Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 791/2023-T
Data da decisão: 2024-07-12  IRC  
Valor do pedido: € 217.404,00
Tema: IRC – Dupla Tributação Internacional; Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Alemanha; “Royalties”; Locação de navio; Retenções na Fonte.
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SUMÁRIO:                                  

 

1 -  Os rendimentos provenientes da locação de um navio, como é o da situação dos autos, independentemente da designação do mesmo como “contrato de fretamento” ou “contrato de cessão de exploração” de um navio, são qualificáveis para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e a Alemanha como “royalties”, na medida em que o afretamento do navio consubstancia o uso ou a concessão do uso de um «equipamento industrial ou comercial», subsumindo-se, nessa medida, ao elemento gramatical do nº 3 do artigo 12º da referida CDT.

 

3 - Por força do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes de convenções internacionais validamente celebradas e regularmente ratificadas e aprovadas vigoram na ordem interna logo que publicadas, constituindo fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários. Daí a força jurídica da Convenção para evitar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento que Portugal e a Alemanha assinaram em 15/07/1980 e que entrou em vigor em 08/10/1982.

 

3 - Com os tratados bilaterais fiscais não devem confundir-se as convenção-tipo, que se limitam a traçar um modelo que as partes deverão seguir, como é o caso do Modelo de Convenção elaborado pela OCDE para os impostos sobre o rendimento, que serve de minuta às convenções bilaterais celebradas pelos Estados-Membros dessa organização e onde estes podem consignar, nos respectivos Comentários, as suas divergências quer quanto ao texto dos preceitos do Modelo (“reservas”), quer quanto à posição interpretativa da OCDE sobre tais preceitos (“observações”).

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Prof. Doutor Rui Duarte Morais (árbitro presidente), Dr. Paulo Ferreira Alves (árbitro adjunto) e Dr. Pedro Miguel Bastos Rosado (árbitro adjunto e relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 17 de janeiro de 2024, acordam no seguinte:  

 

I. Relatório

 

1. A…, Sociedade em Comandita constituída de acordo com o direito alemão, com sede em ..., Alemanha, com o NIPC português ..., doravante designado por Requerente, apresentou, em 6 de novembro de 2023, pedido de pronúncia arbitral, tendo por objeto os atos de retenções na fonte de IRC relativos aos exercícios fiscais de 2020 e de 2021, a que respeitam as guias de pagamento com os n.º..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e o despacho do Diretor de Finanças da Direção de Finanças do Porto de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2022..., apresentada contra as referidas liquidações, cuja anulação pretende, bem como a restituição das quantias retidas, com as demais consequências legais.

 

2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada por Requerida ou AT.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) em 7 de novembro de 2023 e automaticamente notificado à AT.

 

4. A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a nomeação dos membros deste Tribunal coletivo arbitral competido ao Conselho Deontológico do CAAD.

 

5. Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artº 6º e da alínea b) do n.º 1 do artº 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artº 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

6. Em 28 de dezembro de 2023, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

7. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artº 11º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 17 de janeiro de 2024.

 

8. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artº 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta em 20 de fevereiro de 2024, na qual defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, tendo remetido o “processo administrativo” (PA).

 

9. Por despacho arbitral de 6 de março de 2024, foi decidido, no cumprimento do princípio da investigação, notificar a Requerente para prestar esclarecimentos, bem como para juntar aos autos a documentação a que alude no n.º 9 do seu articulado inicial.

 

10. Em 8 de abril de 2024, a Requerente prestou esclarecimentos, mas não juntou aos autos, nesse momento, nem posteriomente, qualquer documentação.

 

11. Por despacho arbitral de 22 de abril de 2024, foi decidido dispensar, por falta de objeto, a realização da reunião a que se refere o artº 18º do RJAT e não haver lugar à produção de alegações, sendo as questões a decidir de direito e as partes terem, nos articulados, deixado bem expressas as suas posições. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.

II.        Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artº 2º, e do n.º 1 do artº 10º, ambos do RJAT.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artº 4º e n.º 2 do artº 10º, do mesmo diploma e artº 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral é tempestivo.

 

5. O Tribunal é competente.

 

III.   Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Dão-se como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

 

A) A Requerente é uma sociedade em comandita constituída de acordo com o direito alemão, com sede e residência fiscal na Alemanha, com o NIPC português..., sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país (documentos juntos com o PA, cujo teor se dá como reproduzido).

 

B) Em períodos dos anos de 2020 e 2021, a Requerente cedeu o gozo temporário de um navio de que era proprietária à sociedade B..., SA, NIF ..., para o mesmo ser utilizado por esta última na organização e realização de cruzeiros turísticos no Rio XXX, em Portugal, mediante o recebimento de uma retribuição mensal  (documento nº 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, como “contrato de fretamento de navio”, e PA, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

C) Os rendimentos auferidos pela Requerente no âmbito da cedência do gozo do navio referido em B), foram sujeitos ao pagamento de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) em Portugal, através do mecanismo de retenção na fonte, à taxa liberatória de 10% (documentos nºs 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, e PA, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

D) Nos anos de 2020 e 2021, a Requerente recebeu da B..., S.A.  rendimentos decorrentes da cedência do seu navio e suportou em Portugal IRC, por retenção na fonte, à taxa de 10%, nos montantes a seguir discriminados:

 

 

 

 

 

(documentos nºs 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, e PA, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

E) Através de carta registada expedida em 19 de maio de 2022, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte discriminados em D (documento nº 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, e PA, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

F) Através de ofício de 1 de agosto de 2023 da AT, a Requerente foi notificada, por carta registada expedida em 3 de agosto de 2023, do despacho de 31 de julho de 2023 de indeferimento do procedimento de reclamação graciosa nº ...2022... do Diretor de Finanças da Direção de Finanças do Porto, emitido na sequência de anterior notificação do projeto de decisão de indeferimento para audiência prévia, que foi convertido em definitivo (documentos nºs 1 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, e PA, cujos teores se dão como reproduzidos).

