Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 662/2023-T
Data da decisão: 2024-07-16  IVA  
Valor do pedido: € 239.481,97
Tema: IVA. Locação financeira. Pro rata provisório. Falta de ataque a um dos fundamentos do acto impugnado.
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Decisão Arbitral

 

 

           Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD), Prof.ª Doutora Clotilde Celorico Palma  e Dr. Jorge Carita (árbitros vogais, designados pela Requente e pela Requerida, respectivamente), para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 26-03-2024, acordam no seguinte:

 

          

              1. Relatório  

 

              A..., S.A, doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º ..., com sede na ..., n.º ..., ...‐... Lisboa, veio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária doravante designado como "RJAT"), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a anulação da autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), respeitante ao mês de Janeiro de 2021, materializada na declaração periódica de imposto com referência ao referido período, no montante de € 239.481,97, bem como a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou daquela autoliquidação.

A Requerente pede ainda a restituição da quantia de € 239.481,97 e o pagamento de juros indemnizatórios e das custas do processo.

A título subsidiário, a Requerente pede que seja efectuado reenvio prejudicial para o TJUE, se e na medida em que não seja claro para o Tribunal Arbitral o alcance dos artigos 168.º e 173.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, ou de qualquer outra norma da mesma Diretiva que possa interferir com a boa solução deste caso concreto, relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

              É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

              O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20-09-2023.

              Os signatários comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

              Em 06-03-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

              Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 26-03-2024.

              A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência dos pedidos.

              Em 06-06-2024, realizou-se uma reunião, em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

              As Partes apresentaram alegações.

              Por despacho de 26-06-2024, o Tribunal Arbitral decidiu notificar as Partes para se pronunciarem sobre a questão da eventual existência de obstáculo ao conhecimento do mérito do pedido de pronúncia arbitral, por falta de ataque a um dos fundamentos da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

              Apenas a Requerente se pronunciou, defendendo, em suma, que «o primeiro fundamento utilizado pela Requerida na decisão de indeferimento emitida com referência à Reclamação Graciosa por si apresentada – “inadmissibilidade de correção do pro rata relativa ao período de Janeiro”, não deverá proceder, não se poderá entender que a apreciação da questão de direito da União se afigurará processualmente inútil, devendo, pelo contrário, ser analisada por este Tribunal Arbitral».

              O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

              As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

              O processo não enferma de nulidades e não são suscitados obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

             

2. Matéria de facto

 

              2.1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma instituição financeira que tem por objecto social a actividade comercial prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
  2. No âmbito da sua actividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção constante do artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA (“CIVA”), as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado;
  3. Simultaneamente, a Requerente realiza operações que conferem o direito à dedução deste imposto, como sejam, entre outras, as operações de locação financeira mobiliária;
  4. A Requerente adquire recursos que são utilizados em ambos os tipos de operações, aplicando distintos regimes de dedução de IVA;  
  5. Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do disposto no artigo 20.º, n.º 1, do CIVA, deduzindo integralmente o imposto incorrido (quanto aos outputs tributados) ou nada deduzindo (quanto aos outputs isentos);
  6. Quando identifica uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, e consegue determinar critérios objectivos do nível/grau de utilização efectiva, aplica o método da afectação real, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA;
  7. Para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, i.e. aos recursos de utilização mista, a Requerente aplica o método geral e supletivo do coeficiente de imputação específico, em conformidade com os ditames da AT constantes no ponto 9 do Ofício-Circulado Em 30-01-2009, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu o Ofício-Circulado n.º 30.108, publicado em

http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/legislacao/instruções_administrativas/Documents/OficCirc_30108.pdf, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

7. Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23º do CIVA.

n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA;

  1. Em 09-04-2021, a Requerente entregou a declaração de IVA n.º ..., relativa ao mês de Janeiro de 2021 que consta do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
  2. No cálculo da percentagem de dedução relativa ao mês de Janeiro de 2021, a Requerente desconsiderou os valores relativos às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira por si celebrados, em consonância com o ponto 9 do referido Ofício-Circulado n.º 30108;
  3. Efectuando a autoliquidação com aplicação do método indicado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, a Requerente apurou uma percentagem de dedução, para o ano 2021, de 11%;
  4. Caso na autoliquidação em causa o Requerente tivesse procedido à inclusão dos valores relativos às amortizações financeiras do leasing no cálculo do critério da percentagem de dedução referente ao ano 2021, esta reportar-se-ia a 21%, ao invés de 11%;
  5. Aplicando a percentagem de dedução de 21% ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista durante o mês de Janeiro de 2021, no montante de € 2.394.819,67, a Requerente teria o direito a deduzir adicionalmente IVA no valor de € 239.481,97;
  6. A tramitação de um processo de leasing na esfera do Requerente inicia‐se com uma proposta por parte do cliente, maioritariamente, com o contacto por parte do cliente junto do Requerente (através das redes de balcões, centro de empresas ou por via digital) (depoimento da testemunha B...);
  7. Tal proposta é seguida de uma análise de risco e de uma decisão que culmina na respectiva comunicação ao cliente (depoimento da testemunha B...);
  8. Sendo a proposta aceite pelo cliente, segue‐se a fase de contratação, culminando com a emissão do contrato, dependendo a entrega do bem locado de uma autorização prévia comunicada pelo Requerente ao fornecedor do bem (depoimento da testemunha B...);
  9. O início do contrato depende de um seguro com coberturas mínimas que é vendido pela Requerente ou por outras seguradoras com quem a Requerente contacta para ele ser efectivado (depoimento da testemunha B...);
  10. Nesta fase inicial da vida do leasing, existem interacções entre os Serviços Comerciais do Requerente e as suas várias direcções, com os fornecedores dos bens objecto dos contratos de locação e o departamento interno do Requerente responsável pela gestão de seguros de bens locados, interacções essas com vista à disponibilização dos bens locados (depoimento da testemunha B...);
  11. Os serviços do Requerente participam também na fase dos processos de legalização dos bens objecto dos contratos de locação e cumprimento das obrigações de registo (depoimento da testemunha B...);
  12. Nos casos em que ocorrem vicissitudes durante a vida dos contratos, o Requerente, na qualidade de proprietário do bem objecto do contrato, participa também na resolução das mesmas (depoimento da testemunha B...);
  13. Perante a ocorrência de infracções rodoviárias que envolvam veículos locados, uma vez recebido o pedido de identificação do condutor, os Serviços do Requerente validam se é um veículo com locação financeira do Banco, identificam o locatário da viatura, enviam o original da notificação para o mesmo e imputam a notificação de contra-ordenação ao contrato (depoimento da testemunha B...);
  14. O termo do contrato de leasing ou eventuais alterações do mesmo, suscitam também interacções entre as Direcções do Requerente, os seus balcões e os respectivos clientes, designadamente em casos de incumprimento contratual ou o não exercício da opção de compra por parte do cliente/locatário, situações em que o Requerente procede à posterior venda dos bens (depoimento da testemunha B...);
  15. Aquando da ocorrência de acidentes com viaturas locadas, caso eles impliquem a rescisão do contrato de leasing (perda total), o cliente/locatário efectua participação à seguradora, que seguidamente comunica ao Requerente a existência do sinistro, envolvendo‐o no processo (depoimento da testemunha B...);
  16. Todas as interacções acima referidas implicam várias despesas para o Requerente, como é o caso do desenvolvimento de softwares / aplicações informáticas que auxiliam na gestão de todas as fases dos diversos contratos por si celebrados, dos gastos gerais incorridos nas diversas actividades realizadas pelos seus Serviços ao longo da vida dos respectivos contratos de leasing e  da formação de pessoal / capacitação de parceiros que visam fomentar a angariação de novos clientes para o Requerente (depoimento da testemunha B...);
  17. Por forma a dar uma resposta mais imediata às questões ou problemas dos clientes, o Requerente envolve na sua actividade uma rede de balcões de atendimento do Requerente, com os inerentes gastos associados aos mesmos, bem como de um serviço de call centers e o acesso a software (aplicação) para apoio ao cliente (depoimento da testemunha B...);
  18. Em 21-03-2023, a Requerente enviou por correio registado à Unidade dos Grandes Contribuintes reclamação graciosa da autoliquidação de IVA efectuada com a declaração n.º ..., relativa ao mês de Janeiro de 2021, solicitando a restituição da quantia de € 239.481,97;
  19. Nessa reclamação graciosa, a Requerente invocou a ilegalidade do acto tributário em análise decorrente da ilegalidade do Oficio-Circulado 30108, de 30 de Janeiro de 2009, por o mesmo aplicar ao apuramento da percentagem de dedução do IVA relativo aos bens e serviços de utilização mista, um critério incompatível com o direito nacional e comunitário;
  20. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 21-06-2023, proferido pelo Chefe de Divisão de Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes, ao abrigo de Subdelegação de competências, com os fundamentos que constam do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
  21. Na fundamentação da decisão da reclamação graciosa refere-se além do mais o seguinte:

