Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 200/2024-T
Data da decisão: 2024-07-17  Liquidação Outros 
Valor do pedido: € 67.443,68
Tema: Contribuição financeira. Âmbito da jurisdição arbitral. Competência dos tribunais arbitrais. Falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

 

1 - A interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), assim como a própria natureza da CSR, é a de que se pretendeu restringir a vinculação da AT aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos que se classifiquem como impostos ou sejam como tal considerados (como sucede com as “contribuições especiais” referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

2 - Não é abrangida pela vinculação da AT, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR (Cfr. Decisões do CAAD: Proc. 629/2021, de 3.08.2022 (voto vencido), Proc. 374/2023, de 14.12.2023, Proc. 359/2023, de 30 de Março de 2024 e Proc. 508/2023, de 16.11.2023).

 

 

Decisão Arbitral

 

Os árbitros Conselheira Fernanda Maças (árbitro-presidente), Dra. Magda Feliciano e
Dra. Ana Rita Chacim, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 14.02.2024, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

           

A..., LDA., (adiante abreviadamente designada), com sede na Av. ..., n.º ..., ...– ...-.. ... Número de Pessoa Coletiva (“NIPC”)..., doravante Requerente, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), pretendendo a declaração da ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos nos anos 2021 e 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira com base nas DIC submetidas pela respectiva fornecedora de combustíveis, determinando-se, nessa medida, a sua anulação, com as demais consequências legais.

 

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 12.02.2024.

Os Árbitros designados pelo Conselho Deontológico do CAAD aceitaram as designações.

 

O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 23.04.2024.

 

A AT apresentou resposta em que suscitou a excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria, da ilegitimidade da Requerente, da ineptidão da petição inicial, por falta de objecto, ininteligibilidade do pedido e contradição, da caducidade do direito de acção e defendeu que deve julgar-se improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

Por despacho de 9.06.2024 foi decidido dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo as partes sido notificadas para apresentarem Alegações. Apenas a Requerida apresentou alegações.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Importa apreciar previamente as excepções suscitadas, começando pela de incompetência, de harmonia com o disposto no artigo 13.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

 

            II. Matéria de facto

 

  1. A..., LDA., é uma pessoa coletiva sob a forma jurídica de Sociedade por Quotas, identificada com o (“NIPC”)...;
  2. No âmbito da sua actividade, a Requerente adquiriu produtos petrolíferos, incluindo CSR, entre maio de 2019 e dezembro de 2022;
  3. No âmbito da sua actividade, a Requerente pagou um montante de €62.873,38 (sessenta e dois mil, oitocentos e setenta e três euros e trinta e oito cêntimos) a título de CSR, liquidada entre maio de 2019 e dezembro de 2022;
  4. A Requerente declarou que suportou o encargo económico com a CSR, liquidado pela B..., com base nos produtos petrolíferos transmitidos, entregando-o posteriormente à AT, entre maio de 2019 e dezembro de 2022.
  5. A 12.07.2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa dos actos objecto do pedido arbitral;
  6. O pedido de revisão oficiosa não foi decidido, até 12 de fevereiro de 2024, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II.1. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

III. Questão da competência do Tribunal Arbitral

 

A Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), pretendendo a anulação do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado, a anulação dos actos tributários de liquidação da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso dos anos de 2019 e 2022, e, bem assim, o reembolso à Requerente do montante de €62.873,38.

 

A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) foi criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, visando financiar a rede rodoviária nacional, tendo-se mantido em vigor até ao presente, com alterações introduzidas pelas Lei n.ºs 67-A/2007, de 31 de Dezembro,
64-A/2008, de 31 de Dezembro, 64-B/2011, de 30 de Dezembro, 66-B/2012, de 31 de Dezembro, 83-C/2013, de 31 de Dezembro, 82-B/2014, de 31 de Dezembro, 7-A/2016, de 30 de Março, sendo substituída pela «Consignação de serviço rodoviário», pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro.

III.1. Posições das Partes

 

A AT suscita a questão de incompetência por entender, em suma, o seguinte:

 

– a CSR é qualificada como contribuição financeira e não como imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição;

- Tratando-se de uma contribuição e não de um imposto, as matérias sobre a CSR encontram-se, assim, excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal;

- A este propósito, veja-se o artigo 4.º da LGT onde o legislador definiu, no seu n.º 1, quais os tributos enquadrados na noção de “imposto”, atribuindo, no n.º 3 do mesmo preceito, essa qualidade a determinadas contribuições especiais, no qual, contudo, não se inclui a CSR;

- Ou seja, independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica da CSR, a verdade é que esta não é, por definição, um imposto e, portanto, o CAAD não tem competência para decidir sobre esta matéria, conforme defendido nas decisões proferidas no

âmbito dos processos n.ºs 508/2023-T, 520/2023-T e 675/2023-T.