 

G) Em 6 de novembro de 2023, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2. Fundamentação da matéria de facto dada como provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o seu pedido de pronúncia arbitral (PPA) e nos documentos constantes no processo administrativo (PA), cuja autenticidade não foi colocada em causa, bem como nas posições assumidas pelas partes nos articulados apresentados.

 

3. Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão a causa.

 

 

IV. Matéria de Direito

 

1.  Apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral

 

1.1. Posições das partes 

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

- Que “o enquadramento fiscal dos rendimentos auferidos em função da cessão da exploração do seu navio, ao abrigo do qual se procedeu à retenção na fonte dos montantes supra identificados, não corresponde a uma correta aplicação do ADT PT-AL”;

 

- Que “uma vez que o ADT visa espelhar as soluções estabelecidas na Convenção Modelo da OCDE em matéria de dupla tributação, cumpre notar que, na sua versão de 2017, a mesma deixou de classificar a cessão de exploração de equipamento comercial como uma atividade que origina o pagamento de Royalties.”;

 

- Que “a Autoridade Tributária, com esta decisão, não qualificou os rendimentos obtidos pela Requerente em conformidade com a legislação aplicável, considerando a evolução legislativa e doutrinária do direito fiscal internacional, nomeadamente, a evolução do conceito de Royalties.”;

 

- Que o “ADT PT-AL, celebrado em 15 de julho de 1980, segue e deve ser interpretado em conformidade com o disposto no Modelo de Convenção em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Património, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.”;

 

- Que a “versão mais recente da CMOCDE, publicada em 21.11.2017, removeu a referência à retribuição “pelo uso ou pela concessão do uso, de equipamento industrial, comercial ou científico” do número 2 do seu artigo 12.º, em que é definido o conceito de Royalties, em função da evolução da doutrina fiscal internacional no sentido de requalificação da tipologia de rendimentos em análise, excluindo-os do conceito de Royalties e incluindo-os no conceito de lucros das empresas.”;

 

- Que “nas versões mais recentes da CMOCDE foi retirada uma reserva, feita por Portugal nas versões inicias da mesma convenção, através da qual se estabelecia que Portugal reservava o direito, enquanto estado da fonte, a tributar os rendimentos decorrentes do aluguer de equipamento industrial, comercial ou científico, bem como do aluguer de contentores, e os rendimentos decorrentes da prestação de serviços de assistência técnica, relacionada com os mesmos bens.”;

 

- Que “na ausência de uma disposição do ADT PT-AL que preveja expressamente o tipo de rendimentos em causa e que determine um enquadramento fiscal específico para os mesmos, os pagamentos recebidos pela Requerente, em função da cessão de exploração do seu navio para a organização de cruzeiros turísticos por parte de um operador, devem ser qualificados como um lucro da empresa, que deve ser tributado em conformidade com o disposto no artigo 7.º do ADT PT-AL.”;

 

- Que “o despacho de indeferimento e os atos tributários de retenção na fonte de IRC, em discussão, são ilegais, por violação evidente do ADT concluído entre Portugal e a Alemanha.”.

 

Na sua Resposta, a AT alegou, em síntese, o seguinte:

 

- Que “(…) sendo os rendimentos auferidos pela empresa alemã qualificados como royalties, de acordo com o n.º 3 do artigo 12.º da CDT referida (celebrada entre Portugal e a Alemanha), porque provenientes do uso ou da concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico, deverão ser tributados em Portugal por retenção na fonte à taxa de 10% sobre o montante bruto dos pagamentos. Consequentemente estando, nos termos do artigo 12.º, n.º 2 da referida CDT sujeitas a tributação na fonte à taxa de 10%, sobre o montante bruto dos rendimentos pagos, desde que seja acionada a Convenção.”;

 

- Que “a redação introduzida pelo n.º 2 do artigo 12.º da Convenção Modelo OCDE consiste numa alteração à substância do artigo, pois se o termo Royalties incluía a locação de equipamento comercial na redação anterior a 23/07/1992, a partir dessa data deixou de incluir esse elemento do rendimento.”;

 

- Que “não se trata de uma alteração que tenha meramente por objetivo uma clarificação, mas sim de uma alteração que tem por objetivo modificar substancialmente o sentido da norma e, por essa via, obter um resultado diferente do que resultava da redação anterior.”;

 

- Que “a alteração introduzida em 23/07/1992 ao n.º 2 artigo 12.º da Convenção Modelo OCDE e correspondentes Comentários não deve ser tida em linha de conta na interpretação e aplicação do artigo 12.º da CDT, a qual foi celebrada anteriormente a essa modificação.”;

 

- Que “Portugal tem competência de tributação dos rendimentos derivados de locação de equipamento nos termos dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 12.º da CDT celebrada entre Portugal e a Alemanha, sendo devida a retenção na fonte à taxa de 10% do montante dos pagamentos de Royalties efetuados à sociedade alemã.”.