V.1.2. – Apreciação

20. A pretensão formulada na Reclamação Graciosa em apreço, consubstancia-se na anulação parcial da autoliquidação de IVA supra identificada, decorrente da alegada entrega em excesso do imposto, considerando, a Reclamante, tratar-se de um erro na autoliquidação assente na ilegalidade do critério utilizado no apuramento da percentagem de dedução do imposto referente a recursos de utilização mista, o qual se encontra em contradição com o entendimento preconizado pelo TJUE.

(...)

22. Analisado o requerimento apresentado, bem como os fundamentos invocados, verifica-se que a questão aqui em análise prende-se com a consideração do valor referente ao capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira, para determinação do pro rata do respetivo período de tributação, ou seja, está em causa uma alteração da percentagem de dedução do IVA apurada relativamente aos bens e serviços promíscuos/de utilização mista.

23.   O direito à dedução encontra-se previsto em termos comunitários, no Título X da Diretiva IVA (artigos 167.5 a 192.5), e a nível de direito interno, no Capítulo V - Secção l do CIVA (artigos 19.ea26.9).

24.   Nos termos do disposto no artigo 167.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, que faz parte do Capítulo "Origem e âmbito do direito à dedução", o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.

25.   Por seu turno, o artigo 168.° da Diretiva IVA estabelece que os sujeitos passivos estão autorizados a deduzir o imposto suportado, nomeadamente, em aquisições de bens e serviços efetuadas a outros sujeitos passivos do imposto e em importações de bens, desde que estes recursos sejam utilizados para os fins das suas operações tributáveis.

26.   Quando estiverem em causa inputs utilizados por um sujeito passivo, não só para operações com direito à dedução como para operações sem direito à dedução, estatui o n.° 1 do artigo 173.° da Diretiva IVA que "a dedução só é concedida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações". Mais refere este artigo que essa proporção pode ser determinada para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeito passivo, podendo ser autorizados pelos Estados membros outros métodos de repartição, entre os quais a dedução com base na utilização da totalidade ou parte desses bens e serviços. No artigo 174.° da Diretiva do IVA são estabelecidas regras para determinação do cálculo do pró rata de dedução, prevendo-se que o mesmo é determinado numa base anual.

27.   Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetuar operações que conferem direito à dedução e operações que não conferem esse direito, a dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada através da aplicação de um dos seguintes métodos:

-  Se estivermos perante um bem ou serviço parcialmente utilizado na realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º1 do artigo 2° (como por exemplo, o recebimento de dividendos, juros de depósitos bancários), o IVA não dedutível é determinado nos termos do n.5 2, ou seja, devem ser utilizados critérios objetivos para determinar os valores de IVA dedutível (afetação real), tendo em consideração a efetiva utilização/consumo dos bens e serviços, eventualmente, ajustada por algum critério ponderador, de forma a refletir da forma mais fidedigna possível o fim a que os inputs foram destinados pelo sujeito passivo;

- No caso de se tratar de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n° 1 do artigo 2° do CIVA, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução do IVA, calculada nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA que refere que a percentagem de dedução «(...) resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.° 1 do artigo 20.° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.° 1 do artigo 2.°, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.»

Esta proporção resulta de uma fração em que no numerador figura o valor anual, IVA excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão direito à dedução (operações tributáveis, incluindo as operações isentas com direito à dedução) e no denominador o valor anual, IVA excluído, da totalidade das operações efetuadas pelo sujeito passivo.

28.   De acordo com o n.° 3 do artigo 175.° da Diretiva, transposto para o nosso ordenamento jurídico através do n.° 6 do artigo 23.° do CIVA, o pró rata aplicável provisoriamente a determinado ano é calculado com base nas operações do ano anterior ou, não existindo estas, com base numa estimativa. A percentagem de dedução a aplicar durante o exercício 'n' é calculada provisoriamente com base nas operações efetuadas no ano anterior (percentagem definitiva do ano 'n-1').

29.   Afixação do pró rata definitivo para cada ano, apurado no ano seguinte, implica o ajustamento das deduções que tenham sido efetuadas com base no pró rata provisório aplicado.

30.   A dedução definitiva a considerar em cada ano, deve constar na "declaração do último período do ano a que respeita", ou seja, a última declaração do ano é, por conseguinte, o prazo definido pelo legislador nacional para a regularização da dedução já efetuada anteriormente, com recurso à percentagem do pró rata.

31.   Calculada a regularização, esta poderá ser:

- A favor do Estado, se a percentagem definitiva for menor que a provisória. Neste caso, se deduzimos a mais durante o ano, temos de efetuar uma regularização a favor do Estado no campo 41 da declaração periódica; ou

-  A favor do sujeito passivo, se a percentagem definitiva for maior que a provisória. Neste caso, se deduzimos a menos durante o ano, temos de efetuar uma regularização a favor do sujeito passivo no campo 40 da declaração periódica.

