Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 116/2024-T
Data da decisão: 2024-07-17   Outros 
Valor do pedido: € 267.338,06
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR). Competência dos tribunais arbitrais. Legitimidade processual.
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SUMÁRIO:

 

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário consubstancia um tributo que deve ser qualificado como imposto, pelo que sob essa qualificação os tribunais arbitrais têm competência para apreciar os correspondentes atos de liquidação.
  2. As Requerentes não suportaram o encargo da Contribuição de Serviço Rodoviário por repercussão legal. Deste modo, a legitimidade das Requerentes deve ser aferida pela qualidade de meras repercutidas de facto, circunstância em que têm de demonstrar um interesse legalmente protegido, como se extrai do cotejo dos artigos 9.º do CPPT, 18.º da LGT e 9.º do CPTA.
  3. Esse interesse há-de corresponder à circunstância de terem suportado, do ponto de vista económico, o imposto [CSR] ilegalmente liquidado aos sujeitos passivos fornecedores dos combustíveis. O que implica duas condições: a primeira é que os fornecedores de combustíveis tenham repercutido, de facto, às Requerentes, a CSR; e a segunda é que o fenómeno da repercussão “voluntária” tenha ficado por aí, sem que as Requerentes tenham, de igual modo, repercutido aos seus clientes o “peso” económico da CSR.
  4. Não tendo ficado provado o valor da CSR repercutido pelos fornecedores de combustíveis, nem que as Requerentes tenham suportado o encargo económico do imposto em definitivo, falece àquelas, legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto.
  5. A solução preconizada enquadra-se numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros, Fernanda Maçãs, (Presidente), Rui Miguel Zeferino Ferreira (Relator) e Rui Miguel de Sousa Simões Fernandes Marrana, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD para formar Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de abril de 2024, decidem o seguinte:

  1. RELATÓRIO

 

  1. A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Vila Nova de Gaia; B..., S.A., NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Vila Nova de Gaia; C..., S.A., NIPC..., com sede em..., Rua..., n.º..., ..., ...-... Vila Nova de Gaia; D..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ...-... Vila Nova de Gaia; e E..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ...-... Vila Nova de Gaia, doravante designadas “Requerentes”, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa, apresentados em 30.06.2023, junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, sobre as liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), não se conformando com os mesmos, veio, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A, n.º 2 e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) com base nas declarações de introdução no consumo submetidas pelas sociedades F..., S.A.; G..., S..A.; H..., S.A. e I..., Lda. (designadas como fornecedoras de combustíveis) e, bem assim, dos consequentes atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes a gasóleo rodoviário  e à gasolina àquelas adquirido pelas Requerentes no decurso do período entre junho e dezembro de 2019.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo apresentado pelas Requerentes em 26 de janeiro de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente comunicado à Requerida que foi do mesmo notificada em 30 de janeiro de 2024.

 

  1. As Requerentes, em 30 de janeiro de 2024, submeterem “nova” petição inicial, atenta a comunicação do CAAD, de 29 de janeiro de 2024, sobre o facto da anteriormente submetida não se encontrar assinada.

 

  1. Em 2 de fevereiro de 2024, a Requerida veio informar o CAAD que:

“(...) do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;

Sem a identificação, por parte dos interessados, do ato ou atos tributários, cuja ilegalidade é invocada, não pode o dirigente máximo da AT exercer a faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT.

Solicita-se que seja(m) identificado(s) o(s) ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, (...).”

 

  1. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 14 de março de 2024, foram as Partes devidamente notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 3 de abril de 2024.

 

  1. No pedido arbitral as Requerentes invocaram, em síntese:
  1. Que as fornecedoras de combustíveis (comercializadoras e revendedora) repercutiram nas respetivas faturas a CSR correspondente a cada consumo, tendo as Requerentes suportado integralmente esse imposto, no montante global de € 267.338,06 (duzentos e sessenta e sete mil trezentos e trinta e oito euros e seis cêntimos), tendo sido suportado € 232.379,05 (duzentos e trinta e dois mil trezentos e setenta e nove euros e cinco cêntimos) pela A...; € 21.438,17 (vinte e um mil quatrocentos e trinta e oito euros e dezassete cêntimos) pela B...; € 3.466,16 (três mil quatrocentos e sessenta e seis euros e dezasseis cêntimos) pela C...; € 5.913,05 (cinco mil novecentos e treze euros e cinco cêntimos) pela D...; e € 4.141,63 (quatro mil cento e quarenta e um euros e sessenta e três cêntimos) pela E..., sobre o qual deduziu dois pedidos de revisão oficiosa (em 30 de junho de 2023);

 

  1. Que a CSR foi instituída pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, para remunerar as Infraestruturas de Portugal, S.A. pela utilização que é feita da rede rodoviária nacional, por via dos consumos de gasolina e gasóleo, onerando, assim, os respetivos utilizadores pelos custos inerentes à gestão da rede rodoviária nacional;

 

  1. Que é sobre o consumidor de combustíveis que recai o encargo do tributo;

 

  1. Que a CSR, aprovada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, está em desconformidade com o regime geral dos impostos especiais de consumo, vertido na Diretiva 2008/118/CE, decorrendo dele a violação do direito da União Europeia, conforme resulta da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferida no âmbito do processo C-460/21, de 7 de fevereiro de 2022.

