Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 682/2023-T
Data da decisão: 2024-08-05  IVA  
Valor do pedido: € 10.542,89
Tema: IVA; Caducidade; Inquérito Criminal; Presunção de veracidade
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SUMÁRIO:

  1. O n.º 5 do artigo 45.º da LGT exige que ocorra identidade dos factos com base nos quais foi instaurado o processo-crime e os factos com base nos quais foi efetuada a liquidação.
  2. Consubstancia participação, para efeitos do artigo 27º do RCPITA, a comunicação do Ministério Público efetuada à AT, na qual se dá a conhecer a instauração de inquérito criminal e bem assim factos suscetíveis de relevar para efeitos de aferição da conformidade tributária.
  3. Não se pode considerar de per se por cessada a presunção de veracidade declarativa decorrente do n.º 1 do artigo 75º da LGT, quando se omita qualquer diligência no sentido de aferir junto do sujeito passivo quanto à consubstanciação em que fez assentar tal teor declarativo em matéria de IVA e quando os elementos pela AT coligidos não sejam solidamente concludentes em ordem a infirmar tal presunção.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro singular, Luís Sequeira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante apenas ‘CAAD’) para constituir o presente Tribunal Arbitral (TA) singular, no âmbito do qual se decide o seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

Onde é:

Requerente: A..., SP, RL (doravante “Requerente”)

Requerida: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” e “Requerida”)

 1. Relatório

A..., SP, RL, com o NIPC ... e com sede na ..., n.º ..., ...-... ..., doravante designado por Requerente, submeteu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) o pedido de constituição e de pronúncia por tribunal arbitral  (PPA) relativamente à decisão de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa (RG), a qual tinha por objeto a aferição da ilegalidade imputada às liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios (JC) dos períodos:

 - 2016 06T, n.º 2022 ..., no valor de € 3.910,00 de IVA e € 955,11 de JC;

- 2016 09T, nº 2022..., no montante de € 4.600,00 de IVA e € 1.077,78 de JC;

Em síntese, no PPA (cujo teor se dá por reproduzido) a Requerente fundamenta a ilegalidade da decisão silente de Reclamação Graciosa e bem assim dos supra identificados atos tributários, enquanto objeto mediato destes autos, assente no seguinte:

- caducidade do direito à liquidação nos termos do artigo 45º da LGT, com base na seguinte argumentação:

* a não suspensão do prazo de caducidade do direito de liquidação;

* o não alargamento do prazo de caducidade do direito de liquidação;

* a falta de correlação do crime com inspeção levada a efeito;

* a não conexão entre o IVA corrigido e o processo criminal;

* não suspensão do prazo de conclusão do procedimento de inspeção – artigo 36º, n.º 5 do RCPITA;

- Ilegalidade da inspeção:

* por se ter baseado numa denúncia manifestamente infundada;

* por não ter sido dado a conhecer à Requerente os fundamentos de aplicação da inspeção com base na denúncia;

* e por ser anónima (dado a AT não ter identificado o seu autor)

- Da não sujeição a IVA da prestação de serviços jurídicos a um sujeito passivo francês;

* da não aplicação do artigo 18.º do código do IVA;

* as menções nas faturas isentas de IVA não têm de indicar todas as informações disponíveis sobre um serviço prestado, por força da Diretiva IVA – artigo 226º;

* a Requerente está legalmente impedida de revelar “todos os factos cujo conhecimento  lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços” ante o dever de guardar sigilo.

* As correções em IVA resultam de meras especulações da AT, sem qualquer aderência a um meio de prova que as sustente, em violação das regras de localização da prestação de serviços previstas no artigo 6.º do CIVA, tendo a AT violado os Princípios do Inquisitório e da Verdade Material.

Em face do exposto, peticiona ainda o pagamento de juros indemnizatórios, em face de ter indevidamente pago as liquidações de imposto em causa.

De outra banda, respondeu a Requerida (cuja Resposta se dá igualmente aqui por reproduzida), pugnando pela improcedência dos pedidos formulados, invocando, sumariamente, o seguinte:

- Existe correlação entre o processo de inquérito e o PIT,

- Coincidência entre os impostos analisados no processo de inquérito e no PIT (IVA) – porquanto a não emissão de faturas poderá ter como consequência a não liquidação e consequente não entrega de IVA;

- Identidade de imposto e período temporal em análise

-Das faturas em causa consta que a operação é isenta, nos termos do n.º 6 do art.º 9.º do CIVA, porém, tal disposição nada tem que ver com as operações em análise, uma vez que a mencionada isenção respeita a “prestações de serviços ligadas à segurança e assistência sociais”

Concluindo dever ter sido liquidado IVA, ao abrigo da alínea b) do n.º 6 do art.º 6.º do CIVA, nos termos fundamentados no RIT.

O árbitro único foi designado em 15.11.2023.

Em conformidade com o previsto no artigo 11º n.º 1 alínea c) do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 06.12.2023.

O processo administrativo instrutor, incluindo a respetiva reclamação graciosa, veio a ser juntos a estes autos em 23.01.2024.

Data em que igualmente a Requerida veio a apresentar a sua Resposta, nos termos do artigo 17º do RJAT.

Quer a Requerente, quer a Requerida, requerido a produção de prova adicional e considerando que da Resposta oferecida pela Requerida não foi suscitada qualquer exceção, veio por despacho arbitral de 24.05.2024 a ser dispensada a realizada da reunião arbitral a que se refere o artigo 18º do RJAT e bem assim foram as partes instadas a, querendo, formular alegações escritas simultâneas, o que a Requerida, fez, dando por reproduzida a posição já anteriormente assumida em sede Resposta.