32.   Após ter sido efetuado o registo das operações na contabilidade e de ter sido promovida a correspondente dedução de imposto com recurso ao uso de uma percentagem apurada segundo o volume de negócios (pró rata), o sujeito passivo tem direito a proceder à regularização dessa dedução anteriormente efetuada, mas apenas no prazo estabelecido pelo direito interno, o qual elege a declaração do último período do ano para esse concreto efeito (artigo 23.º n.º 6 do CIVA), mesmo quando altere a percentagem de dedução de acordo com outros critérios (afetação real).

33.   O artigo 23.°, n.° 6, do CIVA prevê assim um mecanismo de regularização (acerto) das deduções provisórias que são efetuadas pelo sujeito passivo com base no pró rata apurado no ano anterior.

34.   Este ajustamento corresponde à determinação da medida do direito à dedução desse ano.

35.   O regime nacional, em concreto, o artigo 22.º do CIVA, em consonância com o disposto no artigo 179.º da Diretiva IVA, determina que, em regra, o direito à dedução do imposto surge no momento em que, o imposto dedutível se torna exigível. Ou seja, deve ser exercido na declaração do período correspondente à sua génese, ou do período em que os elementos necessários à sua efetivação tenham chegado à posse do sujeito passivo. Esse período, por norma, corresponde aquele em que se tiver verificado a receção das faturas (artigo 22.º, n.º 2 do CIVA).

36.   A dedução do imposto pressupõe o registo contabilístico do documento de suporte das operações realizadas, em geral, a fatura, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 48.º do CIVA, após a sua receção, até à data da apresentação da declaração periódica respetiva ou até ao termo do prazo de apresentação.

37.   Assim sendo, a dedução do imposto considera-se concretizada com a apresentação da declaração do período, tendo então por base, o registo contabilístico dos documentos que lhe serviram de suporte, independentemente de o encargo ter sido considerado na sua totalidade, parcialmente ou mesmo desconsiderado na autoliquidação entregue.

38.   Sucede que, relativamente aos bens e serviços de utilização mista, e conforme decorre do n.º 6 do artigo citado, os sujeitos passivos, apenas exercem o direito à dedução na declaração correspondente ao último período do ano a que a mesma respeita, dado que só nesse momento é possível aplicar os critérios definitivos para apurar a medida da dedução anual (até aí é meramente provisória ou estimada)

39.   É nesta última declaração do ano que se estabiliza a relação jurídico-tributária no que concerne ao direito à dedução relativo aos bens e serviços de utilização mista. É com ela que a dedução de IVA se torna definitiva, sem prejuízos dos casos de regularização legalmente previsto na lei.

40.   Pelo que, sendo admissível a apresentação de reclamação graciosa com os fundamentos invocados, é por referência a essa declaração periódica que deve a mesma ser analisada.

41.   Aliás esse entendimento é corroborado pela própria Reclamante ao afirmar no intróito da petição inicial apresentada no âmbito da Reclamação Graciosa que se encontra a correr termos junto desta unidade de serviços, sob o n.º ...2023..., que vem deduzi-la "por erro na autoliquidação de IVA, referente ao período de tributação compreendido entre os meses de fevereiro e dezembro de 2021, materializada na declaração periódica de imposto com referência ao mês de dezembro daquele ano (...)".

42.   Isso conjugado com o facto de ter apresentado a referida Reclamação Graciosa abrangendo o período de dezembro, determina que a presente reclamação não possa prosseguir, sob pena se serem proferidas duas decisões contraditórias sobre os mesmos factos.

43.   Sem prescindir, e caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica, se concebe, sempre se dirá que não assiste razão ao alegado pela Reclamante.

Senão vejamos,

44.   Conforme referido, verifica-se que a questão aqui em análise prende-se com a consideração do valor referente ao capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira, para determinação do pró rafa do respetivo período de tributação.

45.   No caso concreto, estamos perante operações de locação financeira mobiliária, e pretende aferir-se a legalidade, face às normas de direito interno e comunitário, da exclusão do cálculo da percentagem de dedução, da parte do valor da renda da locação que corresponde à amortização financeira, apenas considerando o montante de juros e outros encargos faturados.

46.   Antes de procedermos à apreciação do mérito da presente Reclamação Graciosa, importa realçar novamente o facto da Reclamante se enquadrar,  em  sede de  IVA,  no  regime normal, com periodicidade mensal, assumindo a natureza de sujeito passivo "misto".

47.   Isto porque, realiza operações financeiras que não conferem o direito à dedução de IVA, por se encontrarem isentas ao abrigo do n.º 27 do artigo 9° do CIVA e operações com liquidação de IVA, como acontece, por exemplo, com as rendas de leasing e ALD, que conferem direito à dedução do IVA suportado.

48.   A Reclamante realiza ainda outras operações financeiras ou acessórias que conferem, igualmente, o direito à dedução de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 20.º do CIVA.

49.   No conjunto das operações que conferem direito à dedução de IVA, integram-se os contratos de locação, nos quais a Reclamante assume a posição de locadora e, nessa qualidade, adquire os bens (ou o financiamento para a sua aquisição} que são objeto desses contratos, acrescidos de IVA, sendo os mesmos entregues aos respetivos locatários para seu uso e fruição.

50.   Em contrapartida, o sujeito passivo fatura rendas aos locatários, às quais acresce o IVA.

51.   No que se refere às aquisições de bens e serviços de utilização mista, em razão de terem sido indistintamente afetas às diversas operações desenvolvidas pela Reclamante, para efeitos do exercício do direito à dedução, entende dever aplicar-se o método geral e supletivo da percentagem de dedução - também designado por pró rata - nos termos estatuídos na alínea b) do n.º 1 e do n.° 4, ambos do artigo 23.5 do CIVA.

52.   No exercício de 2021, seguindo o entendimento da AT constante do mencionado oficio-circulado, a Reclamante, não considerou quer no numerador, quer no denominador da fórmula de cálculo do pró rata o valor do capital das rendas de locação financeira, apurando uma percentagem de dedução definitiva que segundo alega se mostra inferior aquela que deveria ter sido aplicada, o que determinaria um valor de IVA a deduzir superior.

53.   Face à questão em análise nos presentes autos, importa ressalvar que não se considera existir qualquer erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA, consubstanciado num erro no apuramento do pró raia de dedução.

54.   Com efeito, o apuramento da percentagem de dedução efetuado pelo sujeito passivo está em perfeita concordância com as normas de direito comunitário e interno, pelo que, não se afigura assistir razão à Reclamante quanto à pretensão formulada no seu requerimento inicial.

55.   A instrução administrativa aqui em análise veio contemplar a doutrina defendida pela então DGCI (atual AT) que visou "(...) divulgar a correia interpretação a dar ao artigo 23- do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD (...)".

 56. Da leitura do Ofício n.º 30108, conclui-se que o apuramento da percentagem de dedução definitiva antes referida foi efetuado, pela Reclamante, em perfeita concordância com os termos aí previstos, que se transcrevem:

"7. Face à aluai redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista."

"8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a "distorções significativas na tributação", os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º2do artigo23- do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.".

"9. Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23- do CIVA." (sublinhado nosso).

58.   A título prévio importa efetuar o enquadramento jurídico - tributário do contrato aqui em análise, que está subjacente à prestação de serviços de leasing: contrato de locação financeira.

