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SUMÁRIO:
1. Em face do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Código de Imposto de Selo, embora a concessão de crédito se concretize na utilização do crédito, é aquela e não esta que constitui o facto tributário de imposto de selo.
2. A concessão de crédito está sujeita a imposto de selo, qualquer que seja a sua natureza e forma, relevando, contudo, para a respetiva concretização a efetiva utilização do crédito concedido.
3. O artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Código do Imposto de Selo apenas faz uma ampliação excecional da regra geral da territorialidade no sentido de considerar, como elementos de conexão relevantes, as operações de crédito realizadas por entidades não residentes, dirigidas a entidades residentes em território nacional, sendo que mesmo nestes casos o lugar da utilização de crédito é territorialmente irrelevante.
4. A não aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) e h), do Código do Imposto do Selo às situações em que o devedor não tem sede ou direção efetiva em Portugal, mas sim noutro Estado-Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais tutelada pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1RELATÓRIO
1. A..., S.A., pessoa coletiva e contribuinte n.º..., com sede no ..., ..., ..., ..., ...-... Porto Salvo, e com o capital social de 15.000.000,00€, estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Oeiras ... (doravante “A...” ou Requerente) e sendo acompanhada nos termos legais pela Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), veio, em 15.03.2024, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a declaração da ilegalidade e a anulação do indeferimento da reclamação graciosa e das autoliquidações de imposto de selo (IS) relativas a operações de utilização de crédito e referentes aos períodos de setembro de 2021 a junho de 2022[1], no montante total de € 32.639,25, e o reconhecimento do direito ao reembolso do imposto indevidamente pago, com juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 18.03.2024.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 08.05.2024.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c), do n.º 1, e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 28.05.2024.
6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 02.07.2024, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida de todos os pedidos.
7. Por ter sido requerida e ter sido considerada necessária, foi dispensada a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações finais, salvo requerimento em contrário.
8.Não tendo havido requerimento nesse sentido, verificou este Tribunal que as partes prescindiram da apresentação de alegações finais, prosseguindo para a decisão do pleito.
1.1Dos factos alegados pelo Requerente
9. A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objeto social a criação, produção, exportação, importação e distribuição, por grosso ou a retalho de produtos eletrónicos e eletrodomésticos, bem como quaisquer peças, componentes, equipamentos e maquinaria e, bem assim, a venda e manutenção dos mesmos, sendo a totalidade do capital social, bem como dos direitos de voto da requerente, detida, desde 31.12. 2005 – incluindo nos exercícios de 2021 e 2022 em causa – pela sociedade “mãe” B... B.V. (adiante “B...”), sociedade de direito holandês constituída sob a forma legal de “Besloten Vennootschap (comparable with Private Limited Liability Company)”, com sede nos Países Baixos, que corresponde à “holding” europeia do Grupo C... .
10. Para além de ser a única acionista da requerente, a B... BV detinha ainda, à data dos factos e desde 01.0.2006, no que ora releva, a totalidade do capital social e mais de 50% dos direitos de voto de uma outra sociedade “irmã” da Requerente, a D... B.V. (adiante “D... BV”), sociedade de direito holandês constituída sob a forma legal de “Besloten Vennootschap”, com sede nos Países Baixos, sendo à data dos factos a Requerente e a D... BV detidas pela “holding” europeia do Grupo C..., a B... BV e integrando todas estas sociedades – a “mãe” e as “filhas” – o consolidado do grupo internacional C..., encabeçado pela sociedade E... Inc., com sede na Coreia do Sul (por sua vez, acionista única da B... BV).
11. No âmbito da organização do Grupo C... em que se insere, a Requerente celebrou com a sua “irmã” D... BV, em 05.12.2007, um contrato denominado de “In House Banking Agreement”, tendo por objeto a implementação de um sistema de gestão de fluxos financeiros entre a A... e a D... BV, para incremento da eficiência e simplificação das transações intra-grupo, sendo os fundos transferidos para uma conta centralizadora denominada “IHB Account”, cujo saldo credor corresponde a uma obrigação não garantida da D... BV e cujo saldo devedor corresponde, por sua vez, a uma obrigação não garantida da Requerente.
12. Em causa estão transferências diárias de excedentes de liquidez apurados pelas empresas participantes no contrato e alocados às necessidades de tesouraria das empresas em cada momento, derivando a utilização de crédito no âmbito do referido contrato de cash pooling em vigor entre a requerente e a D... BV (independentemente de quem assume o papel credor ou devedor, a A... ou a D... BV) de transferências de liquidez apuradas pelas empresas participantes no contrato, alocadas às necessidades de tesouraria da Requerente ou da D... BV que se verifiquem a cada momento, designadamente para proceder a pagamentos internos, pagamentos a fornecedores e, bem assim, a outras entidades.
13. Nos termos do In House Banking Agreement, os valores que são disponibilizados em conta bancária (conta número 31737028 no banco ...) correspondem a excedentes ou necessidades de tesouraria que derivam de recebimentos de clientes e pagamentos a fornecedores (e não de quaisquer linhas de crédito contratadas junto de instituições financeiras), os quais são transferidos, por sua vez, para uma outra conta bancária (conta número 31737001, também no banco ...), sendo posteriormente transferidos para a D... BV, o que corresponde à movimentação na conta centralizadora “IHB Account” encontrando-se a utilização de crédito disponibilizada através da conta centralizadora “IHB Account” sujeita a um limite máximo (“Credit Maximum”) e por um período não superior a um ano, resultando da soma dos saldos em dívida/crédito apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30 as posições mensais credoras e devedoras da Requerente, sobre as quais incidiu o IS.
14. Face aos saldos registados, e por entender que os fluxos financeiros da A..., S.A. – na movimentação associada ao contrato de cash-pooling celebrado com a D... BV – registados no âmbito do “In House Banking Agreement” (cash-pooling agreement ou gestão centralizada de tesouraria) configurariam, à data dos factos, uma operação enquadrável na Verba 17.1.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo (adiante “TGIS”), a Requerente procedeu então à liquidação do imposto devido, no montante total de € 32.639,25, sobre “a soma dos saldos em dívida/crédito apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30”.