Foi no âmbito do supra aludido despacho decidida a prorrogação do prazo para a prolação de decisão arbitral por um período de dois meses, nos termos e para os efeitos do artigo 21º do RJAT, igualmente se deixando consignado que a mesma deveria ser prolatada até 04 de Agosto de 2024 e a taxa arbitral devida, paga até essa mesma data, data essa que veio a ser retificada para o subsequente dia 06.

2. Saneamento

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março), tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado tempestivamente. O processo não enferma de nulidades.

Não tendo sido erigidas exceções, nada obsta a que se conheça do mérito do pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente.

 

  3. Matéria de facto

3. 1. Factos provados:

Analisada a prova documental produzida, o posicionamento das partes face à factualidade trazida a estes autos, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade de advogados, a qual tem por objeto a “atividade de advocacia”.
  2. A Requerente foi objeto de ação inspetiva externa de âmbito parcial – IVA e IRC - a qual teve lugar assente em duas diferentes Ordens de Serviço (OI) OI2019... – referente ao ano de 2015 - e OI2019...– referente ao ano de 2016.
  3. Foram expedidas cartas-aviso através dos ofícios com os n.º 2019... e 2019..., datados de 04.09.2019.
  4. Fundada em tais OI’s, os PIT’s tiveram o seu início em 07.11.2019, através da assinatura pela Requerente das primeiras.
  5. Na mesma data, a Requerente foi notificada pessoalmente, nos termos do n.º 6 do artigo 36º do RCPITA, da suspensão do prazo para conclusão dos PIT’s de 2015 e 2016, em virtude de ter sido instaurado inquérito criminal, com o n.º .../2018...T9PTM, o qual teve na sua origem a extração de certidão a partir do processo n.º .../14...JAFAR.
  6. Por decisão da Procuradora-Adjunta junto do DIAP de Faro, foi determinada a remessa do processo de inquérito criminal n.º .../2018...T9PTM ao DIAP do Porto, aí se deixando consignado o seguinte:

 

- Cfr. Doc. 3 junto com o PPA.

  1. O processo de inquérito supra veio a ser objeto de arquivamento por decisão datada de 30.12.2021 pela Procuradora da República da Comarca do Porto – DIAP – 6ª Secção.
  2. No âmbito dos supra identificados PIT’s, veio a Requerente a ser notificada do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) – com despacho decisório de 23.09.2022 - através do qual se apurou uma omissão de liquidação de IVA nos períodos 1606T e 1609T, no valor de € 3.910,00 e € 4.600,00, respetivamente, assente na seguinte fundamentação:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. A Requerente veio a exercer o direito de audição, o qual veio a ser apreciado nos termos que adiante se deixam citados:

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

  1. A Requerente veio a ser notificada, em 13.10.2022, das respetivas liquidações de IVA e JC: período de 2016 06T, n.º 2022..., no valor de € 3.910,00 de IVA e € 955,11 de JC; período de 2016 09T, nº 2022..., no montante de € 4.600,00 de IVA e € 1.077,78 de JC;
  2. As liquidações vindas de identificar vieram a ser pagas pela Requerente em 28.11.2022.
  3. Em 27.09.2023, a Requerente veio a submeter o PPA que dá origem aos presentes autos.
  4. Em 29.05.2024, a Requerente procedeu ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3.2. Fundamentação da matéria de facto provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.ºdo RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, incluindo o processo administrativo instrutor, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados, não contestados pelas partes. 

4. Matéria de direito:

4.1.Objeto e âmbito do presente processo

Atentas as questões formuladas no PPA pela Requerente, tendo por farol o disposto no 124.º do CPPT, no qual se definem as regras sobre a ordem de conhecimento de vícios em processo de impugnação judicial, as quais, consabidamente são subsidiariamente aplicáveis ao processo arbitral, atenta a al. c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Resulta assim que a causa de pedir e o respetivo acervo factual relativo ao invocado vício de caducidade do direito de liquidação autónoma relativamente à questão de fundo ou de mérito, referente à não sujeição ou isenção de IVA da prestação de serviços jurídicos, pelo que se impõe iniciar a apreciação dos vícios assacados pelo relativo ao da invocada caducidade do direito à liquidação.

 

 4.2. Da caducidade do direito de liquidação:

Vejamos então o enquadramento legal em que se circunscreve a primeira das questões suscitadas pela Requerente nestes autos.

O prazo geral de exercício do direito de liquidação de IVA é de quatro anos (Cfr. art.º 45.º, n.º 1, da LGT) a contar do início do ano civil seguinte face à data em que o imposto se tornou exigível ou se verificou o facto tributário, uma vez que estamos em presença de IVA.

No dizer do n.º 4 do art.º 45.º da LGT: “O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.”

No caso sub judicio os factos tributários ocorreram e o respetivo imposto tornou-se exigível no decurso do ano de 2016 e as liquidações que emergiram foram produzidas em 2022, i.e., todas elas, depois do decurso do respetivo prazo geral de caducidade do direito à liquidação acima referido, de 4 anos (Cfr. n.ºs 1 e 4 do art.º 45º da LGT), pelo que, numa primeira leitura, tal direito estaria em 2022 precludido.

No entanto, sustenta a Requerida que, atento o estatuído no n.º 5 do artigo 45.º da LGT: “Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.” aquando da emissão e subsequente notificação à Requerente das liquidações em apreço, não se mostrava transcorrido esse mesmo prazo, atento o alargamento do prazo para exercício de tal direito de liquidação vindo de citar.