59.   A base jurídica de qualquer modalidade de contrato de locação encontra-se plasmada, em termos gerais, nos artigos 1022.º a 1114.º do Código Civil. Não obstante, e porque se trata de um tipo particular de locação, importa atender ao previsto no regime jurídico especialmente criado para este tipo de contratos, e que vem consagrado no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, com as subsequentes alterações.

60.   De acordo com o artigo 1.Q do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, a locação financeira é o "(...) contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder a outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados."

61.   Nesse sentido, António Menezes Cordeiro afirma que, a "locação financeira é o contrato pelo qual uma entidade - o locador financeiro - concede a outra - o locatário financeiro - o gozo temporário de uma coisa corpórea, adquirida, para o efeito, pelo próprio locador, a um terceiro, por indicação do locatário."

62.   Trata-se, portanto, de um contrato comummente utilizado como forma de proporcionar crédito bancário, pelo qual, a instituição financeira, perante solicitação do interessado, adquire o bem em causa e cede-o a este em locação, ficando o mesmo, obrigado a pagar uma "(...) retribuição que traduza a amortização do bem e os juros; no final, o locatário poderá adquirir o bem pelo valor residual ou celebrar novo contrato; poderá, ainda, nada fazer".

63.   Daqui decorre que, o objeto deste tipo de contrato não é a transferência da propriedade, mas sim a cedência, pela locadora do uso do bem, isto é, a locadora obriga-se a prestar um serviço, traduzido na disponibilidade do bem em causa, recebendo em contrapartida, uma prestação, sem prejuízo, de nele se poder prever a opção de compra, no final do contrato, a favor do locatário, por um valor residual fixado por acordo das partes.

64.   Atenta esta qualificação jurídica, e transpondo-a para a perspetiva tributária, conclui-se que a locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA, e é efetuada pelo sujeito passivo no âmbito duma atividade económica.

65.   Efetivamente,  no caso das operações de  locação,  dúvidas  não  restam  de que  a respetiva contrapartida se concretiza nas rendas auferidas pela entidade que assume a posição contratual de locadora.

66.   No entanto, não podemos abstrair-nos do facto dessas operações de locação (leasing e ALD) consubstanciarem uma modalidade de crédito (entre outras), pelo que a atividade da entidade locadora é, em substância, a concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída, essencialmente, por juros e outros encargos incluídos nas rendas.

67.   A esse propósito, cumpre realçar que, um dos objetivos do legislador nesta matéria, foi assegurar o cumprimento do princípio da neutralidade fiscal, na vertente de princípio da igualdade que, no caso concreto, se consubstancia no facto de ser assegurado um tratamento fiscal equivalente, no sentido de igual onerosidade, em relação aquele que adquire um bem através de um contrato de locação financeira, face a outra pessoa que o adquire diretamente.

68.   Ora, o facto do valor integral da renda, pago pelo locatário ao locador, constituir o valor tributável sobre o qual incidirá IVA tal não significa, ao contrário do alegado pela Reclamante, que a parte integrante da renda, correspondente à amortização financeira ou do capital tenha de ser incluída no cômputo do apuramento da percentagem de dedução, conjuntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos.

69.   Desde logo porque, a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia "emprestada" e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.

70.   Note-se  que,   na  perspetiva da operação  de  locação  enquanto operação de concessão  de financiamento, o valor de aquisição do bem objeto de contrato de locação corresponde ao capital financiado que constitui a componente de amortização financeira na renda liquidada pelo locador ao locatário.

71.   Sendo que, no momento da aquisição desse mesmo input, o sujeito passivo (locador) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação direta.

72.   Razão pela qual, não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afetação real com recurso a um critério de imputação objetivo, a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.

73.   Logo, à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo.

74.   Por outro lado, a inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante da renda, provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que será significativa e positivamente influenciada,  por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição.

75.   Este facto gerará deduções acrescidas para o sujeito passivo, relativamente à generalidade dos inputs de utilização mista, por via da utilização de um coeficiente, que nessa medida, se apresenta como exagerado, face à realidade das operações tributáveis.

76.   A atividade principal da locadora não consiste na compra e venda de bens, mas tão só na concessão de créditos a terceiros para aquisição desses bens, ainda que se substitua aos destinatários dos bens na   aquisição,   reservando   para   si   o   direito   de   propriedade.   E   dessa   atividade   obtém, fundamentalmente, juros.

77.   Deste modo, torna-se compreensível que no cálculo do mencionado coeficiente de imputação específico, aplicável ao caso objeto de análise, e em harmonia com o entendimento da AT, deve considerar-se, apenas, o montante que excede o valor dos custos utilizados nas operações tributadas, uma vez que, através do método de imputação direta o IVA da parte relativa ao capital é integralmente deduzido.

78.   E é apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução.

79.   Se assim não fosse, permitir-se-ia um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens ou serviços de utilização mista adquiridos pelo sujeito passivo.

80.   Do entendimento propugnado pela AT, não decorre, assim, qualquer restrição do direito legítimo à dedução. Antes pelo contrário, pugna pela inadmissibilidade do exercício do direito à dedução ilegítimo, na medida em que, a eventual execução do procedimento defendido pela Reclamante colocaria em causa a neutralidade fiscal inerente à mecânica do IVA.

81.   Acresce, ainda, que o método do pró rata que a Reclamante pretende ver aplicado, não tem mérito para medir o grau de utilização que as duas categorias de operações, com e sem direito à dedução, fazem dos bens e serviços que lhe são indistintamente alocados (utilização mista) e, consequentemente, não pode ser utilizado para determinar a parcela dedutível. cuja liquidação foi  efetuada  a   montante  por  outros  operadores  económicos  que  se  situam   na  fase imediatamente anterior do circuito económico.

82.   Como referido, são dois os métodos de dedução previstos no CIVA (artigo 23-).

83.   Por um lado, o denominado método da afetação real, que "(...) consiste na aplicação de critérios objetivos, reais, sobre o grau ou intensidade de utilização dos bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito. É de acordo com esse grau ou intensidade de utilização dos bens, medidos por critérios objetivos, que o sujeito determinará a parte de imposto suportado que poderá ser deduzida. Os critérios estão sujeitos (...) ao escrutínio da Direção-Geral dos Impostos que pode vir a impor condições especiais ou mesmo a fazer cessar o procedimento de afetação real, no caso de se verificar que assim se provocam ou podem provocar distorções significativas da tributação. (...)".

84.   E por outro, o método da percentagem de dedução ou pró rata, definido na alínea b) do n.° 1 e n.° 2, do artigo 23.º, e desenvolvido nos n.ºs 4 a 8 do mesmo preceito legal. No fundo, trata-se de uma dedução parcial, que se traduz no facto do imposto suportado nas aquisições de bens e serviços utilizados num e noutro tipo de operações, apenas ser dedutível na percentagem correspondente ao montante anual de operações que dão lugar a dedução.