1.2Argumentos das partes
15. O Requerente sustenta a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:
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Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto de Selo (CIS), “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”. determinando, a Verba 17.1 da TGIS a incidência do IS sobre operações financeiras, incluindo a “utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título”;
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Relativamente ao nascimento da obrigação tributária no caso das operações de crédito, estabelece o artigo 5.º, n.º 1, alínea g), do CIS, que tal ocorre “no momento em que forem realizadas ou, se o crédito for utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outro meio em que o prazo não seja determinado nem determinável, no último dia de cada mês”;
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O facto tributário a considerar para efeitos de sujeição a IS é a efetiva utilização do crédito e não o contrato que lhe é subjacente, visto que a mera celebração do contrato de concessão de crédito nem sempre gera facto tributário do imposto;
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A relevância da utilização de crédito, enquanto facto tributário, decorre da reforma do IS, operada por efeito da Lei n.º 150/99, de 11.09, a qual veio corrigir o paradigma de tributação, que assentava na existência de atos e contratos, para passar a dar relevância apenas a operações que revelassem manifestações de capacidade contributiva;
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Quando a utilização do crédito for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que coincide com a data de celebração do contrato de concessão de crédito e quando não for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que não coincide com a data de celebração do contrato concessão de crédito, não sendo as aberturas de crédito especialmente tributadas enquanto tal utilização não se verifique;
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O princípio constitucional da igualdade em sede tributária impõe a interpretação segundo a qual o IS só é devido quando se verifique tal aumento de liquidez, elemento essencial de legitimação do tipo fiscal, porquanto apenas nesse momento se verifica uma manifestação de capacidade contributiva suscetível de tributação (artigos 13.º, 103.º e 104.º da CRP);
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A Requerente não é uma sucursal, isto é, não constitui um estabelecimento estável de uma entidade não residente em Portugal, sendo que, para além de tal facto decorrer dos documentos anteriormente juntos (e já constavam do anterior procedimento administrativo), isso é do necessário e pessoal conhecimento cadastral da AT, antes é uma sociedade anónima, com personalidade jurídica, não sendo detida pela D... BV com quem celebrou o contrato de cash pooling em causa, na medida em que ambas as sociedades são “irmãs”;
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O capital social da requerente e o da D... BV são detidos, na sua totalidade, pela holding europeia do Grupo C..., a B... BV (conforme documentação anteriormente junta e que a requerente juntou em sede de procedimento administrativo), essa, sim, sociedade “mãe” de cada uma das empresas que é parte no contrato de cash pooling aqui em causa;
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Por referência ao contrato de gestão centralizada de tesouraria (cash pooling), as operações de transferência de saldos entre a conta da A... (participante ou aderente) e a conta da D... BV (entidade centralizadora), bem como os movimentos de transferência inversos, da conta agregada a favor da conta devedora, consubstanciam financiamentos obtidos/concedidos através da realização de operações de tesouraria, sujeitos ao IS previsto na citada verba 17.1.4. da TGIS;
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Tendo em atenção as regras de territorialidade previstas no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do CIS, será tributada a utilização, por uma empresa portuguesa, de crédito proveniente da uma entidade não residente, por aplicação da verba 17.1.4 da TGIS, competindo àquela a liquidação e entrega do imposto nos cofres do Estado, quando seja utilizadora do crédito;
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No caso em análise, a entidade financiadora (mutuante) é a Requerente e a entidade financiada é a D... BV, com sede nos Países Baixos e gestora dos excedentes de tesouraria das demais empresas do Grupo, que, sendo estrangeira, não está obrigada a IS à luz do direito português, pois o facto tributário a considerar é a utilização do crédito e só haverá lugar a tributação de IS apenas quando o mesmo (i.e. a utilização do crédito) ocorra em território nacional, o que não se verifica quando o mutuante seja entidade com sede em Portugal e o mutuário não seja residente em território português;
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Da conjugação da Verba 17.1 da TGIS com a norma de incidência territorial constante do n.º 1 do artigo 4.º do CIS, resulta um critério de conexão estritamente formal, segundo o qual há incidência de IS quando o facto tributário – utilização dos fundos – ocorra em território nacional, sendo o crédito utilizado no local em que o capital é recebido pelo mutuário;
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A extensão da alínea b), do n.º 2, do artigo 4.º do CIS pretende assegurar que sempre que as operações de crédito revelem um mutuário domiciliado em Portugal, o facto tributário considera-se localizado em Portugal, independentemente do local onde o crédito é efetivamente utilizado, sendo que na situação em que o mutuário é residente fora de Portugal e o mutuante é residente em Portugal, o crédito será utilizado no domicílio do credor, fora do território português, não havendo incidência do IS;
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Ao retirar da previsão do n.º 2 do artigo 7.º do CIS as situações em que o credor (e apenas este) é residente num Estado da União Europeia, o legislador já sabia que não fazia qualquer sentido alargar aos devedores da União Europeia idêntica salvaguarda porque, nessas situações, não haveria incidência de IS, por ser o crédito utilizado fora do território português;
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Esta leitura da lei, para além da mais consonante com a sua letra e os conceitos técnicos usados na construção do facto tributário (“utilização de crédito”), é também a única que se articula com o IVA, com o imposto oficialmente alternativo a este IS (cfr. o artigo 1.º, n.º 2, do CIS), no qual as exportações de bens e serviços não são também em regra sujeitas a tributação;
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Nas operações em causa relativamente às quais a A... assumiu a posição de mutuante face à D... BV, são ilegais as correspondentes liquidações de IS no montante de 32.639,25€, por violação do disposto no artigo 4.º, n.º 1, e n.º 2, alínea b), do CIS;
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Ainda que se conclua pela sujeição a IS das referidas operações de crédito nas quais a A... assumiu a posição de mutuante face à D... BV, entende a Requerente que são ilegais os atos de liquidação de IS aqui em causa, por violação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alíneas g) e h), na medida em que entende serem aplicáveis ao caso concreto a isenção prevista nas referidas normas;
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Com a Lei n.º 2/2020, de 31 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 2020, que entrou em vigor em 01.05.2020), o legislador consagrou no referido artigo 7.º, do CIS, uma isenção de IS especificamente dirigida aos empréstimos concedidos por sociedades no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedade com a qual se encontrem em relação de domínio ou de grupo;
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No caso, o IS resultou de operações de financiamento / utilização de crédito, exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria, os créditos foram concedidos por prazo não superior a um ano, ocorrendo o seu reembolso sempre antes de decorrido um ano e a conceção ocorreu entre a A... e a D... BV sendo que estas e a B... BV estão em relação de grupo, não só porque esta domina as primeiras, mas também porque as mesmas são, por sua vez, em 100% dominadas, direta ou indiretamente, pela sociedade E... Inc., com sede na Coreia do Sul;
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Tendo atenção a relação de grupo entre mutuante (A...) e mutuária (D... BV), o facto de a sociedade mutuária D... BV ser domiciliada em Estado Membro da União Europeia, concretamente nos Países Baixos, e o facto de o presente caso se subsumir em tudo o mais nas isenções previstas no artigo 7.º., n.º 1, alíneas g) e h) do CIS, esta não pode deixar de ser aplicada, sob pena de discriminação não tolerada pelos artigos 63.º e 65.º do TFUE respeitantes à liberdade de circulação de capitais;
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Apesar de a redação do disposto no n.º 2, do referido artigo 7.º, do CIS[2], parecer afastar, discriminatoriamente, a isenção, nas operações realizadas ao abrigo do contrato de cash pooling em causa nas quais a Requerente tenha assumido o papel de credora e a D... BV o papel de devedora[3] – porquanto, não tendo ambas as sociedades sede ou direção efetiva em Portugal, as referidas isenções apenas poderiam aplicar-se nos casos em que (cfr. o n.º 2 do mesmo artigo 7.º) o “o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia”, já que apenas em tais casos, o legislador expressamente prevê que “subsiste o direito à isenção” – tal interpretação da lei constituiria, contudo, para além de um verdadeiro absurdo, uma ilegalidade, por corresponder na prática a uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais consagrada no 63.º do TFUE;
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Esta restrição à isenção constante do n.º 2, do artigo 7.º, do CIS, ao aplicar-se exclusivamente a situações em que uma das partes esteja noutro Estado Membro, ao criar condição adicional para a isenção exclusivamente aplicável a situações em que uma das partes esteja noutro Estado Membro, que não se aplica quando ambas estejam em Portugal, é ela mesma, a par com a totalidade deste n.º 2, inválida, por violação da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia;
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Não subsistem dúvidas de que, ao contrário do que sustentou a AT no procedimento de reclamação graciosa, verifica-se neste caso o pressuposto subjetivo legalmente exigido para aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alíneas g) ou h), do CIS;
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A Requerente suportou, e legalmente tinha que suportar, o IS liquidado com respeito às operações de utilização de crédito aqui em causa, imposto este num total de 32.639,25€ pelo que, declarada a ilegalidade das liquidações aqui em causa, a requerente tem direito não só ao respetivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, a juros indemnizatórios, contados desde a data do indeferimento da reclamação graciosa, isto é, desde 29.12.2023.
16. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:
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As operações de gestão centralizada de tesouraria (cash pooling), traduzidas em movimentos de cedência e tomada de fundos, representam verdadeiras operações financeiras, pois a relação jurídica estabelecida entre as sociedades credoras e devedoras do capital e juros e a sociedade centralizadora concretiza-se através de financiamentos concedidos/obtidos que representam efetivas operações de crédito, quaisquer que sejam a sua forma ou prazo, pelo que se encontram sujeitas a IS nos termos prescritos no CIS e respetiva Tabela Geral (cf. n.º 1 do artigo 1.º do CIS e verba 17.1.4 da TGIS);
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O In House Banking Agreement a que a Requerente aderiu, pressupõe a abertura e existência de uma conta corrente financeira na qual serão registadas todas as transferências efetuadas de e para a entidade centralizadora, a D... BV, pelo que lhe é aplicável a verba 17.1.4 da TGIS;
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O sujeito passivo neste tipo de operações económicas é a entidade concedente do crédito (cf. alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS), ou a entidade mutuária se a operação não for intermediada por uma instituição de crédito ou sociedade financeira (cf. alínea d), do n.º 1, do artigo 2.º do CIS), considerando-se as operações financeiras realizadas em território nacional (cf. n.º 1 e alínea b), do n.º 2, do artigo 4.° do CIS) mesmo quando a entidade devedora e/ou credora seja uma entidade não residente em território português;
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Os empréstimos em causa foram concedidos em Portugal apesar de o destinatário dos mesmos ter residência fora deste território, pelo que, competia à Requerente, enquanto entidade concedente do crédito e sujeito passivo do imposto, liquidar, cobrar e entregar nos cofres do Estado o imposto repercutido à D... BV, sedeada nos Países Baixos, conforme decorre da alínea b), do n.º 1. do artigo 2.º, da alínea f), do n.º 3, do artigo 3.º, da alínea g) , do artigo 5.º, do n.º 1 do artigo 9.º, do n.º 1 do artigo 22.º, do n.º 1 do artigo 23.º, dos artigos 41.° e 43.° e do n.º 1 do artigo 44.º, todos do CIS;
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Não se retira da conjugação das regras de incidência objetiva, previstas na verba 17.1 da TGIS, nem da territorialidade, prevista no artigo 4.º do CIS, em especial do seu n.º 1, ou até da alínea b), do seu n.º 2, que o legislador tenha alguma vez desejado que os créditos concedidos por uma entidade com residência em território nacional a favor de uma entidade não residente, constituíssem operações financeiras não sujeitas a IS pelo simples facto de esta última ter o seu domicílio fiscal no estrangeiro;
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Se acolhêssemos o entendimento da Requerente distinguindo, para efeitos de sujeição, os fluxos financeiros (concessão/utilização de crédito) realizados exclusivamente entre entidades com sede ou direção efetiva em território nacional e entre estas e entidades com sede ou direção efetiva no estrangeiro estaríamos a discriminar fiscalmente umas em favor de outras, ofendendo o princípio da igualdade de tratamento, da capacidade contributiva e a provocar, por essa via, uma distorção da concorrência, desconsiderando o princípio da neutralidade fiscal;
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Perante fluxos financeiros materialmente idênticos aos aqui contestados, as sociedades residentes beneficiárias de crédito estariam sempre sujeitas ao pagamento de IS, ao passo que as não residentes beneficiárias de crédito, como no presente caso, não estariam sequer sujeitas, independentemente do local de utilização efetiva desses fundos que poderia até ocorrer em território nacional;
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Perante uma situação destas a Requerente conseguiria, a final, obter um tratamento fiscal mais favorável do que o dispensado a outras empresas que praticassem o mesmo tipo de operações financeiras, o que não se compagina com o disposto no CIS, que não discrimina para efeitos de tributação entre entidades residentes e entidades não residentes que realizem operações financeiras que preencham o campo de incidência do IS;
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Para efeitos de sujeição, não existe qualquer discriminação entre entidades, uma vez que estas normas de incidência relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações financeiras legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade, território ou tipo societário das entidades nelas envolvidas;
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No entendimento da Requerente, qualquer emigrante que recorresse a um financiamento junto de um banco português para adquirir um imóvel em Portugal nunca estaria sujeito a IS pelo crédito concedido porque a sua residência é no estrangeiro, independentemente do mútuo obtido ter sido efetivamente cá utilizado ou bastaria que uma empresa nacional constituísse uma empresa veículo no estrangeiro para passar a estar fora da incidência do imposto devido pela verba 17.1 da TGIS;
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No sentido de o facto tributário ser a concessão do crédito aponta a globalidade do regime legal, ao considerar sujeito passivo quem concede o crédito, de harmonia com o disposto na alínea b), do artigo 2.º, do CIS, incumbindo-o da liquidação do IS devido por operações de crédito (nos termos do n.º 1 do artigo 23.º do mesmo Código) e impondo-lhe a obrigação de efetuar o seu pagamento (cf. artigo 41.º do CIS);
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O facto de apenas haver lugar a tributação quando o crédito concedido for utilizado, que resulta da verba 17.1 da TGIS, não obsta ao entendimento do legislador de que as “operações financeiras” que se pretendem tributar são as de concessão de crédito, mas que apenas se consideram concretizadas no momento em que o crédito concedido é utilizado;
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A obrigação de liquidar o imposto legalmente devido por parte do sujeito passivo só ocorre no momento em que o crédito concedido é utilizado ou, tratando-se de créditos concedidos e utilizados sob a forma de conta-corrente, como no caso de cash pooling, no último dia de cada mês, conforme determina a alínea g), do n.º 1, do artigo 5.º do CIS;
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O facto tributário a que se referem as verbas que compõem a verba 17.1 da TGIS é constituído pela “utilização de crédito (...) em virtude da concessão de crédito”, incidindo o imposto sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito, sendo esta a operação financeira que é objeto de incidência no âmbito de todas as situações previstas na verba 17 da TGIS, não podendo a utilização do crédito ser dissociada da sua concessão, nem do local onde o mesmo é concedido;