Conforme pacificamente decorre do estatuído em tal normativo, exige o legislador, para efeito do versado alargamento do prazo para exercício do direito à liquidação, que as liquidações se baseiem em factos sobre os quais foi instaurado inquérito criminal.

Pelo que, ao exigir-se que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, para aplicação do alargamento do prazo geral previsto no n.º 1 daquele normativo, é necessário, desde logo, que se demonstre que o direito de liquidação se baseia em factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal.

Isso mesmo dimana de jurisprudência reiterada dos tribunais superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), aqui se deixando parcialmente citado trecho que sintetiza a interpretação conferida sobre esta temática:

a contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art. 45º, nº 5, da LGT, só ocorre se o ato tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos[1]

Num outro aresto, o STA acordou no sentido de que “para que se verifique o pressuposto da aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT tem de haver uma correspondência entre os factos objecto de investigação no processo-crime e os factos que constituíram fundamento para a liquidação”[2]

Descendo ao caso em apreciação, não obstante a AT parecer assumir no RIT , como adquirida, a origem do procedimento inspetivo, certo é que esta nada documentalmente coligiu a este que permitisse consubstanciar o âmbito factual que estaria na base de tal inquérito criminal, consubstanciação essa que acabou por ter lugar pela junção pela Requerente ao PPA de cópia do despacho do DIAP de Faro em que se determina  a incompetência territorial deste.

Ora, ante o teor de tal despacho, resulta que do inquérito criminal está em causa a eventual prática de ilícitos criminais por parte (também) da Requerente, designadamente de fraude fiscal, p.p pelo artigo 103º do RGIT , fundado na suposta não emissão de (faturas) recibos pela cobrança de serviços jurídicos prestados ao cliente da Requerente – C... nos anos de 2015 e 2016.

Verificado o teor e a fundamentação para a correção levada a efeito pela AT em sede inspetiva, conclui-se que a mesma teve por base factos que se subsumiam no objeto do inquérito criminal e que se consubstanciavam, no que ao IVA concerne, na invocadamente desconforme, por defeito, titulação fiscal (faturação) pela Requerente relativamente aos serviços jurídicos prestados ao cliente vindo de identificar nos anos de 2015 e 2016.

A circunstância de se ter apurado que no âmbito daquelas prestações de serviços com o identificado cliente e no âmbito do período temporal a que se reporta o inquérito, terem sido emitidas faturas a esse mesmo cliente e sobre as quais recaiu a base para as correções em IVA decididas no procedimento inspetivo, em nada afasta estas dos factos sob investigação criminal, antes sedimenta a identidade objetiva entre os factos objeto desta última e as correções em IVA resultantes do procedimento inspetivo.

Independentemente da conformidade legal de tais correções (como adiante se apreciará), na perspetiva da AT, não obstante a faturação emitida, terá sido omitida nesta a liquidação de IVA e igualmente omitida a entrega nos cofres do Estado do respetivo IVA deixado de liquidar, relativamente aos serviços prestados a C... nos anos de 2015 e 2016.

Ora, a fraude é um crime fiscal previsto no artigo 103º do Regime Geral das Infrações Tributárias, a qual tem lugar quando a conduta considerada ilegítima visa a não liquidação, o não pagamento ou a não entrega de prestação tributária devida ou tem como objetivo obter, indevidamente, benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais que possam provocar diminuição de receitas tributárias.

Concluindo-se assim, que no âmbito do inquérito criminal estava em causa, não apenas a absoluta omissão de emissão de faturação pela Requerente no âmbito dos honorários que teria recebido do cliente já supra identificado, nos anos de 2015 e 2016, mas antes a necessidade de investigação relativa à indevidas vantagens patrimoniais suscetíveis de gerar diminuição de receita fiscal.

No caso sub judicio, está em causa, (na ótica da AT), uma omissão de liquidação e igualmente de entrega de imposto nos cofres do Estado, tangente aos serviços cobrados ao identificado cliente da Requerente, no âmbito temporal a que se reporta o inquérito criminal.

Assim, se quanto às correções emanadas do RIT em sede de IRC (depreciações/amortizações de equipamento), relação e muito menos identidade alguma se poderá vislumbrar, já quanto ao IVA, dúvidas não subsistem sobre a identidade objetiva dos factos em causa no inquérito criminal e aqueles que estão na base da liquidação de IVA – a  emissão de faturas/recibos pela Requerente, no âmbito de serviços jurídicos prestados pela Requerente a C... no período compreendido entre 2015 e 2016, das quais terá resultado a omissão de liquidação e de entrega de imposto nos cofres do Estado, in casu, em sede de IVA

Pelo exposto, não se pode acompanhar a tese propugnada, a este propósito, pela Requerente, quanto à aventada falta de identidade e muito menos de conexão, entre a factualidade objeto de inquérito e a decorrente do PIT em sede de IVA, pelo que inexiste fundamento legal para desaplicar o regime decorrente do n.º 5 do artigo 45º da LGT, pelo que não poderá deixar de relevar o efeito de alargamento do prazo de caducidade nos termos que de tal normativo dimana.

Considerando que se está perante liquidações de IVA de períodos de 2016 – junho e julho - nos termos do n.º 4 do artigo 45º da LGT, ex vi n.º 1 do artigo 94º do CIVA, o prazo de caducidade conta-se, no caso do IVA, desde o início do ano civil seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto.

No caso, atento o facto de as faturas em causa terem sido emitidas nos meses de junho e julho de 2016 e o disposto nos artigos 7º, n.º 1, al. b), 8º, nº 1, 29º, n.º 1, al. b) e artigo 36º, n.º 1, todos do CIVA, resulta que o termo inicial para efeitos de contagem de tal prazo teve lugar a 01.01.2017, facto sobre o qual as partes não dissentem.

