Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 797/2023-T
Data da decisão: 2024-07-19  IRS  
Valor do pedido: € 31.539,68
Tema: IRS. Residente não habitual. Prazo e natureza da inscrição.
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Sumário

Os elementos constitutivos do direito a ser tributado na qualidade de “residente não habitual” encontram-se previstos nos n.ºs 1 e 8 do art.º 16.º do CIRS, vigente à data dos factos.

A inscrição como “residente não habitual” tem natureza declarativa e não constitutiva do direito a ser tributado nessa qualidade.

 

I - Relatório

A... (NIF ...) e B...(NIF ...), de ora em diante “Requerentes”, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, (RJAT), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, apresentaram ao Centro de Arbitragem Administrativa pedido de pronúncia e constituição de Tribunal arbitral em que é requerida a “Autoridade Tributária e Aduaneira” (AT), doravante designada por (“Requerida” ou “AT”).

O pedido de pronúncia arbitral decorre e visa a declaração de ilegalidade do indeferimento tácito da Reclamação Graciosa deduzida contra o ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares nº 2022..., respeitante aos rendimentos auferidos no ano de 2021, do qual resultou um montante de imposto a pagar de € 31.539,68.

Termos em que os Requerentes pedem a anulação daquele ato de liquidação e a restituição do imposto pago naquele montante, acrescido de juros indemnizatórios.

No âmbito do processo foram praticados os atos processuais seguintes:

Em 2023-11-07, foi apresentado o referido pedido arbitral.

Em 2024-01-22, foi constituído o tribunal arbitral coletivo mediante despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT). Nessa mesma data, a Requerida foi notificada do Despacho arbitral previsto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT.

Em 2024-02-16, em cumprimento do referido despacho, a Requerida apresenta resposta em que suscita exceções.

Em 2024-02-24, foi emitido o despacho arbitral previsto no artigo 18.º do RJAT e os Requerentes notificados para se pronunciarem, querendo, sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida, cujo documento de pronuncia apresentaram em 2024-03-24.

II - Saneamento

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária.

O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe resolver.

O pedido, as exceções e os argumentos apresentados na resposta pela Requerida são apreciadas pelo Tribunal mais adiante.

III – Da posição das partes

  1.  Dos Requerentes

Os Requerentes pretendem que seja declarada a ilegalidade do ato de liquidação de IRS nº 2022... e, do subsequente indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, respeitante aos rendimentos auferidos no ano de 2021, do qual resultou um montante de imposto pago de € 31.539,68.

Como fundamentos para esse pedido, no essencial, os Requerentes alegam:

Que apesar de terem efetuado o pagamento do imposto, entendem que a liquidação de imposto n.º 2022 ... é ilegal.

Que no dia 06/05/2022 submeteram o pedido de residente não habitual.

Que cumprem o disposto no nº 8 do artigo 16º do CIRS e que “não olvidam que o pedido de inscrição como “residente não habitual” (RNH) foi extemporâneo, face ao disposto no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, mas entendem que tal pedido é meramente declarativo.

Que o facto de não estarem registados como “residentes não habituais” ou não terem cumprido o prazo de inscrição previsto no artigo 16.º, n.º 10 do CIRS não é impeditivo de beneficiarem da tributação pelo respetivo regime, sendo apenas decisivo que ambos preenchem os requisitos estabelecidos no n.º 8 do artigo 16.º CIRS.

Que em 2021, obtiveram no estrangeiro rendimentos de trabalho dependente, os quais declararam no “Anexo J” da declaração “Modelo 3” do IRS submetida em 18-06-2022.

Que após recebimento da liquidação de IRS, em 29-12-2022 apresentaram declaração de substituição, na qual declararam os mesmos rendimentos de fonte estrangeira no “Anexo J” da mencionada declaração “Modelo 3”.

Que a liquidação de IRS enferma de manifesto erro, porquanto não foi aplicado o regime de residente não habitual no apuramento do imposto a pagar.

Que da análise da liquidação aqui em crise, o imposto liquidado pela AT resultou da aplicação das taxas progressivas previstas no artigo 68º do CIRS.

