Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 547/2023-T
Data da decisão: 2024-08-01  IRS  
Valor do pedido: € 4.098,08
Tema: IRS – Residente não habitual; Efeitos do registo.
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Sumário:

A inscrição no registo de residentes não habituais tem natureza exclusivamente declarativa e não efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respetivo regime.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

  1. No dia 25 de julho de 2023, A..., contribuinte fiscal nº..., residente na ..., nº ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º do RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/01), visando a anulação do ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa nº ...2023..., de 23 de dezembro de 2022, deduzida em relação ao ato de liquidação de IRS de 2021 e correspondentes juros compensatórios.
  2. Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que o regime do residente não habitual constitui um benefício fiscal automático, tendo o pedido de inscrição como residente não habitual natureza meramente declarativa, motivo pelo qual o facto de ter entregue o pedido de inscrição para além do prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, não obsta a que beneficie daquele regime.
  3. No dia 25 de julho de 2023, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT e ao Requerente.
  4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  5. No dia 13 de setembro de 2023, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar, pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído no dia 3 de outubro de 2023.
  6. No dia 6 de outubro de 2023, a AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação e juntou o processo administrativo.
  7. Na resposta apresentada, a AT sustenta que a causa de pedir centra-se na condição de residente não habitual do Requerente, que corresponde a um benefício fiscal dependente de reconhecimento.
  8. Posto isto, continua a AT, a impugnação do ato de benefício fiscal é autónoma em relação ao ato de impugnação, o que significa que o meio adequado para reagir é a ação administrativa especial.
  9. No dia 3 de novembro de 2023, o Requerente foi notificado da resposta da AT e, no dia 16 de novembro de 2023, apresentou um requerimento, no qual sustenta que o que está em causa nos presentes autos não é a apreciação do pedido de qualificação do Requerente como residente não habitual, mas sim a declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2022..., relativa ao ano de 2021.
  10. No dia 30 de março de 2024, o tribunal proferiu um despacho, no qual determina que a exceção invocada pela AT pode ser decidida no final, para além de dispensar a reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT, tendo em conta que isso foi requerido pela AT, não tendo havido qualquer oposição por parte do Requerente. No mesmo despacho, o Tribunal prorrogou o prazo por 2 meses, ao abrigo do disposto no artigo 21º do no artigo 21º do RJAT, por ter dúvidas em relação ao sentido da decisão.
  11. No dia 3 de junho de 2024, o tribunal proferiu novo despacho a prorrogar, pela última vez o prazo de decisão, por continuar com dúvidas em relação ao sentido da decisão.
  12. O Tribunal Arbitral é, como se verá, materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
  13. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112A/2011, de 22 de Março.
  14. O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação da causa, pelo que cumpre proferir decisão.

 

II. Factos provados

  1. - O Requerente é um cidadão português que residiu na Colômbia no período compreendido entre os anos de 2016 e 2020.
  2. A partir do ano de 2021, o Requerente passou a residir em Portugal, razão pela qual apresentou, no dia 4 de junho de 2022 a declaração de IRS referente ao ano de 2021.
  3. O Requerente declarou a totalidade dos rendimentos obtidos e assumiu a qualidade de residente não habitual, razão pela qual anexou à declaração modelo 3 do IRS o anexo L.
  4. A AT não aceitou a qualificação como residente não habitual e, consequentemente, desconsiderou o referido anexo L.
  5. Como consequência, foi emitida a liquidação nº 2022..., de 16 de junho de 2022, da qual resultou imposto a pagar no montante de € 4 098,08 (quatro mil e noventa e oito euros e oito cêntimos).
  6. De forma a evitar a instauração do processo executivo, o Requerente efetuou o pagamento do imposto.
  7. No dia 18 de novembro de 2022, o Requerente apresentou um pedido formal de inscrição como residente não habitual no cadastro tributário e, no dia 23 de dezembro de 2022, apresentou uma reclamação graciosa, recebida no dia 27 de dezembro de 2022, em relação ao ato de liquidação do IRS anteriormente mencionado.
  8. Até à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, a AT não tinha proferido qualquer decisão sobre a supra mencionada reclamação graciosa, razão pela qual presumiu o indeferimento tácito.
  9. Não se conformando com a ausência de decisão, o Requerente apresentou no dia 24 de julho de 2023 o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

III. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

IV. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (Artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (Anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, nº 7 do CPPT, a prova documental e o PA, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

V. DO DIREITO

a. Do erro na forma do processo

Na defesa apresentada, a Requerida invoca o erro na forma do processo, uma vez que, a seu ver, o que está em causa é um pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual para o ano de 2021, tendo como fundamento a ilegalidade da decisão administrativa.