Tal prazo de caducidade veio a alargar-se em 07.11.2019, por força da instauração de inquérito criminal (proc. n.º .../2018....T9PTM), nos termos do n.º 5 do artigo 45º da LGT, data em que a Requerente foi notificada da existência do referido processo de inquérito e bem assim do início do PIT .

Em virtude da decisão de arquivamento do inquérito, ocorrida em 30.12.2021, ter-se-á de desconsiderar para efeito de contagem de tal prazo, atento o regime decorrente do n.º 5 do artigo 45º da LGT, o período decorrido entre tal o facto determinante do alargamento do prazo e 30.12.2022 – um ano após a decisão de arquivamento.

Do exposto, resulta pois que a notificação dos atos tributários de IVA e JC aqui postos em crise foi efetivada decorridos que estavam menos de 3 anos após o termo inicial do prazo, ou seja, objetivamente dentro do prazo de 4 anos legalmente cominado, considerando o mecanismo de alargamento previsto no n.º 5 do artigo 45º da LGT.

Irrelevando, in casu, para a aferição da preclusão de tal direito à liquidação, a circunstância da eventual cessação de efeitos da diversa causa suspensiva, como aquela que decorre do disposto no n.º 5 do artigo 36º do RCPITA – por via da duração do PIT por período superior a 6 meses – dado o prazo de caducidade se ter alargado ao abrigo de diferente instituto e regime jurídico- n.º 5 do artigo 45º da LGT.

Igualmente sem provimento se conclui relativamente à argumentação da Requerente tangente à alegação segundo a qual o inquérito criminal ultrapassou o prazo estatuído no n.º 1 do artigo 276º do CPP – 8 meses – invocando assim que o eventual alargamento por via do do n.º 5 do artigo 45º da LGT estaria confinado a tal prazo máximo.

Importa reler o o já citado n.º 5 do artigo 45º da LGT, do qual resultam com linear clareza os critérios pelos quais o legislador decidiu regular o terminus do período de tal alargamento do prazo do direito à liquidação – arquivamento ou trânsito em julgado da sentença - se deverá reger e do mesmo não consta, nem implicitamente, o critério decorrente do prazo máximo do inquérito a que se apela a Requerente, nos termos do n.º 1 do artigo 276º do CPP.

Dispõe o art.º 11.º da Lei Geral Tributária, que a interpretação de normas fiscais obedece às seguintes regras:

“1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei.

3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4 - As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica.”

É consabido, que na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1 do CC, proíbe expressamente interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), o que só impedirá que se adotem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Assim a letra da lei assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, não poder “ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”[1].Também como refere OLIVEIRA ASCENSÃO, “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito”[2].

Ora, tendo presente o referente legal basilar em matéria de interpretação da norma jurídica e cotejados os diversos diplomas legais passíveis de aqui serem chamados à colação, não se vislumbra normativo que isolada ou conjugadamente, permita trilhar o caminho e sobretudo, a solução interpretativa a que a Requerente alude.

Isto porque, na verdade não se deteta em qualquer um dos normativos legais vindos de convocar, a existência de qualquer norma ou regra que admita uma interpretação como aquela que flui da posição veiculada pela Requerente, isto é, no sentido de determinar a cessação do efeito do alargamento por referência ao transcorrimento do prazo máximo do inquérito.

Ora, inexistindo normativo que consinta extrair esse entendimento, pelo menos a partir da letra da lei, mais exígua fica a hipótese e interpretação sustentada pela Requerente.

Mas se é certo que da letra da norma não se colhe tal regime, importa tentar que a letra da lei constitui o ponto de partida da interpretação da norma, devendo esta servir de referente ao intérprete para com base nela poder “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo”.

Assim, partir-se-á do texto da lei para densificar o espírito da lei, o pensamento, o sentido, que o texto da norma ou normas pretendem manifestar.

Sucedendo, no entanto, que em tal exercício, o intérprete está balizado pelos limites de interpretação definidos pelo artigo 9º do C. Civil, isto é, pela letra da lei, na medida em que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”;

Que o mesmo desagua em afirmar que, de entre os vários sentidos possíveis que a consideração de todos os elementos de interpretação possam sugerir ao intérprete (ou que resultem de aspetos puramente subjetivos do mesmo intérprete), não poderão ser considerados aqueles que não tenham na letra da lei alguma correspondência, ainda que mínima ou remota.

Sendo para mais igualmente pacífico que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador […] soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, razão pela qual na tarefa interpretativa caberá ao intérprete eleger o sentido e significado das normas interpretadas que mais ou melhor se aproximem do natural sentido e significado dessas mesmas normas objeto de interpretação.

É, assim, à luz destes normativos, que a questão será apreciada.

Vejamos, o legislador estabeleceu como um dos critérios para a cessação do efeito de alargamento do prazo a verificação de decisão de «arquivamento» ou o «trânsito em julgado da decisão».

Se o intuito legislativo fosse o de fazer cessar o efeito do n.º 5 do artigo 45º da LGT por via do mero transcorrimento do prazo do inquérito, não poderia deixar de, embora de forma imperfeitamente expressa, ter deixado de vincar na letra, ao menos parcialmente, essa intenção.

Ora, no caso em apreço, é manifesto que esse não pode ter sido o intuito legislativo, dada a ausência resultante da leitura da norma, que permita inferir esse mesmo critério invocado pela Requerente, de onde não pode a tese sustentada pela Requerente obter viabilidade.