Que de acordo com o referido regime, deveriam os rendimentos auferidos no ano de 2021 terem beneficiado do regime de tributação previsto para os residentes não habituais, designadamente mediante a aplicação da taxa especial de 20% prevista no artigo 72.º, n.º 10 do CIRS e 10% respetivamente ao abrigo do disposto no artigo 81.º, n.º 5 do CIRS.

Em suma, os Requerentes pedem a anulação da liquidação de IRS n.º 2022..., a restituição do montante de imposto pago no montante de € 31.539,68 (trinta e um mil quinhentos e trinta e nove euros e sessenta e oito cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios.

  1. Da Requerida

2.1- Por exceção suscita a incompetência material do tribunal arbitral

Que se trata de pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual para o ano de 2020 e seguintes, tendo como fundamento a ilegalidade da liquidação:

“O pedido deduzido decorre, inequivocamente, que os Requerentes pretendem que o Tribunal Arbitral: 1.º Ordene a inscrição dos Requerentes no registo de contribuintes da AT como residentes não habituais com efeitos ao ano de 2020, anulando o ato administrativo de indeferimento do pedido formulado nesse sentido; e 2.º E só, consequentemente, no decurso da anulação daquele ato administrativo em matéria tributária, anule os atos tributários de liquidação de IRS para o ano em causa.”

Que “…a única causa de pedir subjacente aos articulados apresentados pelos Requerentes respeita à sua não inscrição como residente não habitual e consequente não aplicação do respetivo regime fiscal de tributação em sede de IRS, pretendendo a correção do ato de liquidação por aplicação do regime dos residentes não habituais.”

Que “…sem que essa questão prévia seja decidida a seu favor pelo presente Tribunal, não há como imputar o vício de ilegalidade à liquidação de IRS contestada.”

Que “no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT «fixam-se, com rigor quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral» – conforme Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. E o rigor dessa fixação exprime-se através da enunciação taxativa da competência desta jurisdição, a saber: Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e pagamentos por conta, e Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.”

Conclui que se trata “…de questão tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação invocado.”

Alega, assim, que a “…incompetência absoluta em razão da matéria configura uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.”

2.2- Por impugnação, alega, em síntese, o seguinte:

Que a condição de residente não habitual, em face do sobredito disposto no artigo 16.º, n.º 10 do CIRS, versa sobre um benefício fiscal, dependente de reconhecimento por parte da administração fiscal, por iniciativa do contribuinte.

Que o n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, expressamente prevê que o sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em Portugal.

Que o aquele artigo 16.º prevê é um procedimento de reconhecimento da verificação, em concreto, da existência de dois dos pressupostos legais (ou condições), necessários, para que possa existir a aplicação de algum beneficio fiscal no âmbito do regime dos RNH: “(i) que a pessoa singular se torne fiscalmente residente em território português, de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos nºs 1 ou 2 do artigo 16º do CIRS no ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como RNH; e, (ii) que a pessoa em causa não tenha sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Que a aplicação do princípio da impugnação unitária, ordenado no artigo 54º, do CPPT, não seria subsumível ao caso em apreço, bem como que o procedimento de reconhecimento da residência fiscal não habitual, não tem uma natureza preparatória/destacável do procedimento de liquidação. Mas seria, antes, um ato administrativo autónomo.

Que a impugnação do ato de reconhecimento da condição de residente não habitual, não encontra sustentação jurisdicional na discussão da legalidade da liquidação.

V – Matéria de facto

O Tribunal Arbitral, com relevo para a decisão, atento o alegado pelas partes e a prova junta (docs. 1 a 4 da Petição Inicial (PI) e o Proc. Administrativo, considera provado o seguinte:

- Os Requerentes tornaram-se fiscalmente residentes no ano a que respeitam os rendimentos 2021.

- No dia 06-05-2022, os Requerentes submeteram, fora do prazo, o pedido de residente não habitual com início a 2022 e fim a 2031 (10 anos).

- Em 18-06-2022, os Requerentes entregaram a declaração de rendimentos de IRS “Modelo 3”, referente ao ano de 2021, período de tributação de fevereiro a dezembro desse ano, sob o nº ...-2021-...-..., contendo os “Anexos H” e o “Anexo J”.

- O sujeito passivo (SP) A (SP) declarou rendimentos de trabalho dependente, obtidos no estrangeiro, no montante de € 116.156,00.