 

  1. Que tal desconformidade resulta do facto de a CSR não prosseguir “motivos específicos”, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE, visto que “as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental», consubstanciando, por conseguinte, todos os atos tributários praticados ao seu abrigo, designadamente os atos objeto do presente pedido pronúncia arbitral, uma violação do direito da União Europeia”;

 

  1. Que os atos tributários praticados ao abrigo das normas internas consagradas na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, padecem de ilegalidade abstrata por violação de norma do direito da União Europeia de cariz hierárquico superior;

 

  1. Que o direito da União Europeia vincula toda a administração e todos os serviços do Estado, o que implica que a Requerida estava obrigada a desaplicar as referidas normas internas, com fundamento na apontada desconformidade com o direito da União Europeia, de forma a evitar a referenciada ilegalidade abstrata dos putativos atos de aplicação;

 

  1. Que não tendo a AT adotado esse comportamento, que lhe era exigível, conclui que o erro, que consubstancia uma ilegalidade dos atos tributário objeto do presente processo, é imputável aos serviços da Requerida, que deveriam ter procedido à respetiva revisão nos termos na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária;

 

  1. Que devem ser anulados os atos tributários objeto do presente processo arbitral e, consequentemente, devolvidas às Requerentes as quantias pelas mesmas suportadas a título de CSR, no montante global de € 267.338,06 (duzentos e sessenta e sete mil trezentos e trinta e oito euros e seis cêntimos) [em erro as Requerentes mencionam no artigo 64.º da petição inicial o valor global de € 1.481.957,12], decomposto em € 232.379,05 (duzentos e trinta e dois mil trezentos e setenta e nove euros e cinco cêntimos) para A...; € 21.438,17 (vinte e um mil quatrocentos e trinta e oito euros e dezassete cêntimos) para a B...; € 3.466,16 (três mil quatrocentos e sessenta e seis euros e dezasseis cêntimos) para a C...; € 5.913,05 (cinco mil novecentos e treze euros e cinco cêntimos) para a D...; e € 4.141,63 (quatro mil cento e quarenta e um euros e sessenta e três cêntimos) para E..., acrescido de juros indemnizatórios, devidos nos termos do artigo 43.º, n.º 3, al. d), da Lei Geral Tributária.

 

  1. Em 6 de maio de 2024, após notificação à Requerida para apresentação de resposta, a mesma apresentou-a, bem como juntou na mesma data o respetivo processo administrativo, invocando em síntese:
  1. Que a Requerente, A..., não é titular de qualquer estatuto fiscal no âmbito dos IEC, não podendo, enquanto tal, ter sido responsável nem pela declaração de introdução dos produtos sujeitos a imposto no consumo, nem pelo correspondente pagamento da CSR, pelo que, nas cadeias de abastecimentos de combustíveis plasmadas nos processos 801/2023-T, 886/2023-T e 103/2024-T, terá atuado como mera intermediária/revendedora.

 

  1. Que a Requerente A... não é consumidora final dos combustíveis por si adquiridos, pelo que não tem qualquer legitimidade ou interesse na presente causa, entendendo estar-se perante uma multiplicação de pedidos com base nos mesmos factos e nos mesmos atos de liquidação não identificados.

 

  1. Que sob pena de consentir e desconsiderar o risco de duplicação de reembolsos de CSR, deveria o Tribunal Arbitral ordenar a suspensão dos presentes autos até ao trânsito em julgado das decisões que venham a ser proferidas no âmbito dos processos n.º 801/2023-T, 886/2023-T e 103/2024-T, nos termos do n.º 1 do artigo 272.º do CPC, aplicável ex vi da al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

  1. Que a espécie tributária da CSR é qualificada como contribuição e não como imposto, encontrando-se, assim, excluída do âmbito material da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º, do RJAT, e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (“Portaria de Vinculação”), tal como entendeu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 29 de maio de 2023, no processo n.º 31/2023-T.

 

  1. Que a incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido das Requerentes resulta ainda do facto de esta questionar a legalidade do regime jurídico da CSR no seu conjunto, tendo em vista a suspensão da eficácia de atos legislativos aprovados por lei da Assembleia da República no exercício das suas competências, o que extravasa as competências dos Tribunais Arbitrais, de um contencioso de mera anulação, previstas no artigo 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria de Vinculação;

 

  1. Que, neste sentido, verifica-se a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral, que determina a absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 576.º e 577.º, al. a), do CPC, aplicáveis ex vi da al. e) do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT;

 

  1. Que nos termos do artigo 15.º, n.º 2, o Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago.

 

  1. Que, assim, é a estes que são emitidas as respetivas liquidações de imposto, apenas estes podendo identificar tais atos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (artigos 15.º e 16.º do CIEC).

 

  1. No âmbito dos IEC, de acordo com o estatuído nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto, pelo que estando tal possibilidade restringida, independentemente do tipo de erro ou da situação que motive o reembolso, ao sujeito passivo.

 

  1. Que não se encontram reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica dos repercutidos económicos ou de facto, não podendo as entidades, nas quais alegadamente teria sido repercutido o imposto, apresentar pedidos de revisão ou de reembolso por erro.

 

  1. Que não sendo as Requerentes sujeitos passivos nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do CIEC, não têm legitimidade para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o pedido arbitral, pois não integram a relação tributária relativa à liquidação originada pela DIC.

 

  • Ainda que assim não se entenda, carecem as Requerentes de legitimidade por estarem fora do âmbito de aplicação da al. a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, preceito que prevê que os repercutidos legais embora são sendo sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral, uma vez que  tal preceito não tem aplicação no caso concreto, visto que não está e, causa uma situação de repercussão legal, mas quanto muito, uma situação de repercussão de natureza meramente económica ou de facto.

 

  1. Que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, porquanto, tal como ocorre nos designados impostos especiais sobre o consumo (como o ISP/ISPPE, IABA ou IT), o ónus da CSR é transferível, através do fenómeno financeiro da repercussão económica dos custos.

 

  • Que não existe no âmbito da CSR um ato tributário de repercussão legal, subsequente e autónomo do(s) ato(s) de liquidação de ISP/CSR, e, ao contrário do que defendem as Requerentes, as faturas não consubstanciam atos de repercussão de CSR, apenas titulando operações de compra e venda de combustíveis, pelo que não se pode presumir que as comercializadoras e/revendedoras repercutiram nas Requerentes o encargo da CSR.