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A existência de um contrato de cash pooling, no plano jurídico, não basta para demonstrar que os pressupostos da isenção em causa se verificam, efetivamente, na realidade, cabendo à Requerente, por força do n.º 1, do artigo 74.º, da LGT, demonstrar os pressupostos da isenção, sendo que a mera invocação de que as transferências de saldos são efetuadas no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria não constitui prova suficiente para a demonstração de que os créditos concedidos se destinam a suprir carências de tesouraria da beneficiária;
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Conforme se extrai, entre outras, da cláusula (1.iv.) do apêndice 1 do contrato “In House Banking Agreement” – que, para além de eventuais necessidades de tesouraria, permite que a D... BV, em representação da Requerente, atue em contratos cambiais FX (Spot, Forward Future, Currency Swap e outros derivados), bem como em contratos de facilitação de crédito, incluindo acordos com instituições financeiras estrangeiras – o contrato em causa não se destina apenas a suprir carências de tesouraria, pressuposto cuja falta se torna determinante para interpretação e aplicação da norma de isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS;
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O benefício fiscal apenas pode ser concedido, se tais fundos não tiverem sido previamente obtidos pela D... B.V. por recurso a financiamentos junto de instituições de crédito ou sociedades financeiras, ou vice-versa, o que compete provar à A..., nos termos do artigo 74.º da LGT;
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O facto de o contrato prever uma duração inicial de um ano – cláusula 3.1 – não significa que essa tenha sido efetivamente a realidade dos factos, sendo esta estipulação um mero indício já que o contrato, para além de prever a sua renovação automática e não ter sido denunciado antes de findo o primeiro ano, é uma mera forma jurídica que pode não ter adesão à realidade, pelo que mesmo que se entendesse que a execução rigorosa do contrato na realidade não geraria operações tributáveis, daí não decorreria, per se, que essa execução rigorosa tivesse efetivamente ocorrido na realidade, o que sempre haveria que demonstrar;
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O que se exige é que os capitais sejam emprestados em prazo não superior a 1 ano, independentemente do que figure no contrato, havendo que apurar relativamente a cada operação financeira, quer a data de utilização do crédito em virtude da sua concessão, quer a data do respetivo reembolso, tendo que existir por cada influxo financeiro o correspondente exfluxo, que deve ser realizado no prazo máximo de um ano;
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A utilização de crédito em virtude da sua concessão derivada da execução de contratos de gestão centralizada de tesouraria remete-nos para o contrato de conta corrente (cf. artigo 344.º do Código Comercial) em que a regularização do crédito é feita por encontro de contas, não sendo a referência a uma data que o crédito deva ser liquidado indicativa do momento exato em que se verificará o termo da relação creditícia entre as entidades intervenientes, antes tendo efeito meramente suspensivo do encerramento da conta e do termo do contrato;
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Da análise dos extratos contabilísticos da conta grupo #11037701 no período decorrido entre setembro de 2021 a junho de 2022, não é possível extrair qualquer conclusão clara quanto ao prazo de permanência dos valores que integram o saldo inicial da conta nem dos valores entrados/saídos durante cada ano naquele período, cujo o saldo final a 30 de junho de 2022 se mantém bastante alto, nunca “zerando”;
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Verifica-se o incumprimento dos pressupostos cumulativos de que depende o direito às isenções das alíneas g) e h), do n.º 1, do art.º 7º do CIS, na medida em que a Requerente não conseguiu demonstrar de formal cabal e inequívoca que o crédito foi concedido para suprir carências de tesouraria, nem que o mesmo foi concedido por um período inferior a um ano, sendo forçoso concluir que a Reclamante não pode usufruir das mesmas;
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Só se estaria perante uma situação suscetível de constituir uma violação da livre circulação de capitais se o IS devido em Portugal pela obtenção do crédito não pudesse ser neutralizado pela D... BV, entidade gestora/mutuária, ao abrigo das leis neerlandesas, cabendo à Requerente, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, o ónus de provar a não dedutibilidade do imposto repercutido à D... BV pela utilização de crédito concedido em Portugal.
1.3. Saneamento
17. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
18. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).
19. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
2FUNDAMENTAÇÃO
2.1Factos dados como provados
20. Com base nos documentos constantes do Processo Administrativo (PA) e trazidos aos autos e são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
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A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objeto social a “criação, produção, exportação, importação e distribuição, por grosso ou a retalho de produtos eletrónicos e eletrodomésticos, bem como quaisquer peças, componentes, equipamentos e maquinaria e bem assim, a venda e manutenção dos mesmos”; (Docs. n.ºs 4 e 5)
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A totalidade do capital social, bem como dos direitos de voto da requerente, é detida, desde 31.12.2005, incluindo os exercícios de 2021 e 2022, pela sociedade B... BV; (Docs. n.ºs 6, 7, 8, 9, 10, 11,14 e 15)
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A B... BV, sociedade de direito holandês constituída sob a forma legal de “Besloten Vennootschap”, com sede nos Países Baixos, é a “holding” europeia do Grupo C...; (Docs. n.º 16 n.º 17)
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Para além de ser a única acionista da requerente, a B... BV detinha ainda, à data dos factos e desde 1 de Janeiro de 2006, no que ora releva, a totalidade do capital social e mais de 50% dos direitos de voto de uma outra sociedade: a D... BV, sociedade de direito holandês constituída sob a forma legal de “Besloten Vennootschap”, com sede nos Países Baixos; (Docs. n.ºs 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26 e 27)
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À data dos factos a Requerente e a D... BV eram detidas pela “holding” europeia do Grupo C..., a B... BV, e integrando todas estas sociedades, o consolidado do grupo internacional C..., encabeçado pela sociedade E... Inc., com sede na Coreia, acionista única da B... BV; (Docs. n.ºs 16 e 17, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 37);
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A Requerente celebrou com a D... BV, em 05.12.2007, um contrato denominado de “In House Banking Agreement”; (Docs. n.ºs 38 e 39)
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Nos termos do “In House Banking Agreement”, a utilização de crédito disponibilizada através da conta centralizadora “IHB Account” encontra-se sujeita a um limite máximo (“Credit Maximum”) e por um período não superior a um ano; (Docs. 38 a 46).
