SUMÁRIO
I. A Contribuição do Serviço Rodoviário é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece, na medida em que não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
II. O tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário, uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira.
III. A não identificação dos actos de liquidação da CSR cuja devolução é pedida resulta na ineptidão da petição por ficar por demonstrar a existência desses actos e o efectivo pagamento do tributo, o que impossibilita também a demonstração da repercussão e da verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa em que assenta o pedido de pronúncia arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, José Poças Falcão (presidente), Vítor Braz e Rui M. Marrana (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:
I – Relatório
1.A A..., L.da , pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-..., ..., ... (doravante Requerente), vem, ao abrigo dos art.os 95.º/1 e 2, a) e d), da Lei Geral Tributária (LGT), 99.º a) e d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 2.º/1 a), 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 10.º/1 a) e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre as liquidações respeitantes a Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), referentes aos meses de Abril de 2019 a Dezembro de 2022, incidentes sobre o fornecedor B..., SA cujo encargo tributário repercutiu na esfera da Requerente, na sequência da aquisição por esta de 1.559.582,98 litros de gasóleo, em face da qual a Requerente suportou 173.113,71 € a título de CSR e, bem assim, sobre a decisão final de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente a 2 de Maio de 2023, junto da Alfândega de Peniche.
2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.
3.Em 6 de Dezembro de 2023 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
4.Ainda antes da constituição do tribunal, a Requerida apresentou - em 27 de Dezembro de 2023 - um requerimento no qual solicitava que a Requerente identificasse os actos de liquidação cuja legalidade pretende ver sindicada, tendo o Ex.mo Presidente do CAAD, nessa data, determinado o envio do mesmo ao tribunal arbitral a constituir, por ser o órgão competente para a sua apreciação.
5.A Requerente respondeu no dia seguinte, esclarecendo estarem identificadas no p.p.a. as liquidações de CSR, dispondo a Requerida necessariamente de todos os documentos pertinentes, designadamente das respectivas declarações de introdução ao consumo, não podendo, por isso, a sua apresentação ser-lhe exigida. O Ex.mo Presidente do CAAD determinou, também nessa data, o envio da mesma peça processual ao tribunal arbitral a constituir, por ser o órgão competente para a sua apreciação.
6.De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros que compõem o Tribunal Arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
7.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 14 de Fevereiro de 2024.
8.Em 25 de Março de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e por impugnação, juntando o processo administrativo.
9.Em 2 de Abril de 2024 foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do mesmo diploma, facultando às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, sendo, para o efeito, concedido um prazo de quinze dias simultâneos.
10.Em 12 de Abril de 2024 a Requerente pronunciou-se relativamente às excepções invocadas pela AT na sua Resposta, vindo a requerer ainda, em 22 de Abril seguinte, a junção de novos documentos, que foram admitidos por despacho, no mesmo dia.
11.Em 23 de Abril a Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações.
Posição da Requerente
12.A Requerente é uma sociedade comercial portuguesa que se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias, tendo, durante os meses de Abril de 2019 a Dezembro de 2022 adquirido à B..., S.A., 1.559.582,98 litros de gasóleo, em face da qual suportou 173.113,71 € a título de CSR (correspondendo este a 0.111 €/litro) incidentes sobre aquele fornecedor que repercutiu sobre si esse encargo tributário.
13.Inconformada com a situação, a Requerente apresentou em 2 de Maio de 2023 junto da Alfândega de Peniche um pedido de revisão oficiosa das liquidações de CSR do qual não obteve resposta, o que gerou um indeferimento tácito, decorridos quatro meses (art.os 57.º LGT e 166.º CPPT).
14.Sendo de 90 dias o prazo para apresentação de pedido de constituição de tribunal arbitral, contados a partir do indeferimento tácito (art. os 10.º/1 a) do RJAT e 102.º/1 d) do CPPT), o pedido de constituição do tribunal arbitral é tempestivo.
15.Entende a Requerente que os actos tributários de liquidação da CSR são ilegais e consequentemente anuláveis por preterição do art. 1.º/2 da Directiva 2008/118 de 16.12.2008 (Directiva IEC) - e, por via disso, da violação do princípio do primado do Direito europeu ínsito no artigo 8.º/4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – e bem assim por violação do princípio da igualdade fiscal, decorrente da violação do subprincípio da capacidade contributiva, ínsito no artigo 13.º da CRP.
16.A CSR foi criada pela Lei 55/2007 de 31.8 tendo em vista o financiamento da rede rodoviária nacional (sendo as receitas percebidas pela Estradas de Portugal – EPE que veio a ser incorporada na Infraestruturas de Portugal, SA. (DL 91/2015, de 29.5).
17.A CSR incidia sobre a gasolina e o gasóleo rodoviários sendo suportada pela entidade que introduzia os combustíveis no consumo (art.os 5.º/1 L 55/2007, 4.º, 7.º e 9.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo [CIEC] e 4.º/1 da L 55/2007), constituindo uma desagregação do ISP.
18.Ainda que qualificada como uma contribuição, a CSR é, na verdade um verdadeiro imposto já que não apresenta conexão com qualquer contraprestação retributiva específica (inexiste qualquer caracter sinalagmático) e é utilizada exclusiva ou principalmente para a cobertura de despesas públicas, sendo, portanto, uma prestação evidentemente coactiva e unilateral – tal como defende a doutrina e a jurisprudência (cfr. por todos, o ac STA 01.102/17 de 4.7.2018).
19.Nesse mesmo sentido se têm pronunciado os tribunais arbitrais do CAAD (proc. 304/2022-T), que reconhecem igualmente não existir nexo real entre qualquer benefício do sujeito passivo e o tributo em causa (629/2021-T, 702/2022-T, 113/2023-T).
20.Também não colhe qualquer pretensão no sentido de que a CSR pudesse visar a dissuasão ou desincentivo dos consumidores de combustíveis, com vista à preservação do meio ambiente ou a redução dos acidentes (tal como o TJUE no despacho de 2.2.2022, Vapo Atlantic, C-460/21), já que a prossecução dessas finalidades é justificativa de outros impostos (como o ISP), nada justificando a multiplicação de tributos incidentes sobre a mesma realidade.
21.Assim sendo, a CSR limita-se a consignar receitas à Infraestruturas de Portugal, tendo em vista apenas o financiamento da actividade desta, não estabelecendo qualquer contrapartida indirecta ou presumivelmente aproveitada pelos sujeitos passivos, nem tão-pouco evidenciando qualquer objectivo extrafiscal de modelação de comportamentos desses mesmos sujeitos passivos. Não pode, portanto, senão concluir-se que não estamos perante uma contribuição financeira, mas um verdadeiro imposto, dado o seu carácter inequivocamente unilateral.