85.   Neste caso, a percentagem de dedução a aplicar é calculada provisoriamente com base no montante de operações realizadas no ano anterior (pró rata provisório), sendo corrigida na declaração do último período do ano a que respeita, de acordo com os valores definitivos de volume de negócios referente ao ano a que reportam, determinando a correspondente regularização por aplicação do pró rata definitivo.

86.   Ora, com a alteração introduzida ao artigo 23.º pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, tais procedimentos foram "estendidos" ao método da afetação real, nomeadamente, aos casos em que o mesmo é imposto pela AT, quer para as situações em que o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas, quer para os casos em que se apure que a utilização dos demais métodos poderá originar distorções significativas na tributação, conforme dispõe o n.º 3 do artigo em análise.

87.   O que se mostra perfeitamente justificável, e em nada contraria o sistema comum de IVA. De facto, de um ano para outro pode mudar o grau de utilização dos bens no regime da afetação real e os critérios objetivos de apuramento do mesmo.

É precisamente no âmbito dos poderes conferidos à AT pela alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º CIVA, que tem por base a faculdade que vinha conferida na alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Diretiva, que se enquadra o ofício -circulado n.º 30.108, aqui em discussão, prevendo uma solução que permite afastar a possibilidade de ocorrência de distorções significativas, quando estamos perante sujeitos passivos que realizem operações de locação financeira e ALD.

89.   Assim, no seu ponto 9. prescreve que "Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA" (sublinhado nosso).

90.   Ou seja, a AT veio estabelecer a adoção de critérios mais adequados que permitam aferir com maior objetividade o grau de afetação de bens e serviços de utilização mista, nos casos como o presente.

91 . Importa ressalvar que a adoção do critério referido, é demostrativa que a AT admite a existência de algum grau de afetação dos recursos integrantes do conceito de despesas gerais incorridas pelos bancos no âmbito da celebração deste tipo de contratos. Muito embora seja um facto notório que, por norma, as operações desta natureza exigem uma utilização de recursos técnicos e administrativos bastante menos relevante que aqueles que se encontram afetos às atividades principais desenvolvidas pelas instituições bancárias como a Reclamante.

92.   Por outro lado, tal não significa que os sujeitos passivos sejam obrigados a seguir o entendimento preconizado no ofício-circulado, aplicando o critério nele definido. Com efeito, como decorre do mesmo, a AT aceita que as instituições financeiras recorram a outros critérios de afetação real, desde que, os mesmos se mostrem idóneos ao fim pretendido.

93.   Posto isto, a questão que se coloca é saber se o procedimento adotado pela AT, está conforme com as normas internas e comunitárias, em especial, o artigo 16.º e 23. - CIVA, já referidos, e bem assim, os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA.

94.   Esta instrução administrativa veio contemplar a doutrina defendida pela então DGCI (atual AT) que visou "(...) divulgar a correia interpretação a dar ao artigo 23.º do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD (...)", procurando afastar algumas dificuldades interpretativas suscitadas pela redação do artigo 235 do CIVA, harmonizando-o com a doutrina e jurisprudência comunitárias.

95.   Não obstante, grande parte da doutrina nele preconizada, já vinha sendo aplicada pela AT antes mesmo da sua publicação.

96.   A questão principal que se dirime, nesta sede, foi já objeto de apreciação por parte do TJUE (Acórdão proferido no processo Banco Mais C-183/13, de 10 de julho de 2014), tendo por base uma instituição financeira portuguesa e que nessa medida se encontrava sujeita ao mesmo regime jurídico-tributário da aqui Reclamante, sendo que, o entendimento nele preconizado confirma a posição que tem vindo a ser assumida pela AT relativamente a esta matéria.

(...)

98. A este propósito refere Tânia Meireles da Cunha:

“Neste contexto, o TJUE entendeu que o direito interno (concretamente o art. 23º, n.ºs 2 e 3, do CIVA, na redação vigente) legitimava a atuação da AT, no sentido de derrogar a regra de cálculo do pro rata prevista na Sexta Diretiva.

O entendimento do TJUE foi no sentido de que o acervo normativo em causa, considerando os princípios que enformam o IVA (designadamente os da neutralidade e da proporcionalidade) e considerando que o cálculo de um quociente de dedução deverá ser o mais possível aproximado da realidade (apesar de alguma margem de erro que o caracteriza, por definição), não se opõe a que os

EM apliquem um método ou um critério diferente do volume de negócios, se este método for o mais preciso.

No caso em concreto, o TJUE entendeu que o método que a AT portuguesa definiu é, em princípio, mais preciso do que o previsto na Sexta Diretiva, dado que considerou apenas a parte das rendas pagas que servem para compensar a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador. (negrito e sublinhado nosso)”.

99. Não subsistem dúvidas que a situação em apreço se enquadra nos casos a que se refere o citado acórdão, uma vez que a realização pela Reclamante deste tipo de operações de locação financeira (maioritariamente) para o setor automóvel implica a utilização de parte dos bens ou serviços promíscuos, mas esta é “(…) sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos.”

100. Este entendimento veio, necessariamente, a ter acolhimento pelos nossos tribunais superiores, nomeadamente, no âmbito dos processos onde havia sido solicitado o reenvio prejudicial para o referido tribunal.

(...)

105. Na verdade, a componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução, uma vez que, não constitui rendimento da atividade do sujeito passivo, ao invés do que sucede com as demais variáveis que integram a fórmula, sendo que, a sua consideração, provocaria distorções significativas na tributação, e também desvirtuaria o próprio método do pró rata e todos a sistema de dedução do IVA, ao reconhecer como dedutíveis custos que não contribuíram para a realização de operações tributadas. Só assim é alcançada a neutralidade do imposto.

106. Não são todas as operações tributadas e/ou não tributadas que devem ser integradas na fórmula, mas apenas aquelas que, realizadas no âmbito de uma atividade económica realizada pelo sujeito passivo, tenham utilizado custos comuns para gerar valor acrescentado (no caso da locação financeira, advém da cedência do uso do bem objeto do contrato, através da qual o locador obtém rendimentos, sob a forma de juros).

107. Ora, resulta claro à evidência, que consubstanciando a componente das rendas correspondente à amortização financeira, um mero reembolso de capital, que nesse sentido, não gera qualquer valor acrescentado, só a título muito diminuto é que os custos comuns suportados pelo locador numa operação de locação financeira, poderão, eventualmente, contribuir para a sua realização. Se não contribuíram para a amortização financeira, não lhe podem ser imputáveis.

108. A demostração de tais riscos decorre claramente do teor do oficio-circulado em análise, sendo que, é defendida ao nível da jurisprudência e doutrina desenvolvidas para casos semelhantes15, destacando-se, dada a clareza da exposição o que ficou consignado na declaração de voto de vencido de Víctor Calvete lavrada no âmbito do processo arbitrai n.º 811/2019-T (p. 71 a 80) e que recentemente reiterou na decisão proferida no processo n.º 754/2019-T, na qual votou vencido fl. 48 e 49), decisão esta que veio a ser anulada pelo STA, em sede de recurso de uniformização de jurisprudência.

 

(...)