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Da soma dos saldos em dívida/crédito apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30, resultam as posições mensais credoras e devedoras da Requerente, sobre as quais incidiu o IS; (Docs. 38 a 42)
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O IS em causa resultou de operações de financiamento / utilização de crédito, exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria; (Docs. n.ºs 1, 2 e 38 a 46);
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Os créditos em causa foram concedidos por prazo não superior a um ano, porquanto o reembolso dos montantes em causa ocorreu sempre antes de decorrido esse período de um ano; (cfr. Docs. n.ºs 40 a 46);
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Os créditos em causa foram concedidos entre a A... e a D... BV em relação de grupo; (cfr. Docs. n.ºs 4 a 46)
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A B... BV é titular da totalidade do capital social da A..., bem como de 100% dos direitos de voto, desde 31.12.2005; (Docs. n.ºs 6, a 15)
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A B... BV é titular da totalidade do capital social da D... BV, bem como de mais de 50% dos direitos de voto, desde 01.01.2006; (cfr. Docs. n.ºs 18 e 19)
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A A... e a B... BV, estão em relação de grupo, não só porque uma domina a 100% outra, mas também porque são por sua vez 100% dominadas direta ou indiretamente pela sociedade E... Inc., com sede na Coreia do Sul; (Docs. n.ºs 16, 18, 28 a 37)
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A Requerente procedeu então à liquidação do imposto devido, no montante total de € 32.639,25, sobre a soma dos saldos em dívida/crédito apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30. (Docs. n.ºs 12, 38, 39, 41, 42).
2.2Factos não provados
21. Com relevo para a decisão do caso em apreço não existem factos não provados.
2.3Motivação
22. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
23. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
2.4Questão decidenda
Facto tributário e territorialidade
24. A Requerente submete à apreciação deste Tribunal Arbitral a legalidade do indeferimento da reclamação graciosa, na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade das citadas liquidações de IS referentes aos períodos de setembro de 2021 a junho de 2022, e, bem assim, a legalidade das mesmas liquidações no montante total de 32.639,25€, em termos que suscitam duas questões interligadas, uma de direito nacional e outra no direito da União Europeia. No direito nacional está em causa a eventual desconformidade com a legislação interna, por violação do artigo 4.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do CIS (princípio da territorialidade) e bem assim, por violação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alíneas g) e h) e n.º 2, do mesmo Código (isenção). No direito da União Europeia está em causa a desconformidade com os artigos 63.º e 65.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (adiante “TFUE”), por injustificada discriminação e restrição da liberdade de circulação de capitais.
25. As questões em causa têm por base um contrato denominado de “In House Banking Agreement” celebrado, em 05.12.2007, no âmbito da organização do Grupo C..., entre a Requerente A... e a sociedade “irmã” D... BV – por um período inicial de 1 ano renovável por períodos sucessivos de 1 ano[4] – tendo por objeto a gestão centralizada da tesouraria (cash pooling) pela implementação de um sistema de gestão de fluxos financeiros entre as duas sociedades, para incremento da eficiência e simplificação das transações intra-grupo, sendo os fundos transferidos para uma conta centralizadora denominada “IHB Account”, cujo saldo credor corresponde a uma obrigação não garantida da D... BV e cujo saldo devedor corresponde, por sua vez, a uma obrigação não garantida da Requerente, no quadro de uma relação de conta corrente entre as partes[5].
26. No quadro da factualidade relevante para o caso, a norma de incidência objetiva constante do artigo 1.º, n.º1, do CIS, dispõe que o “[o] imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”, recaindo o encargo do imposto sobre titulares de interesse económico nas situações referidas no artigo 1.º (ex vi artigo 3.º n.º 1, do CIS). No que toca à incidência subjetiva, o artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do CIS considera sujeitos passivos de IS as entidades concedentes de crédito, dispondo o artigo 3.º, n.º 3, alínea f), do CIS que o titular de interesse económico na concessão de crédito é o respetivo utilizador. Tanto o mutuante como o mutuário revelam, a seu modo, capacidade contributiva na operação de concessão de crédito – respetivamente, disponibilidade para ceder o crédito e disponibilidade para remunerar o crédito obtido – verificando-se que, nos casos em que o concedente de crédito está sujeito a IS, o respetivo custo económico é suportado pelo utilizador do crédito, que sofre a respetiva repercussão.
27. O artigo 4.º, n.º 1, do CIS, dispõe que, regra geral, o IS incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional, incidência que se estende, nos termos do n.º 2, a operações de crédito referidas na alínea b). Os contratos de “cash pooling”, que se reconduzem à categoria genérica de contratos de conta corrente (artigos 344.º a 350.º do Código Comercial), geram fluxos financeiros entre as empresas de um mesmo grupo económico que constituem, indiscutivelmente, movimentos de concessão e obtenção de crédito, permitindo que o grupo opere uma gestão de necessidades de fundos, através de compensação diária com os excedentes, evitando o recurso a métodos de satisfação das necessidades de tesouraria que passam pelo financiamento externo, propiciando uma gestão eficiente das disponibilidades de tesouraria através de um mecanismo de compensação entre excessos e necessidades de tesouraria dentro das empresas do grupo que participem neste sistema, reduzindo assim custos de transação e reforçando a posição negocial na busca de financiamento externo[6].
28. É hoje consensual, na doutrina e na jurisprudência, que este tipo de transferências de excedentes de tesouraria se reconduz ao conceito de operações enquadráveis na verba 17.1.[7] – abrangendo a utilização de crédito em virtude da concessão de crédito – sustentando a jurisprudência do STA que estas operações estão sujeitas à tributação em IS nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1 do CIS e da verba 17.1.4 da TGIS[8], que sujeita a uma taxa de 0.04% o crédito utilizado sob a forma de conta corrente sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30. Esta verba do IS permite, em princípio, tributar as transferências de saldos entre a Requerente, enquanto empresa nacional, e a sociedade “irmã” sediada nos Países Baixos, devendo tais transferências de saldos ser qualificadas como financiamentos concedidos também para efeitos do disposto no artigo 4º do CIS.