22.Isso mesmo tem sido amplamente reconhecido pela jurisprudência arbitral do CAAD (proc. 629/2021-T, 665/2022-T, 564/2020-T, 305/2022-T, 24/2023-T, 113/2022-T, 702/2022-T).
23.Pronuncia-se ainda, a Requerente, sobre a sua legitimidade para intervir no processo, que fundamenta em regras da LGT (art. 9.º e 95.º), do CPPT (art. 9.º/1 e 4) e do CPTA (art. 9.º/1), das quais resulta terem essa legitimidade todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias.
24.Na verdade, a legitimidade processual no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, tal como resulta, aliás, do disposto no art.18.º/3 e 4 da LGT, quando é reconhecida a legitimidade em situações de repercussão do pagamento do imposto.
25.O repercutido – que é a situação da Requerente –, independentemente da modalidade da repercussão (legal ou de facto), é, portanto, titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária.
26.No caso em apreço, o sujeito passivo da CSR é a B..., SA, tendo o encargo inerente ao pagamento desses valores sido transferido por este para a esfera da Requerente a título de consumidor final.
27.Pronuncia-se, depois, a Requerente sobre a violação da Directiva IEC pela L 55/2007 que criou a CSR.
28.Recorda, a propósito, que a CSR é um imposto que incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos a ISP e dele não isentos (cfr. art. 4.º/1 da L 55/2007), sendo este um imposto especial de consumo (art. 1.º/1 a), da Directiva IEC e, bem assim, do art. 1.º b), do CIEC).
29.Acontece que os Estados Membros não podem cobrar impostos sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo (art. 1.º/3 a) da Directiva IEC), a menos que (i) tal se justifique por motivos específicos e (ii) sejam respeitadas as regras europeias aplicáveis em matéria de impostos especiais de consumo e de imposto sobre o valor acrescentado, sendo ambos os requisitos de verificação cumulativa (cfr., neste sentido, os acórdãos Jordi Besora, proc. C-82/12, § 22; Statoil Fuel & Retail, proc. C-553/13, §36; e Vapo Atlantic, proc. C-460/21, §20 a 22).
30.Ora os motivos específicos justificativos da imposição de outros encargos tributários sobre os produtos sujeitos a Impostos Especiais de Consumo não podem reconduzir-se a razões puramente orçamentais – cfr. ac.s Comissão c. França, proc. C-434/97, §19; EKW e Wien & Co. Proc. C-437/97, §31; Hermann, proc. C-491/03, §16 e Vapo Atlantic, proc. C-460/21, §23).
31.Donde, a afectação da receita proveniente da liquidação e cobrança da CSR à Infraestruturas de Portugal, SA é insusceptível de, por si só, demonstrar a existência de um motivo específico na acepção do artigo 1.º/2, da Directiva IEC, uma vez que se reconduz a uma finalidade puramente orçamental.
32.Essa inexistência de motivos específicos foi, aliás, reconhecida nas decisões arbitrais dos proc. 304/2022-T, 305/2022-T, 23/2023-T.
33.Parece claro, portanto que a existência de motivo específico, na acepção do art. 1.º/2, da Directiva IEC, depende da verificação (i) de uma relação directa entre o destino das receitas provenientes da liquidação do imposto e a suposta finalidade da tributação ou (ii) de que o imposto, considerada a técnica legislativa adoptada, seja susceptível de dissuadir os contribuintes de adoptarem os comportamentos que se pretendem modelar através da tributação.
34.Ora da análise da L 55/2007, não se descortina qualquer motivo subjacente à imposição da CSR que não seja puramente orçamental, materializado no financiamento da Infraestruturas de Portugal, SA, sendo que quaisquer outros motivos, como fosse o ambiental (relacionado com a poluição decorrente da utilização de combustíveis fósseis derivados do petróleo) já se encontram subjacentes à liquidação do ISP, não preenchendo, por isso, o conceito de motivo específico para a imposição de um novo tributo.
35.Face à ausência de qualquer motivo específico (distinto do ISP) sem cariz meramente orçamental que, na acepção do art. 1.º/2, da Directiva IEC, justifique a imposição da CSR, é manifesta a ilegalidade da L 55/2007, por preterição do disposto nessa norma.
36.Deste modo, prevalecendo o Direito da União sobre o Direito interno conflituante dos Estados Membros, atento o princípio do primado ínsito no artigo 8.º/4, da CRP, conclui-se pela prevalência do primeiro sobre o segundo, impondo-se a desaplicação da L 55/2007, sendo, consequentemente, ilegais todas as liquidações de CSR efectuadas ao abrigo deste diploma legal.
37.Em conformidade, por impender sobre a AT a obrigação de desaplicar normas internas conflituantes com o Direito da União, a omissão desse dever constitui uma situação de erro imputável aos serviços, redundando igualmente numa situação de injustiça grave e notória (quanto aos actos tributários emitidos a partir de Janeiro de 2020), devendo, por isso, proceder-se à anulação dos actos tributários em crise, e determinar o reembolso à Requerente dos montantes neles plasmados e por ela suportados, com as demais consequências legais.
38.A Requerente invoca ainda inconstitucionalidade da L 55/2007 por preterição do princípio da igualdade, ínsito no art. 13.º da CRP.
39.Assim, entendida a CSR como um imposto, a sua conformidade à CRP e, mais concretamente, ao princípio fundamental da igualdade, ínsito no artigo 13.º afere-se através da aplicação do princípio da capacidade contributiva, o qual pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem excepção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (ac. TC n.º 306/2010).
40.Ora, considerando que os impostos se destinam ao financiamento das funções gerais do Estado, igualmente aproveitáveis por todos os cidadãos, mas que nem todos são titulares da mesma força económica, o critério de repartição justa dos encargos públicos não impõe que todos paguem os mesmos impostos, mas antes que todos contribuam na medida das suas concretas possibilidades, assim se materializando uma ideia de redistribuição e de solidariedade.
41.Isso implica que seja estabelecido um critério adequado, não arbitrário, que diferencie a carga tributária em função da capacidade contributiva de cada cidadão, onerando de forma mais intensa quem possui uma maior força económica.
42.Neste contexto, caso se identifique um imposto que onera em exclusivo (ou mais intensamente) alguns cidadãos ou sectores de actividade, terá necessariamente de concluir-se pela respectiva inconstitucionalidade por violação do mencionado princípio fundamental da igualdade.
43.Ora, no caso em apreço, tendo a CSR sido criada com o alegado propósito de servir de contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional – actualmente, a Infraestruturas de Portugal, SA –, destinando-se as respectivas receitas a financiar a actividade da empresa pública concessionária da rede nacional rodoviária (i.e., a custear a concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional), sucede que o universo de sujeitos que beneficia da actividade dessa empresa pública extravasa em muito o conjunto dos sujeitos passivos da CSR e, até, dos contribuintes onerados com a CSR por via da repercussão do seu encargo, sacrificando-se patrimonialmente um conjunto de contribuintes com o intuito de custear uma realidade que beneficia a generalidade dos cidadãos.