 

 

1.2. Da legalidade dos atos de retenções na fonte de IRC 

 

 

As questões essenciais a decidir prendem-se com a qualificação dos rendimentos auferidos pela Requerente como “royalties” ao abrigo da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e a Alemanha (doravante designada por “CDT entre Portugal e a Alemanha”), concretamente no seu artigo 12º, e, em caso afirmativo, se a versão mais recente do Modelo de Convenção em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Património, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (doravante  designada por “CMOCDE”) permite que tais rendimentos passem a ser qualificados como “lucros das empresas”, concretamente pelo artº 7º da CDT entre Portugal e a Alemanha.

 

Na parte que aqui importa discutir, dispõem os números 1, 2 e o número dois da alínea C) do número 3 do artigo 4º do Código do IRC (doravante CIRC), sob a epígrafe “Extensão da obrigação de imposto”, o seguinte:

 

1 — Relativamente às pessoas colectivas e outras entidades com sede ou direcção efectiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

2 — As pessoas colectivas e outras entidades que não tenham sede nem direcção efectiva em território português ficam sujeitas a IRC apenas quanto aos rendimentos nele obtidos.

3 — Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se obtidos em território português os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável aí situado e, bem assim, os que, não se encontrando nessas condições, a seguir se indicam:  

c) Rendimentos a seguir mencionados cujo devedor tenha residência, sede ou direcção efectiva em território português ou cujo pagamento seja imputável a um estabelecimento estável nele situado:  

2) Os derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico;

(sublinhado nosso)

 

E o número 4 do artº 87º do CIRC, estabelece que:

 

Tratando-se de rendimentos de entidades que não tenham sede nem direcção efectiva em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual os mesmos sejam imputáveis, a taxa do IRC é de 25% (…)

 

Quanto ao conceito de “royalties”, o CIRC, concretamente a alínea b) do nº 14 do seu artº 14º sob a epígrafe “Outras isenções”, esclarece que:

Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 12, entende-se por:

b) «Royalties», as remunerações de qualquer natureza recebidas em contrapartida da utilização, ou concessão do direito de utilização, de direitos de autor sobre obras literárias, artísticas ou científicas, incluindo filmes cinematográficos e suportes lógicos, patentes, marcas registadas, desenhos ou modelos, planos, fórmulas ou processos secretos, ou em contrapartida de informações relativas à experiência adquirida no domínio industrial, comercial ou científico e, bem assim, em contrapartida da utilização ou da concessão do direito de utilização de equipamento industrial, comercial ou científico;

(sublinhados nossos).

 

Por sua vez, dispõem os números 1, 2 e 3 do artº 12º da CDT entre Portugal e a Alemanha, sob a epígrafe “Royalties”, em vigor desde 8 de outubro de 1982, o seguinte:

 

1 - As royalties provenientes de um Estado contratante e pagas a um residente do outro Estado contratante podem ser tributadas nesse outro Estado.

2 - Todavia, essas royalties podem ser igualmente tributadas no Estado contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado, mas se a pessoa que receber as royalties for o seu beneficiário efectivo, o imposto assim estabelecido não excederá 10 % do montante bruto das royalties.

As autoridades competentes dos Estados contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar este limite.

3 - O termo royalties, usado neste artigo, significa as retribuições de qualquer natureza atribuídas pelo uso ou pela concessão do uso de um direito de autor sobre uma obra literária, artística ou científica, incluindo os filmes cinematográficos, bem como os filmes ou gravações para transmissão pela rádio ou pola televisão, de uma patente, de uma marca de fabrico ou de comércio, de um desenho ou de um modelo, de um plano, de uma fórmula ou de um processo secreto, bem como pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico ou por informações respeitantes a uma experiência adquirida no sector industrial, comercial ou científico.

(sublinhados nossos)

 

Em sua defesa, a Requerente invoca os acórdãos arbitrais dos Processos nº 393/2019-T de 6/2/2020 e nº 781/2021-T de 23/10/2023, ambos subscritos pelo mesmo árbitro presidente, que decidiram que os contratos de fretamento de embarcações em causa, não envolvem qualquer transferência de tecnologia ou de informação tecnológica (know-how), e se podem caraterizar como um contrato de fretamento a tempo, pelo qual o fretador, mediante uma retribuição pecuniária, se obriga a pôr à disposição do afretador um navio para fins de navegação marítima para que este o utilize durante certo período de tempo.

 

Em especial, na decisão inicial tomada no âmbito do Processo nº 781/2021-T de 23/10/2023, consta expressamente, em abono da tese defendida pela Requerente, que:

 

“Dificilmente se poderia concluir, neste contexto, que o fretamento se traduz no uso ou concessão de uso de um equipamento industrial ou comercial para efeito da previsão do artigo 12.º, n.º 3, do CDT, quando é certo que – como se deixou exposto – as royalties se reportam a uma categoria de rendimentos que provêm do uso de direitos de propriedade intelectual, industrial e de transmissão de informação, e no que se refere especificamente à propriedade industrial (aqui se incluindo a indústria e o comércio) corresponde a direitos privativos sobre os processos técnicos e de produção e desenvolvimento da riqueza, tendo por objecto as invenções, as patentes, as marcas, os modelos de utilidade, os modelos e desenhos industriais, os nomes e as insígnias de estabelecimento, os logotipos e as denominações de origem (artigos 1.º e 3.º do Código de Propriedade Industrial).