29. Seguindo uma orientação já preconizada pelo STA – com plena consciência de que se trata de uma questão muito controversa na jurisprudência ordinária e arbitral[9] – incumbiria em princípio à Requerente, a liquidação do IS, na qualidade de concedente do crédito, que seguidamente o deveria debitar à sociedade “irmã” D... BV não residente. De acordo com esta leitura, tais transferências de saldos, tanto são tributadas quando ocorrem entre empresas nacionais, entre empresas de Estados-membros ou até entre empresas de Estados-membros e de países terceiros, aplicando-se sempre as normas constantes dos artigos 1º. n º 1, 2º, alínea b), 3º, n.º 1, alínea f), 4º, n.º 1, 23º, n.º 1, 41º e 44º, todos do CIS. Esta leitura tem o mérito de respeitar o princípio da interpretação em conformidade com o Direito da União Europeia, adequando-se às normas do artigo 63º do TFUE e 40º do Acordo EEE, que consagram a livre circulação de capitais e o princípio da não discriminação, uma vez que estas normas relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações económicas legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade ou da residência, quando duas empresas operem nas mesmas condições.
30. Subjacente a esta orientação do STA está o entendimento de que, embora – para efeitos do CIS – o titular do interesse económico, sobre quem recai o encargo do IS, seja o utilizador do crédito, nos termos da mencionada alínea f), do n.º 3, do artigo 3.º do CIS, o facto tributário é a concessão de crédito, o que se afigura decorrer do próprio texto daquela alínea ao referir que se considera titular do interesse económico “na concessão do crédito, o utilizador do crédito” e não “na utilização do crédito, o utilizador do crédito”, como seria adequado se o facto tributário fosse a utilização. No mesmo sentido de o facto tributário ser a concessão do crédito aponta a globalidade do regime legal, ao considerar sujeito passivo quem concede o crédito, de harmonia com o disposto na alínea b), do artigo 2.º, do CIS, incumbindo-o da liquidação de IS devido por operações de crédito (nos termos do n.º 1 do artigo 23.º do mesmo Código) e impondo-lhe a obrigação de efetuar o seu pagamento (cf. artigo 41.º do CIS).
31. Embora a concessão de crédito se concretize na utilização do crédito, é aquela e não esta que constitui o facto tributário. A este entendimento em nada obsta o facto de apenas haver lugar a tributação quando o crédito concedido for utilizado, como resulta da verba 17.1 da TGIS. Antes pelo contrário, as operações financeiras que se pretende tributar são as de concessão de crédito, mas estas apenas se consideram verdadeiramente concretizadas, ou consumadas, no momento em que o crédito concedido é utilizado. A utilização de crédito com base no contrato de concessão de crédito é que torna manifesta a operação financeira que o legislador quer tributar, condicionando o se, o quando, o quanto e o como da tributação. Até que a utilização do crédito se verifique, não há lugar a tributação, dependendo esta, quanto à sua ocorrência e taxa, da periodicidade, duração e montante da utilização do crédito (artigo 5.º, n.º1, alínea g), do CIS, e TGIS 17.1.4.).
32. A concessão de crédito está sujeita IS, qualquer que seja a sua natureza e forma, relevando, contudo, para a respetiva concretização a efetiva utilização do crédito concedido. O facto tributário eleito para tributação em IS é sempre a concessão de crédito, entendida como prestação de valores monetários de uma parte a outra obrigando-se esta última a restituir aquele montante (em singelo ou acrescido de valor convencionado), no futuro. A mera celebração, em abstrato, do contrato de concessão de crédito não significa que esta, e o facto tributário do imposto, ocorram nesse preciso momento.
33. Quando a utilização do crédito for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que coincide com a data de celebração do contrato de concessão de crédito. Quando a utilização do crédito não for imediata, a concessão de crédito só se consuma no momento da utilização do crédito, verificando-se nesse momento o facto tributário e não na data de celebração do contrato concessão de crédito[10]. Do ponto de vista do facto tribuário e da tributação em IS, a utilização de crédito é apenas a consumação da concessão do crédito.
34. Assim sendo, existem elementos de conexão relevantes que asseguram a territorialidade da operação de concessão de crédito, para efeitos do artigo 4.º, n.º1, do CIS, na medida em que a entidade que concede o crédito está sediada em Portugal e o crédito é concedido em Portugal – daí provindo os fluxos financeiros concedidos – mesmo que a utilização do crédito tenha lugar fora do país. Quando o crédito é concedido por entidades sediadas em Portugal, a utilização do crédito é irrelevante para a localização da operação – efetuada pelo mencionado n.º1 do artigo 4.º do CIS – relevando apenas, como se disse, para a determinação do momento em que surge a obrigação tributária e a quantificação do respetivo montante.
35. O artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do CIS apenas faz uma ampliação excecional da regra geral da territorialidade no sentido de a mesma considerar, como elementos de conexão relevantes, também os casos de operações de crédito realizadas por entidades não residentes, dirigidas a entidades residentes em território nacional, sendo que mesmo nestes casos o lugar da utilização de crédito por parte destas é territorialmente irrelevante. Por força do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do CIS, mesmo entidades sediadas em Portugal a quem seja concedido crédito por entidades não residentes estão sujeitas a IS, mesmo que utilizem no estrangeiro o crédito recebido do estrangeiro.
36. Isso não significa que o utilizador do crédito, na sua qualidade de titular do interesse económico, seja juridicamente irrelevante. Por um lado, a sua localização em território nacional justifica excecionalmente a extensão da territorialidade da operação de crédito, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do CIS. Além disso – como salientou o STA[11] –, nas operações de cash pooling, dada a natureza puramente convencional das titularidades de sujeito passivo e de titular do interesse económico, resultante de, na prática, estas titularidades serem cambiantes em razão da própria natureza dinâmica das operações de crédito que lhe estão subjacentes, é de considerar que estamos perante uma situação jurídica equiparável a um mecanismo de substituição fiscal imprópria, em cujo âmbito o titular do interesse económico ainda integra a relação jurídica tributária, uma vez que o legislador visa constituir sobre ele (sobre a sua situação económica) o encargo do imposto, ainda que impropriamente, ou seja, por via da interposição do sujeito passivo. Nestes casos de substituição fiscal imprópria – diz ainda o STA[12] – quando o sujeito passivo não cumpre os seus deveres legais de liquidação do imposto, a AT pode exigir diretamente o imposto em falta ao titular do interesse económico.
Isenção
37. Importa, porém, indagar se as operações financeiras em causa, estando prima facie sujeitas a IS por força do artigo 4.º, n.º1, do CIS, ficam em definitivo isentas do mesmo por força de alguma das isenções previstas no artigo 7.º, n.º 1, alíneas g) e h) do CIS. As mesmas aplicam-se às operações financeiras por prazo não superior a um ano (incluindo juros), desde que tais operações sejam exclusivamente destinadas à cobertura de carências de tesouraria e praticadas por entidades que preencham requisitos relativos ao tipo jurídico de sociedade, ou à percentagem e prazo de detenção de participações sociais[13]. Trata-se de uma questão jurídica que, não obstante, obriga a uma especial atenção aos elementos factuais relevantes, na medida em que, sendo a tributação a regra e a isenção a exceção, além de esta dever ser interpretada restritivamente, exige-se uma fundamentação particularmente exigente da verificação dos respetivos pressupostos de facto, ou seja, o pleno cumprimento do encargo probatório consagrado no artigo 74.º da LGT.