44.De facto, a existência de uma boa rede rodoviária beneficia todos os cidadãos e entidades que operam em Portugal, independentemente da sua forma de locomoção (com recurso a transporte público ou particular), do tipo de combustível dos seus veículos (gasolina, gasóleo, gás e/ou electricidade) e do sector de actividade em que operam,
45.Mas não se identifica qualquer nexo entre a aquisição de combustíveis fósseis e uma utilização especialmente intensa das estradas incluídas na rede rodoviária nacional, sendo certo que (i) os adquirentes dessa matéria-prima poderão limitar-se a utilizar vias excluídas dessa rede, como por exemplo as estradas municipais, e (ii) não está demonstrado que todos veículos com motores de combustão utilizem de forma mais intensa as vias integradas na rede rodoviária nacional, podendo suceder em alguns casos que a utilização por veículos eléctricos e a gás seja até mais intensa.
46.Acontece ainda que a Infraestruturas de Portugal, SA tem também a seu cargo o desenvolvimento da ferrovia, poderá suceder que as receitas da CSR sejam alocadas, pelo menos em parte, a essa tarefa, o que corresponderá à oneração dos adquirentes de combustíveis fósseis com um tributo que não só não os beneficia directamente – porque, enquanto adquirentes de combustíveis, deslocar-se-ão tipicamente em veículo próprio –, como inclusivamente beneficiará outros cidadãos – os utilizadores da ferrovia – que, ainda que tenham uma capacidade económica semelhante ou superior à sua, não serão onerados com o encargo porque não adquirem combustíveis fósseis.
47.Donde, terá de concluir-se que, ao fazer incidir um imposto sobre um conjunto restrito de contribuintes, a L 55/2007 padece de inconstitucionalidade material, por preterição do princípio constitucional da igualdade, ínsito no art. 13.º da CRP, na medida em que onera de forma injustificada um conjunto de contribuintes em face do seu sector de actividade económica, fazendo-os contribuir em maior medida para o financiamento de funções do Estado igualmente aproveitáveis por todos os cidadãos.
48.Sendo inconstitucional o seu regime jurídico, são consequentemente ilegais todas as liquidações de CSR, designadamente as invocadas pela Requerente, o que naturalmente implica a respectiva anulação nos termos do art. 163.º do CPA e a consequente restituição dos montantes ilegalmente liquidados e, subsequentemente, repercutidos na esfera jurídica da Requerente, com as demais consequências legais.
Posição da Requerida
49.A Requerida reconhece a questão jurídica relacionada com a ilegalidade da liquidação da CSR, criada pela L 55/2007, por ser um tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente com o artigo 1.º/2 da Directiva 2008/118, de 16-12-2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo despacho proferido pelo TJUE em 07.02.2022, no proc. C-460/21, assinalando que a mesma tem vindo a ser suscitada junto do CAAD por diversos sujeitos passivos de ISP/CSR.
50.Defende-se por excepção e por impugnação, sendo que, por reconhecer a desconformidade da CSR com o Direito das União, insiste sobretudo em matéria de excepção.
51.Por excepção, a Requerida começa por arguir a incompetência do tribunal em razão da matéria.
52.Neste ponto, contrariando a argumentação da Requerente, a AT lembra que a sua vinculação à jurisdição dos Tribunais arbitrais ocorre nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22.3, sendo que no objecto desta vinculação definido pelo artigo 2.º se refere a apreciação das pretensões relativas a impostos. Apenas impostos, portanto, deixando de fora outras contribuições ou tributos, como é o caso da CSR.
53.Fundamenta o seu entendimento no facto de o legislador não ter enquadrado a CSR no conceito, tal como é referido no art. 4.º da LGT. Cita a propósito o entendimento convergente de alguma jurisprudência do CAAD (nomeadamente do Conselheiro Lopes de Sousa no proc. 31/2023-T que encontra do regime definido na Portaria 112-A/2011 um intuito claramente restritivo que impõe uma leitura no mesmo sentido).
54.Nestes termos (encontrando-se a CSR excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos art.os 2.º e 3.º do RJAT e art. 2.º da Portaria 112-A/2011, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição, não se encontra verificada a arbitrabilidade do thema decidendum) não são os tribunais arbitrais do CAAD materialmente competentes para conhecer do mérito do pedido em apreço, o que prejudica o conhecimento do mérito da causa.
55.Além disso, entende e AT que a incompetência material do tribunal em razão da matéria é alcançável por outra via: é que o pedido de pronúncia arbitral visa a não aplicação da CSR o que supõe a apreciação genérica da sua legalidade, o que excede a competência da instância arbitral enquanto contencioso de mera anulação.
56.Há, portanto, novamente incompetência material do tribunal arbitral, tal como tem sido reconhecido em diversos processos (212/2020-T, 707/2019-T, 131/2019-T e 117/2021-T).
57.Essa incompetência material resulta ainda do facto de que – mesmo que se admitisse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR – nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR (cf. proc.os 296/2923-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 466/2023-T, 467/2923-T e 490/2023-T)
58.Argui, depois, a Requerida, a ilegitimidade processual da Requerente, por não ser a mesma o sujeito passivo que procedeu à introdução no consumo dos produtos no t5erritório nacional, provando o pagamento dos respectivos ISP/CSR.
59.No caso, refere a Requerente, ter sido a B..., SA a quem caberia identificar os actos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (art.os 15.º e 16.º do CIEC, ex vi art. 5.º/1 L 55/2007; tb. art. 78.º/1 da LGT), já que estamos na presença de impostos monofásicos.
60.Não se encontram, portanto, reunidos os pressupostos para a revisão dos actos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não podendo a entidade, em que alegadamente teria sido repercutido o imposto, apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro. Donde, não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no art. 4.º do CIEC, não tem legitimidade nos termos supra nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.
61.Esta situação é reforçada pelo facto de a Requerente não ser o sujeito passivo que suporta o encargo do imposto por repercussão legal, pelo que, a falta de legitimidade decorre também do disposto no art. 18.º/4 a) da LGT.
62.No caso, não existe repercussão legal mas meramente de facto ou económica, ou seja, os sujeitos passivos poderão eventualmente, no âmbito das suas relações comerciais proceder (ou não), à transferência, parcial ou total, da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade.