- O sujeito passivo (SP) B declarou rendimentos de pensões, obtidos no estrangeiro, no montante de € 4.862,00.

- Os Requerentes não entregaram o “Anexo L”.

- Essa declaração “Mod. 3” deu origem a liquidação n.º 2022..., com imposto a pagar de € 31.539,68.

- Em 29-12-2022, os Requerentes entregaram declaração “Mod. 3” de substituição, a qual consta no sistema informático da AT como “Errada”.

- Em 29-12-2022, os Requerentes apresentaram, junto da Requerida, reclamação graciosa daquela liquidação.

- Na sequência do indeferimento tácito dessa reclamação, apresentaram o presente pedido arbitral.

O Tribunal arbitral em face das alegações e dos elementos de prova juntos, com relevo para a decisão, não considera existem factos que devam considerar-se como não provados.

1. Motivação da decisão da matéria de facto

O Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e com relevância para a decisão – Cf. n.º 2, do art.º 123.º do CPPT e n.º 3 do art.º 607.º do CPC, aplicável, ex vi, al. a) e e) do n.º 1, do art.º 29.º do RJAT.

A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada, para além do reconhecimento de factos não controvertidos pelas partes, resultou da análise crítica dos documentos juntos aos autos com o pedido de pronúncia arbitral, da resposta da Requerida e dos demais requerimentos e documentos juntos e constantes do processo, como indicado em relação a cada facto julgado provado.

Sobre o aludido ano de início de residência aludido pelos Requerentes e referenciado pela Requerida, com relevo para efeitos fiscais e para a liquidação, verifica-se que aqueles tornaram-se fiscalmente residentes no ano a que respeitam os rendimentos, porquanto à data dos factos, o artigo 16.º do CIRS estatuía que: “1- São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos: “a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa; b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual; (…) – 2.- Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.” – Cf. alíneas a) e b) do n.º 1 e n.º 2 do art.º 16.º do CIRS.

Nos termos dessa norma, é condição de aplicação do RNH  que o sujeito passivo à data em que seja considerado como residente e esteja inscrito nos registos da AT, não tenha sido residente [residente para efeitos de tributação, ou seja, não tenha sido tributado], em território nacional nos últimos cinco anos, sendo que o n.º 10 aponta que “O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. - Redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto” – Cf. STA, Proc.0842/23.9BESNT, Acórdão de 29-05-2024

A reunião dos presentes requisitos pelos Requerentes não é contestado pela Requerida, a qual detém na sua posse os elementos de prova relativos à situação daqueles em território português e necessários para efeitos de respetivo enquadramento, desde os declarados pelos Requerentes, bem como os demais elementos no cadastro de contribuintes, na medida em que a Requerente atribuiu, ainda, em momento anterior, números de identificação fiscais aos Requerentes, conhecendo oficiosamente as respetivas situações individuais em território nacional.

Porém, a requerente não contesta nem demonstra que os Requerentes não reúnem os requisitos suprarreferidos, apenas invoca o incumprimento do prazo de inscrição como residentes não habituais por parte dos Requerentes, ou seja, depois de “(…) 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.” – Cf. n.º 10 do art.º 16.º do CIRS.

VI – Do mérito – fundamentação de direito

A questão jurídica sub judice relaciona-se com a apreciação da legalidade da liquidação n.º 2022 ... e subsequente ato de indeferimento tácito da reclamação, relativa a imposto sobre o rendimento das pessoas singulares de 2021, com imposto a pagar de € 31.539,68, porquanto o mesmo não foi apurado de acordo com a qualidade dos Requerentes e com o regime de “residente não habitual”, atenta a inscrição nesse regime em 06-05-2022 e a posterior apresentação de rendimentos de IRS do ano de 2021, em 18-06-2022.

A Requerida na reposta começou por alegar a exceção enunciada em 2.1 supra, a qual é apreciada a seguir.

1.- Da exceção sobre a incompetência do Tribunal arbitral

Observa-se que na interpretação das peças processuais deve observar-se o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, pelo que o Tribunal deve extrair da redação dada ao pedido na petição inicial o sentido mais favorável aos interesses do peticionante – Cf. STA, Processo n.º 0206/22.1BEBRG, Acórdão de 07-12-2022.