Note-se que os rendimentos provenientes do uso ou concessão de uso de equipamento industrial, comercial ou científico nem sequer constam do parágrafo 2.º do artigo 12.º da Convenção Modelo, passando a sua tributação a ser regulada como lucros das empresas nos seus artigos 5.º e 7.º, e não se compreende que  a sua inclusão na CDT, ao arrepio do direito convencional comum,  escape ao sentido geral da norma, que aponta para a qualificação como royalties de direitos de propriedade intelectual, de propriedade industrial ou de transmissão de informação.

Por conseguinte, a referência ao uso ou concessão de uso de equipamento industrial, no artigo 12.º, n.º 3, da CDT, não pode entender-se como incluindo o típico contrato de fretamento, quando esta figura se caracteriza pela simples utilização ou exploração de um navio para uma afectação marítima e se encontra regulada, desde há muito, no Código Comercial (artigos 541.º a 561.º) e em subsequente legislação avulsa.”.

 

Resulta da matéria de facto dada como provada que, em períodos dos anos de 2020 e 2021, a Requerente cedeu o gozo temporário de um navio de que era proprietária à sociedade B..., SA, NIF ..., para o mesmo ser utilizado por esta última na organização e realização de cruzeiros turísticos no Rio XXX, em Portugal, mediante o recebimento de uma retribuição mensal.

 

O contrato celebrado entre a Requerente e a B..., S.A. foi apelidado pelas partes como um contrato de cessão de exploração de um navio, sendo que a Requerente juntou o documento nº 3 junto com o seu pedido de pronúncia arbitral, com a designação de “contrato de fretamento de navio”.

 

O contrato de fretamento corresponde grosso modo, ao aluguer de um navio, uma vez que a prestação característica a que o fretador está adstrito diz respeito ao consentimento do gozo do navio, mediante o pagamento do frete. (cfr. Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 3ª edição, Coimbra, Livraria Almedina, pág. 817 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/6/2018, proferido no Processo 30472/16.5YIPRT.G1).

 

Com efeito, o fretador está obrigado contratualmente a facultar um navio em estado de navegabilidade, ou seja, apto ao fim a que se destina, tendo por base o programa obrigacional definido pelas partes.

 

Quando nas cláusulas acordadas entre as partes encontramos: a) a referência expressa ao navio, que é identificado pelo nome; b) a remuneração acordada; c) a ênfase posta na cedência temporária do navio como a essência do acordo entre as partes, d) e o rigor com que o tempo de utilização do navio é contado.

 

Em Portugal, estabelece o artº 1º do Decreto-Lei nº 191/87, de 29 de abril, que ”Contrato de fretamento de navio é aquele em que uma das partes (fretador) se obriga em relação à outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete.”.

 

Pelo que podemos concluir estarmos perante um contrato de locação de navio, tipificado na lei nacional como contrato de fretamento de um navio, independentemente de as partes se referirem ao mesmo como “fretamento”, “locação” ou “cessão de exploração” de um navio.

 

Sucede que do acórdão arbitral proferido no Processo 781/2021-T, de 23/10/2023, foi interposto  recurso para uniformização de jurisprudência para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), por alegada contradição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com o decidido na decisão arbitral proferida em 10 de dezembro de 2021 no processo arbitral n.º 97/2021-T, transitado em julgado.

 

Por acórdão de 28 de setembro de 2023, proferido no Processo n.º 71/22.9BALSB - Pleno da 2.ª Secção, o STA julgou procedente o recurso e anulou a decisão recorrida, vindo a uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:

São qualificáveis como “royalties”, para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e Moçambique, os rendimentos auferidos em virtude de contratos de afretamento de embarcações de pesca e de cedência de pessoal técnico conexa com os contratos principais.

 

O acórdão transitou em julgado em 12 de outubro de 2023.

 

Em cumprimento do julgado, o Tribunal arbitral reformou a decisão arbitral recorrida e, assim, dando como reproduzida a matéria de facto constante da decisão arbitral, concluiu que os rendimentos auferidos em virtude de um contrato de afretamento são qualificáveis para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e Moçambique como royalties, sendo aplicável a regra do artigo 12.º, n.º 2, segundo a qual as royalties podem ser igualmente tributadas no Estado contratante de que provêm.

 

Na fundamentação da sua decisão, o STA veio consignar o seguinte:

“Entendemos, pois, que bem decidiu a decisão arbitral fundamento ao qualificar como royalties os rendimentos de fonte moçambicana obtidos pelo recorrente e resultantes do afretamento de embarcações de pesca e cedência de pessoal técnico especializado, aceitando a qualificação que lhes foi atribuída por Moçambique, que os sujeitou a retenção na fonte à taxa de 10 %.

A qualificação dos rendimentos efectuada pelo Estado da fonte tem, aliás, de ser respeitada pelo Estado da residência, pois que, como ainda recentemente se consignou no Acórdão deste STA de 7 de setembro de 2022 (proc. n.º 1952/17.7BEBRG), a propósito da CDT Marrocos mas valendo integralmente para todas as demais CDT: Quando se conclui ter sido propósito dos Estados Contratantes (Portugal e Marrocos) respeitar, ao máximo, a soberania fiscal de cada um, no momento decisivo e genético, da qualificação dos factos tributários que apresentem conexões com as ordens jurídicas de ambos, o princípio (quando acontece essa conexão) tem de ser o de acolher a competência do Estado da fonte, da proveniência, para qualificar os rendimentos suscetíveis de tributação conjunta, objetivando sempre, em primeira linha, evitar a consumação de uma dúplice incidência e, reflexamente, estancar qualquer possibilidade de fuga à tributação, pressuposta pela aplicável Convenção para evitar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento (CDT).