63.Em todo o caso, fica claro que a Requerente não é sujeito passivo e não integra a relação tributária subjacente à liquidação contestada, não havendo, por isso, identificação das liquidações na origem das imposições objecto da alegada repercussão, nem a identificação da alfândega, ou outra estância aduaneira, que tenha efectuado essas mesmas liquidações, e que seria o serviço com competência para apreciar o pedido de revisão ou anulação da liquidação.
64.Aliás, as facturas apresentadas não corporizam actos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pela Requerente enquanto consumidor final,
65.Verificando-se que a Requerente não consegue demonstrar que o valor pago pelo combustível que adquiriu à sua fornecedora, tem incluído o valor da CSR pago pelo sujeito passivo de ISP/CSR, nem que suportou, a final, o encargo de tal tributo, isto é, que não o repassou no preço dos serviços praticados aos seus clientes, enquanto consumidores finais.
66.Conclui-se, portanto, pela ilegitimidade da Requerente, no sentido de diversas decisões arbitrais (proc. 408/2023-T, 375/2023-T, 296/2023-T e 332/2023-T), já que a Requerente não é sujeito passivo de ISP/CSR e não integra a relação tributária subjacente à liquidação, ou liquidações, contestadas, não sendo devedora, nem quem estava obrigada ao seu pagamento ao Estado, que está a jusante do sujeito passivo na cadeia económica, que, em termos jurídicos, não é um terceiro substituído, que não suporta a contribuição por repercussão legal, nem tão pouco corresponde ao consumidor final, pelo que não tem legitimidade nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do artigo 15.º/2 do CIEC e do art. 18.º/3 e 4 a) da LGT.
67.A AT levanta ainda um problema prático concorrente: caso se aceite que a Requerente tenha legitimidade para efectuar o pedido de revisão e de anulação parcial da liquidação do ISP, reclamando o reembolso da CSR alegadamente suportada, poder-se-ia estar perante uma situação de ilegítima, infundada e indevida restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.
68.De facto, sem a possibilidade de se identificar o registo de liquidação correspondente às transacções posteriores, a Requerida poderia vir a ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia comercial de combustíveis: desde o sujeito passivo de imposto, passando pelos grossistas, distribuidores e revendedores, até ao consumidor final (tenham ou não estes suportado os valores em causa) – tal como se referiu na decisão do proc. 332/2023-T (v. tb. voto de vencida no proc. 491/2023-T
69.Prossegue depois a AT invocando a ilegitimidade substantiva da Requerente, a qual decorrerá do facto de esta ter adquirido combustível, suportando, na compra o custo da CSR por repercussão, mas realizando serviços de transporte no âmbito da sua actividade em cujo preço terá repercutido esse encargo. Assim sendo, quem terá suportado a CSR terá sio o consumidor final, o que retira à Requerente legitimidade substantiva para reclamar a sua devolução.
70.Refere ainda a Requerida a falta de interesse em agir da Requerente, o que decorrerá do facto de esta não ter pago os valores referente à CSR, inexistindo, portanto, qualquer direito legalmente protegido que possa ser objecto de tutela (art.os 576.º/1 e 2 e 577.º do CPC, aplicável nos termos do art. 29.º/1 e) do RJAT).
71.A AT invoca, de seguida, a ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto, dado não estarem identificados os actos tributários objecto do pedido, conforme determina o art. 10.º/2 b) do RJAT – questão que, aliás, havia referido logo no requerimento apresentado ainda antes da constituição do tribunal (cf. supra § 4) – sendo que, se não dispunha da documentação necessária para o efeito, cabia-lhe especificar os actos em causa e solicitar essa documentação, sob pena de indeferimento da petição (art. 429.º, 146.º/2 b) do CPT).
72.Não tendo procedido à identificação dos actos nem solicitado no momento adequado a documentação que os comprovasse (sendo certo que a mera indicação de facturas de aquisição não permite a esta identificar as correspondentes liquidações que terão sido efectuadas pelos sujeitos passivos de ISP, nos termos do art. 4.º do CIEC, na sequência da necessária Declaração de Introdução no Consumo), o pedido arbitral é inepto.
73.Além disso, a Requerente não justificou nem provou que a fornecedora repercutiu sobre si a totalidade ou parte do CSR alegadamente pago.
74.Nesse mesmo sentido tem decidido o CAAD (proc. 467/2023-T; ver também declaração de vencida no proc. 491/2023-T).
75.A petição é, assim, inepta da por não identificar o acto tributário, violando o requisito do art. 10.º/2 b) do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, nos termos dos art.os 186.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º b) e 278.º/1 b), do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância.
76.A Requerida prossegue invocando, depois, a caducidade do direito de acção, a qual decorrerá da falta de indicação dos actos de liquidação, o que impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações, já que o prazo de 4 anos previsto no art. 78.º/1 da LGT conta-se a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do acto de liquidação.
77.Ora a tempestividade da apresentação do pedido arbitral decorre da tempestividade do pedido de revisão, o que, face à não identificação dos actos tributários, é impossível.
78.No caso, aliás, tratando-se de aquisições no período compreendido entre Abril de 2019 e Dezembro de 2022, deve assumir-se que, em 03.05.2023, há muito que se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no art. 78.º/1, primeira parte, da LGT.
79.Será por isso que a Requerente fundamenta o pedido de revisão oficiosa em erro imputável ao serviço - de modo a fazer valer-se do prazo de 4 anos previsto no mesmo art. 78.º/1, mas na segunda parte dessa norma – o que não tem cabimento pois estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo efectuado as liquidações em estrita observância dos normativos legais em vigor à data dos factos, não existe qualquer erro imputável aos serviços.
80.Acresce que, no âmbito dos IEC, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos art.os 15.º a 20.º do CIEC, tendo em 3.5.2023 terminado o prazo de 3 (três) anos previsto naquele normativo para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR.
81.Donde, face á impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e de reembolso por alegado pagamento de valores a título de alegada repercussão económica da CSR, será também impossível conferir da tempestividade do pedido arbitral, o que consubstancia uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido.
82.E ainda que assim não se entenda, sempre consubstanciará uma excepção dilatória por assim ser qualificada especialmente nos termos e para o efeito do disposto nos art.os 89.º/1, 2 e 4 k) do CPTA, devendo, nessa medida, ser a Requerida absolvida do pedido ou da instância.
83.Prossegue a Requerida invocando a falta de pagamento dos valores a título de CSR por parte da Requerente, dado esta não ter provado qualquer repercussão do pagamento do imposto referido, não se sabendo também, nem havendo como saber, se a Requerente é proprietária de veículos automóveis, e se, a ser proprietária, esses veículos automóveis foram, ou não, efectivamente abastecidos com o gasóleo adquirido pela Requerente no âmbito e para o exercício da sua actividade comercial ou deslocações inerentes a tal exercício, nem se a Requerente adquiriu, ou não, e, a ter adquirido, em que datas, onde e em que quantidades adquiriu a gasolina e o gasóleo rodoviário e onde/quais as viaturas em que foram introduzidos e, consequentemente, consumidos.
