Sumário:
A anulação do ato tributário pela própria AT, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do Requerente, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 13 de março de 2024, A..., Lda., NIPC..., com sede na Rua..., ..., ... ...-... Sintra (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à (i)legalidade:
(a) do ato de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2023...; e
(b) da liquidação oficiosa de IRC n.º 2021..., referente ao ano de 2019, compreendendo juros compensatórios, no valor global de € 18.009,35.
A Requerente juntou prova documental, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 21 de março de 2024.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 8 de maio de 2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 28 de maio de 2024.
4. Na sequência de despacho arbitral, datado de 28 de maio de 2024, foi a Requerida notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT.
5. Em 1 de julho de 2024, a Requerida apresentou um requerimento comunicando “que os atos objeto do pedido de constituição do tribunal arbitral foram parcialmente revogados, nos termos do disposto do n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, por despacho da Subdiretora-Geral da Área da Gestão Tributária-IR, datado de 01-07-2024, que determina:
“Face ao exposto, somos de opinião que deve ser revogado parcialmente na ordem jurídica o ato de indeferimento em sede do recurso hierárquico instaurado com o n.º ...2023... e consequentemente anulação parcial do ato tributário de liquidação oficiosa de IRC referente ao período de tributação de 2019, liquidação nº. 2021..., passando a considerar o valor da “MATÉRIA COLETÁVEL” de €35.892,30 (e não € 84.486,75) e no campo 365 “Tributações autónomas”, o valor €1.079,87, com os demais efeitos subsequentes”.”
A Requerida instruiu esse seu requerimento com a Informação n.º .../2024 da DSIRC, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, documento do qual consta o sobredito despacho, proferido por delegação de competências, com o seguinte teor: “Revogo parcialmente os atos nos termos propostos.”
6. Em 3 de julho de 2024, devidamente notificada para o efeito, a Requerente pronunciou-se relativamente àquele ato revogatório, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos e dos quais importa respigar o seguinte segmento:
“(…) não se opõe se for determinada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide por facto imputável à Administração Tributária, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), contanto que a taxa de arbitragem inicial suportada seja reembolsada à Requerente.”
II. Saneamento
7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo (cf. artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
III. Fundamentação
III.1. De Facto
8. Pelas razões adiante aduzidas e desenvolvidas, não há que elencar os factos relevantes para a apreciação do mérito da causa; com efeito, como veremos, o vertido no Relatório afigura-se bastante para alicerçar o que adiante se decidirá.
III.2. De Direito
9. A Requerente veio solicitar a constituição de tribunal arbitral para apreciar a (i)legalidade do ato de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2023... e da liquidação oficiosa de IRC n.º 2021..., referente ao ano de 2019, compreendendo juros compensatórios, no valor global de € 18.009,35.
Como acima referido (cf. ponto 5. do Relatório), por despacho da Subdiretora-Geral da Área de Gestão Tributária-IR, datado de 1 de julho de 2024, os atos objeto do pedido de pronúncia arbitral foram parcialmente revogados. Também como acima se disse (cf. ponto 5. do Relatório), tal ato revogatório teve por base a Informação n.º.../2024 da DSIRC, que aqui se dá por inteiramente reproduzida.
10. No concernente à natureza jurídica daquele ato praticado pela Subdiretora-Geral da Área de Gestão Tributária-IR, importa referir que o atual Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação, ou seja, a revogação ab-rogatória ou extintiva e a revogação anulatória.
Como decorre do vertido no artigo 165.º do CPA, a revogação “é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade” cf. n.º 1), sendo a anulação administrativa “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade” (cf. n.º 2). A revogação, por regra, “apenas produz efeitos para o futuro” (cf. artigo 171.º, n.º 1, do CPA), enquanto a anulação administrativa, salvo disposição especial, “produz efeitos retroativos” (cf. artigo 171.º, n.º 3, do CPA) e “produz efeitos repristinatórios” (cf. artigo 171.º, n.º 4, do CPA).
Por outro lado, como estatuído no artigo 197.º, n.º 1, do CPA, no âmbito do recurso hierárquico, “o órgão competente para conhecer do recurso pode, salvas as exceções previstas na lei, confirmar ou anular o ato recorrido e, se a competência do autor do ato recorrido não for exclusiva, pode também revogá-lo, modificá-lo ou substituí-lo, ainda que em sentido desfavorável ao recorrente”.
No caso sub judice, a AT entendeu revogar parcialmente o ato recorrido com fundamento em considerações de legalidade e não de mera discricionariedade, pelo que, apesar de adotar a terminologia anteriormente aplicável, praticou, segundo a atual terminologia, um ato de anulação administrativa, tendo determinado, no rigor dos termos, a anulação parcial do ato tributário que foi impugnado por via do recurso hierárquico.
11. No respeitante às consequências processuais de tal anulação administrativa, importa ter em consideração o artigo 64.º do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, particularmente o disposto nos seus n.ºs 1 e 2:
“1 – Quando, na pendência do processo, o ato impugnado seja objeto de anulação administrativa acompanhada ou sucedida de nova regulação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades, sendo aproveitada a prova produzida e dispondo o autor da faculdade de oferecer novos meios de prova.
2 – O requerimento a que se refere o número anterior deve ser apresentado no prazo de impugnação do ato anulatório e antes do trânsito em julgado da decisão que julgue extinta a instância.
(…)”
Nesta norma está prevista a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição, contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em agir.
No caso sub judice, afigura-se evidente que não é essa a situação que se verifica. Com efeito, a AT anulou parcialmente o ato tributário sem que tenha instituído uma qualquer nova regulação da situação jurídica, tendo-se, pois, limitado a conformar-se com o reconhecimento da ilegalidade parcial do ato tributário anteriormente praticado. Ora, como decorre do estatuído no citado n.º 2 do artigo 64.º do CPTA, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Efetivamente, “a anulação administrativa determina a destruição dos efeitos do acto administrativo anulado (artigo 165.º, n.º 2, do CPA), com a sua consequente eliminação da ordem jurídica, pelo que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente da lide por falta de objecto processual” (decisão arbitral do processo n.º 215/2018-T), conducente à extinção da instância e que, por isso, obsta a uma pronúncia arbitral de mérito.
No caso concreto, o que se vem de dizer não resulta prejudicado pelo facto de estarmos perante uma anulação parcial pois, além do mais, a própria Requerente declara que “não se opõe se for determinada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide”.
12. A finalizar, importa referir que a AT procedeu à revogação parcial dos atos tributários controvertidos quando este Tribunal Arbitral singular se encontrava já constituído – mais concretamente, após a notificação para apresentar Resposta e juntar o PA –, pelo que o prosseguimento do processo só à Requerida pode ser imputável, não tendo aqui aplicação o disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, uma vez que o prazo ali previsto se encontra deveras ultrapassado; por isso, as custas do processo devem ser totalmente imputadas à Requerida (cf. artigo 536.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Decisão
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:
-
Julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, com todas as legais consequências;
-
Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.
V. Valor do Processo
Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 18.009,35 (dezoito mil e nove euros e trinta e cinco cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique.
Lisboa, 5 de julho de 2024.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)