De entre as diferentes interpretações possíveis dos regimes legais, deve privilegiar-se aquela que melhor concretize os direitos e garantias dos interessados, perspetiva essencial, ainda, para adequada realização do princípio do acesso à justiça, porquanto para os direitos serem efetivos torna-se essencial que se reconheça aos cidadãos contribuintes a legitimidade para reivindicá-los perante os Tribunais, em especial, face a atos ilegais de liquidação de impostos.

Os Requerentes impugnam o ato de liquidação com fundamento no não enquadramento no regime fiscal aplicável a “residente não habitual”.

O presente pedido arbitral tem como objeto esse ato de liquidação de imposto do ano de 2021, na sequência do indeferimento tácito da respetiva reclamação graciosa, não estando em causa nos presentes autos conhecer de qualquer outra decisão, nomeadamente, de caráter administrativo, como alega a AT.

Da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT ( norma que atribui aos tribunais arbitrais a competência para a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos), com o n.º 2 do artigo 3.º da LGT (norma que identifica como tributos os impostos e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas), resulta a conclusão de que a competência material dos tribunais arbitrais compreende a declaração de ilegalidade dos atos inerentes ou decorrentes da liquidação de tributos.

Por outro lado, a disposição do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ao declarar que a AT se vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais que tenham por objeto a apreciação das “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

Impõe-se concluir que todos os atos tributários relacionados com um determinado imposto – como sucede com o ato de liquidação de IRS objeto da presente ação – são arbitráveis, nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, e do art.º 2.º do RJAT.

Acresce que, tendo-se pretendido criar, por via de lei, um regime de arbitragem em matéria tributária suficientemente amplo de modo que o recurso aos Tribunais arbitrais constituísse uma real alternativa aos tribunais tributários (quer na vinculação da AT, quer na apreciação da legalidade dos factos e dos atos tributários subjacentes e que sustentam o próprio ato de liquidação), os Tribunais arbitrais são competentes para se pronunciarem sobre respetiva legalidade – cf. al. a) n.º 1, art.º 2.º e art.º 4.º, ambos do RJAT.

Atento o exporto e a formulação do presente pedido arbitral de declaração de ilegalidade de ato tributário de liquidação de tributo (IRS), competência expressamente prevista nos referidos normativos do RJAT, conclui-se pela improcedência da exceção de incompetência material suscitada pela Requerida. Neste sentido, entre outros, Proc. n.º 57/2023T.

2. Da impugnação sobre a aludida ilegalidade da liquidação

A questão jurídica sub judice versa sobre a apreciação da legalidade da liquidação n.º 2022..., relativa a imposto sobre o rendimento das pessoas singulares de 2021, na sequência de rendimentos auferidos no estrangeiro e declarados ao abrigo do regime de RNH.

A Requerida para a manutenção daquela liquidação e para a não aplicação do regime de RNH invoca o incumprimento do prazo de inscrição como residentes não habituais pelos Requerentes, ou seja, depois de “(…) 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.” – Cf. n.º 10 do art.º 16.º do CIRS.

Acresce referir que a Requerida para a manutenção do ato de liquidação não invoca a insuficiência ou omissão dos elementos declarados pelos Requerentes, designadamente a existência de “Anexo J” sem os correspondentes e necessários “Anexo L”, mas apenas a inaplicabilidade do regime de RNH por incumprimento do referido prazo.

Observa a própria AT nas instruções que emite, explicita que o envio da declaração de rendimentos ”Modelo 3” de IRS, através do Portal das Finanças, deve ser acompanhada, entre outros, do “Anexo L”, devidamente preenchido e, no caso de rendimentos obtidos no estrangeiro (como foi declarado no “Anexo J” pelos Requerentes), indicarem o método pretendido.

Porém, não consta dos elementos do processo que os Requerentes tenham preenchido e entregue os “Anexos L” à declaração de rendimentos “Modelo 3”, nem essa omissão relevante fosse suscitada no procedimento de liquidação ou agora invocada pela Requerida.

O “Anexo L” é individual e, em cada um, apenas podem constar os elementos respeitantes a um dos titulares (A ou B), por forma à adequada liquidação dos rendimentos declarados por cada um dos Requerentes.