84.Note-se que não se sabe, nem tem como se saber, qual o valor alegadamente pago pela Requerente pela alegada aquisição de 1.559.582,98 litros de gasóleo no período em questão, pois não comprova qualquer informação a esse respeito, nomeadamente como e a que título efectuou o alegado pagamento, quando é que e como alegadamente o fez.
85.Não tendo a Requerente feito prova de que efectivamente ocorreu repercussão económica nem de que, nessa sequência, efectuou o pagamento e, consequentemente, suportou o valor da CSR (cabendo-lhe produzir essa prova nos termos do art. 74.º/1 da LGT) estamos perante uma excepção peremptória, nos termos e para o efeito do disposto no art. 576.º/1 e 3 do CPC, aplicável ao presente processo por via do artigo 29.º/1 e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.
86.Respondendo, de pois, por impugnação, a AT insiste no facto de a Requerente não fazer prova de que pagou e suportou integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão (quando esse ónus recaía sobre si, nos termos do art. 74.º da LGT, não ocorrendo qualquer inversão desse ónus, como parece pretender a Requerente)
87.De facto, a Requerente não identifica quaisquer liquidações de ISP/CSR – o que teria de fazer com base em Declarações de Introdução no Consumo (DIC) – assumindo que tais declarações terão sido apresentadas pela B... SA, o que não pode ter acontecido por essa empresa não ter estatuto no âmbito dos IEC que lhe permita processar tais declarações (tendo, portanto, agido como mero intermediário no circuito de comercialização, sem ter sido sujeito de ISP/CSR).
88.As facturas apresentadas pela Requerente - nas quais constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR - por si só, não fazem prova do alegado pagamento, pois não consubstanciam factura-recibo, nem recibo, nem nota de crédito, nem a conjugação de documentos (contabilísticos ou outros), que permitam comprovar o pagamento do montante alegado.
89.Ora, a própria jurisprudência do CAAD tem convergido no sentido de que a prova desses factos seria essencial e cabia à Requerente (cf. 452/2023-T).
90.Acresce que é incorrecto assumir que o valor pago pelo combustível adquirido engloba as imposições pagas, ao limitar-se a aplicar à quantidade de litros fornecidos e constantes das facturas do seu fornecedor, a taxa de CSR que se encontrava em vigor às datas das mesmas.
91.Isto porque, nos termos do art. 91.º do CIEC, a unidade tributável dos produtos petrolíferos e energéticos (e consequentemente da CSR) é de 1000 l convertidos para a temperatura de referência de 15°C, o que supõe a certificação da medição da temperatura na descarga do combustível adquirido (temperatura ambiente), sem o que será impossível determinar a unidade tributável para efeitos de determinação da CSR e consequentemente, saber qual a eventual parte da CSR incluída no preço pago pelo combustível adquirido.
92.Recorda ainda que o Despacho do TJUE de 7.2.2022 no proc. C-460/21, explica que a sua análise se limitou aos termos específicos das questões colocadas sem ter analisado a CSR com profundidade (§ 33.º e 34.º), não havendo, em rigor, qualquer decisão judicial que considere ilegal a CSR, pelo que também não existe qualquer erro imputável aos serviços da Requerida.
93.Na verdade, ao contrário do que afirma a Requerente subsiste um motivo específico subjacente à CSR, em sede de diminuição da sinistralidade rodoviária.
94.Conclui a AT lembrando que é a própria jurisprudência do TJUE (ac. 20.10.2011, proc. C-94/10) que admite que um Estado-Membro se possa opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais.
II. Saneamento
95.O tribunal foi regularmente constituído e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).
96.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento das excepções de incompetência e intempestividade para a análise da matéria de Direito.
III. Matéria de facto
Factos provados
97.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes, são os seguintes:
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A Requerente é uma sociedade comercial portuguesa que se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias.
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No período compreendido entre Abril de 2019 e Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu à B..., SA 1.559.582,98 litros de gasóleo.
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Nem a Requerente nem a B..., SA são operadores económicos detentores do estatuto IEC de destinatário registado, concedido ao abrigo e nos termos do regime previsto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo DL 73/2010, de 21.6.
-
Alegando ter sido integralmente repercutido sobre si o montante de 173.113,71 € de CSR, através das facturas emitidas pela B..., a Requerente apresentou em 2 de Maio de 2023, um pedido de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR, e dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas emitidas pelas fornecedoras de combustíveis.
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Esse pedido foi tacitamente indeferido.
-
Em 6 de Dezembro de 2023 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.
Factos não provados
98.Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar (dado o standard de prova estabelecido pelo TJUE no seu despacho de 7.2.2022 no proc. C-460/21, nomeadamente vedando presunções):
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Quem, em todo o período de referência, foram os sujeitos passivos a quem a fornecedora de combustível comprou os produtos que revendeu à Requerente.
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Quais os valores de CSR liquidados a esses sujeitos passivos desconhecidos, com base nas DIC por eles apresentadas, e os valores de CSR por eles pagos ao Estado.
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Que a CSR tenha sido repercutida total ou parcialmente por esses sujeitos passivos sobre a fornecedora de combustível e por esta à Requerente.
-
Quais os efeitos económicos de tais repercussões.
Fundamentação da apreciação matéria de facto
99.Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA, ao processo administrativo e a requerimentos oportunamente deferidos.
100.Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º/2 do CPPT e art.os 596º/1 e 607º/3 e 4 do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.os 5º/2 e 411.º do CPC).
101.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º e) do RJAT e art. 607º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29º/1 e) do RJAT).
102.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º/5 do CPC ex vi art. 29º/1 e) do RJAT).
103.Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
104.O tribunal considera que as facturas da fornecedora de combustível, apresentadas pela Requerente não identificam os originais sujeitos passivos de ISP e de CSR, não podendo substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta destes tributos pelos sujeitos passivos: as Declarações de Introdução no Consumo, ou o Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou documentos que, ao menos, permitissem identificar, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.
IV. Matéria de Direito
105.Reconhece este tribunal que a CSR é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo.
106.De facto, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos (cf. art. 1.º/1 a) e 2 da referida directiva), o que não acontece, já que a mera afectação do produto desse tributo ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional não é suficiente, mesmo se associada à redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
107.Na verdade, não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e essas finalidades (já que o produto da CSR não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização desses dois objectivos), nem é evidente uma real vontade de desencorajar a utilização quer da rede quer dos principais combustíveis rodoviários, pelo que subsiste uma finalidade puramente orçamental.