38. No entendimento deste tribunal, existe prova suficiente de que as operações financeiras em causa foram realizadas por não superiores a 1 ano, Parte-se da presunção, consagrada no artigo 75.º, n.º1, da LGT, de que são verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal. Além disso, tem-se em conta que essa presunção não foi ilidida pela AT, não tendo sido provados os factos que, nos termos do n.º 2, do mesmo artigo, conduzam à não verificação da presunção.
39. O contabilista certificado da Requerente, devidamente identificado nos autos, atesta que os movimentos contabilísticos registados na conta do Grupo C... # 11037701, nos períodos de tributação de 2021 2022, correspondem a operações financeiras – transferência de excedentes de tesouraria sob a forma de concessão de empréstimos a juros – associadas ao contrato de cash pooling celebrado entre a D... BV e a A..., ora Requerente, consistindo numa utilização de crédito (independentemente de saber quem assume a posição de credor ou devedor) que ocorreu por um período inferior a um ano[14]. O simples facto de o contrato IHB ter sido celebrado por um ano renovável por sucessivos períodos de um ano não é demasiado abstrato para poder infirmar a realidade contabilística concretamente comprovada. Mais se atesta[15] que os referidos movimentos – e não outros que hipoteticamente possam ter sido contratualizados e efetuados – resultam de transferências de liquidez de tesouraria e foram destinados exclusivamente à satisfação de necessidades de tesouraria das partes que se verifiquem a cada momento, designadamente para proceder a pagamentos a fornecedores e a outras entidades credoras.
40. Assim sendo, com base nos pressupostos de facto constantes da lei e no que é dado como provado nos autos, as operações financeiras em juízo foram tiveram lugar num prazo inferior a um ano e – no quadro de um relacionamento de conta corrente – foram exclusivamente destinadas à cobertura das carências de tesouraria das sociedades irmãs partes no “IHB Account”. Também resulta claramente factos provados nos autos que se trata de operações de crédito que ocorreram no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, entre sociedades numa relação de grupo, estando cumpridos os pressupostos jurídico-fiscais da isenção de IS, consignados nas alíneas g) e h), do nº 1, do artigo 7º, do CIS[16].
Liberdade de circulação de capitais
41. Contudo, importa não esquecer que o artigo 7.°, n.° 2, do CIS, restringe o âmbito de aplicação daquela isenção, que não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional. É certo que o artigo 7.°, n.° 2, do CIS prevê uma exceção à exclusão da isenção, de acordo com a qual esta exceção só se aplica quando o credor tenha a sua sede ou direção efetiva noutro Estado‑Membro da União Europeia ou num Estado com o qual a República Portuguesa tenha celebrado uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o património, caso em que subsiste a isenção.
42. Ora, no caso em apreço, o credor – a Requerente – tem a sua sede em Portugal, pelo que esta sociedade não estaria abrangida pela referida exceção à exclusão da isenção, ficando privada desta última. Por este motivo, a Requerente A... suscita diante deste tribunal a questão de saber se a exclusão da isenção nos termos em que é consagrada no artigo 7.°, n.° 2, do CIS constitui uma restrição à livre circulação de capitais, violando os artigos 63.º e 67.º do TFUE, uma vez que os residentes dos outros Estados‑Membros – como a D... BV – seriam privados da possibilidade de beneficiarem, no que respeita ao IS, da isenção aplicável aos mútuos contraídos em Portugal. Trata-se de uma questão já anteriormente discutida na jurisdição arbitral e ordinária portuguesas, que culminou com um reenvio prejudicial do STA ao TJUE, no caso Faurécia v. Autoridade Tributária e Aduaneira[17].
43. Na sua resposta, o TJUE[18] sublinhou que o artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, proíbe, de maneira geral, os entraves aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros, salientando que as medidas proibidas por esta disposição, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado‑Membro de investir noutros Estados.
44. A suprema instância europeia[19] entendeu que o artigo 7.º, n.º 2, do CIS, ao prever, em caso de concessão de empréstimos por um residente português, regras de tributação diferentes consoante o mutuário residisse ou não em Portugal, consagrando uma isenção do IS unicamente no primeiro caso, dava lugar a uma diferença de tratamento suscetível de tornar menos atrativos, para os residentes portugueses, investimentos como a concessão de empréstimos, realizados no estrangeiro, em relação aos investimentos realizados no território português, produzindo também um efeito restritivo em relação aos mutuários não residentes, uma vez que constitui um obstáculo à recolha de capitais em Portugal que os mutuários residentes não encontram.
45. Desenvolvendo a sua argumentação, o TJUE considerou ser irrelevante o facto de, segundo a legislação portuguesa, o sujeito passivo do IS ser o mutuante estabelecido em Portugal e não o mutuário estabelecido noutro Estado‑Membro, visto que o facto de o exercício da livre circulação de capitais se tornar menos atrativo devido a uma regulamentação fiscal nacional que trata diferentemente uma situação interna e uma situação transfronteiriça basta, por si só, para demonstrar a existência de uma restrição. Além disso, na opinião do TJUE, mesmo que se diga que o IS não constitui um encargo fiscal para o mutuante – uma vez que são os mutuários que suportam efetivamente o imposto, embora, regra geral, tenham a possibilidade de deduzir o seu montante no âmbito do imposto sobre os lucros – isso também não é suscetível de demonstrar a inexistência de uma restrição à livre circulação de capitais[20].
46. Do mesmo modo, mesmo que seja o mutuário a suportar o IS – quer porque o mutuante lhe imputa um montante correspondente, quer porque o imposto lhe é diretamente exigido em caso de não pagamento desse imposto pelo sujeito passivo – também isso em nada altera o facto de, por força da legislação nacional em causa no processo principal, ser o mutuante que é sujeito passivo do IS, sendo que esta legislação produz um efeito restritivo não só em relação aos mutuantes residentes mas também em relação aos mutuários não residentes, constituindo, pelas razões aduzidas, uma restrição à liberdade de circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE[21].
47. Quanto às diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o TJUE[22], na linha da sua abundante jurisprudência sobre o assunto, sustentou que as mesmas não devem constituir, de acordo com o n.° 3 deste artigo, um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada, só podendo ser autorizadas semelhantes diferenças de tratamento se disserem respeito a situações que não são objetivamente comparáveis ou, no caso contrário, se forem justificadas por uma razão imperiosa de interesse geral. A comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais em causa, bem como o objeto e o conteúdo destas últimas, tendo apenas em conta os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença objetiva entre as situações.