Na sua ótica, a matéria controvertida nos presentes autos é relativa à não aplicação do regime previsto para os residentes não habituais, razão pela qual entende que “o ato de indeferimento tácito apresentado pelo Requerente é um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação”, concluindo assim que a forma processual correta é a ação administrativa especial.

O Requerente, por seu lado, argumenta que “não pretende que o tribunal aprecie a questão da atribuição do estatuto de residente não habitual, mas sim que o tribunal arbitral declare a ilegalidade da liquidação efetuada pela AT que, para além do mais, excluiu o anexo L, por entender que o Requerente não reúne os requisitos legais para usufruir do estatuto de residente não habitual.

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse “um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o inicialmente previsto, não contemplando uma competência alternativa à da ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, e “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art.º 2.º” fazendo depender a vinculação da administração tributária de “portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

O âmbito da jurisdição arbitral tributária está, assim, delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material da competência, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, nos termos seguintes:

            “a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

            b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;”

Dado o carácter voluntário da sujeição à jurisdição arbitral, numa segunda linha “a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que a Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º, n.º 1 do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça”.

A competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial. Como se decidiu nos processos n.ºs 262/2018-T e 188/2020-T, “é à face do pedido ou conjunto de pedidos que formulou o autor que se afere a adequação das formas de processo especiais, designadamente o processo arbitral.” – www.caad.org.pt

O Requerente formula um pedido muito concreto, no qual pede a anulação do ato de indeferimento tácito da Reclamação graciosa referente à liquidação do IRS de 2021 e, consequentemente, a respetiva anulação, bem como a anulação dos correspondentes juros compensatórios que lhes subjazem.

Na esteira da lição do Juiz-Conselheiro Jorge Lopes, “Embora na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT apenas se faça a referência explícita a competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações[1]

O Requerente apresentou uma reclamação graciosa da liquidação do IRS de 2021 e, na sequência do indeferimento tácito dessa reclamação, apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

O presente pedido arbitral tem como objeto mediato a liquidação de IRS do ano de 2021 e como objeto imediato a decisão de indeferimento tácito da Reclamação graciosa, pelo que não está em causa nos presentes autos conhecer de qualquer outra decisão, nomeadamente, de caráter administrativo, como alega a AT.

Na verdade, o Requerente não apresentou o pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade do ato de indeferimento da sua inscrição como residente não habitual nem a reclamação graciosa teve esse fundamento.

No caso em apreço, o Requerente impugnou o ato de liquidação do IRS, o qual teve por base, entre outros pressupostos, o não enquadramento do Requerente no regime dos residentes não habituais.

Considerando a formulação do presente pedido arbitral, tal como vem exposta no pedido arbitral, que versa sobre a impugnação do ato de liquidação do imposto, expressamente prevista no artigo 2º, nº 1, alínea a), do RJAT como matéria de competência dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, conclui-se não haver erro na forma do processo, pelo que não pode proceder a alegação invocada pela AT.

 

b. Aplicabilidade do regime do residente não habitual aos rendimentos do Requerente

A questão principal a analisar e decidir no presente processo consiste em saber se o Requerente, a despeito de não ter, no prazo previsto na lei, requerido o seu registo como “residente não habitual”, ao abrigo do nº 10 do art.º 16 CIRS, tem o direito de ser tributado ao abrigo do regime dos residentes não habituais no ano de 2021.

O regime dos residentes não habituais encontrava-se, à data dos factos tributários, estabelecido nos números 8 a 12 do art.º 16.º do CIRS, que dispunham:

  1. - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
  2. O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
  3. O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.
  4. O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.
  5. O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.

O Requerente, conforme a matéria de facto dada como provada, esteve ausente de Portugal desde o ano de 2016 até ao ano de 2020, tendo regressado em 2021, ano em que se tornou residente no território português.

É assim manifesto que o Requerente cumpria, no momento em que regressou a Portugal e aqui passou a residir, o requisito temporal previsto no n.º 8 do art.º 16.º.

Não obstante, a verdade é que apenas no dia 18 de novembro de 2023 o Requerente solicitou à Autoridade Tributária a sua inscrição como “residente não habitual,” e não no prazo estabelecido no n.º 10 do mesmo art.º 16.º.