108.As directivas, como é sabido, são actos através dos quais os órgãos competentes da União impõem aos Estados-membros a transposição do respectivo regime, ou seja, a adopção de actos subsequentes que adeqúem a sua ordem jurídica às regras por elas fixadas.
109.Por não se dirigirem aos particulares, entende-se genericamente que não podem ser invocadas por estes como tendo criado direitos na respectiva esfera jurídica (não têm, portanto, efeito directo).
110.A jurisprudência europeia reconheceu, todavia, uma excepção (ac. 17.12.70 SACE, proc. 33/70): tratando-se de disposições precisas e incondicionais de directivas, a não transposição destas (ou a transposição incorrecta) no prazo por elas estabelecido, permite aos particulares invocá-las contra entes públicos (efeito directo vertical), já que, caso contrário, esses entes estaria a retirar vantagem de um incumprimento das obrigações gerais face ao Direito da União, privando esses mesmos particulares de direitos que teriam sido constituídos na sua esfera jurídica se a transposição tivesse ocorrido nos termos previstos.
111.Essa será a situação em apreço: a proibição constante do art. 1.º da Directiva 2008/118 pode ser invocada pela Requerente para arguir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR que a contrariam, por não se verificarem os necessários motivos específicos.
112.Isso mesmo foi reconhecido explicitamente pelo TJUE – a quem cabe determinar em exclusivo a interpretação do Direito da União (art. 267.º TFUE) – no Despacho de 2.2.2022 (Vapo Atlantic SA c. Autoridade Tributária, proc. C-460/21), nos termos que sumariamente são referidos supra nos § 105-107.
113.Ora, o Direito da União aplica-se na ordem interna portuguesa nos termos por ele definidos (art. 8.º/4 da Constituição), sendo que esses termos determinam a sua prevalência sobre o Direito nacional, por força do princípio do primado (ac. 15.07.1964 Costa c. ENEL, proc. 6/64 e Declaração sobre o primado do direito comunitário, anexa ao TFUE).
114.Neste enquadramento, dúvidas não subsistirão quanto à ilegalidade genérica dos actos de liquidação da CSR.
115.Não obstante, no caso em apreço são arguidas pela AT diversas excepções. A saber: a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (por não se tratar de um imposto mas de mera contribuição), a ilegitimidade da Requerente (por não ser o sujeito passivo da CSR mas mero repercutido eventual), a ineptidão da petição inicial (por falta de objecto, dada a não identificação dos actos tributários cuja nulidade é arguida) e a caducidade do direito de acção (por não ser possível efectuar contagem dos prazos dado não haver identificação – e consequentemente data – dos actos de liquidação).
116.Relativamente à pretendida incompetência do tribunal arbitral reconhece-se que a Portaria de vinculação à jurisdição arbitral (Port.ª 112-A/2011 de 22.3) estabelece duas limitações: as pretensões relativas a impostos de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais e a impostos cuja administração esteja acometida à AT. Conclui-se, portanto, que essa vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no art. 2.º/1 do RJAT que respeitem a impostos, com exclusão de outros actos tributários.
117.As contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidas à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos com rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, p. 287). Não há dúvidas que se distingam dos impostos.
118.No caso da CSR, esta visa financiar a rede rodoviária nacional (afectando-se, para esse efeito, as receitas dela decorrentes à Infraestruturas de Portugal SA, a qual assume esse encargo), sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), aplicando-se o CIEC à sua liquidação, cobrança e pagamento (nos termos do art. 5.º/1 da Lei 55/2007 de 31.8).
119.Dificilmente pode considerar-se a CSR como uma contribuição financeira, já que não tem como pressuposto uma prestação a favor de um grupo de sujeitos passivos por parte de uma pessoa colectiva. Ela é estabelecida a favor da Infraestrururas de Portugal, SA, mas os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis) não são os destinatários da actividade dessa empresa (que consiste na concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas – cf. art. 3.º/2 da Lei 55/2007).
120.Inexistindo um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparece essa natureza de contribuição financeira, devendo, por isso, ser assumida como um imposto, para efeitos do art. 2.º/1 do RJAT.
121.Segue-se, nesta questão a orientação maioritária do CAAD, que reconhece na CSR um verdadeiro imposto e, por isso integrando a competência arbitral (por todos, v. proc. 465/2023-T).
122.A AT, ainda sobre a pretendida incompetência do tribunal arbitral, entende que este não poderá conhecer do pedido, por este pretender discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua desconformidade com o Direito da União.
123.Este reparo assenta num evidente equívoco já que, conforme se referiu supra, a efectiva desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118 integra a competência do tribunal arbitral, por afectar a validade das liquidações desse tributo, da mesma maneira que essa validade poderia ser afectada por desconformidade com normas de direito interno, dado o regime de vigência do Direito da União.
124.Improcede, portanto, a excepção de incompetência do tribunal.
125.Relativamente às outras excepções invocadas pela Requerida (ilegitimidade da Requerente, ineptidão da petição e caducidade do direito de acção), abordá-las-emos conjugadamente a partir de um elemento que, da análise do processo e da jurisprudência (nem sempre convergente) que vem surgindo na matéria, nos parece determinante: a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários impugnados.
126.Essa identificação, conforme se referiu supra (§ 104) não resulta das facturas dos fornecedores de combustível, apresentadas pela Requerente, já que nenhuma referência nelas surge sobre originais sujeitos passivos de ISP e de CSR (os quais constarão das Declarações de Introdução no Consumo, ou do Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou eventualmente de outros documentos que lograssem tal identificação com um mínimo de certeza).
127.Ora essa identificação é imprescindível já que a pretendida devolução dos montantes pagos em sede de CSR se funda na nulidade do acto de liquidação (que fundamenta o pedido de revisão oficiosa). E se dificilmente pode ser apreciado o vício do acto sem se demonstrar a sua existência, impossível será conferir da sua repercussão efectiva.
128.Assim, defende a Requerente que tendo as compras das mercadorias ocorrido na vigência da Lei 55/2207, a sujeição à CSR seria obrigatória, o que, genericamente se poderia aceitar – embora se trate de mera presunção de facto.
129.Todavia, o que está em questão, mais do que saber se os combustíveis em causa foram ou não presumivelmente sujeitos a CSR, será saber, também, quem terá suportado esse encargo originaria e efectivamente, pois só a partir daí será possível atestar da sua existência e, além disso, conferir se foi efectivamente pago e repercutido na Requerente.
130.É que, não havendo repercussão legal da CSR, esse efeito não poderá presumir-se, carecendo de prova, a qual depende - novamente - da identificação dos actos tributários de liquidação originários.
131.Chega-se, assim, à ilegitimidade da Requerente, a qual, não sendo sujeito passivo, mas mero repercutido (eventual) de facto, terá de demonstrar essa repercussão. E a prova desta repercussão só poderá fazer-se a partir do acto tributário da liquidação da CRS. Não sendo o mesmo identificado, impossível se torna a demonstração da repercussão.