48. Diante do n.º 2 do artigo 7.º do CIS o TJUE notou que ninguém lhe explicou o objetivo prosseguido pela isenção parcial de IS daí resultante e que o único critério de distinção estabelecido pela norma em causa baseia‑se no local de residência do mutuário, uma vez que as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de IS quando envolvam duas entidades estabelecidas em Portugal ou quando o mutuário esteja estabelecido nesse Estado‑Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado‑Membro[23]. Ora, o caso de um empréstimo concedido a um mutuário residente afigura‑se comparável à de um empréstimo concedido a um mutuário não residente, uma vez que esse imposto é calculado com base em cada operação individual e à qual se aplica uma taxa de imposto fixa, tendo em conta as circunstâncias particulares da operação, não se discernindo qualquer diferença objetiva entre as duas situações que tenha sido justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.
49. O entendimento exposto – que o presente Tribunal Arbitral considera substantivamente convincente – sempre obrigaria, por força da primazia de aplicação ínsita no primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional, à desaplicação do artigo 7.º, n.º 2, do CIS e à correspetiva aplicação da isenção de IS constante das alíneas g) e h), do nº 1, do artigo 7º, do mesmo diploma, visto que é incompatível com o artigo 63.° do TFUE uma legislação de um Estado‑Membro segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de IS quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado‑Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado‑Membro. A desconsideração, pelos tribunais nacionais, de uma orientação jurisprudencial estabelecida pelo TJUE configura uma violação suficientemente caracterizada do direito da União Europeia geradora de responsabilidade do Estado.
Responsabilidade do Estado e juros indemnizatórios
50. A CRP consagra, no seu artigo 22.º, o princípio geral segundo o qual “[o] Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.” Trata-se de um corolário dos princípios do respeito pelos direitos fundamentais e do Estado de direito. Este princípio geral de responsabilidade e de indemnização por danos causados encontra concretização no direito ao pagamento de juros indemnizatórios no âmbito do procedimento e do processo tributário.
51. O artigo 43.º, n.º1, da LGT, dispõe que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, tendo como pano de fundo um princípio geral de responsabilidade do Estado. Este manifesta-se no artigo 100.º, n.º1, da LGT seguindo o qual 1 “[a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” Uma vez verificados os respetivos pressupostos legais, o pagamento de juros indemnizatórios é devido ex officio, independentemente de pedido expresso por parte dos contribuintes.
52. No caso, verifica-se erro imputável aos Serviços porque foram indevidamente indeferidas as autoliquidações em presença, conclusão que se extrai dos argumentos anteriormente expostos. Nestas circunstâncias, deverá ser reconhecido à Requerente o direito a indemnização pelos prejuízos resultantes do pagamento de imposto em excesso (cfr. artigo 43.º da LGT).[24] A administração tributária está genericamente obrigada a atuar em conformidade com a lei (artigos 266.º , n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária), pelo que pelo que o erro é imputável aos Serviços, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram[25].
53. Tal imputabilidade no caso de erro na autoliquidação estava mesmo expressamente prevista no n.º 2 do artigo 78.º da LGT a propósito da revisão dos atos tributários, estabelecendo o mesmo preceito que “sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”. Uma vez declarada a ilegalidade das liquidações aqui em causa, deverá ter-se por verificado erro imputável aos Serviços para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios pelos prejuízos resultantes do pagamento de imposto em excesso.
3DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente o presente pedido de pronúncia arbitral;
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Declarar a ilegalidade e anular o indeferimento da reclamação graciosa das autoliquidações de IS identificadas como Declarações n.º ..., de 09.2021; n.º ..., de 10.2021; n.º..., de 11.2021; n.º ..., de 12.2021; n.º ...1, de 01.2022; n.º ..., de 02.2022; n.º ..., de 03.2022; n.º ..., de 04.2022; n.º ..., de 05.2022 e n.º ... de 06.2022 e declarar a ilegalidade e anular estas autoliquidações;
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Determinar o reembolso do montante total de 32.639,25€ e, bem assim, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento deste imposto indevidamente liquidado e suportado, contados desde a data do indeferimento da reclamação graciosa, 29.12.2023, até integral reembolso do mesmo.
4VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 32.639,25€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.
5CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 836.00€, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo
Notifique-se.
Lisboa, 24 de julho de 2024
O Árbitro
Jónatas E. M. Machado
[1] Identificadas como Declarações n.º 57817, de 09.2021; n.º 66964, de 10.2021; n.º 76700, de 11.2021; n.º 86681, de 12.2021; n.º 95851, de 01.2022; n.º 103378, de 02.2022; n.º 112990, de 03.2022; n.º 121914, de 04.2022; n.º 131717, de 05.2022; n.º 138736 de 06.2022.
[2] Mantida no essencial após as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março (OE 2020).
[3] A aparente ilicitude – por discriminação – do afastamento da isenção nas situações em que o devedor/mutuário esteja no estrangeiro, mesmo que num outro Estado Membro da UE, só foi eliminada com nova redação introduzida pela Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho).
[4] Cfr. In House Banking Agreement, 3.1.
[5] Cfr., In House Banking Agreement, Appendix 2, IHB Account I §1.
[6] Cfr., nestes termos, Acórdão do CAAD, no Processo n.º 279/2020-T, 03.11.2020.
[7] Nos termos da verba 17.1, a concessão de créditos em
[8] Cfr., nestes termos, Acórdão do STA Processo n.º 06/11.4BESNT 0436/16, 28.11.2018.
[9] Cfr., apenas a título de exemplo, os Processos arbitrais do CAAD n.º 504/2023-T, de 19.03.2024; n.º 315/2022-T, de 17.07.2023; n. 280/2020, de 04.11.2021.
[10] Seguimos de perto o Acórdão do STA, SII, n.º 0800/17, de 14.03.2018
[11] Acórdão do STA, SII, Processo n.º 02244/12.3BEPRT 0898/17, de 19.02.2020.
[12] Acórdão do STA, SII, Processo n.º 02244/12.3BEPRT 0898/17, de 19.02.2020.
[13] Acórdão do STA, SII, no Processo n.º 0975/21.6BEPRT, de 10.04.2024.
[14] Cfr., documento 41 constante dos autos.
[15] Cfr., documento 41 constante dos autos.
[16] Acórdão do STA no Processo n.º 0975/21.6BEPRT, 10.04.2024.
[17] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024, §§ 21 ss.
[18] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024.
[19] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024.
[20] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024. §§ 23 ss.
[21] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024. §§ 25-28.
[22] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024. §§ 28 ss.
[23] C‑420/23, Faurécia, 20.06.2024. §§ 30 ss.
[24] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 26167, de 31.10.2001. Processo n.º 26405, de 28.11.2001.
[25] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 26233, de 12.12.2001.
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