Acresce que, como também já afirmou este STA, não podem os sujeitos passivos ser prejudicados pela inércia dos Estados contratantes na negociação/aprovação dos mecanismos necessários e idóneos à total implementação das normas das CDT celebradas — cf. o Acórdão deste STA de 9 de dezembro de 2021, proc. n.º 1113/13.4BEBRG.

A qualificação como royalties dos rendimentos de fonte moçambicana nada tem, aliás, de bizarro, em face do disposto na norma convencional respectiva.

Dispõe o n.º 3, do artigo 12.º, da CDT na redacção conferida pelo protocolo que a reviu que «O termo ‘royalties’, usado neste artigo, significa as retribuições de qualquer natureza atribuídas pelo uso ou pela concessão do uso de um direito de autor sobre uma obra literária, artística ou científica, incluindo os filmes cinematográficos, bem como os filmes ou gravações para transmissão pela rádio ou pela televisão, de uma patente, de uma marca de fabrico ou de comércio, de um desenho ou de um modelo, de um programa de computador, de um plano, de uma fórmula ou de um processo secreto, bem como pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico ou por informações respeitantes a uma experiência adquirida no sector industrial, comercial ou científico. O termo ‘royalties’ inclui também os pagamentos efectuados a título de remuneração por assistência técnica prestada em conexão com o uso ou a concessão do uso dos direitos, bens ou informações anteriormente referidos». (destaque nosso)

Ora, tendo em conta que por via da celebração dos contratos de afretamento a recorrente se vinculou a colocar à disposição das sociedades moçambicanas embarcações de pesca e a conceder o respectivo uso para a captura, por esta última, da quota de pesca de camarão de superfície e gamba, os rendimentos derivados desses contratos são qualificáveis como royalties. Isto na medida em que o afretamento do navio consubstancia o uso ou a concessão do uso de um «equipamento industrial ou comercial», subsumindo-se, nessa medida, ao elemento gramatical da norma. (…)

Pode, pois, concluir-se que os rendimentos de fonte moçambicana auferidos pela recorrente em resultado dos contratos de afretamento de navio (…) são efetivamente subsumíveis ao conceito de «royalties» tal como definidos no artigo 13.º n.º 2 da CDT Moçambique (…)

Essa qualificação foi, aliás, assumida pelo núcleo de relações internacionais da AT em informação prestada a pedido da Direção de Finanças de Aveiro — cf. fls. 509 a 511 do processo arbitral anexo aos presentes autos -, que, considerando isento de quaisquer dúvidas a qualificação dos rendimentos derivados do fretamento como royalties (cf. o seu ponto 6.), (…)

A decisão arbitral que assim o não entendeu não pode, pois, manter-se, por padecer de ilegalidade ao julgar inaplicável o disposto no n.º 3 do artigo 12.º da CDT Moçambique aos rendimentos em causa nos autos.

7.3 — Das consequências da anulação da decisão arbitral recorrida

Haverá, pois, que anular a decisão arbitral recorrida e uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:

São qualificáveis como «royalties», para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e Moçambique, os rendimentos auferidos em virtude de contratos de afretamento de embarcações de pesca e de cedência de pessoal técnico conexa com os contratos principais.”

(negrito do próprio STA).

 

Ora, se bem atentarmos ao disposto no nº 3 do artigo 12º da CDT entre Portugal e Moçambique, na nova redacção conferida pelo protocolo que a reviu, o termo ‘royalties’ coincide praticamente com o nº 3 artigo 12º da CDT Portugal e a Alemanha, sendo que a primeira, após revisão, inclui também os programas de computador e os pagamentos efectuados a título de remuneração por assistência técnica prestada em conexão com o uso ou a concessão do uso dos direitos, bens ou informações anteriormente referidos. Como já coincidiam antes da entrada em vigor da nova versão. 

 

Mas, no que aqui importa, as disposições das duas CDT estabelecem que o termo “royalties” significa, entre outras, as retribuições de qualquer natureza atribuídas uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico.

 

Convém desde logo realçar que o STA vem dizer que a qualificação dos rendimentos efectuada pelo Estado da fonte, neste caso Portugal, tem de ser respeitada pelo Estado da residência, a Alemanha.

 

E, como vimos, o artigo 4º do CIRC sujeita a tributação no território português os rendimentos “derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico”, cujo devedor tenha residência, sede ou direcção efectiva em território português, como é o caso.

 

Mas o STA vai ainda mais longe quando decide que o afretamento do navio consubstancia o uso ou a concessão do uso de um «equipamento industrial ou comercial», subsumindo-se, nessa medida, ao elemento gramatical da norma do número 3 do artº 12º da CDT em causa.

A este propósito cumpre referir que a própria Requerente, no artº 30º do seu PPA, vem dizer que “(a)o abrigo do disposto no número 3 do artigo 12.º do ADT PT-AL, “o termo royalties, usado neste artigo, significa as retribuições de qualquer natureza atribuídas pelo uso ou concessão do uso (…) bem como pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico (…)”, o que abrange a situação da Requerente, que aufere rendimentos consistentes na retribuição pela cessão de uso de um navio.