Uma vez que o referido requerimento não tinha sido ainda apreciado à data da entrada do presente PPA, o Requerente sustenta que tal não prejudica o seu direito a ser tributado pelo regime dos “residentes não habituais,” verificados que estão os requisitos materiais para a aplicação desse regime.

Nessa conformidade, o Requerente entregou a sua declaração de rendimentos referente ao ano de 2021, acompanhada do respetivo anexo L, referente ao regime dos “residentes não habituais.”

A junção do anexo L é entendida como um pedido, dirigido à AT, para ser tributado pelo regime dos “residentes não habituais”, sendo certo, porém, que a AT assim não entendeu e efetuou a liquidação do IRS do ano de 2021 de acordo com o regime normal de tributação aplicável aos residentes.

Por essa razão, o Requerente apresentou uma reclamação graciosa que, por não ter sido decidida no prazo de 4 meses, originou um indeferimento tácito.

Sustenta a AT que nenhuma ilegalidade afeta o ato de liquidação, uma vez que este assenta no pressuposto de que o Requerente não se encontrava, à data, registado como “residente não habitual.”

Considera o Requerente, por seu turno, que o facto de não se encontrar registado como “residente não habitual” não é impeditivo de ser tributado pelo respetivo regime, sendo, sim, decisivo e determinante que se preencham os requisitos materiais estabelecidos na lei para esse efeito.

Assim, importa aferir nos presentes autos se o registo como “residente não habitual,” previsto, à data dos factos, no n.º 10 do art.º 16.º, constitui um requisito formal necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime respetivo.

De acordo com o disposto no nº 10 do art.º 16º do CIRS, “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.”

O direito a ser tributado como residente não habitual depende, portanto, como se vê, apenas de o sujeito passivo “ser considerado residente não habitual”.

Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo, já que o n.º 8 é perfeitamente expresso e inequívoco ao dizer que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

Deste modo, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem dois requisitos, a saber:

  1. Ter-se tornado fiscalmente residente num determinado ano;
  2. Não ter sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

Afigura-se assim evidente que a letra das disposições relevantes não permite a conclusão de que o registo como residente habitual é requisito para a aplicação do regime.

Tal como conclui a decisão arbitral proferida no processo n.º 188/2020-T, a inscrição como “residente não habitual” prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS é “uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito.”

Por se nos afigurar inteiramente acertada, aderimos à fundamentação adotada na decisão referida, a qual passamos a transcrever:

“Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo especialmente e desde logo de notar que a norma em causa não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não  habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto, não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega das declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.

(...)

Não tendo, como acima se referiu, o pedido de inscrição como residente não habitual, natureza constitutiva do direito a ser tributado enquanto tal e, cumprindo o Requerente, os requisitos materiais de que depende a aplicação daquele regime, sempre deveria o Requerente ser tributado de acordo com aquele regime.”

 

Conclui-se, em suma, que o Requerente cumpre os requisitos previstos nos nºs 8 e 9, os quais são os únicos requisitos exigidos pela lei para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime dos “residentes não habituais.” 

Deste modo, o ato de liquidação que determinou para o Requerente a tributação pelo regime normal dos residentes fiscais em Portugal é ilegal por erro nos pressupostos de direito.

 

c. Juros indemnizatórios

Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 2, e 100.º da LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

E, como há muito vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da prática de um ato ilegal, por iniciativa da Administração Tributária.

Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efetuar liquidação afetada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado.

Assim, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor, contados nos termos referidos e calculados sobre a quantia de IRS paga indevidamente, nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 1 al. b) do RJAT e artigos 100.º e 43.º da LGT.

 

VI. Decisão

Face ao exposto, o tribunal decide:

  1. Declarar a ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IRS nº 2022..., de 16 de junho de 2022, no montante de € 4 098,08 (quatro mil e noventa e oito euros e oito cêntimos), referente aos rendimentos do ano de 2021, por não ter sido aplicado ao Requerente o regime dos residentes não habituais;
  2. Declarar a ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa nº ...2023..., de 23 de dezembro de 2022, referente ao IRS do ano de 2021;
  3. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante do imposto indevidamente pago, calculados à taxa legal desde a data de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa até à efetiva restituição.

 

VII Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 4 098,08 (quatro mil e noventa e oito euros e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 (seiscentos e doze euros), a pagar pela AT, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

Lisboa, 1 de agosto de 2024

 

O Árbitro

(Paulo Lourenço)

 

 

 



[1] Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 121