132.Atente-se ao facto de que este tribunal arbitral não afasta a possibilidade de uma eventual repercussão, mas também não dispensa a sua demonstração, a qual depende - como se referiu - da identificação do acto tributário original de liquidação.
133.Neste ponto, releva o argumento da AT quando salienta o risco de o pedido de devolução de CSR poder ser feito por todos os intervenientes no processo de comercialização dos combustíveis.
134.Esse risco só é controlável na medida em que, sendo identificado o acto ou actos tributários originais de liquidação, possa ser conferida a efectiva repercussão do imposto, a qual determinará o titular do direito à sua devolução, com exclusão dos demais (na medida em que tenham repercutido, a montante e não tenham sido repercutidos, a jusante, se surgirem no referido processo).
135.Neste ponto, será excessivo pretender que seja a AT a identificar os actos tributários em causa por força de um dever genérico de colaboração. Esse dever não pode equivaler (como parece pretender a Requerente) a uma verdadeira inversão do ónus da prova. E, por outro lado, nada impede que o consumidor obtenha dos seus fornecedores cópia das declarações de introdução ao consumo (DIC), ou, que estes efectuem essa mesma diligência, caso não tenham sido eles a fazer tal declaração.
136.Atente-se, finalmente, a que a referida imprescindibilidade da identificação do acto tributário se justifica ainda enquanto elemento essencial para a conferência dos prazos relevantes.
137.De facto, a contagem do prazo para o pedido de revisão oficiosa (e subsequentemente para a apresentação do pedido arbitral), dependem da identificação do acto tributário. Sem este será impossível fazer-se a necessária conferência. Trata-se, mais uma vez, de um elemento de prova cuja produção que compete ao interessado.
138.Nestes termos, entende o tribunal que, a imprescindibilidade da identificação do acto tributário cuja declaração de nulidade é requerida faz com que a inexistência dessa identificação torne a petição inepta por falta de objecto (art. 186.º e 576.º/2 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT) - para além de conduzir simultânea e subsidiariamente à ilegitimidade da Requerente, tornando ainda impossível conferir da tempestividade do exercício do direito de revisão do acto e do pedido arbitral (art. 576º/2 e 3 e 577.º a) ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).
139.A procedência das excepções impede o conhecimento da demais matéria da presente acção arbitral.
V. Decisão
Em face do supra exposto, decide-se
-
Considerar totalmente improcedente o pedido por procedência das excepções de ineptidão da petição, ilegitimidade da parte e caducidade do direito de acção, com as consequências legais;
-
Condenar a Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em 173.113,71 € (cento e setenta e três mil cento e treze euros e setenta e um cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 3.672 € (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 26 de julho de 2024
Os Árbitros,
José Poças Falcão (Presidente)
Vítor Braz (vogal)
Com declaração de voto que segue
Rui M. Marrana (vogal, relator)
Texto elaborado em computador.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
Declaração de voto do árbitro Vítor Braz:
Atento o teor do douto acórdão, sem discordar com o sentido final da decisão por falta de prova sobre a efetiva repercussão da CSR, quanto à matéria de direito e conteúdos da decisão sobre as exceções invocadas, apresento as observações seguintes:
Sobre a ineptidão da petição
Nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 98.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, constitui nulidade insanável do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial, sem esclarecer as situações que configuram essa ineptidão.
A título subsidiário - Cf. al. e) do art.º 2.º do CPPT e al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT -, no n.º 1 do art.º 186.º do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial: “a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
O n.º 3 desse artigo determina que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
Não existe contradição entre o pedido e a causa de pedir, pois a Requerente não põe em causa a legalidade de emissão das faturas, nem pretende atingir o ato de repercussão qua tale, antes visa a declaração de ilegalidade e a anulação das liquidações de CSR subjacentes e a restituição do imposto que alega ter suportado por repercussão – Cf. Processo arbitral n.º 676/2023T.
A Requerente não reveste a natureza de sujeito passivo da CSR, pelo que não dispõe das respetivas liquidações correspondentes, mas dos documentos/faturas relativos aos factos tributários em que participou e em relação aos quais alega ter suportado o imposto por repercussão.
No domínio da relação jurídico-tributária da CSR emergem duas tipologias de atos tributários: a) os atos de liquidação de CSR, praticados pela AT com base nas DIC’s apresentadas pelos sujeitos passivos da relação jurídico-tributária, na sequência dos quais entregam ao Estado o imposto; e b) os eventuais atos de repercussão legal da CSR antes liquidada (corporizados ou não) nas faturas (ou demais elementos de prova) emitidas pelos SP ou outros revendedores intervenientes nas relações comerciais.
Neste sentido, observa-se, o sentido de pretéritas decisões arbitrais: “(…) o estatuto jurídico-tributário do repercutido torna imponível a este a prova do pagamento do imposto que lhe foi repercutido. Basta-lhe provar que suportou o imposto repercutido, porque concedendo-lhe a lei legitimidade para impugnar o imposto que suportou e que considera ter sido indevidamente liquidado, tem apenas de provar que suportou o respetivo encargo.” - Cf. Processo n.º 468/2020-T. Por sua vez, o princípio geral de repartição do ónus da prova, consagrado no artigo 74.º da LGT “(…) está necessariamente limitado pela situação tributária em presença quando se constata que o contribuinte, embora possa impugnar o ato tributário de liquidação, não é o sujeito passivo do imposto e apenas figura como último responsável pelo seu pagamento, por virtude de o imposto lhe ser repercutido na sua esfera jurídica na qualidade de titular do interesse económico que está subjacente à liquidação (…)”. – Cf. Processo n.º 467/2020-T “
No âmbito de uma relação jurídico-tributária potencialmente objeto de repercussão legal (como a de CSR), os eventuais atos de repercussão legal consubstanciam atos tributários autonomamente sindicáveis por parte dos respetivos repercutidos, cabendo-lhes, ao abrigo do princípio geral de repartição do ónus da prova consagrado no artigo 74.º da LGT, o ónus de identificação e de comprovação dos pertinentes atos tributários de repercussão que pretendam contestar e que conseguiram obter.
Saber se esses documentos fazem prova suficiente ou não, esta é uma questão de prova e de livre apreciação pelo Tribunal, ab initio, não se pode considerar ininteligível ou inviabilizada a petição, a qual foi objeto de exaustiva contestação pela Requerida, tendo esta compreendido bem o pedido e a causa de pedir.
Os putativos atos de repercussão de CSR invocados pela Requerente – os únicos de que foi potencial destinatária – encontram-se identificados no pedido de pronúncia arbitral.