(sublinhado nosso).

 

E, sem prejuízo do que se decidirá infra, cumpre também referir, desde já, o teor do parágrafo 9 dos Comentários ao artigo 12º do Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, na sua versão atual:    

 

9. A definição do termo «royalties» no número 2 do Artigo 12.° do Projecto de Convenção de 1963 e do Modelo de Convenção de 1977 incluía as remunerações «pelo uso ou a concessão do uso de equipamento industrial, comercial ou científico». A menção dessas remunerações foi suprimida posteriormente. Tendo em atenção a natureza dos rendimentos provenientes da locação de equipamento industrial, comercial ou científico, incluindo os rendimentos da locação de contentores, o Comité dos Assuntos Fiscais decidiu excluir esses rendimentos da locação da definição de «royalties» e, consequentemente, removê-los da aplicação do Artigo 12.° com o propósito de assegurar que os mesmos são contemplados pelas disposições respeitantes à tributação dos lucros das empresas, como definidos nos Artigos 5.° e 7.°.

(cfr. Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, Versão Condensada, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 197, págs. 285 e 286).

 

Daqui decorre que a própria OCDE sempre considerou, até à mencionada revisão do CMOCDE atrás referida, que os rendimentos provenientes da locação de equipamento industrial, comercial ou científico estavam incluídos no termo “royalties” como sendo remunerações «pelo uso ou a concessão do uso de equipamento industrial, comercial ou científico».

 

Face à referida uniformização de jurisprudência pelo STA, à coincidência do teor das normas das CDT Portugal e Moçambique e Portugal e a Alemanha, no que respeita ao termo “royalties” aqui em discussão, à posição da Requerente e ao teor do Comentários revistos atrás mencionados, o Tribunal não pode deixar de concluir e decidir que os rendimentos provenientes da locação de um navio, como é o da situação dos autos, independentemente da designação do mesmo como “contrato de fretamento” ou “contrato de cessão de exploração” de um navio, são qualificáveis para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e a Alemanha como “royalties”, na medida em que o afretamento do navio consubstancia o uso ou a concessão do uso de um «equipamento industrial ou comercial», subsumindo-se, nessa medida, ao elemento gramatical do nº 2 do artigo 13.º n.º 2 da referida CDT.

 

Sem prejuízo, o Tribunal não deixará de referir que concorda com a decisão do Comité dos Assuntos Fiscais de excluir esses rendimentos da locação de equipamento industrial, comercial ou científico da definição de «royalties» e, consequentemente, a sua remoção da aplicação do artigo 12.° da CMOCDE, dado que a simples e típica locação de um navio não deverá justificar, de jure condendo, a sua qualificação como “royalties”, por se encontrar desligada de qualquer transferência de tecnologia, transmissão de informação ou de direitos de propriedade intelectual e de  propriedade industrial.

 

Assim, resta ao Tribunal decidir se a versão mais recente da CMOCDE permite que tais rendimentos passem a ser qualificados como “lucros das empresas”, concretamente pelo artº 7º da CDT entre Portugal e a Alemanha.

 

No entendimento da Requerente, a versão mais recente da CMOCDE, removeu a referência à retribuição “pelo uso ou pela concessão do uso, de equipamento industrial, comercial ou científico” do número 2 do seu artigo 12.º, em que é definido o conceito de “royalties”, em função da evolução da doutrina fiscal internacional no sentido de requalificação da tipologia de rendimentos em análise, excluindo-os do conceito de “royalties” e incluindo-os no conceito de lucros das empresas.

 

Já a Requerida defende, como atrás se referiu, que a alteração introduzida ao n.º 2 artigo 12.º da CMOCDE e correspondentes Comentários não deve ser tida em linha de conta na interpretação e aplicação do artigo 12.º da CDT entre Portugal e a Alemanha, a qual foi celebrada anteriormente a essa modificação, pelo que não se trata de uma alteração que tenha meramente por objetivo uma clarificação, mas sim de uma alteração que tem por objetivo modificar substancialmente o sentido da norma e, por essa via, obter um resultado diferente do que resultava da redação anterior.

 

Como atrás se viu, o Comité dos Assuntos Fiscais decidiu excluir as remunerações «pelo uso ou a concessão do uso de equipamento industrial, comercial ou científico», onde se incluíam os rendimentos de “locação de equipamento industrial, comercial ou científico” da definição de «royalties» e, consequentemente, removeu-os da aplicação do Artigo 12.° com o propósito de assegurar que os mesmos passavam a ser contemplados pelas disposições respeitantes à tributação dos lucros das empresas, como definidos nos Artigos 5.° e 7.°.

 

Ou seja, do confronto das duas redações, verifica-se que a redação do n.º 2 do artigo 12.º da CDT entre Portugal e a Alemanha inclui os pagamentos «pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico», enquanto que a redação do n.º 2 do artigo 12.º da CMOCDE já não os inclui.

 

Como se referiu, na decisão inicial tomada no âmbito do Processo nº 781/2021-T de 23/10/2023, constava expressamente, em abono da tese defendida pela Requerente, que:

Note-se que os rendimentos provenientes do uso ou concessão de uso de equipamento industrial, comercial ou científico nem sequer constam do parágrafo 2.º do artigo 12.º da Convenção Modelo, passando a sua tributação a ser regulada como lucros das empresas nos seus artigos 5.º e 7.º, e não se compreende que  a sua inclusão na CDT, ao arrepio do direito convencional comum,  escape ao sentido geral da norma, que aponta para a qualificação como royalties de direitos de propriedade intelectual, de propriedade industrial ou de transmissão de informação.