 

  • Que dada a natureza da repercussão da CSR, ainda que o sujeito passivo de ISP/CSR “repasse” o custo da CSR, ou parte dele, no preço de venda dos combustíveis, os seus clientes não são, necessariamente, quem suporta, a final, o encargo do tributo, uma vez que os adquirentes de combustíveis, enquanto operadores económicos que desenvolvem uma atividade comercial/prestação de serviços e que utilizam os combustíveis como fatores de produção no circuito económico, procuram, também eles, repassar nos preços praticados todos os gastos em que incorrem.

 

  1. Que as Requerentes não conseguem demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriram às suas fornecedoras tem incluído o valor da CSR pago, nem tão pouco logram provar, por outro lado, que não repassaram tal encargo no preço dos serviços prestados aos seus clientes.

 

  1. Que, em síntese, as Requerentes não são sujeitos passivos de ISP/CSR e não integram a relação tributária subjacente às liquidações contestadas, não sendo devedoras, nem estavam obrigadas ao seu pagamento ao Estado, nem tão pouco correspondem aos consumidores finais, uma vez que adquiriram os combustíveis no âmbito da sua atividade económica, pelo que não têm legitimidade nem para apresentar o pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do n.º 2, do artigo 15.º do CIEC e dos n.º 3 e 4, al. a), do artigo 18.º da LGT.

 

  1. Que inexistindo efetiva titularidade do direito a que se arrogam, carecem as Requerentes de legitimidade processual, o que consubstancia uma exceção dilatória nos termos do vertido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º, al. e) do artigo 577.º e 578.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi da al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

  1. Que, caso assim não se entenda, carecem as Requerentes de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 576.º e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi da al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

  1. Que o pedido arbitral não respeita os pressupostos legais de aceitação do requerimento/petição inicial, por violação da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, requisito essencial à aceitação do pedido, designadamente a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Que, assim, verifica-se a exceção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer ato tributário, violando o requisito da al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, cfr. n.º 1 do artigo 186.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º, al. b) do artigo 577.º e al. b) n.º 1 do artigo 278.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.

 

  1. Que não se pode inferir, da alegada ilegalidade das liquidações, a ilegalidade das alegadas repercussões, pelo que ainda que a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial seja de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196º do CPC (aplicável ex vi a al. e) do n.º 1 do artigo 29º do RJAT), existe contradição entre o pedido e a causa de pedir, nos termos da alínea b) do artigo 577.º do CPC, levando à nulidade de todo o processo nos termos do n.º 1 do artigo 186.º do CPC.

 

  1. Que tomando por referência o alegado pelas Requerentes - aquisições no período compreendido entre junho de 2019 a dezembro de 2019 –em 30-06-2023, há muito se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de 120 (cento e vinte) dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

 

  1. Que estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo efetuado as liquidações em estrita observância dos normativos legais em vigor à data dos factos, não existe qualquer erro imputável aos serviços.

 

  1. Que existe caducidade do (alegado) direito de ação por parte das Requerentes, o que consubstancia uma exceção perentória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido, e ainda que assim não se entenda, sempre consubstanciará uma exceção dilatória por assim ser qualificada especialmente nos termos e para o efeito do disposto na al. k) do n.º 4 e n.ºs 1 e 2 do artigo 89.º do CPTA, devendo, nessa medida, ser a Requerida absolvida do pedido ou da instância.
  2. Que se verifica uma ilegal cumulação de Requerentes, i.e., ilegal coligação ativa, pelo que a coligação ativa ilegal consubstancia exceção dilatória nos termos do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea f) e 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, a Requerida ser absolvida da instância.

 

  1. Que existe uma cumulação de pedidos distintos entre si, formulados por várias Requerentes independentes e distintas entre si, pelo que a cumulação de pedidos é ilegal, por não se encontrar verificado o requisito da coincidência quanto às circunstâncias de facto, porquanto estamos perante situações fácticas díspares consubstanciadas em alegados factos e atos tributários distintos, respeitantes a Requerentes distintas, com datas de alegadas aquisições de combustível e alegado pagamento de valores a título de CSR distintas.

 

  1. Que se verifica exceção dilatória prevista no artigo 89.º, alínea g) do CPTA, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância.

 

  1. Que as Requerentes não fazem prova de que as identificadas entidades repercutiram, nas respetivas faturas, a CSR correspondente a cada um dos consumos, não fazendo igualmente prova de que as intermediárias I... e H... foram repercutidas e que, por sua vez, repercutiram esse mesmo valor nas Requerentes, também não se fazendo qualquer prova de que, a terem suportado tal encargo, não repercutiram o mesmo, elas próprias, nos preços dos serviços que prestam aos seus clientes finais, pelo que não logram fazer prova do que alegam, designadamente de que foram efetivamente repercutidas.

 

  1. Que não são devidos juros indemnizatórios, uma vez que não se encontram reunidos os pressupostos legais para que se efetue o reembolso nem para que sejam devidos juros indemnizatórios.
  1. Por despacho de 9 de maio de 2024, foram as Requerentes notificadas para exercer o direito ao contraditório, que após requerimento das Requerentes, de 17 de maio de 2024, para a prorrogação do prazo, por 10 dias, o qual foi deferido, em 19 de maio de 2024, estas vieram, em 4 de junho de 2024, exercer o direito ao contraditório, onde além de ter junto as decisões proferidas no âmbito dos processos do CAAD n.ºs 294/2023-T, 374/2023-T, 465/2023-T, 486/2023-T, 298/2023-T, 410/2023-T e 676/2023-T, uma listagem das aquisições e alienações de combustível por parte da A..., sustentou ainda, em síntese, o seguinte:

 

  1. Que o pedido formulado pela A... está circunscrito ao volume de combustível que a mesma efetivamente consumiu, nada tendo peticionado por referência à CSR que incidiu sobre o combustível vendido aos seus clientes, nomeadamente o combustível vendido à J..., à K..., S.A. ou, bem assim, à L..., S.A., pelo que não há multiplicação de pedidos com base nos mesmos factos e nos mesmos atos de liquidação não identificados.