Destarte, verificados que estão os pressupostos para tal alargamento do prazo de caducidade nos termos deste último regime – até 1 ano após a decisão de encerramento - a eventual cessação do efeito suspensivo que pudesse decorrer do n.º 5 do artigo 36º do RCPITA, sempre será irrelevante para efeitos de aferição da caducidade nos presentes autos, vista e demonstrada que está a subsunção dos factos à previsão do regime do n.º 5 do artigo 45º da LGT, por via da identidade objetiva dos factos entre o inquérito criminal e a factualidade subjacente às correções levadas a liquidação e objeto mediato destes autos.

Isto é, com ou sem recurso a tal suspensão do prazo por força do PIT, não se poderá deixar de concluir que a notificação das liquidações em apreço o foram em estreita conformidade com preceito vindo em último de supra referir, isto é, que foram efetuadas dentro do regime legal constante do artigo 45º da LGT.

b) Da ilegalidade da inspeção:

Defende igualmente a Requerente que o procedimento de inspeção é ilegal, inquinando, subsequentemente, as liquidações sub judicio, por:

i) se ter baseado numa denúncia manifestamente infundada;

ii) por não ter sido dado a conhecer à Requerente os fundamentos de aplicação da inspeção com base na denúncia;

iii) e por ser anónima (pelo menos a AT não deu a conhecer à Requerente a identidade do denunciante), o que, agregada à violação do princípio da legalidade inquina todo o procedimento de inspeção tornando as liquidações de IVA ilegais  Ilegalidade da inspeção:

Contrapôs a Requerida, rejeitando tal invocada ilegalidade inspetiva, destacando que o PIT foi motivado pela necessidade de controlo declarativo dos rendimentos associado à instrução do Processo de Inquérito n.º .../18.9T...PTM (cf. ponto II.2 do RIT onde se indica de forma expressa a motivação do PIT).

Está assim colocada em causa pela Requerente a legalidade do PIT, suportada nas premissas de que na origem do PIT esteve denúncia e que esta assume como anónima, na medida em que a AT não terá dado a conhecer a identificação do denunciante.

Analisemos, considerando o enquadramento jurídico-tributário em que gravita a temática suscitada pela Requerente.

Nos termos do n.º 1 do artigo 2º do RCPITA: “1 - O procedimento de inspecção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias.”                                         

Por sua vez, o artigo  6.º do RCPITA preceitua que: “ O procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo.”               

Já em matéria de seleção dos contribuintes para efeitos de procedimento inspetivo, dispõe o n.º 1 do artigo 27º do RCPITA:

“1- A identificação dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários a inspeccionar no procedimento de inspecção tem por base:

a) A aplicação dos critérios objetivos definidos no PNAITA para a atividade de inspeção tributária;

b) A aplicação dos critérios que, embora não contidos no PNAITA, resultem de orientações a nível comunitário ou internacional, sejam definidos pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira de acordo com necessidades conjunturais de prevenção e eficácia da inspeção tributária ou correspondam à aplicação justificada de métodos aleatórios;

c) A participação ou denúncia, quando sejam apresentadas nos termos legais;”

 

Dispõe o n.º 1 do artigo 60º do RGIT que:

“1 - Se algum funcionário sem competência para levantar auto de notícia tiver conhecimento, no exercício ou por causa do exercício das suas funções, de qualquer contra-ordenação, participá-la-á, por escrito ou verbalmente, à autoridade competente para o seu processamento.”

 

Por seu turno, dispõe o n.º 1 do artigo 70º da LGT que o al como se colhe do teor

“1 - A denúncia de infracção tributária pode dar origem ao procedimento, caso o denunciante se identifique e não seja manifesta a falta de fundamento da denúncia.

2 - O denunciante não é considerado parte do procedimento, nem tem legitimidade para reclamar, recorrer ou impugnar a decisão.

3 - O contribuinte tem direito a conhecer o teor e autoria das denúncias dolosas não confirmadas sobre a sua situação tributária.”

 

O citado compêndio legal, no seu artigo 67º e a respeito do “Direito à informação”, preceitua o seguinte:

1 - O contribuinte tem direito à informação sobre:

a) A fase em que se encontra o procedimento e a data previsível da sua conclusão;

b) A existência e teor das denúncias dolosas não confirmadas e a identificação do seu autor;

c) A sua concreta situação tributária.

2 - As informações referidas no número anterior, quando requeridas por escrito, são prestadas no prazo de 10 dias.”

 

Já no âmbito do CPPT, com eventual relevância para esta temática, atente-se no teor do artigo 37º:

“1 - Se a comunicação da decisão em matéria tributária não contiver a fundamentação legalmente exigida, a indicação dos meios de reacção contra o acto notificado ou outros requisitos exigidos pelas leis tributárias, pode o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento.

2 - Se o interessado usar da faculdade concedida no número anterior, o prazo para a reclamação, recurso, impugnação ou outro meio judicial conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida.

3 - A apresentação do requerimento previsto no n.º 1 pode ser provada por duplicado do mesmo, com o registo de entrada no serviço que promoveu a comunicação ou notificação ou por outro documento autêntico.

4 - No caso de o tribunal vier a reconhecer como estando errado o meio de reacção contra o acto notificado indicado na notificação, poderá o meio de reacção adequado ser ainda exercido no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão judicial. “

Por último, preceitua o n.º 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, o seguinte:”

  1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.”

Citados os preceitos supra, vistos os termos em que a Requerente recorta a sua causa de pedir e a factualidade considerada como provada, importa, desde já, relevar o facto de esta pressupor, sem mais, estar-se perante uma denúncia, indo até um pouco mais longe, ao apelidá-la de anónima, pela circunstância de a AT não ter dado a conhecer o seu suposto autor.

Deve, desde já, referir-se que não acompanhamos tal perspetiva.

E não a acompanhamos porquanto, a mesma não tem qualquer aderência ao acervo probatório supra, ou seja, em momento algum a Requerente indiciou, muito menos demonstrou a existência de denúncia, enquanto elemento-base, ou se quisermos, enquanto «rastilho» do impulso do procedimento inspetivo cuja legalidade é questionada.

De tal quadro factual dado por demonstrado nestes autos, resulta, antes sim, que o PIT em apreço se encontra alicerçado em comunicação do Ministério Público no âmbito do processo de inquérito criminal já identificado, o qual, por sua vez, decorre da extração de certidão judicial para o versado efeito, no âmbito do processo n.º .../14...JAFAR.

Isto é, não se vislumbra do RIT ou de qualquer outra documentação que se esteja perante PIT impulsionado por qualquer denúncia, muitos menos de natureza anónima.

Importa, a este propósito, clarificar que não obstante inexistir uma definição legal de «denúncia» especificamente consagrada para o âmbito fiscal, secundamos a posição que entendemos ser dominante sobre esta temática, no sentido de subsumir no conceito de «denúncia» “…um acto voluntário de um particular através do qual este dá a conhecer à Administração tributária determinados factos, situações ou circunstâncias que afectam o denunciado e que, caso se constate terem fundamento, poderá dar lugar ao início de um procedimento de inspecção.”[3].

Ora, como vimos de sustentar, na génese do sindicado PIT não se vislumbra que se esteja perante qualquer ato voluntário de transmissão de determinada informação por um particular à AT, a qual possa afetar os interesses da pessoa ou entidade objeto da mesma.

Sendo que, igualmente, nada decorre quanto à natureza anónima da mesma à mesma apontada.

Isto é, da conjugação da factualidade supra selecionada para o acervo probatório, colhe-se antes  que na origem do PIT está inquérito criminal cujos factos foram participados pelo Ministério Público à AT, em obediência, entre outros, ao já citado n.º 1 do artigo 60º do RGIT. 

Factos, situações e/ou circunstâncias essas que advieram ao conhecimento do Ministério Público no âmbito do processo judicial n.º .../14...JAFAR, que determinaram a requerimento de demais intervenientes processuais ou do próprio juiz titular a decisão de extrair decisão para o Ministério Público, por se entender que tal factualidade era suscetível de constituir ilícito crimimal, in casu, de natureza fiscal.

Resulta, em suma, que o PIT tem origem perfeitamente identificada e fundada em comunicação tipificada na al. c) do n.º 1 do artigo 27º do RCPITA, no caso, através de participação efetuada pelo Ministério Público, no âmbito do já identificado inquérito criminal, pelo que se mostra destituída de fundamento a tese pela Requerente avançada quanto à origem do PIT

Em qualquer caso, sempre se dirá que então entendendo a Requerente (sem apoio legal, como aqui se vem sustentando) que estava em causa PIT instaurado com base em denúncia (e não em participação – no seguimento da instauração de inquérito criminal cuja informação havia sido extraída de elementos de processo judicial), a qual reputa de anónima, sempre estava na disponibilidade lançar mão dos mecanismos previstos na al. b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 67º da LGT.

Sempre sem prejuízo de, entendendo que o RIT notificado era omisso (na perspetiva desta, irregularmente) relativamente ao suposto denunciante, poder ativar o expediente legal constante do artigo 37º do CPPT, o que a Requerente optou por não efetuar.

Destarte, ao optar por não desencadear qualquer um destes expedientes legais, inevitavelmente que a Requerente colocou-se em posição de permitir a sanação da omissão, veja-se neste sentido, como bem anota Jorge Lopes de Sousa a propósito do artigo 37º do CPPT, Código de Procedimento e Processo Tributário – Anotado, Volume I, 6.ª edição, 201, p. 352: “Por isso, a única interpretação que confere sentido útil à inclusão daquelas referências à reclamação e á impugnação, parece ser a de que se, não for requerida a notificação dos requisitos omitidos, no prazo referido no n.º 1, a omissão deixa de ser relevante para afectar a produção de efeitos do acto de notificação e, consequentemente, ficará assegurada a eficácia do acto notificado.” No mesmo sentido veja-se Serena Cabrita Neto et Al., Contencioso Tributário, Volume I, 2017, p. 297: “se o destinatário do acto não utilizar o mecanismo previsto no artigo 37º do CPPT sana-se a irregularidade da notificação. ... Sanados os vícios do acto de notificação, não se poderá alegar a ineficácia do acto notificado ou a notificar.”

  Ante o alinhado, conclui-se que o PIT teve o seu impulso e génese na instauração de inquérito criminal, no âmbito do qual o Ministério Público deu a conhecer à AT o seu respetivo objeto, sendo que tal inquérito advém da extração de certidão quanto a informação/factualidade colhida em sede de processo judicial e que o respetivo juiz titular entendeu relevante/pertinente para efeitos de apuramento de eventuais ilícitos criminais fiscais, designadamente, de fraude fiscal, p.p. no artigo 103º do RGIT,

Pelo vindo de expor, não poderá deixar de improceder também o pedido, nesta causa de pedir – ilegalidade da inspeção – alicerçada.

 

c) Da ilegalidade das liquidações:

Sustenta, por fim, a Requerente e no que ao mérito das correções determinadas em sede inspetiva e em matéria de IVA respeita, que não podia a AT concluir pela ilegalidade de tais atos tributários, por não sujeição a IVA da prestação de serviços jurídicos a um sujeito passivo francês; as correções não têm qualquer aderência a um meio de prova que as sustente, em violação das regras de localização da prestação de serviços previstas no artigo 6.º do CIVA, tendo a AT violado os Princípios do Inquisitório e da Verdade Material. da não aplicação do

Contrapõe a AT, pugnando pela legalidade das correções, considerando que as operações em causa se devem ter por localizadas em Portugal, ao abrigo da alínea b) do n.º 6 do art.º 6.º do CIVA, nos termos fundamentados no RIT.