114. Nessa medida, fica inequivocamente demonstrado que o método adotado pela Reclamante e que agora pretende alterar é o único que se mostra adequado para efeitos de exercício do direito à dedução, permitindo, com as especificidades constantes do ofício - circulado n.º 30.108 afastar as distorções na tributação, que de outra forma seriam manifestas, conforme amplamente se demonstrou e se encontra referido na norma em causa.

115. O que no caso presente é patente, já que a consideração no pró rata do valor das operações de venda de automóveis e da componente de amortização das rendas de leasing, segundo o alegado pela Reclamante, produz um aumento exponencial do direito à dedução (de 11 % para 21 %), sem que se comprove que o aproveitamento dos recursos de utilização mista é realizado na mesma proporção. Aliás, reitera-se que não é apresentada qualquer justificação para a alteração da percentagem de dedução.

116. Sendo este facto por si só justificativo para a imposição da obrigatoriedade da sua utilização, já que dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º não resulta que este poder conferido à AT esteja dependente da verificação cumulativa das duas alíneas do último número indicado, ou seja, além das distorções na tributação, a prática, pelo sujeito passivo, de atividades económicas distintas.

117. Pese embora, a alínea h) do n.9 2 do artigo 16.Q do CIVA, refira que, nas operações de locação financeira, o valor tributável corresponde à renda recebida no seu todo, a verdade é que a parcela correspondente à amortização financeira, não assume a natureza de proveito, e como tal, não integra o conceito de volume de negócios nas instituições de crédito, e daí que não possa influenciar o cálculo da percentagem de dedução17.

118. Nesse sentido, é ponto assente para jurisprudência, e que o n.º 2 do artigo 23.º do CIVA reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo da Sexta Diretiva (que corresponde ao artigo 173.5, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA), constituindo uma transposição para o direito interno do direito da UE.

119. Pelo que, deve entender-se que a AT pode obrigar um banco que exerce, nomeadamente, a atividade de locação financeira, a incluir, no numerador e denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pró rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes nos contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, e não pela disponibilização dos veículos.

120. Ou seja, o objetivo do legislador foi acautelar situações, como a presente, procurando aplicar um método de apuramento do IVA dedutível que se afigure o mais próximo possível da realidade e que permita evitar a ocorrência de distorções de tributação, assim salvaguardado o princípio basilar do funcionamento do IVA - princípio da neutralidade.

121. Daqui decorre que é indubitável que o legislador conferiu à AT, nos termos do artigo 23.Q do CIVA, poderes para impor aos sujeitos passivos uma adaptação do método de apuramento do montante dedutível de IVA nos inputs mistos, verificadas que estejam alguma das situações constantes das alíneas   do seu r\.° 3, o que sucede no presente caso, onde é entendimento dos nosso tribunais superiores, em decorrência do que vem sendo defendido pela jurisprudência do TJUE, que dado o tipo de atividades em causa, existe uma forte probabilidade da ocorrência de distorções de tributação, decorrentes da aplicação do pró rata geral, o que nos remete para a terceira questão apresentada pela Reclamante e que à frente se analisará.

 

(...)

135. Do que se deixou dito, decorre que o principal consumo de recursos ocorre após a disponibilização da viatura, circunscrevendo-se a fase inicial à aquisição da viatura (cujo IVA suportado é recuperado na sua totalidade), e eventualmente, ao contato com o fornecedor do veículo, o locatário, e formalização do contrato e registo da aquisição, e inerentes operações contabilistas e fiscais daí decorrentes.

136. As demais tarefas, nomeadamente, as relacionadas com os contratos de seguro, com o pagamento do impostos, infrações rodoviárias, serviços jurídicos, além das inerentes às vicissitudes próprias do contrato (como sejam, faturação e alterações à mensalidade, incumprimento), não se mostram subsumíveis à atividade de disponibilização do bem locado, resulta que uma parte significativa dos recursos é incorrida durante o período de vigência do contrato, enquadrando-se na atividade de gestão e financiamento.

137. Ao contrário do que entende a Reclamante, a aplicação do coeficiente determinado pela AT, deve ceder quando o sujeito passivo seja capaz de demostrar de forma cabal, que o aproveitamento dos custos mistos não é determinado, sobretudo, pela atividade de financiamento, mas pelas operações de locação/venda em si mesmas, conforme vem sendo defendido pela jurisprudência do TJUE.

138. Sucede que, do alegado não é possível descortinar tal desiderato, limitando-se a Reclamante, a referir que tal não é imposto pela jurisprudência, que apenas exige que a utilização de tais recursos seja, em certa medida, determinada por essa atividade.

139. Face ao que se deixou dito na presente informação, fica demonstrada a precisão do critério de imputação definido pela AT, atentos os manifestos riscos de distorção da neutralidade do imposto.

140. Quanto ao valor do pedido formulado, importa realçar que a Reclamante limita-se a fazer referência a percentagens de dedução e por consequência ao valor reclamado, sem que, quanto aos mesmos demostre o respetivo cálculo e apresente qualquer documento comprovativo do apuramento dos mesmos, como se impunha por força do disposto no artigo 74.º da LGT.

141. A que acresce o facto de, na presente data e no que concerne ao exercício de 2021, a mesma ter apresentado junto desta unidade de serviços, conforme já referido, a reclamação graciosa n.° ...2023..., nos exatos termos e fundamentos da presente.

142. Nestes termos, conclui-se pela improcedência dos argumentos apresentados pela Reclamante ficando demonstrado que a autoliquidação em análise não padece de quaisquer vícios invocados, devendo ser indeferida a sua pretensão.

 

 

(...)

 

  1. No dia 20-09-2023,  Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

             

2.2. Factos não provados

 

2.2.1. Não se provou a exacta medida da utilização de recursos de utilização mista pela Requerente relacionada com as operações de locação financeira. Para além de veículos, a Requerente também celebra contratos de leasing de equipamentos (máquinas) não se apurando quais as percentagens de recursos de utilização mista que são utilizados nestas actividades.

Na verdade, da prova produzida resultam os tipos de actividades desenvolvidas pela Requerente, mas não a quantificação da utilização de recursos de utilização mista afectos a qualquer delas.

Apurou-se que, no caso de leasing de veículos, que a actividade posterior à fase inicial de aquisição e formalização do contrato e registo da aquisição, inclui mais tarefas do que a fase inicial e estão previstas no preçário da Requerente comissões específicas para a remuneração directa de cada um dos tipos de actividades, mas as comissões não são suficientes para compensar todos os custos suportados pela Requerente, sendo o seu valor apenas o dos custos mínimos que a Requerente está segura de ter de suportar.

Por outro lado, não se apurou a dimensão de recursos de utilização mista não quantificáveis exactamente (como, por exemplo, água, electricidade, limpeza, uso de programas informáticos e despesas gerais com os edifícios onde funcionam os 10 a 15 balcões em que a Requerente tem colaboradores com intervenção na actividade de leasing), que são utilizados em cada uma das actividades desenvolvidas em conexão com os contratos de leasing.