 

No mencionado acórdão de 28 de setembro de 2023, o STA não se pronunciar expressamente sobre esta questão, certamente por entender desnecessário.

 

Por força do disposto no artigo 8.º da CRP as normas constantes de convenções internacionais validamente celebradas e regularmente ratificadas e aprovadas vigoram na ordem interna logo que publicadas, constituindo fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários. Daí a força jurídica da Convenção para evitar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento que Portugal e a Alemanha assinaram em 15/07/1980 e que entrou em vigor em 08/10/1982

 

Na aplicação das convenções de dupla tributação celebradas entre Portugal e outros Estados, a CMOCDE e os Comentários à mesma são, seguramente, elemento coadjuvante ou auxiliar de interpretação.

 

Todavia, é manifesto que, com os tratados bilaterais fiscais não devem confundir-se as convenção-tipo, que se limitam a traçar um modelo que as partes deverão seguir, como é o caso do Modelo de Convenção elaborado pela OCDE para os impostos sobre o rendimento, que serve de minuta às convenções bilaterais celebradas pelos Estados-Membros dessa organização e onde estes podem consignar, nos respectivos Comentários, as suas divergências quer quanto ao texto dos preceitos do Modelo (“reservas”), quer quanto à posição interpretativa da OCDE sobre tais preceitos (“observações”).

(Neste sentido, cfr. Acórdão do STA, de 02/01/2011, proferido no âmbito do processo nº 0621/09, 2ª secção)

 

A CMOCDE é uma simples recomendação ou minuta para a elaboração de tratados pelos Estados membros, pelo que não tem a força jurídica de substituir uma norma de um tratado existente, como se de uma alteração ao mesmo, assinada e ratificada pelos Estados contratantes, se tratasse.

 

Aliás tal entendimento, - quiça até desnecessário face aos princípios básicos e às fontes imediatas do Direito - surge de forma bastante clara no próprio texto dos Comentários.

 

Como bem refere a AT, o parágrafo 35 da Introdução à CMOCDE refere o seguinte: «35. É evidente que as modificações efetuadas aos artigos do Modelo e as consequentes alterações introduzidas nos Comentários não deverão ser tidas em linha de conta na interpretação ou na aplicação de Convenções anteriormente celebradas, sempre que as disposições dessas Convenções difiram, na sua substância, dos artigos modificados. (…)»

(cfr. Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, cit.).

 

E, acrescente-se, tal já decorria do parágrafo 3 da Introdução à CMOCDE que, referindo-se expressamente ao principal objectivo do Modelo de Convenção de aplicação por todos os países de soluções comuns a casos idênticos de dupla tributação, refere o seguinte: «3. (…)  De acordo com a recomendação do Conselho da OCDE, os países Membros, quando celebram novas convenções bilaterais ou revêm as convenções bilaterais existentes, deveriam conformar-se com este Modelo (…).

(sublinhado nosso)

(cfr. Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, cit.).

 

É manifesto que a CDT entre Portugal e a Alemanha desde o momento em que foi assinada, ratificada e entrou em vigor, não voltou a ser alterada, e mesmo que o tivesse sido ou venha a ser no futuro, estes dois Estados não estavam, nem estão obrigados, a seguir a versão revista do nº 2 do artº 12º da CMOCDE, que suprimiu as remunerações «pelo uso ou a concessão do uso de equipamento industrial, comercial ou científico” da definição do termo “royalties”.

 

Refere, ainda, a Requerente que “nas versões mais recentes da CMOCDE foi retirada uma reserva, feita por Portugal nas versões iniciais da mesma convenção, através da qual se estabelecia que Portugal reservava o direito, enquanto estado da fonte, a tributar os rendimentos decorrentes do aluguer de equipamento industrial, comercial ou científico, bem como do aluguer de contentores, e os rendimentos decorrentes da prestação de serviços de assistência técnica, relacionada com os mesmos bens”.

 

Na sequência do que se tem vindo a dizer, o conceito de “reserva” não significa uma reserva em sentido próprio, pois, como se deixou esclarecido no parágrafo 31 da Introdução aos Comentários da CMOCDE, “na medida em que um Estado membro formulou reservas, os outros Estados membros, ao negociarem convenções bilaterais com o primeiro, conservam a sua liberdade de acção de acordo com o princípio da reciprocidade”.

(cfr. Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, cit.).

 

Neste enquadramento, compreende-se que as “reservas” formuladas pelos Estados membros aos preceitos do CMOCDE só possam produzir efeitos jurídicos se forem efectivamente concretizadas nas Convenções que esses Estados venham a celebrar. E o mesmo sucede quando as “reservas” são retiradas.

 

Se a CMOCDE tem a natureza de uma recomendação daquela organização dirigida aos respectivos Estados-Membros, também as “reservas” ao texto da mesma serão forçosamente não vinculativas, mas tão só indicativas da pretensão do Estado-Membro em utilizá-las aquando da negociação de cada CDT em concreto, e nenhum outro significado pode ter a sua eventual remoção.