 

  1. Que existem duas tipologias distintas de atos tributários que emergem da relação jurídico-tributária de repercussão legal da CSR e que, por seu turno, relacionam os três intervenientes típicos desta relação jurídico-tributária, isto é, por um lado, os atos tributários de liquidação de CSR praticados pela AT com base nas DIC’s apresentadas pelas entidades que introduzam no consumo o respetivo combustível, atos de liquidação que, por seu turno, estabelecem à relação jurídico-tributária primária entre a AT e os sujeitos passivos da CSR, apurando e cristalizando o quid da repercussão e, por outro lado, os atos tributários de repercussão legal da CSR assim liquidada pela AT, praticados pelos sujeitos passivos primários da CSR e/ou pelos revendedores de combustível no consumidor de combustível/putativo utilizador da rede rodoviária nacional.

 

  1. Que a CSR deve, atenta a sua qualidade de contribuição especial por maiores despesas, ser perspetivada como um verdadeiro imposto, quer em sede constitucional, quer, consequentemente, em sede infraconstitucional, pelo que é plenamente arbitrável nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, e 2.º do RJAT, improcedendo, em conformidade, a exceção de incompetência material invocada pela AT.

 

  1. Que interpretar os artigos 3.º a 6.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, no sentido de qualificar a CSR aí consagrada como uma contribuição financeira a favor de entidades públicas, implicará atribuir às referidas normas legais um alcance totalmente desconforme com a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, lida à luz do seu preciso significado histórico, contextualizado pela intenção de acoplar ao regime das taxas as demais «contribuições financeiras que não são taxas em sentido técnico mas que são contribuições criadas para e a favor de determinadas entidades reguladoras e para sustentar financeiramente as mesmas», e tendo simultaneamente presente que algumas dessas contribuições, em particular as contribuições especiais por maiores despesas, se encontr(av)am sujeitas, ab initio, ao regime dos impostos.

 

  1. Que interpretar o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação a discussão de um tributo qualificável como contribuição financeira, implicará atribuir a essa norma legal um alcance desconforme com a artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, violando dessa forma o artigo 112.º, n.º 6, da CRP.

 

  1. Que as Requerentes não visam através da presente ação arbitral a impugnação (ou, mais concretamente, a declaração da invalidade) de quaisquer atos legislativos, mas, tão-somente, suscitar a (in)validade dos atos de repercussão de CSR e dos correspondentes atos de liquidação de CSR praticados à luz de um regime comprovadamente desconforme com o direito da União (o regime da CSR), configurando este um caso paradigmático de ilegalidade abstrata suscetível de ser apreciado por qualquer Tribunal, entre os quais o presente Tribunal Arbitral.

 

  1. Que a competência do Tribunal Arbitral para apreciar a (i)legalidade dos atos de repercussão decorre, inexoravelmente, do artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da Lei Geral Tributária.

 

  1. Que não cabe às Requerentes, mas antes à própria AT – caso considere necessário – proceder à concreta e específica identificação dos atos de liquidação de CSR objeto de repercussão, constituindo ónus das Requerentes, apenas, indicar os elementos de que disponha para esse efeito.

 

  1. Que, em situações em que a entidade requerente no âmbito de um pedido de pronúncia arbitral suporte o tributo por via do mecanismo da repercussão legal e em que, nesse contexto, não tenha na sua posse os atos de liquidação que constituam o quid da respetiva repercussão, caberá à AT, através dos meios ao seu dispor e ao abrigo dos respetivos poderes de indagação, averiguar a correlação entre os respetivos atos de repercussão legal e os atos de liquidação de CSR que os antecedem e que estão na sua origem.

 

  1. Improcede, portanto, a invocada exceção de ineptidão do pedido arbitral «por falta de objeto», posto que o ónus de identificar e de juntar aos autos os atos que a AT considera em falta impende sobre a própria AT e, segundo, porque os atos de repercussão de CSR dirigidos às Requerentes – os únicos de que foi destinatária – se encontram devida e cabalmente identificados no pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Que do pedido de pronúncia arbitral as Requerentes procuram obter, com a presente ação arbitral, a anulação, com todas as consequências legais, dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas Requerentes às empresas comercializadoras de combustível e, bem assim, de os subjacentes atos de liquidação de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pelos respetivos sujeitos passivos de CSR.

 

  • Que existe uma total harmonia (compatibilidade) entre o pedido (anulabilidade dos referidos atos de repercussão de CSR e das correspondentes liquidações de CSR) e a respetiva causa de pedir (desconformidade entre as normas internas aplicadas àqueles atos tributários e as normas do Direito da União), pelo que é inteligivel o pedido formulado pelas Requerentes, bem como existe total compatibilidade deste com a respetiva causa de pedir, improcedendo, também aqui, a exceção de ineptidão do pedido arbitral deduzida pela AT.

 

  1. Que a procedência dos pedidos formulados pelas Requerentes no âmbito do presente processo arbitral depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, verificando-se, portanto, os pressupostos fixados no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, pelo que encontrando-se preenchidos os pressupostos da admissibilidade de coligação de autores e de cumulação de pedidos previstos no RJAT, devem as referidas exceções improceder.

 

  • Que a repercussão da CSR nos consumidores de combustível (consumidores estes que são, segundo o legislador, os putativos utilizadores da rede da rede rodoviária nacional) tem − como decorre manifesto da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto − natureza legal e não, portanto, mera natureza económica ou de facto, pelo que tendo a repercussão da CSR, como sobejamente demonstrado, natureza legal (e não, portanto, mera natureza económica ou de facto), não subsiste qualquer dúvida quanto à legitimidade das Requerentes para efetuar junto da AT os pedidos de (e de obter o) reembolso da CSR indevidamente suportada.