Analisemos.

Estão em causa no presente dissenso três faturas emitidas pela Requerente ao cliente desta, com morada aposta, de França, tendo sido aposto número de identificação fiscal francês.

Sobre as referidas faturas não foi liquidado IVA, tendo a Requerente feito constar a seguinte descrição: “Serviços jurídicos” e IVA isento ao abrigo da alínea a) do n.º 9 do artigo 6º do CIVA, isento IVA art. 9º”.

Resulta assim que, na perspetiva da Requerente, sobre tais serviços prestados não deveria recair a liquidação de IVA, por força, quer da localização da operação – fora de Portugal –  al. a) do n.º 9 do artigo 6º, quer, por força de isenção prevista no artigo 9º do CIVA.

Vejamos, antes de mais, do direito probatório aplicável à situação vertente, de molde a determinar a quem compete o ónus da prova nesta matéria.

Dispõe o artigo 74.º n.º 1 da LGT que: "o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.", o que se encontra em linha com a disposição do Código Civil, artigo 342.º, n.º 1, " Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado."

É hoje pacífico o entendimento entre a jurisprudência e a doutrina no sentido de que cabe à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua atuação e que, por outra banda, compete ao contribuinte provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca.

Ainda assim, sobre as declarações do Requerente, existe a presunção de veracidade e de boa-fé, princípio base consagrado no artigo 75.º da LGT, o qual prescreve:

"Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.".

Sendo que, ocorrerá o afastamento da presunção de veracidade quando:

2- A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;

b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;”

Descendo ao caso em apreciação, da conjugação dos normativos vindos de enunciar, temos que, colocado em causa, como veio a ser o enquadramento das três faturas para efeitos de IVA, beneficiava a Requerente, num primeiro momento, de presunção de veracidade declarativa relativamente aos pressupostos nas quais enformou as faturas, nos termos do n.º 1 do artigo 75º da LGT.

Competindo assim à AT, em sede de PIT, solicitar à Requerente, com vista a esta esclarecer, comprovar e documentar as operações em causa, inclusivamente, demonstrar e justificar a sua relevância e consistência tributárias, recorrendo a meios de prova documental e, se necessário, complementar com prova testemunhal os elementos fáticos que sustentam a conformidade dos termos em que assentaram os pressupostos de enquadramento em sede de IVA promovidos em tais faturas.

Ou dito de outro modo, confrontar a Requerente com o ónus de consubstanciar a conformidade da presunção de que beneficiava, nos termos do n.º 1 do artigo 75º da LGT, assim dando cumprimento ao dever de colaboração ínsito na al. d) do n.º 3 do artigo 59º da LGT, nos termos do qual: “3 - A colaboração da administração tributária com os contribuintes compreende, designadamente: d) A notificação do sujeito passivo ou demais interessados para esclarecimento das dúvidas sobre as suas declarações ou documentos;”

Face ao posicionamento assumido no RIT é objetivo concluir que, no mínimo, a AT tinha dúvidas quanto à conformidade de tais faturas no que à não liquidação de IVA se refere, mas nem tal entendimento levou a que, atento os supra enunciados dispositivos legais, suscitasse esclarecimentos sobre as razões que levaram a tal enquadramento em matéria de IVA, quando não podia desconhecer da presunção de veracidade de que a Requerente beneficiava.

Tal diligência seria essencial para aferir da conformidade tributária de tais pressupostos em matéria de não liquidação de IVA, seja por via localização das operações, seja por via da isenção invocada, na medida em que através dela se permitiria aferir, desde logo (e independentemente do que se viesse a apurar no decurso da inspeção), da subsistência ou não de tal presunção de veracidade ou da maior ou menor solidez em que a decisão de não liquidação de IVA nas referidas faturas se respaldava.

Compulsados os elementos documentais constantes destes autos, onde se inclui, evidentemente, o RIT, o respetivo Processo Administrativo instrutor (do qual só consta o relatório final e a Recl. Graciosa), entre outros, não se colhe que a AT assim tenha diligenciado. 

Ou seja, a AT, no âmbito do PIT, tomou um rumo distinto, focalizando-se, dir-se-á, exclusivamente, nos elementos colhidos no processo de inquérito.

O que o fez, expondo informação diversa sobre o cliente de nacionalidade francesa da Requerente em causa – como seja, identificações utilizadas, números de contribuinte emitidos em Portugal, atividade exercida - referindo-se ainda ao facto de a Requerente ter efetuado diversos serviços jurídicos em Portugal, designadamente, tendo patrocinado o cliente em causa no âmbito do processo judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Feira, Secção Criminal J3 e pese embora o teor do RIT não seja assertivo nesta matéria, parece apontar para a conclusão segundo a qual as faturas se refeririam a serviços prestados no âmbito de tal processo judicial.

Ora, importa considerar que o que está em causa perscrutar no que concerne a esta temática é se as faturas em causa titulariam ou não serviços em Portugal localizados, conforme defende a Requerida, sendo certo que a Requerente juntou aos autos recibo verde eletrónico emitido em nome do sócio desta, cujo adquirente do serviço de advocacia corresponde ao do cliente francês a favor do qual se encontram emitidas as faturas objeto das correções em IVA.