A imputação aos consumidores (eventuais repercutidos) do ónus de identificarem e de juntarem aos autos os atos tributários de liquidação dirigidos aos respetivos sujeitos passivos da CSR, tal exigência comprometeria a sindicabilidade desses atos tributários, à semelhança dos casos de retenções na fonte, pelos substituídos. Tal exigência não observaria os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva e da proporcionalidade – Cf. artigos 20.º e 18.º da CRP, respetivamente.
O princípio da efetividade encontra-se subjacente ao sentido decisório acolhido pelo TJUE (Proc. C-460/21). Tendo a Requerente junto aos autos os elementos de prova que entendeu suficientes para demonstrar o putativo pagamento do imposto por repercussão, cobrado em violação do direito da União, exigir-lhe a prova dos respetivos atos de liquidação contenderia com esse princípio jus-europeu da efetividade, ficando essa categoria de contribuintes, em Portugal, desprotegidos e impedidos da possibilidade de recurso à justiça.
Termos em que não se verificaram as situações previstas no n.º 1 do art.º 186.º do CPC, bem como a Requerida na exaustiva resposta/contestação, igualmente, demonstra que “interpretou convenientemente a petição inicial” – Cf. n.º 3 da norma legal referida.
Sobre a legitimidade da Requerente
Quando é cobrado imposto em violação do direito da União Europeia é entendido que subiste a obrigação de restituí-lo ao sujeito passivo (SP), nos termos da lei e da jurisprudência da EU e nacional, salvaguardadas as situações de enriquecimento sem causa.
O pedido em apreciação consiste em saber se nos termos desses ordenamentos jurídicos, os restantes intervenientes nas operações comerciais e, em regra, os contribuintes consumidores finais a quem o imposto possa ter sido repercutido e que o possam ter suportado economicamente têm o direito de exigir diretamente da Requerida/Estado a apreciação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto indevidamente pago, caso seja provado ter sido acrescido ao preço de compra do bem/produto por eles adquirido.
As empresas petrolíferas, em regra, repercutem o ISP e, no caso a CSR, nos operadores a jusante. Enquanto impostos aplicados ao consumo, estes caracterizam-se pelo facto de o seu encargo financeiro poder ser repercutido -repercussão fiscal - nos intervenientes na atividade comercial, maxime, no consumidor final.
A legitimidade deve ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas - têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem um interesse legalmente protegido. - cf. n.º 2 do art.º 1.º e art.º 65.º da LGT.
Nos termos da alínea a) do n.º 4 do art.º 18.º da LGT assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”. Nesse sentido, o CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” – cf. art.º 9.º do CPPT.
No caso da CSR alegadamente paga pela/s Requerente/s, enquanto consumidor final, existe a demonstração de um interesse legalmente protegido e que merece a tutela do direito, porquanto é no contribuinte consumidor final que, em regra, recai o pagamento dos tributos indiretos.
Por fim, atenta a jurisprudência da UE, o “Tribunal de Justiça referiu expressamente a possibilidade de o comprador final poder exigir, directamente às autoridades nacionais, a restituição do montante do imposto indevido cujo encargo suportou. “ – cf. Acórdão Comateb e O (-192/95 a C-218/95, Colect., p. I-165, n.º 20) de 14 de Janeiro de 1997.”
A plena eficácia do direito de reparação e a proteção efetiva dos contribuintes poderia ficar manifestamente prejudicada perante uma interpretação restrita no sentido de apenas os SP (no caso de CSR) gozarem do direto de ação e de pedirem o reembolso ao Estado – art.ºs. 4.º a 12.º e 15.º a 20.º do CIEC, limitando-se formalmente a outros sujeitos da relação tributária a efetiva reparação dos prejuízos incorridos - os contribuintes que possam ter suportado efetivamente o imposto e ser objetivamente lesados pelos respetivos atos de liquidação.
Nesse sentido, aquele Tribunal afirma: “Por conseguinte, no caso em que um Estado-Membro tenha cobrado um imposto especial sobre o consumo em violação do direito da União e o sujeito passivo tiver repercutido este sobre o seu cliente, um direito a indemnização deste cliente contra o Estado não pode ser recusado com o fundamento de que é de excluir de antemão um nexo de causalidade directo entre a cobrança do imposto e o dano do cliente.” – cf. Proc. C-94/10, conclusões.
Termos em que a/s Requerente/s, na qualidade de consumidor final dos produtos sujeitos a ISP e, subsequentemente a CSR, a quem este imposto possa ter sido repercutido, é titular de um interesse legalmente protegido e, ipso facto, de legitimidade processual, enquanto forma de acesso à justiça e de proteção dos direitos e reparação dos prejuízos que alega ter suportado com o pagamento da CSR, considerada em desconformidade com o direito da União.
Por sua vez, o invocado direito de acesso à justiça, em matéria tributária, através da jurisdição civil contra o SP, o qual se limitou a cumprir a lei vigente e que, em princípio, não obteve qualquer ganho, afigura-se que tal possibilidade seria difícil ou inexistente, na medida em que não ocorre nenhuma das situações previstas no artigo 476º do Código Civil. Observa-se que a repetição do indevido dependeria, ainda, do enriquecimento sem causa do SP, o qual, em regra, não ocorreu por ter entregado ao Estado um imposto que, eventualmente, repercutiu no consumidor final.
Acresce que atento o princípio da efetividade, deve ser igualmente reconhecido ao consumidor final, em regra, o repercutido de impostos indiretos, o direito de reclamar diretamente junto da administração tributária os montantes de imposto indevidamente liquidados e alegadamente pagos, com os demais poderes de impugnação junto dos Tribunais, incluindo o presente Tribunal arbitral - cf. Acórdão do TJUE de 20 de outubro de 2011, Proc. C-94/10.
Termos em que entendo ser de distinguir, por um lado a apreciação dos aspetos estritamente jurídicos e, por outro, a matéria de facto e a prova, esta de livre apreciação pelo Tribunal. A legitimidade é uma questão de capacidade para estar em juízo, enquanto a insuficiência de prova é uma questão de convencimento do Tribunal sobre a existência do direito alegado.
A insuficiência de prova é uma questão relacionada com a admissibilidade da ação e a prova da alegação, enquanto a legitimidade processual é uma questão de capacidade para estar em juízo. Trata-se de questões distintas e a primeira não afeta diretamente a segunda. A insuficiência de prova, in casu, gera a improcedência da ação.
Nesse sentido, observo a jurisprudência do TJUE e o teor do Acórdão de 7 de fevereiro de 2022, Proc. C-460/21, ponto 44: "Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos – Vd, neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C‑147/01, EU:C:2003:533, n.º 96.
Lisboa, 26 de julho de 2024
O Árbitro,
Vítor Braz