 

  • Que a efetivação da repercussão da CSR nos consumidores/putativos utilizadores da rede rodoviária nacional constitui, em todo o caso uma presunção (ainda que ilidível), na medida em que, como já observado, a mesma resulta de um dever legal projetado sobre os vendedores/revendedores de combustíveis (i.e., o dever de transferência do respetivo encargo económico do tributo para os repercutidos identificados pela lei, em concreto, os consumidores de combustível enquanto putativos utilizadores da rede rodoviária nacional - cf. artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto).

 

  1. Que em face da prova realizada, as Requerentes vêm observar que, por força do dever legal de repercussão que sobressai do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, deve inferir-se presuntivamente de tais atos de repercussão legal que a CSR que lhes está subjacente foi, efetivamente, transferida para as – i.e., repercutida nas – Requerentes.

 

  1. Que muito embora as Requerentes (enquanto entidades repercutidas) não assumam a qualidade de sujeitos passivos da relação jurídico-tributária, o legislador atribuiu-lhes, expressa e claramente, legitimidade para contestar os atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes aos combustíveis pelas mesmas adquiridos, e, bem assim, das subjacentes liquidações de CSR praticadas pela AT.

 

  1. Que se encontra plenamente verificado, tanto no plano doméstico, como no plano jus-europeu, o direito do repercutido (in casu, das Requerentes) obter a restituição do imposto indevido diretamente junto das autoridades nacionais (in casu, junto da AT).

 

  1. Que qualquer interpretação que conclua pela inexistência do direito – ou pela inexistência de legitimidade – dos repercutidos (como é o caso das Requerentes) recorrerem ao procedimento de revisão oficiosa (e subsequentes meios de reação) nos termos conjugados dos artigos 18.º, n.º 3, e 78.º da LGT, e 9.º do CPPT, excluindo-os do respetivo âmbito subjetivo de aplicação, violará, de forma grosseira, os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, por não acautelar os direitos dos repercutidos (artigo 20.º da CRP), e da igualdade, por discriminar negativamente os repercutidos relativamente aos demais sujeitos da relação jurídico-tributária (artigo 13.º da CRP), sendo um tal sentido interpretativo, por esse motivo, materialmente inconstitucional.

 

  1. Que a invocada multiplicidade de intervenientes no circuito económico de venda e de revenda de combustíveis nunca poderá conduzir, ao contrário do que vem afirmado na resposta, à condenação da AT a pagar montantes de CSR, mais do que uma vez, a todos os diferentes operadores económicos intervenientes na cadeia comercial de combustíveis, posto que a aplicação correta da jurisprudência do TJUE, cotejada com os efeitos do contencioso de anulação vigente no plano doméstico, será sempre suficiente para, sem mais, eliminar qualquer situação de duplicação de reembolsos e inerente enriquecimento sem causa.

 

  1. Que se impõe, concluir, pela improcedência de todos os argumentos invocados pela AT no âmbito da exceção de ilegitimidade e, nessa medida, pela legitimidade das Requerentes.

 

  1. Que improcedem todas as considerações tecidas pela AT acerca das específicas condições de aplicabilidade daquele regime especial no caso concreto (artigos 15.º e 16.º do CIEC).

 

  1. Que da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT resulta manifesto que a revisão oficiosa pode ser efetuada no prazo de quatro anos após a liquidação (ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago), contanto que o correspondente fundamento consista na existência de um erro imputável aos serviços, bem como atendendo à natureza estritamente oficiosa, a revisão oficiosa é suscetível de ser impulsionada pelo próprio interessado, devendo, nesse caso, a AT dar-lhe seguimento.

 

  1. Que o erro de direito imputável aos serviços − enquanto fundamento de revisão oficiosa nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT − abrange a aplicação de disposições normativas que degenere em ilegalidade abstrata, bem como que o direito nacional, independentemente da respetiva dignidade interna − com ressalva, naturalmente, da violação do princípio do estado de direito democrático −, deve ceder perante o direito da União, uma vez que sempre que, as normas de direito da União derivado se se revelem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado-Membro, quer quando este não tiver transposto essa diretiva para o direito nacional nos prazos previstos, quer quando a tiver transposto incorretamente.

 

  1. Que o identificado efeito direto vertical, as autoridades nacionais dos Estados-Membros estão obrigadas a desaplicar as normas nacionais que com ela estejam numa relação de manifesta antinomia, bem como as autoridades nacionais vinculadas a assegurar a plena eficácia das normas dotadas de efeito direto e, correlativamente, a primazia ou prevalência na sua aplicação, compreendem, além dos tribunais nacionais, a Administração pública e, portanto, a AT.

 

  1. Que caso subsistam dúvidas sobre a interpretação que deve ser conferida a qualquer uma das disposições supra invocadas do direito da União, deve ser promovido o reenvio prejudicial do presente processo para o TJUE, nos termos previstos no artigo 267.º do TFUE.

 

  1. Por despacho de 16 de junho de 2024, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT).

Nesse mesmo despacho foi concedido o prazo de 15 dias para as Partes apresentarem, querendo, as suas alegações, concedendo à concede à Requerida a faculdade de, caso assim o entenda, juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pelo sujeito passivo.

 

  1. A Requerida e as Requerentes apresentaram as suas alegações, as Requerentes em 9 de julho de 2024, juntando ainda três declarações da G..., S.A.; e a Requerida em 11 de julho de 2024, mantendo as respetivas posições já expressas, respetivamente, na resposta apresentada, e no pedido de pronúncia arbitral e no requerimento de resposta à matéria de exceção.

 

  1. As Requerentes, em 12 de julho de 2024, juntaram duas declarações, emitidas pela F..., S.A.

 

  1. SANEAMENTO

 

  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de Março (Portaria de Vinculação).

 

  1. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as exceções, de:
  1. Incompetência do Tribunal em razão da matéria;
  2. Ilegitimidade processual das Requerentes;
  3. Ineptidão do pedido arbitral;
  4. Caducidade do direito de ação;
  5. Ilegalidade da coligação das Requerentes;
  6. Ilegalidade da cumulação de pedidos;

 

  1. A apreciação das exceções será efetuada pela ordem supra identificada, a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.