 

2.2.2. Não se provou que as operações de locação financeira exijam uma utilização de recursos técnicos e administrativos de utilização mista menos relevante que aqueles que se encontram afectos às restantes actividades.

Pelo contrário, da prova testemunhal resulta que, comparando as operações de crédito automóvel (isentas) e as de leasing, é muito maior a utilização de recursos gerais nesta última, como se refere na alínea AA. da matéria de facto fixada.

 

2.2.3. Não se provou que, no caso em apreço, a utilização do método de determinação do pro rata de baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar «distorções significativas da tributação», designadamente que possa «provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas provocar vantagens ou prejuízos injustificados».

Na verdade, estes juízos conclusivos são utilizados no ponto 8 do Ofício-Circulado n.º 30108, mas não foi apresentada qualquer prova das afirmações neles contidas, nem sequer são esclarecidas quais as «vantagens ou prejuízos injustificados» a que se alude.

 

2.2.4. Não se considerou provado que a Requerente tenha efectuado pagamento da quantia autoliquidada relativamente ao último período de 2018.

A Requerente não diz ter feito o pagamento nem apresentou qualquer documento comprovativo.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos que foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e na prova testemunhal.

A testemunha B... aparentou depor com isenção e com conhecimento directo dos factos que foram dados como provados com base no seu depoimento.

Quanto à correspondência à realidade dos valores de cálculo do pro rata e as percentagens que resultam da aplicação dos dois métodos de cálculo, consideram-se provados, por terem por base a declaração periódica relativa ao mês de Janeiro de 2021, que goza de presunção de veracidade (artigo 75.º, n.º 1, da LGT)  e por os valores indicados não terem sido questionados na decisão da reclamação graciosa, não se referindo nela sequer ter sido realizada qualquer actividade inquisitória que deixe entrever dúvidas sobre essa correspondência.

 

 

              3. Matéria de direito

 

A questão da utilidade da apreciação da questão suscitada no pedido de pronúncia arbitral é logicamente prioritária, em face da proibição da prática de actos inúteis que estabelece o artigo 130.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, que é princípio geral de direito processual.

 

   3.1. Questão da utilidade da lide

 

 

A questão da utilidade da lide foi suscitada no despacho de 26-06-2024, por se constatar que na decisão da reclamação graciosa são invocados dois fundamentos para indeferimento e a Requerente apenas ter imputado vícios de violação de lei a um deles.

              Na verdade, na decisão da reclamação graciosa refere-se, essencialmente nos pontos 28 a  42 da Informação em que se baseia, como primeiro fundamento de indeferimento, o entendimento de que resulta do n.º 6 do artigo 23.º do CIVA que apenas na última declaração do ano é possível aplicar os critérios definitivos para apurar a medida da dedução anual de IVA, tendo as deduções referentes aos períodos anteriores do ano natureza meramente provisória ou estimada, como se vê pelos seguintes pontos da informação em que se baseia a decisão:

38. Sucede que, relativamente aos bens e serviços de utilização mista, e conforme decorre do n.º 6 do artigo citado, os sujeitos passivos, apenas exercem o direito à dedução na declaração correspondente ao último período do ano a que a mesma respeita, dado que só nesse momento é possível aplicar os critérios definitivos para apurar a medida da dedução anual (até aí é meramente provisoria ou estimada)

39. É nesta última declaração do ano que se estabiliza a relação jurídico-tributária no que concerne ao direito à dedução relativo aos bens e serviços de utilização mista. É com ela que a dedução de IVA se torna definitiva, sem prejuízos dos casos de regularização legalmente previsto na lei.

40. Pelo que, sendo admissível a apresentação de reclamação graciosa com os fundamentos invocados, é por referência a essa declaração periódica que deve a mesma ser analisada.

41. Aliás esse entendimento é corroborado pela própria Reclamante ao afirmar no introito da petição inicial apresentada no âmbito da Reclamação Graciosa que se encontra a correr termos junto desta unidade de serviços, sob o n.º ...2023..., que vem deduzi-la “por erro na autoliquidação de IVA, referente ao período de tributação compreendido entre os meses de fevereiro e dezembro de 2021, materializada na declaração periódica de imposto com referência ao mês de dezembro daquele ano (…)”.

42. Isso conjugado com o facto de ter apresentado a referida Reclamação Graciosa abrangendo o período de dezembro, determina que a presente reclamação não possa prosseguir, sob pena se serem proferidas duas decisões contraditórias sobre os mesmos factos.

 

 

              É manifesto que é este o fundamento principal de indeferimento da reclamação graciosa, pois, apesar de na informação perfilhada na decisão também se ter entendido, como fundamento de indeferimento, que «o apuramento da percentagem de dedução efetuado pela Requerente com as normas de direito comunitário e interno», este segundo fundamento é invocado com natureza meramente subsidiária, como evidencia o facto de que na referida informação se faz preceder a apreciação deste segundo fundamento da expressão «sem prescindir, e caso assim não se entenda o que só por mera hipótese académica, se concebe,  sempre se dirá que não assiste razão ao alegado pela Reclamante» (ponto 43).

           Nos casos de autoliquidação, sujeitos a impugnação administrativa prévia necessária [artigos 131.º do CPPT e 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março], a fundamentação relevante para aferir a legalidade é a da respectiva decisão. 

           Na verdade, quando dois actos têm por objecto definir a mesma situação jurídica, o segundo, quando não é confirmativo, é revogatório por substituição. ( [1] )

           Os actos que indeferem impugnações administrativas podem ser confirmativos, não alterando a ordem jurídica, quando «se limitem a reiterar, com os mesmos fundamentos, decisões contidas em atos administrativos anteriores» (artigo 53.º, n.º 1, do CPTA).

           Nos casos em que uma decisão fundamentada da impugnação administrativa aprecia um acto sem fundamentação expressa (como sucede nos casos de reclamação graciosa de autoliquidação), não se está perante uma situação em que a decisão da reclamação seja meramente confirmativa, à face do preceituado no artigo 53.º, n.º 1, do CPTA, pois a autoliquidação não tem fundamentação originária emitida pela Administração Tributária. Por isso, está-se perante uma situação de revogação por substituição, em que o acto subsiste na ordem jurídica após a decisão com a fundamentação que dela consta, como está ínsito no artigo 173.º do Código do Procedimento Administrativo de 2015. ( [2] )

Nos processos arbitrais tributários, que seguem o modelo de contencioso de natureza objectivista, em que um acto praticado pela Administração Tributária é o objecto do processo [artigo 10.º, n.º 2, alínea b), do RJAT] e neste se visa apurar se enferma de ilegalidade, como decorre do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT ao referir que as competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD compreendem a apreciação das pretensões de declaração de ilegalidade de actos.

Pelo facto de o acto impugnado ser o objecto da apreciação do Tribunal e esta visar apurar se existem ilegalidades que justifiquem a sua eliminação da ordem jurídica, os impugnantes têm o ónus de identificar essas ilegalidades, quando os vícios são geradores de anulabilidade, imputando aos actos os vícios que entendem que os afectam.

