização e/ou da passagem do tempo, à respetiva amortização ou depreciação, observando-se regras contabilísticas e fiscais especificas.
É através do reconhecimento das amortizações / depreciações que se procede ao cumprimento do princípio na especialização dos exercícios dos gastos com investimentos, princípio esse que a Requerente alega sem qualquer substrato contabilístico ou mesmo fiscal.
Acresce, por outro lado, que não obstante a natureza de tal dispêndio constituir um investimento sujeito a amortização/depreciação e não elegível enquanto gasto do período, certo é que, mesmo assim, se verifica não existir qualquer demonstração quanto à efetivação de tal invocado «gasto».
Isto porquanto não só o valor não se encontra registado na contabilidade ou evidenciado por qualquer outro modo como pago, nem sequer estando emitida qualquer fatura ou documento legalmente equiparado, nos termos do n.º 4 do artigo 23º do CIRC, limitando-se a Requerente apenas a contrapor pela mera afirmação que reconheceu um gasto por via de um “plano plurianual de investimentos”; isto mesmo antes de se mostrar efetuado o investimento.
Deste modo, é carecido de qualquer apoio contabilístico-fiscal a pretensa ilegalidade sustentada pela Requerente, inexistindo assim qualquer desconformidade legal também nesta matéria quanto às correções tributárias incorporadas na liquidação arbitralmente impugnada, na medida em que não se vislumbra como tal verba poderia ser enquadrável enquanto gasto fiscal para efeitos do artigo 23º do CIRC, pelo que não poderá deixar também esta causa de pedir ser considerada improcedente.
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DECISÃO:
Termos em que se decide:
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Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado relativamente à pretendida anulação, por ilegalidade, do ato de liquidação de IRC do exercício de 2019 supra melhor identificado, por não verificação de qualquer dos vícios que lhe vinham apontados pela Requerente e nessa sequência, absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido.
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Condenar a Requerente ao pagamento das custas nos termos da Tabela I do RCPTA, calculadas em função do valor da causa - arts. 4º-1, do RCPTA e 6º, n.º 2, al. a) e 22º, n.º4, do RJAT
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VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 97.º-A, n.º 1, c), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 477.510,09 (quatrocentos e setenta e sete mil, quinhentos e dez euros e nove cêntimos).
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CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem no valor de € 7.650,00 (sete mil seiscentos e cinquenta euros), a cargo da Requerente.
Lisboa, 31 de Julho de 2024
Os Árbitros
José Poças Falcão (Presidente)
Luísa Anacoreta
Luís Sequeira
[1] Ac. do TCA Sul de 06-04-2017, processo 164/12.0BEBJA, disponível em www.dgsi.pt
[2] Ac. do STA, de 29-06-2016, processo n.º 01095/15, disponível em www.dgsi.pt
[3] MARTINS ALFARO - Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária Anotado, Áreas Editora, 2003, pg. 290
[4] Ac. STA de 16.09.2020, proferido no processo 02256/19.6BEBRG, disponível em www.dgsi.pt
[5] Ac, TCA Sul de 08.05.2019, processo n.º 1119/16.1BELRA, disponível em www.dgsi.pt
[6] Ac. STA de 22 de fevereiro de 2017, no processo n.º 0837/15, disponível em www.dgsi.pt