Com este posicionamento inspetivo, a AT, por um lado eximiu-se e alheou-se in totum de, no âmbito do PIT, aferir dos elementos em que a Requerente se baseou para assumir declarativamente a decisão de não liquidar IVA sobre tais serviços jurídicos e por outro, deu por acertada a conclusão segundo a qual tais serviços prestados se teriam por localizados em Portugal, logo, sujeitos a IVA.

Quando, efetivamente, ante o quadro legal em matéria probatória vindo de supra citar, se imporia «testar» a presunção de veracidade de que a Requerente beneficiava, estabelecida no n.º 1 do artigo 75º da LGT, com vista à descoberta da verdade de material, atento o princípio do inquisitório – artigo 58º da LGT – e da colaboração – artigo 59º do versado compêndio legal - para além do mais lato princípio da legalidade a que a AT está vinculada.

Isto é, impunha-se que a AT tivesse aferido – p.ex. através de notificação a levar a efeito no âmbito do PIT - da consistência (ou falta dela) dos pressupostos em que a Requerente se havia baseado em ordem a considerar inexistir IVA a liquidar por tais serviços e não a ab initio pressupor e dar por adquirido, como se afigura ter ocorrido no caso, pela desconformidade de tal enquadramento escritural, baseada essencialmente em elementos constantes do processo de inquérito que estiveram na base de tal PIT e dos quais não flui conclusão minimamente sólida de que os serviços jurídicos a que se reportam as faturas correspondam efetivamente ao processo judicial que correu termos no Tribunal da Feira ou a qualquer outro que permitisse reconduzir a localização a território nacional, nos termos do artigo 6º do CIVA.

Sendo para mais factual, que o sócio da Requerente emitiu recibo por serviços de idêntica natureza ao referido cliente, desta feita, utilizando NIF português, quando é certo que o cliente, de nacionalidade francesa, tinha também número de contribuinte francês, o qual foi utilizado para efeito das faturas aqui em escrutínio.

Não se olvida a razão que assiste à AT quando refere que a descrição constante das faturas («serviços jurídicos») é vaga, sendo os serviços jurídicos, em tese, suscetíveis, de se considerar localizados em Portugal ou fora dele, em função do concreto tipo de serviço em causa, o que reforça a premência  da AT indagar junto da Requerente a informação e documentação em que se havia baseado para justificar o enquadramento conferido às faturas em sede de IVA e não de tal realidade, voluntariamente, se afastar.

Até porque, “A Jurisprudência Comunitária permite que o sujeito passivo demonstre através de prova complementar os serviços prestados, a extensão dos mesmos e a data concreta em que os mesmos foram celebrados, contudo não pode servir esse desiderato uma, exclusiva e genérica, prova testemunhal, tendo a parte de carrear aos autos meios de prova complementares que permitam alcançar, de forma inequívoca, o objetivo de determinação concreta da natureza e extensão das operações realizadas e bem assim a data, efetiva, da sua prestação.”[i][4]

Ao se abster de tais diligências – as quais in casu se reputam de essenciais face ao concreto circunstancialismo em causa - de aferição quanto à subsistência da presunção de veracidade decorrente do n.º 1 do artigo 75º da LGT e face aos elementos carreados para o RIT, os quais se reputam de insuficientes em ordem a demonstrar a tese sufragada pela Requerida, não se pode dar por abalada a aludida presunção, incorrendo assim a decisão silente e as respetivas liquidações de IVA e JC de ilegalidade, por erro nos pressupostos de facto e de direito que inquinam as correções em apreço e das quais resulta objetivo excesso de quantificação.

 

 

 

d) Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida e bem assim ao pagamento do imposto indevidamente pago

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

Ante o reconhecimento supra sobre a existência de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o erro imputável aos serviços, que justifica a obrigação de juros indemnizatórios.

Tendo havido lugar a pagamento das liquidações de imposto em 28.11.2022, o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios deve-se ter por constituído na versada data .

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos tributários e da respetiva decisão silente, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, desde 28.11.20223, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT) e bem assim à reconstituição da situação que existiria caso o ato(s) ilegal não tivesse sido praticado, o que se reconduz, inexoravelmente, ao reembolso da Requerente do valor de imposto indevidamente satisfeito.

5. DECISÃO:

 

Destarte, atento a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral, decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral  e anular a decisão silente de reclamação graciosa e bem assim os atos tributários de liquidação de IVA e JC de 1606T e 1609T 2016, com os n.ºs 2022 ... e 2022 ..., respetivamente, com base em vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito dos quais resultou excesso de quantificação dos atos tributários.
  2. Julgar procedente o pedido de direito a juros indemnizatórios e bem assim condenar a Requerida ao estorno da prestação tributária indevidamente paga,
  3. Condenar a Requerida ao pagamento das custas, face ao decaimento obtido com a presente decisão, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Fixa-se o valor do processo em €10.542,89 (dez mil, quinhentos e quarenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), nos termos do artigo 97.°-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária,

Notifique-se esta decisão arbitral às partes e, oportunamente, arquive-se o processo.

Lisboa, 05 de Agosto de 2024

  

O Árbitro

 

                                                    Luís Sequeira

 

 

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e por mim revisto.

 



[1] Acórdão do STA, de 11.05.2016, no Processo 1071/14, disponível em www.dgsi.pt

[2] Acórdão do STA, de 08.09.2021, no processo 0831/15.7BECBR, disponível em www.dgsi.pt

[3] REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA (RCPIT) ANOTADO E COMENTADO, Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira.

[4] Ac. do TCA Sul, proferido no processo n.º 1603/10.0BELRA, de 09.06.2022, disponível em www.dgsi.pt