 

A Requerente respondeu à excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, dizendo o seguinte, em suma:

 

- No âmbito do Processo n.º 298/2023-T entendeu que “(…) Esclareça-se, desde logo, que não é, por um lado, o facto de o tributo em causa ser designado por contribuição que lhe retira a possível qualificação como imposto, o que não é caso único no sistema fiscal português (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2015 de 20-10-2015). E,

por outro, também não é o facto de o mesmo ter a sua receita consignada que o mesmo tem necessariamente de ser qualificado como contribuição financeira (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2022, de 31-03-2022) (…)”.

 

- Continuando, referindo-se que “(…) Pelo contrário, como se diz no Acórdão do STA de 04-07-2018 – Proc. 01102/17: “quer os impostos, quer as contribuições, podem ter na sua origem prestações administrativas dirigidas a grupos mais ou menos alargados de sujeitos passivos, embora nenhum desses tributos tenha como pressuposto uma

prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efectivo e directo beneficiário;

 

- Ao contrário dos impostos e, mesmo, das contribuições especiais, as contribuições financeiras têm como finalidade compensar prestações administrativas e  realizadas, de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário“.

 

- Como se diz no Acórdão Arbitral 304/2022-T, a contribuição financeira pressupõe que “as prestações públicas que constituem a contrapartida colectiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respectivos sujeitos passivos”, Concluímos, por isso, ser a CSR um verdadeiro imposto”.

 

 

III.2. Apreciação da questão

 

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária.

 

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da referida autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior”.

 

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminando a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

 

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça”, veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

 

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o “objecto da vinculação” e os “termos da vinculação” da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

     Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

     Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

     1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

     2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

     3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

Seguindo de perto o defendido nas Decisões n.º 508/2023, de 16.11.2023, Decisão
n.º 374/2023, de 14.12.2023, Decisão n.º 359/2023, de 30 de Março de 2024, voto de vencido na Decisão n.º 629/2021, de 3.08.202, entende-se que desta legislação e regulamentação resulta que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

 

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios estão abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[1]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

 

Por isso se justificava em 2011 o estabelecimento de limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

 

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos.

 

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como “impostos”, “taxas” e  “contribuições financeiras” [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra “impostos” na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, revela que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, aos “impostos”.

 

Presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, a norma em causa tendo um alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

 

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

 

“As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

 

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)”.

 

Acresce que, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a AT já administrava tributos com a designação de “contribuição” (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de “contribuições”.

 

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a “impostos”, quando a essa altura já a AT administrava vários tributos com a designação de “contribuições”, como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

 

Em face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), entende-se que a CSR é uma “contribuição” e não um “imposto” ou uma das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

 

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma “contribuição especial” enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta “na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade”, pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos “impostos” a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

 

Na verdade, de acordo com letra da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, a CSR foi concebida e designada de Contribuição (e não de imposto), com o objectivo de financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal, E.P.E., actualmente Infraestruturas de Portugal (IP), através dos respectivos utilizadores e, subsidiariamente pelo Estado, constituindo receita própria da IP.

Segundo o referido regime legal, a CSR constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, que constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EPEstradas de Portugal.

Configurando-se a CSR numa lógica bilateral assente numa óptica grupal (utilizadores) para financiar a IP, a quem cabe desenvolver a actividade de concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional entende-se que a CSR não é um imposto, uma vez que só é devido pela utilização de gasolina e gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) e dele não isentos.

Também não se afigura concebível qualificar a CSR como uma taxa, na medida em que a CSR não assenta numa equivalência estritamente individual, não se dirige à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, numa relação de bilateralidade genérica.

Assim, entende-se que as contribuições financeiras, mesmo que ilegais (como parece ser a CSR em face da decisão de Reenvio Prejudicial de 7.02.2022, Proc C-460/21, do TJUE) não constituem por presunção/atracção/conversão ou residualidade um imposto (Vide Filipe de Vasconcelos Fernandes, As contribuições financeiras no sistema fiscal português, pág. 71 e ss, Gestlegal). Na verdade, entende-se que as contribuições financeiras constituem figuras “híbridas” ou “tertium genius” entre as taxas e os impostos “que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa)” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada,” I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora). Na mesma linha, seguem, por exemplos, as decisões proferidas pelo TC n.º 539/2015, 344/2019, 255/2020

Considerando-se que, à luz do regime legal da CSR, esta constitui um tributo que resulta da necessidade financiar uma entidade pública que tem como propósito gerir a rede rodoviária nacional, a CSR incide sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, que beneficiam da gestão da IP, enquanto utilizadores das estradas da rede nacional; e o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa (a cargo da IP) presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, concluímos que estamos perante uma contribuição – (Cfr. Acórdão do TC n.º 255/2020).