 

  1. DA MATÉRIA DE FACTO

 

  1. FACTOS PROVADOS

 

  1. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. As Requerentes são sociedades de direito português, com sede e direção efetiva em Portugal.

 

  1. A F..., S.A.; a G..., S.A. e a H... são três empresas que comercializam combustíveis.

 

  1. A I... é uma empresa que é revendedora de combustíveis.

 

  1. Durante o período compreendido entre os meses de junho e dezembro de 2019, a Requerente,  A..., adquiriu à F..., G... e à H... um total de 1.507.623,49 litros de gasóleo rodoviário e 747.503,96 litros de gasolina.

 

  1. Durante o período compreendido entre os meses de junho e dezembro de 2019, a Requerente, B..., adquiriu à G... e à H... um total de litros de 158.835,73 gasóleo rodoviário e 43.763,32 litros de gasolina.

 

  1. Durante o período compreendido entre os meses de junho e dezembro de 2019, a Requerente, C..., adquiriu à F... um total de litros de 26.118,27 gasóleo rodoviário e 6.517,62 litros de gasolina.

 

  1. Durante o período compreendido entre os meses de junho e dezembro de 2019, a Requerente, D..., adquiriu à G... um total de litros de 29.921,00 gasóleo rodoviário e 29.791,00 litros de gasolina.

 

  1. Durante o período compreendido entre os meses de junho e dezembro de 2019, a Requerente, E..., adquiriu à G... um total de litros de 37.312,00 de gasóleo rodoviário.

 

  1. Em 30.06.2023, a Requerente deduziu dois pedidos de promoção de revisão oficiosa, tendo em vista o reembolso da CSR liquidada pelos fornecedores de combustíveis identificados relativo ao combustível adquirido aqueles no período compreendido entre junho a dezembro de 2019.

 

  1. Sobre os dois pedidos de promoção de revisão oficiosa não recaiu, até ao momento, qualquer decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. Em 26.01.2024, as Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral, que deu origem aos presentes autos.

 

  1. FACTOS NÃO PROVADOS:

 

  1. Não se provou que, durante o período compreendido entre os meses de junho e dezembro de 2019, a quantidade de gasóleo rodoviário e gasolina adquiridos às fornecedoras de combustível tenha gerado o valor global de CSR de € 267.338,06 (duzentos e sessenta e sete mil trezentos e trinta e oito euros e seis cêntimos. Com efeito, as declarações apresentadas pelas fornecedoras de combustíveis não especificam em alguns casos o valor de CSR em causa, mas em todos os casos, quer nas declarações iniciais, quer nas posteriormente apresentadas, não existe qualquer correlação feita com os atos de liquidação correspondentes.

 

  1. Não foi feita prova que tenham sido as Requerentes a suportar economicamente o imposto em causa, a final, dado que, para fazer tal prova, seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:
  1. Que a CSR foi repercutida às Requerentes, quais os montantes e em que períodos;
  2. Que foram as Requerentes quem suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos serviços e/ou transmissão de bens que prestam e/ou fornecem aos seus clientes não estava contemplada a repercussão da CSR (e/ou em que medida não estava), por forma a poder sustentar que suportou, de forma efetiva, o encargo do imposto.

 

  1. As Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, as quais estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto.

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA

 

  1. Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

  1. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

 

  1. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados, bem como não provados os factos acima referenciados.

 

  1. No que concerne aos factos dados como não provados, este Tribunal Arbitral entende que as declarações emitidas pelas fornecedoras de combustíveis, desacompanhadas das DIC globalizadas, dos consequentes atos de liquidação e dos respetivos comprovativos de pagamento não permitiam certificar a efetiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo das quantidades de gasóleo rodoviário e gasolina referidos nos pontos D), E), F), G) e H) da matéria de facto dado como provada.

 

  1. Igualmente, quanto aos factos dados como não provados, impõe-se registar que a prova da repercussão pressupõe inevitavelmente como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que, conforme se viu supra, não foi demonstrado pelas Requerentes.

 

  1. Acresce que as Requerentes não cumpriram o critério a observar na prova da repercussão da CSR, tal qual fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C-460/21. Ao que aqui importa, referiu aquele Tribunal o seguinte:

 

“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).

 

45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).

 

46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).

(…)

48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)

  1. Da aplicação da jurisprudência do TJUE ao presente caso resulta que a repercussão da CSR sobre terceiros – que não decorre de qualquer imposição legal prevista na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, sendo tão só “expectável” perante o regime e funcionamento deste tributo –, não pode ser em qualquer caso presumida.

 

  1. O que é compreensível, se se tiver em consideração que a repercussão opera aqui como um fenómeno económico, com uma configuração e amplitude variáveis. Como explica SÉRGIO VASQUES:

 

“A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.

 

A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”. [Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399].

 

  1. Consequentemente, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida por mais que tenha sido querida na lógica de funcionamento do tributo. Ao invés, impõe-se uma análise do contexto e dos vários fatores que conformam cada transação comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final. É que, conforme se referiu, as Requerentes não demonstraram que suportaram em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos serviços e/ou transmissão de bens que prestam e/ou fornecem aos seus clientes não estava contemplada a repercussão da CSR, por forma a poder sustentar que suportaram, de forma efetiva, o encargo do imposto.

 

  1. Ora, este exercício de prova não foi realizado pelas Requerentes, que se limitaram a estabelecer meros juízos presuntivos de que suportou a CSR em virtude de uma suposta – embora inexistente – obrigação legal de repercussão do encargo daquele tributo.

 

  1. Na realidade, as Requerentes procuraram provar a repercussão através de várias declarações, junta aos autos com a petição inicial, alegações e requerimento posterior às referidas alegações, onde aquelas entidades se limitam a afirmar de forma genérica e abstrata que repercutiram o encargo da CSR, ainda que em algumas delas conste um determinado valor de CSR. Ainda assim, tais declarações não versam sobre as concretas transações realizadas entre as fornecedoras de combustíveis e as Requerentes; não fazem a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transacionados; não estabelecem a relação entre as transações e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não demonstram a incorporação do encargo da CSR nas faturas de venda de gasóleo rodoviário e gasolina às Requerentes, nem tão pouco em que grau e/ou medida em que tal incorporação se processou.

 

  1. Acresce que mesmo que as Requerentes tivessem demonstrado a liquidação e repercussão da CSR, sempre inexistiriam elementos nos autos que permitam certificar que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera jurídica, isto é, que foram as Requerentes as entidades que em última instância foram oneradas com o tributo em causa, porquanto não incorporaram o seu custo no preço dos serviços e/ou transmissão de bens prestados e/ou fornecidos aos seus clientes, que podem situar-se no circuito ou cadeia económico-comercial como os verdadeiros consumidores finais.
  2. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questão prévia: incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria

 

  1. Quanto à competência deste Tribunal, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pelas Requerentes é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.

 

  1. A competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:

 

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)

 

  1. Este âmbito material é, por sua vez, circunscrito na Portaria de Vinculação, nos seguintes termos:

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.” (negrito nosso)

 

  1. Ainda que a conjugação das referidas normas jurídicas não apresente uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de atos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação, o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria, o certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito da competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de atos de liquidação de impostos.

 

  1. Para o efeito de se responder a esta questão, torna-se necessário qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.

 

  1. Nas decisões arbitrais proferidas, entre outras, nos processos n.ºs 508/2023-T e 520/2023-T, a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a exceção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:

 

(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.

 

  1. Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Para o efeito, o acórdão proferido no âmbito do processo n.º 644/2022-T, de 24 de Outubro de 2023, decidiu no seguinte sentido:

 

“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto. Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT. Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.

Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”.

 

  1. Assim sendo, cabendo tomar posição sobre a querela jurídica, este Tribunal Arbitral subscreve e acompanha a jurisprudência maioritária que qualifica a CSR como um imposto, uma vez que este corresponde a um tributo que efetivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Consequentemente, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos.

 

  1. Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar os concretos pedidos formulados pelas Requerentes com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.

 

  1. No pedido de pronúncia arbitral as Requerentes peticionaram, por um lado, a declaração de “(...) ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas requerentes durante o período compreendido entre junho e dezembro de 2019” e, por outro lado, a declaração de ilegalidade “(...) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira com base nas DIC submetidas pelos respetivos sujeitos passivos de CSR (..)”.

 

  1. Em face do conteúdo do pedido apresentado pelas Requerentes, é notório que as Requerentes não questionam a desconformidade jurídico-constitucional do regime da CSR como um todo, peticionando a suspensão da eficácia de ato legislativo emanado pela Assembleia da República no exercício das suas competências. Tal pedido não foi definitivamente formulado pelas Requerentes, pelo que improcedem quaisquer desconformidades que lhe pudessem ser assacadas.

 

  1. No que concerne à análise do primeiro pedido, cumpre referir que a apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária, tal como se decidiu no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024, em que se entendeu que:

 

Em relação aos “atos de repercussão” impugnados, o Tribunal não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (vd. Art. 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pelas Requerentes os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal” (negrito nosso)

 

  1. Os atos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia SÉRGIO VASQUES, ob. cit., p. 399. Este fenómeno não se subsume a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT anteriormente transcrito, que determina que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de atos de liquidação (alínea a) do n.º 1) e de atos de fixação da matéria tributável/matéria coletável/valores patrimoniais na eventualidade de não terem originado qualquer ato de liquidação (alínea b) do n.º 1).

 

  1. Com efeito, independentemente da posição que se adote sobre a natureza jurídica dos atos de repercussão, quanto a se saber se são atos que integram uma relação jurídico-tributária complexa ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada, é certo é que aqueles não são atos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria coletável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos atos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (Neste sentido, vide SERENA CABRITA NETO e CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).

 

  1. Este é o entendimento que vem sendo seguido de forma uniforme pela jurisprudência, que se pronunciou sobre esta questão nos processos arbitrais n.º 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T, 408/2023-T e 633/2023-T. A título de exemplo, no acórdão proferido em 1 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 296/2023-T, decidiu-se que:

 

 “Como os Colectivos que decidiram os processos n.ºs 408/2023-T e 375/2023-T, o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa – na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier, distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária.”

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa, entre o terceiro repercutido “e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.”

Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”. Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente).”.

 

  1. Portanto, há que declarar o presente Tribunal Arbitral incompetente, em razão da matéria, para conhecer o pedido de apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR, impondo-se a absolvição parcial da Requerida da instância quanto a este concreto pedido, em conformidade com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) todos do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

  1. Em sentido oposto, e sem necessidade de mais valorações, reconhece-se o presente Tribunal Arbitral competente para apreciar o segundo pedido formulado pelas Requerentes, de declaração de ilegalidade das liquidações de CSR dirigidas às sociedades fornecedoras de combustíveis, porque subsumível ao âmbito material previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. Saber se tal impugnação pode ser feita pelas Requerentes, na qualidade de (alegadas) repercutidas, ou apenas às fornecedoras de combustíveis, enquanto sujeitos passivos primários a quem foi (alegadamente) liquidada e por quem foi (alegadamente) paga a CSR, é uma questão que não releva para efeitos de determinação de competência, mas tão só para efeitos de apuramento de legitimidade, pelo que será nessa sede apreciada.

 

 

  1. Questão prévia: ilegitimidade processual

 

  1. Não consta do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, que remete para as disposições legais de natureza processual do Código de Processo e de Procedimento Tributário (“CPPT”), do CPTA e do CPC.

 

  1. Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).

 

  1. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”), como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.

 

  1. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (vide artigo 1.°, n.º 2, da LGT).