 

Ou seja as “reservas”, a sua inexistência ou sua posterior remoção pelo Estado Português no âmbito da CMOCDE não se pode sobrepor às concretas condições bilaterais anteriormente convencionadas que tenham acolhido a redacção contida no Modelo inicial, como é o caso da CDT entre Portugal e a Alemanha.


É, pois, absolutamente irrelevante para a aferição do concreto conteúdo da CDT entre Portugal e a Alemanha, designadamente do seu artigo 12º, a alteração ao articulado da CMOCDE, uma vez que essa “cláusula” não encontra previsão no texto bilateralmente acordado entre estes dois países.

 

A não ser assim, Portugal ou a Alemanha poderiam alterar unilateralmente os termos por si anteriormente acordados, bastando-lhe modificar as “reservas” e as “observações” que efectuaram aos Comentários da Convenção Modelo, sem que o outro Estado contratante fosse auscultado ou desse o seu consentimento a essa alteração.

 

Por isso tem razão a AT quando defende que “a redação introduzida pelo n.º 2 do artigo 12.º da Convenção Modelo OCDE consiste numa alteração à substância do artigo, pois se o termo Royalties incluía a locação de equipamento comercial na redação anterior a 23/07/1992, a partir dessa data deixou de incluir esse elemento do rendimento” e conclui que “não se trata de uma alteração que tenha meramente por objetivo uma clarificação, mas sim de uma alteração que tem por objetivo modificar substancialmente o sentido da norma e, por essa via, obter um resultado diferente do que resultava da redação anterior”.

 

Ao contrário do que sustenta a Requerente, a alteração introduzida ao n.º 3 do artigo 12.º da CMOCDE e correspondentes Comentários não pode ser tida em linha de conta na interpretação e aplicação do artigo 12.º da CDT entre Portugal e a Alemanha, a qual foi celebrada anteriormente a essa modificação.

 

A terminar, refira-se que a pretensão da Requerente só poderia vingar caso o artigo 12.º da CDT entre Portugal e a Alemanha tivesse sido alterado pela Convenção Multilateral para Aplicação de Medidas Relativas às Convenções Fiscais Destinadas a Prevenir a Erosão da Base Tributária e a Transferência de Lucros (“Multilateral Instrument” ou “MLI”).

 

Com efeito, já foram publicados em Diário da República o Decreto do Presidente da República n.º 70/2019 e a Resolução da Assembleia da República n.º 225/2019, ambos de 14 de novembro, que ratifica e aprova, respetivamente, a Convenção Multilateral para Aplicação de Medidas Relativas às Convenções Fiscais Destinadas a Prevenir a Erosão da Base Tributária e a Transferência de Lucros (“Multilateral Instrument” ou “MLI”).

 

O MLI é um instrumento criado para possibilitar uma atuação coordenada entre as várias jurisdições aderentes, no âmbito do plano de ação desenvolvido pela OCDE sobre o BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), pretendendo-se uma maior flexibilidade na atualização das Convenções para evitar a Dupla Tributação (CDT). 

 

Neste documento são identificadas as CDT que Portugal deseja que sejam abrangidas pelo MLI, sendo de destacar a CDT com a Alemanha.

Em 28/02/2020, Portugal depositou junto da OCDE o instrumento de ratificação do MLI, sendo que, relativamente a Portugal, a MLI entrou em vigor em 01/06/2020.

Todavia, no que respeita às “royalties”, uma CDT só ser alterada automaticamente se houver um “match” entre as opções do MLI escolhidas pelas partes. Ou seja, na matéria em discussão, a CDT entre Portugal e a Alemanha apenas será automaticamente modificada pela MLI, quando exista uma coincidência nas opções adoptadas pelos Estados contratantes, o que não sucedeu.

Pelo que Portugal podia tributar os rendimentos derivados de locação de equipamento nos termos dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 12º da CDT entre Portugal e a Alemanha, sendo devidas as retenção na fonte à taxa de 10% do montante dos pagamentos de royalties efetuados à Requerente, dado ter sido activada a referida CDT.

 

Pelo exposto, temos que concluir que os actos impugnados, seja a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa, sejam os atos de retenção na fonte de IRC, referentes ao períodos de 2020 e 2021, no montante global de € 217.404,00, não enfermam dos vícios de violação de lei indicados pela Requerente.

 

2. Reembolso de quantias retidas na fonte

 

A Requerente pede a restituição integral dos valores de imposto que entende não deveriam ter sido retidos, “tudo com as demais consequências legais”.

 

Improcedendo o pedido de anulação das liquidações de retenção na fonte de IRC, improcede o pedido de reembolso das quantias retidas na fonte, que pressupõe essa anulação, bem como quaisquer eventuais juros indemnizatórios, que pressupõem a existência de uma quantia a reembolsar.

 

V. Decisão

 

Em face do exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa e dos atos de retenção na fonte de IRC, referentes aos períodos de 2020 e 2021, no montante global de € 217.404,00;

 

b) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedidos.

 

 

VI. Valor do Processo

 

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 217.404,00 (duzentos e dezassete mil e quatrocentos e quatro euros), atribuído pela Requerente, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 

VII. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), a cargo da Requerente,  dada a total improcedência dos pedidos.

 

 

 

Lisboa, 12 de julho de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

 

Rui Duarte Morais

(Árbitro Presidente)

 

 

 

 

 

Paulo Ferreira Alves

(Árbitro Adjunto) 

 

 

 

 

 

Pedro Miguel Bastos Rosado

(Árbitro Adjunto e Relator)