Termos em que a presente decisão versa sobre o pedido apresentado pelos Requerentes atentos os fundamentos da Requerida para a manutenção do ato de liquidação, sem prejuízo da eventual necessidade de aperfeiçoamento do procedimento declarativo por parte dos SP e da prática de subsequente e novo ato tributário de liquidação e/ou de ação inspetiva aos Requerentes por parte da Requerida, face à eventual insuficiência e omissão de elementos declarados sobre a origem e natureza dos rendimentos e respetiva falta de indicação do método pretendido no referido “Anexo L”.

Assim, verifica que a Requerida não dispunha de elementos integrais e rigorosos para efeitos de liquidação, quer aquando da primeira declaração “Mod. 3”, quer com a entrega da declaração “Mod. 3” de substituição, a qual classifica como “errada”.

Assim, os dados declarados não se apresentam completos e rigorosos para efeitos da respetiva liquidação de IRS dos “rendimentos auferidos no estrangeiro” por RNH, devido a erro/omissão declarativa imputável aos Requerentes.

Porém, a Requerida mantém a última declaração de substituição “Mod. 3” apresentada pelos Requerentes na situação de “errada”, não revelando ter solicitado esclarecimentos ou o aperfeiçoamento dessa mesma declaração, por forma a um correto procedimento tributário declarativo e de liquidação, eventualmente, com a subsequente aplicação de juros e coimas, sendo caso disso.

Considerando a data dos factos (2022), o regime do Estatuto do Residente não Habitual (RNH) rege-se pela redação dos n.ºs 1, 8 a 10 do art.º 16.º do CIRS, vigente nessa data.

Do confronto desses números, verifica-se que os requisitos de RNH estão previstos nos n.ºs 1 e 8, enquanto o n.º 10 apenas estabelece uma data-limite de inscrição, a qual reveste natureza declarativa, porquanto os elementos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respetivo regime são os previstos no referido n.ºs 1 e 8 do referido art.º 16.º do CIRS.

Essa natureza declarativa resulta da necessidade de informação relativa à situação dos contribuintes, por forma ao subsequente tratamento das declarações de rendimentos, pelo que aquela data (31 de março) coincide com o dia anterior ao prazo do início da entrega da “Mod. 3” do IRS (1 de abril), previsto no artigo 60.º do CIRS, com vista a permitir dispor dos elementos tributários para efeito da liquidação do IRS nos termos do regime de RNH.

Os Requerentes apesar de não terem cumprido aquele prazo, solicitaram a inscrição como “residente não habitual” em 06-05-2022, antes da apresentação da declaração “Mod. 3” relativa a rendimentos de 2021 auferidos enquanto “residente em território português”, a qual apresentaram no mês seguinte àquela inscrição, em 18-06-2022, pelo que nesta data a Requerida já dispunha dos elementos necessários do regime de RNH e declarados pelos Requerentes para efeito do tratamento, validação e liquidação da respetiva declaração “Mod. 3” relativa ao ano de 2021.

Porém, apesar de manifestas insuficiências e omissões declarativas, maxime, a existência de “Anexo J” sem o correspondente “Anexo L”, suporte essencial para a adequada liquidação dos rendimentos declarados no “Anexo J”, a Requerida procedeu à liquidação de uma declaração de rendimentos com manifestas insuficiências declarativas, ou seja, sem promover a sua adequada validação e correção.

A junção dos referidos “Anexos L” à declaração de rendimentos afigura-se condição essencial para a tributação dos rendimentos declarados no “Anexo J”, não podendo a Requerida ignorar os elementos declarados, a natureza desses rendimentos e unilateralmente promover uma liquidação sem atender e clarificar a falta de integralidade e omissões nos elementos declarados pelos Requerentes.

Tanto assim é que tendo os Requerentes substituído essa a primeira declaração “Mod. 3” por outra (declaração de substituição) com iguais insuficiências e omissões (com o “Anexo J” e sem o necessário “Anexo L”), a Requerida mantém essa segunda declaração em sistema como “errada” e não promove a subsequente liquidação.

Assim, sendo ambas as declarações iguais e estando a última DP (declaração válida) classificada de “errada” e sem liquidação, a mesma classificação se poder aplicar à primeira declaração apresentada pelos Requerentes, pelo que uma declaração “errada” não reúne os requisitos para uma liquidação de imposto, porquanto a Requerida não deveria promover uma liquidação sem validar e aferir a integralidade e a integridade/fiabilidade dos elementos declarados.