Este ónus de alegação de vícios é dispensado nos casos de o acto impugnado enfermar de vício ou vícios geradores de nulidade ou se estar perante uma situação de inexistência jurídica, pois nestas situações há possibilidade de conhecimento oficioso das ilegalidades, como decorre do preceituado no artigo 162.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo (CPA).

Mas, nos casos em que o acto impugnado não enferma de vícios geradores de nulidade nem se está perante uma situação de inexistência jurídica, existe o referido ónus de imputação de vícios, pelo que, se o acto tem mais que um fundamento e cada um deles é suficiente para, por si só, justificar a decisão, o êxito da impugnação depende de serem imputadas ilegalidades a todos os fundamentos invocados no acto, pois se houver algum fundamento que não seja atacado e de que o tribunal não possa conhecer oficiosamente, terá de se concluir que o acto deverá ser mantido na ordem jurídica, por a decisão nele contida ter um fundamento cuja validade jurídica não foi destruída. 

Por outro lado, a imputação aos actos de ilegalidades geradoras de anulabilidade, que constituem causas de pedir autónomas, tem de ser feita dentro do prazo previsto para a impugnação (neste caso o prazo para pronúncia arbitral), pois, decorrido esse prazo, caduca o direito de as invocar. Por isso, neste caso não releva para esse efeito a invocação posterior ao termo do prazo de 90 dias a contar da notificação da decisão da reclamação graciosa, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, com remissão para o artigo 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT.

De resto, o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo sobre o ónus de impugnação de actos anuláveis que tem vindo a ser perfilhado é no sentido de que, quando um acto de administrativo tem mais que um fundamento, cada um deles com potencialidade para, só por si, assegurar a legalidade de um acto tributário (ou administrativo) é irrelevante que um deles seja ilegal, pois «o tribunal, para anular ou declarar a nulidade da decisão questionada, emitida no exercício de actividade vinculada da Administração, não se pode bastar com a constatação da insubsistência de um dos fundamentos invocados, pois só após a verificação da improcedência de todos eles é que o tribunal fica habilitado a invalidar o acto» ( [3] )

Na verdade, a pluralidade de fundamentos autónomos de uma decisão equivale a uma pluralidade de proposições decisórias convergentes para o mesmo resultado pelo que, fora dos casos de vícios geradores de nulidade ou perante situações de inexistência jurídica, a impugnação só poderá ter sucesso se atacar, com êxito, todos os fundamentos jurídicos que imediata e autonomamente sustentem a decisão criticada, constituindo um seu antecedente lógico necessário. ( [4] )

Assim, no caso em apreço, tendo a autoliquidação sido mantida com dois fundamentos (inadmissibilidade de correcção do pro rata relativa ao período de Janeiro e não violação do regime substantivo do direito à dedução de IVA relativamente a recursos de utilização mista), para impugnar eficazmente a decisão de indeferimento, o sujeito passivo tinha de atacar os dois fundamentos, pois, atacando apenas o relativo ao regime substantivo do direito à dedução, ficou sempre a subsistir o outro fundamento autónomo de indeferimento.

Por isso, independentemente de serem correctos ou não os entendimentos da Administração Tributária sobre a inviabilidade de prosseguimento da reclamação graciosa relativamente ao período de Janeiro quando foi apresentada outra reclamação graciosa relativa ao período de Dezembro e sobre o regime substantivo do direito à dedução aplicável aos recursos de utilização mista, tem de se concluir que o acto tem de ser mantido, por não ter sido impugnado tempestivamente o decidido na reclamação graciosa quanto à inviabilidade do pedido, com os fundamentos invocados, relativamente à declaração de Janeiro, quando a Requerente apresentou uma outra reclamação graciosa relativa ao mesmo ano, abrangendo o período de Dezembro, período este em que o artigo 23.º, n.º 6, do CIVA, estabelece como sendo aquele em que são corrigidas as declarações anteriores do mesmo ano de acordo com os valores definitivos.

Pelo exposto, estando assente que o acto de autoliquidação, com a fundamentação que lhe foi dada na decisão da reclamação graciosa, tem de ser mantido na ordem jurídica, por um dos fundamentos autónomos em que se baseia não ter sido atacado no pedido de pronúncia arbitral, torna-se inútil conhecer dos restantes vícios que lhe são imputados, por os pedidos formulados terem forçosamente de improceder, mesmo que a Requerente tenha razão quanto aos vícios que invoca.

E, sendo inútil o conhecimento dos pedidos apresentados neste processo arbitral, este Tribunal Arbitral não pode conhecer deles, por tal ser proibido pelo artigo 130.º do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

 

4. Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em não tomar conhecimento do objecto do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 239.481,97.

 

 

Lisboa, 16-07-2024

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

(Clotilde Celorico Palma)

 

 

 

 

(Jorge Carita)

 



[1] Na terminologia do art. 79.º da LGT, como sucedia nos arts. 138.º e seguintes do CPA de 1991, a «anulação» administrativa tem a designação de «revogação».

O art. 165.º do CPA de 2015, precisou a terminologia distinguindo entre «revogação». que «é o acto administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade, e a «anulação administrativa», que «é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro acto, com fundamento em invalidade».

No entanto, no procedimento tributário e contencioso tributário não houve qualquer alteração.

[2] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:  de 06-10-1999, processo n.º 023379, publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-09-2002, página 3102; de 29-05-2002, processo n.º 047541, publicado em Apêndice ao Diário da República 10-02-2004, página 4047; de 12-12-2002, processo n.º 047699; de 18-12-2002, processo n.º 048366; de 06-05-2020, processo n.º 512/10.8BEPRT.

[3]                     Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10-5-2000, processo n.º 039073, publicado em Apêndice ao Diário da República de 09-12-2002, página 4229, cuja jurisprudência é adoptada no acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 28-10-2004, processo n.º 028055.

Essencialmente mesmo sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22-04-1993, processo n.º 030690, publicado no Apêndice ao Diário da República de 19-8-96, página 1986.

O mesmo tem sido decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo, por idênticas razões, quanto a decisões jurisdicionais com plúrima fundamentação, como pode ver-se, entre muitos, pelos acórdãos da Secção do Contencioso Tributário de 14-02-2002, processo n.º 026309; de 27-05-2009, processo n.º 0147/09; de 24-10-2012, processo n.º 0696/12; de 14-01-2015, processo n.º 0973/13; de 13-09-2017, processo n.º 0115/17; de 16-01-2019, processo n.º 0756/18.4BE; de 02-09-2020, processo n.º 02609/19.0BEPRT; de 13-07-2022, processo n.º 0324/11.1BEALM; de 08-05-2024, processo n.º 01488/23.7BEPRT.

[4] Acórdãos de 12-06-2012, processo n.º 0332/12; de 28-06-2012, processo n.º 0438/12; de 11-07-2012, processo n.º 0466/12; de 11-07-2012, processo n.º 393/12; de 26-09-2012, processo n.º 0541/12; de 09-01-2013, processo n.º 1352/12; do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Pleno de 04-07-2013, processo n.º 0337/11.