 

  1. Do CPPT resulta a existência de uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT). No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT assegura a mesma posição de legitimidade ou ilegitimidade conferida pelas regras gerais sobre o tema.

 

  1. Em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual.

 

  1. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (vide artigo 9.º, n.º 2 do CPPT), enquanto no que respeita aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (vide artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.

 

  1. In casu, as Requerentes invocam a qualidade de repercutidos legais para deduzir a ação arbitral. Nesse contexto, SÉRGIO VASQUES, afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.” (vide Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 401), referindo que a LGT lhes reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral”.

 

  1. Contudo, importa começar por referir que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

  1. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

  1. Conforme resulta da jurisprudência do CAAD, entre outros, do acórdão 296/2023-T, de 1 de fevereiro de 2024:

Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias. (...)”

 

  1. Neste âmbito, JORGE LOPES DE SOUSA, refere que:

 

nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [artigo 18. °, n.º 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do (…) respetivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” (vide Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115).

 

é de considerar ser titular de um interesse suscetível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser diretamente afetado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.°, n.° 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão direta na sua esfera jurídica.” (vide Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120)

 

  1. Ora, conforme sustentou no acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (negrito nosso).

 

  1. A referida disposição legal (artigo 15.º, n.º 2, do CIEC) estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”.

 

  1. Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redação:

 

“1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado; (…)

(...)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;”

 

  1. Efetivamente, desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

 

  1. Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados, e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género e tipo de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.

 

  1. Por outro lado, acresce que se afigura claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal.

 

  1. A Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vide artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).

 

  1. Infere-se do articulado das Requerentes que estas legitimam a sua intervenção processual do facto singelo de lhes ter sido repercutida a CSR pelas empresas fornecedoras de combustíveis, caracterizando-se como um consumidor de combustíveis, sobre o qual recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo.

 

  1. Contudo, a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que as Requerentes não têm a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que se a CSR, conforme alegam as Requerentes, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida esta não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos.

 

  1. Nos termos da lei que prevê a CSR, não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico, pelo que é errónea a afirmação das Requerentes de que é sobre si que recai tal encargo. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”. Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1, não remete para o artigo 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

 

  1. Como salienta o acórdão do CAAD, de 8 de janeiro de 2024, proferido no âmbito do processo 408/2023-T, com o qual se concorda:

 

“1. A Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;

2. A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;

3. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, que nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).”

 

  1. Ora, não sendo as Requerentes o sujeito passivo da CSR, nem repercutidos legais desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstrem factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.

 

  1. Contudo, o único facto que as Requerentes alegam para este efeito é o de lhes ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza, a qual, porém, não existe.

 

  1. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que as Requerentes afirmam. Na realidade, as Requerentes são tão-só um cliente comercial dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR.

 

  1. Portanto, tal como foi afirmado no acórdão do CAAD, de 8 de janeiro de 2024, proferido no âmbito do processo 408/2023-T:

 

Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. Também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

− Que a CSR foi repercutida à Requerente, qual o montante e em que períodos;

− Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR e em que medida, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo do imposto”.

 

  1. Conforme anteriormente referido, as Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Posto isto, as Requerentes não lograram, por isso, atestar que suportaram o tributo contra o qual reagem. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhes poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não são sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.

 

  1. Igualmente, como acima referido, e tal resulta dos acórdãos do CAAD, de 8 de janeiro de 2024 e de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbitos dos processos n.ºs 408/2023-T e 296/2023-T, compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor.

 

  1. Isto é, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

  1. Por fim, em cumprimento do desiderato do direito nacional e da União Europeia, não se diga que as Requerentes ficaram desprovidas de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma ação civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunir os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspetiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (vide artigo 20.º da Constituição).

 

  1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (vide Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03).

 

  1. Em suma, à face do exposto deve julgar-se verificada a exceção de ilegitimidade das Requerentes, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

  1. Em síntese, não tendo ficado provado o valor da CSR repercutido pelos fornecedores de combustíveis às Requerentes, nem que esta tenha suportado o encargo económico do imposto em definitivo, falece às Requerentes legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

 

  1. A título conclusivo, em resultado da apreciação das questões prévias referentes à incompetência em razão da matéria e à ilegitimidade processual, o presente Tribunal arbitral é incompetente para se pronunciar sobre o primeiro pedido das Requerentes (porque não pode pronunciar-se sobre atos subsequentes aos, e autónomos dos, atos de liquidação), e resultando da lei que as Requerentes são parte ilegítima para suscitar o segundo (questionar os atos de liquidação da CSR que pudessem ter alguma ligação com os ditos atos de repercussão), conclui-se que a Requerida terá de ser absolvida da instância, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.

 

  1. Não se opinando sobre o mérito, fica igualmente prejudicado o conhecimento dos pedidos de reembolso e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

  1.  DECISÃO

 

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo decide:

 

  1. Considerar o presente Tribunal Arbitral incompetente para se pronunciar sobre o pedido de declaração de “(...) ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pelas requerentes durante o período compreendido entre junho e dezembro de 2019”.
  2. Considerar o Tribunal Arbitral competente para apreciar o pedido de declaração de ilegalidade e anulação das liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis.
  3. Considerar as Requerentes partes ilegítimas para suscitar a declaração de ilegalidade “(...) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustíveis”.
  4. Em consequência, absolver a Requerida da instância, condenando as Requerentes nas custas, nos termos abaixo fixados.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 267.338,06 (duzentos e sessenta e sete mil trezentos e trinta e oito euros cêntimos), de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.

 

 

  1.     CUSTAS

 

              Custas no montante de 4.896,00 (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros), a cargo das Requerentes, por ter sido total o seu decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

Porto, 17 de julho de 2024

 

Os Árbitros

 

 

 

(Fernanda Maçãs)

(Presidente)

 

 

(Rui Miguel Zeferino Ferreira)

(Relator)

 

 

(Rui Miguel Marrana)