Esse indevido procedimento de liquidação por parte da Requerida é assim confirmado pela manutenção da última declaração apresentada pelos Requerentes (declaração de substituição de 2021) na situação de “errada”.

Assim, afigura-se paradoxal que a Requerida mantenha essa última de declaração de rendimentos (declaração de substituição) na situação de “errada” sem promover a respetiva instrução e/ou liquidação e, ao invés, perpetue uma liquidação com base em declaração anterior (primeira declaração já substituída) e exatamente igual à DP que agora classifica de “errada”, mantendo essa liquidação e justificando a respetiva legalidade com o fundamento em incumprimento do prazo de inscrição de RNH, como susodito.

A aplicação do regime de RNH previsto no art.º 16.º do CIRS e fazendo referência a jurisprudência dos tribunais arbitrais do CAAD, considera-se que o incumprimento do prazo de apresentação do pedido de inscrição como RNH, reveste mero carácter declarativo, sendo, assim, insuscetível de abalar o direito, que assiste ope legis aos Requerentes – Cf. Proc. n.ºs 319/2022-T, 550/2022-T, 581/2022-T, 705/2022-T, 57/2023-T, 76/2023-T.

Nesse mesmo sentido de pronunciou recentemente o STA: «A disposição legal relativa ao prazo apenas estabelece uma data-limite para o cumprimento da obrigação acessória que onera o contribuinte, sobre o qual impende o dever de inscrição da sua qualidade de residente não habitual, inscrição que sempre foi obrigatória para aplicação do regime fiscal, como resulta da redacção inicial da norma, que dispunha “7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos” (Aditado pelo artigo 4º do D.L. nº 249/2009, de 23-09, produzindo efeitos desde 01/01/2009). Deste modo, temos que o acto de inscrição como residente não habitual é condição de aplicação do respectivo regime fiscal, sendo através desse acto que a AT tem a possibilidade de verificar e controlar os pressupostos legais da atribuição desse estatuto e dos respectivos benefícios fiscais. No entanto, não resulta das normas supratranscritas que a aplicação do regime fiscal - residente não habitual - dependa de acto de reconhecimento por parte da AT (art. 5º do EBF), pelo que o acto de inscrição do sujeito passivo como residente não habitual tem natureza meramente declarativa (…) Por outro lado, nos termos do artigo 12º do EBF, “O direito aos benefícios fiscais deve reportar-se à data da verificação dos respectivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo pela administração fiscal ou de acordo entre esta e a pessoa beneficiada, salvo quando a lei dispuser de outro modo”. Perante o incumprimento de tal obrigação acessória, o regime fiscal do RNH não prevê qualquer consequência para o não exercício atempado da inscrição por parte desse residente.» – Cf. STA, Proc.0842/23.9BESNT, Acórdão de 29-05-2024.

Encontrando-se reunidos os requisitos para a concessão do estatuto de RNH previstos no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, aferidos em função do ano de inscrição nessa qualidade (no caso 2022), a apresentação do pedido de inscrição fora do prazo previsto no n.º 10, mas ainda em 2022 e antes da apresentação da declaração de rendimentos relativa aos rendimentos auferidos em 2021, tem como consequência que o regime será aplicável a partir da inscrição como residente não habitual, por forma a permitir tratar e liquidar o imposto com base nos rendimentos declarados e, subsequentemente, permitir efetuar o aperfeiçoamento dos elementos declarados e/ou a sua fiscalização se for caso disso.

Observa-se que a anulação «de um ato administrativo constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado…” (…) e, no plano tributário, “em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade”, - Cf. n.º 1 do artigo 172.º do CPA, n.º 1 do artigo 173.º do CPTA e artigo 100.º da LGT.

VII - Decisão

Termos em que o Tribunal arbitral singular decide:

- Declarar improcedente a exceção invocada pela Requerida.

- Julgar procedente o pedido e, em consequência, anular a liquidação de IRS nº 2022 ... e, bem assim, o subsequente ato de indeferimento tácito de reclamação que a confirma, com as demais consequências legais.

- Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

VIII - Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 31.539,68, em conformidade com o disposto, na al. a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

XIX - Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT.

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 19 de julho de 2024.

 

O Árbitro,

 

Vítor Braz