 

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a “impostos”, está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera “impostos” (como sucede com as “contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade, que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera “impostos). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como “taxas” ou “contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, que não se enquadrem na definição das referidas “contribuições especiais”, mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

 

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral.

 

Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), assim como a própria natureza da CSR, é a de que se pretendeu restringir a vinculação da AT aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos que se classifiquem como impostos ou sejam como tal considerados (como sucede com as “contribuições especiais” referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

 

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da AT, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR (Cfr. Decisões do CAAD: Proc. 629/2021, de 3.08.2022 (voto vencido), Proc. 374/2023, de 14.12.2023, Proc. 359/2023, de 30 de Março de 2024 e  Proc. 508/2023, de 16.11.2023).

 

Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

 

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [2] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à AT através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

 

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela AT.

 

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.

 

            IV. Questões de conhecimento prejudicado

 

De harmonia com o exposto, é de julgar procedente a excepção de incompetência material deste Tribunal Arbitral por a pretensão da Requerente versar sobre um tributo não incluído na vinculação da AT aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

 

Sendo de julgar procedente a excepção de incompetência invocada pela AT, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo.

 

 

V. Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

– julgar procedente a excepção da incompetência deste Tribunal Arbitral invocada pela AT, por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT;

– absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância.

 

 

VI. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º -A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €62.873,38, indicado pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

VII. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €2.448, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente

 

Lisboa, 17-07-2024

Os Árbitros

 

 

Com a seguinte declaração: voto o sentido da decisão (da procedência da excepção de incompetência), mas não acompanho os fundamentos, conforme decorre das decisões arbitrais proferidas designadamente nos processos n.ºs 1064-2023-T e 62/2024-T .

 

(Fernanda Maças – Árbitro-Presidente)

 

 

 

 

(Árbitra - Relatora)

 

 

 

(Ana Chacim- Árbitra -Adjunta)

(Com declaração de Voto)

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Com o devido respeito, que saliento, acompanho a decisão de improcedência do pedido arbitral, embora com uma fundamentação diversa. Em concreto, discordo da decisão ao julgar procedente a exceção de incompetência material deste Tribunal Arbitral por a pretensão da Requerente versar sobre um tributo não incluído na vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, pelas razões que sucintamente explico.

  1. Entendo que improcede a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal, acompanhando a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, sendo este um tributo que efetivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Neste sentido, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 409/2023-T (do qual fui signatária), 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T. Entendo assim que a competência dos tribunais arbitrais abrange a apreciação das pretensões dos sujeitos passivos referentes a qualquer espécie de tributo, nos termos do art.º 2.º do RJAT; e, atenta a qualificação jurídico-tributária da CSR, também não se verifica a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais no presente processo, por força do art.º 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  2. Na análise da matéria em questão, entendo que a repercussão fiscal da CSR constitui um facto positivo, pelo que o ónus da prova impende sobre quem o invoca, por forma a comprovar a qualidade de entidade repercutida e lesada pelo encargo tributário. Desta forma, a prova da repercussão deve ser objetivamente demonstrada por documentos que identifiquem o efetivo pagamento do imposto, não podendo assentar em juízos presuntivos (ou declarações genéricas, que não provam plenamente os factos que nelas sejam narrados). Considerados os elementos probatórios produzidos pela Requerente, apenas constam faturas que titulam aquisições de gasóleo rodoviário. Acompanho aqui o entendimento exposto na decisão prolatada no processo n.º 452/2023-T ao entender que, considerando, o equilíbrio entre o direito material e direito processual, deverá exigir-se «(…) a clara e rigorosa demonstração dos elementos essenciais para decisão, em especial, meios de prova detalhados que permitam apurar inequivocamente quem efetivamente suportou o imposto, ou seja, a presença de elementos completos sobre o facto tributário subjacente às liquidações do imposto.»

Pese embora deva salientar a dificuldade de prova positiva da repercussão, concordando aqui com o presente Tribunal quando refere os deveres impostos à AT ao nível do procedimento, cabendo-lhe realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta da verdade material, efetivamente não resulta evidente de que tenha havido uma efetiva repercussão do imposto, de modo a poder confirmar-se a factualidade invocada pela Requerente sobre o pagamento indevido da CSR. Na ausência de prova bastante de que tenha havido lugar à repercussão do imposto, afastando o caracter presuntivo na determinação do encargo na esfera da Requerente, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente.

 

 

Ana Rita Chacim

 

 



[1] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[2] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB.