Consultar versão completa em PDF
SUMÁRIO
Nenhum princípio do direito fiscal implica que as escolhas dos contribuintes se façam pela via mais tributada. O contribuinte pode perfeitamente erigir uma construção jurídica que desemboque numa tributação relativamente moderada. O abuso do direito não condena a habilidade fiscal, mesmo que esta conduza a construções jurídicas pouco ortodoxas.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (árbitro-presidente), Dr. Marcolino Pisão Pedreiro e Dra. Ana Rita do Livramento Chacim, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 12 de setembro de 2023, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., com o número de identificação fiscal ..., e B..., com o número de identificação fiscal ..., ambos residentes na Av. ..., n.º ..., ..., ...-... Linda-a-Velha (doravante designados por “Requerentes”, e individualmente “o Requerente” e “a Requerente”), vieram, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 10.º,
n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por “RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributaria e Aduaneira (doravante designada de “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2022..., respeitante ao ano de 2018, no montante de € 330.881,39, e das demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas conexas, no montante global de € 338.551,69, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve como objeto o referido ato de liquidação, juntamente com a restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 07.07.2023, e em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66B/2012, de 31 de dezembro, foi nessa data notificada a AT.
Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a sua aceitação nos termos legalmente previstos. Em 25.08.2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Desta forma, o Tribunal Coletivo foi regularmente constituído em 12.09.2023, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
Acedendo ao pedido de prorrogação para apresentação da resposta por parte da AT, o Tribunal Arbitral agendou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT para 12.12.2023, por despacho de 18.10.2023. A pedido da AT, a reunião foi adiada para 29.01.2024.
A AT apresentou resposta em 10.11.2023 e juntou o processo administrativo em 28.11.2023.
Por requerimento de 11.01.2024, a AT veio expor ao Tribunal Arbitral que o presente PPA é em quase tudo semelhante (e conexiona-se) com os processos n.ºs 497/2023-T, 499/2023-T, 500/2023-T e 501/2023-T, que correram termos no CAAD, requerendo, em consequência, o aproveitamento, nos presentes autos, da gravação da prova testemunhal por si produzida no âmbito do processo n.º 497/2023-T. O Tribunal Arbitral indeferiu o requerimento para aproveitamento de prova testemunhal, mediante despacho de 25.01.2024, indicando que a testemunha em causa deveria apresentar-se nas instalações do CAAD em 29.01.2024.
Em 29.01.2024 teve lugar a reunião do artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquiridas duas testemunhas arroladas pelos Requerentes: C..., gerente da sociedade D..., S.A. (doravante “D...”), e E..., antigo gerente da mesma sociedade. Na mesma data, o Tribunal Arbitral determinou a notificação da Sra. F... e do Sr. G..., colaboradores da AT, para nova reunião no dia 26.02.2024. O Tribunal arbitral determinou também a prorrogação do prazo do artigo 21.º do RJAT.
Em 09.02.2024, os Requerentes juntam aos autos cópia da decisão arbitral proferida no processo arbitral n.º 499/2023-T.
Em 26.02.2024 teve lugar a segunda reunião para inquirição de testemunhas, tendo o Tribunal Arbitral ouvido a Sra. F... e o Sr. G..., colaboradores da AT, e notificado as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas.
Os Requerentes apresentaram alegações em 29.02.2024 e a Requerida em 12.03.2024. Por despacho de 07.05.2024, o Tribunal determinou a prorrogação do prazo para prolação de decisão arbitral por dois meses.
II. POSIÇÃO DAS PARTES
AT: RELATÓRIO DE INSPEÇÃO TRIBUTÁRIA (RIT)
A sociedade H..., Lda. (“H...”) foi interposta no negócio jurídico de venda das quotas da sociedade D... de forma a assegurar que a distribuição de lucros acumulados aos sócios desta não seriam tributados em sede de IRS em virtude da aplicação (1) do mecanismo da “participation exemption” previsto no artigo 51.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), em conjugação com o disposto no artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código, que permitiria à H... aceder, diretamente, aos lucros e reservas da D... sem sofrer qualquer retenção na fonte, e usar os mesmos para pagar o preço das quotas da D... adquiridas anteriormente, e (2) da isenção de mais-valias resultantes da alienação de quotas adquiridas antes de 1989, que permitiria aos Requerentes aceder, indiretamente, aos lucros e reservas da D... sem sofrer qualquer tributação em sede de IRS.
Assim, “a venda das quotas à H... por parte dos sócios da D... (detentores de três das quotas) teve como consequência que as importâncias monetárias com origem na D... tenham sido recebidas por aqueles sujeitos a título de quitação do preço contratual das referidas quotas, ao invés de o serem enquanto lucros e reservas distribuídos, a que os mesmos teriam direito caso tivessem continuado a ser sócios da D... (...)
A não intervenção da H... implicaria que os valores de lucros transitados e reservas (capitais próprios) distribuídos pela D... seriam recebidos por todos os anteriores sócios, diretamente, enquanto tal. O recebimento de lucros e reservas por cada um dos anteriores sócios é o facto com fim económico - o recebimento de valores monetários com origem na D...– idêntico ao que resultou dos actos e negócios jurídicos artificiosos (venda das quotas da H..., com recebimento do preço não antes de treze meses após a data do contrato de cessão) realizados unicamente com o objectivo de evitar a tributação em sede de IRS.”
Os negócios jurídicos em torno da venda das quotas da D... foram essencial ou principalmente concebidos, por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, com o objetivo de promover a redução ou eliminação de impostos que seriam devidos caso não tivessem sido utilizados esses meios, considerando-se por isso reunidos os pressupostos legais que constituem fundamento para proceder à aplicação da cláusula geral anti-abuso (“CGAA”) prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT.
Em consequência, ao “ser desconsiderada a cessão da quota de A... na D..., temos em 2018 este contribuinte, não como credor da H... pelo preço acordado da cessão da quota efetuada em 2016, mas antes como detentor da referida quota, com direito a receber a parte que proporcionalmente lhe caberia no valor de lucros e reservas com distribuição foi deliberada pela sociedade (...). Deste modo, os fluxos monetários com origem na D... e recebidos por A..., seriam considerados rendimentos do SP A, enquadrados nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS – rendimentos de capitais (categoria E de IRS)”.
REQUERENTES: PPA E ALEGAÇÕES
A fundamentar o PPA, os Requerentes alegaram, com vista à declaração de ilegalidade e anulação dos atos de liquidação acima identificados, o seguinte:
-
A liquidação impugnada resulta da aplicação da CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, com referência a rendimentos que a AT qualificou como rendimentos da categoria E (artigo 5. °, n.º 1 e n.º 2, alínea h), do Código do IRS) alegadamente auferidos pelos Requerentes por ocasião da venda de uma quota na sociedade D... em 02.11.2016.
-
A opção de criação da sociedade H..., com a qual foi realizado um contrato de cessão de quotas entre os sócios da D..., prevendo um pagamento diferido, atendendo à insuficiente liquidez da H..., teve como objetivo que C... adquirisse o controlo da D..., primeiro através da aquisição das quotas de E..., A... e aos herdeiros de I... (entretanto falecido), esperando-se que, numa segunda fase, o sócio E..., que permaneceria como sócio minoritário da H..., vendesse também a sua quota a C..., assim completando-se a passagem do testemunho à nova geração.
-
Sendo suscitada pela AT a aplicação da CGAA (contida no artigo 38.º, n.º 2, da LGT), entendem os Requerentes que todos os atos descritos não correspondem nem são uma forma artificial de obter uma distribuição de dividendos isenta de retenção na fonte, mas atos adotados com o fim de salvar a D... e possibilitar a sua venda ao invés da sua liquidação, cenário que graças aos esforços dos intervenientes se logrou evitar. Desta forma, é «absurdo e não menos que caricato que no ponto IV.1 se venha agora em tom conspiratório afirmar que o Requerente tenha praticado qualquer ato com o ''propósito último [de] atuar contra os fins essenciais do ordenamento jurídico-tributário"».
-
Conclui assim que, além da relação jurídica cessionário/cedente, análoga à de comprador/vendedor, estabelecida com a celebração do contrato através do qual vendeu a quota que durante 28 anos deteve na D..., os Requerentes não têm, nem nunca tiveram qualquer relação com a sociedade H... .
-
Considerando todo o contexto em torno da cessão de quotas celebrada pelos Requerentes em 02.11.2016, é evidente que não houve qualquer motivação essencial, nem principalmente nem mesmo marginal, ou até incidentalmente, dirigida à obtenção de qualquer vantagem fiscal. Ao ceder a sua quota, os Requerentes deixaram de ser seus titulares (com isso perdendo quaisquer benefícios futuros que aquela quota lhes pudesse vir a outorgar), e declarou a mais-valia não tributada que realizaram.
-
Em síntese, conclui-se que: sendo o comportamento abusivo que se pretende imputar ao Requerente - a venda da sua quota feita em 02.11.2016 - e o comportamento alternativo a que este deveria ter lançado mão para não obter a "redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico", outro qualquer, então, cabe perguntar (porque o relatório de inspeção também não esclarece): qual seria afinal o comportamento normal, de efeito equivalente ou "idêntico fim económico", não artificioso nem abusivo que o Requerente devia ter celebrado - em alternativa à cessão de quotas que o Requerente quis realizar e celebrou em 02-11-2016? Que negócio normal, de efeito equivalente ou "idêntico fim económico" ao pretendido pelo Requerente (alienar a título definitivo a quota que detinha na D...), seria afinal considerado adequado ou desejável! luz do programa de planificação social e económica pretendido pelos serviços da inspeção tributária?
-
Socorrendo-se da análise efetuada no contexto de decisões efetuadas pelo CAAD, os Requerentes afastam a aplicação ao caso concreto do esquema de distribuição disfarçada de lucros, que tem vindo a levar a AT a sustentar a aplicação da CGAA. Neste sentido, refere que todas as situações respeitantes às decisões do CAAD em que se manteve a aplicação da CGAA a situações de distribuição disfarçada de lucros verificam-se as duas seguintes condições:
-
os vendedores de participações sociais são igualmente sócios nas mesmas proporções da sociedade recém-constituída que lhes adquire as participações;
-
não existe qualquer contexto que permita concluir, no plano da racionalidade económica do conjunto articulado de operações em análise, por outro propósito que não o de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais.
-
In casu, não houve qualquer "transmutação" de "distribuição de lucros e reservas" em ''pagamento do preço de quotas" porquanto a operação que os Requerentes realizaram foi, apenas e só, uma alienação de uma parte do seu património.
-
Fica afastada a exigibilidade de juros compensatórios liquidados, por violação do disposto no artigo 35.º, n.º 1, da LGT, considerando que ficou demonstrado que a sua atuação foi irrepreensível, nada havendo de culposo na conduta dos Requerentes, existindo, quando muito, uma compreensível divergência de entendimento entre os Requerentes e a AT, situação que não poderá dar origem à liquidação e cobrança de juros compensatórios.
Os Requerentes apresentaram alegações escritas no prazo concedido para o efeito, reafirmando os principais aspetos da matéria de facto e de direito expostos no PPA e na fase de prova testemunhal, ao que juntam jurisprudência e doutrina relevante sobre o entendimento exposto. Salientam ainda que a análise da inspeção tributária é insuficientemente fundada, revelando um total e completo “autismo” quanto aos contextos interpessoais, empresariais, societários e económicos, e as motivações dos sujeitos envolvidos, sem os quais a aplicação da CGAA não se pode compadecer, por colocar em causa o princípio da juridicidade fiscal, com o corolário de tipificação legal prévia e o próprio Estado de Direito, por estarem em causa direitos fundamentais, destas pessoas e das demais. Refere ainda que, ao longo de todo o admirável e exploratório itinerário cognoscitivo empreendido pelos autores do dito relatório, não são identificados os “atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico”.
REQUERIDA: RESPOSTA E ALEGAÇÕES
A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta, na qual, em substância, alegou o seguinte:
-
Os valores recebidos pela H... foram, em cada um dos meses, utilizados para amortizar as dívidas da sociedade aos cedentes das quotas da D... adquiridas em novembro de 2016, como se constata a partir do extrato de bancos e confirma pelas declarações de quitação emitidas pelos credores. O pagamento pela H... aos seus credores, alienantes das quotas da D..., veio a acontecer em 2018 após o encaixe financeiro obtido da distribuição de lucros e reservas pela participada.
-
Em contraposição com a evolução positiva que caraterizou a situação financeira da D..., a situação financeira da H... afigurava-se bastante distinta, verificando-se que nos exercícios económicos de 2016 a 2021 a sociedade não desenvolveu qualquer atividade económica. A participação financeira na D... constituiu praticamente o único ativo da sociedade H... .
-
Da análise efetuada ao caso concreto, e considerando o disposto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, bem como os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais já produzidos sobre a matéria, conclui-se que esta norma se aplica à sucessão de atos e negócios jurídicos relacionados com a H... . Em suma, a venda das quotas à H... por parte dos sócios da D... (detentores de três das quotas) teve como consequência que as importâncias monetárias com origem na D... tenham sido recebidas por aqueles sujeitos a título de quitação do preço contratual das referidas quotas, ao invés de o serem enquanto lucros e reservas distribuídos, a que os mesmos teriam direito caso tivessem continuado a ser sócios da D... .
-
A não intervenção da H... implicaria que os valores de lucros transitados e reservas (capitais próprios) distribuídos pela D... seriam recebidos por todos os anteriores sócios, diretamente, enquanto tal. O recebimento de lucros e reservas por cada um dos anteriores sócios é o facto com fim económico - o recebimento de valores monetários com origem na D... - idêntico ao que resultou dos atos e negócios jurídicos artificiosos (venda das quotas à H..., com recebimento do preço não antes de treze meses após a data do contrato de cessão) realizados unicamente com o objetivo de eliminar a tributação em sede de IRS.
-
De facto, ao terem as quotas sido cedidas a uma sociedade – a H... – com a concordância expressa das partes cedentes, declarada no contrato de cessão de quotas, de que o pagamento seria feito após decorridos treze meses a contar da celebração do contrato e até ao termo do vigésimo primeiro mês após a celebração do mesmo (que teve lugar em 02-11-2016), aquando da distribuição de lucros e reservas, em 2018, pela D..., este novo sócio (a H...) beneficiou da eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos, ao abrigo do regime da participation exemption, previsto no art.º 51.º do CIRC, já que foi cumprida a condição prevista na al. b) do n.º 1 daquele preceito legal: “a participação (…) tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição.”
-
A constituição da H..., sem qualquer atividade nem racionalidade económica, não teve outra motivação para além da aquisição das quotas da D..., operação concretizada apesar de a sociedade não possuir recursos financeiros para pagar aquelas participações sociais. Estes são os negócios jurídicos dirigidos, essencialmente, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos mesmos, ao permitirem a obtenção de meios financeiros originados na D... e a sua canalização para os anteriores sócios desta sociedade, sem sujeição a tributação, pela transmutação de um fluxo financeiro de distribuição de lucros e reservas num fluxo financeiro de pagamento de dívida.
-
A aplicação do regime legal da CGAA implica que, face a todo o descrito, se opere para e com efeitos tributários, a ineficácia da cessão da quota da D... realizada pelos Requerentes a favor da H... . Tal significa, para efeitos de tributação em sede de IRS, a desconsideração das verbas contratualmente recebidas por A... a título de pagamento do preço da quota da D..., e a sua qualificação enquanto lucros e reservas e distribuídos, que àquele assistiria, enquanto direito inerente à sua qualidade de sócio da D... . Expurgado o “efeito H...”, sociedade criada para e efetivamente utilizada como veículo com o objetivo de furtar à tributação os fluxos monetários com origem na D..., deverá, de acordo com o artigo 38.º da LGT, efetuar-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
-
A requalificação, para efeitos fiscais, dos valores recebidos pelos Requerentes, por aplicação da CGAA, implica a consideração daquelas verbas como rendimentos de capitais, nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, tributáveis por via da aplicação do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 72.º do Código do IRS, à taxa especial de 28%.
A Requerida apresentou alegações escritas no prazo concedido para o efeito, reafirmando o teor e sentido de tudo quanto consta da Resposta, designadamente no que se refere à matéria de facto, reiterando, os principais aspetos de direito. Salienta ainda que não pode acompanhar o sentido decisório da decisão arbitral resultante do processo n.º 499/2023-T, junta aos autos pelo Requerente. Mais refere que as decisões dos tribunais arbitrais somente têm eficácia no caso concreto, apenas valendo como meio mediato ou derivado do conhecimento do direito, não constituindo fonte imediata de direito.
III. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído, é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1, e artigo 5.º, nºs. 1 e 3, ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
Não foi suscitada matéria de exceção. O processo não enferma de nulidades.
IV. QUESTÕES A DECIDIR
A análise das questões a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral referentes à anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e da liquidação de IRS contenciosamente impugnadas, respeitante ao ano de 2018, assenta primacial e fundamentalmente nos termos e requisitos de aplicação do regime da CGAA, constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, sob a epígrafe “Ineficácia de atos e negócios jurídicos”.
Sobre os fundamentos em que assenta o pedido dos Requerentes, oportunamente expostos, entende a Requerida que estamos perante negócios jurídicos dirigidos, essencialmente, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos mesmos, ao permitirem a obtenção de meios financeiros originados na D... e a sua canalização para os anteriores sócios desta sociedade, sem sujeição a tributação, pela transmutação de um fluxo financeiro de distribuição de lucros e reservas num fluxo financeiro de pagamento de dívida. São estes, por conseguinte, os negócios que, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, a Requerida propõe que sejam considerados ineficazes no âmbito tributário, de modo que seja efetuada a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência, anulando as (alegadas) vantagens fiscais obtidas.
A invocação do regime legal da CGAA implica que, face a todo o descrito, se opere para efeitos tributários a ineficácia da cessão da quota da D... realizada pelos Requerentes a favor da H... . Tal significa, para efeitos de tributação em IRS, a desconsideração das verbas contratualmente recebidas pelos Requerentes a título de pagamento do preço da quota da D..., e a sua qualificação enquanto lucros e reservas e distribuídos, tributáveis como rendimentos de capitais, nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, tributáveis por via da aplicação do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 72.º do Código do IRS, à taxa especial de 28%.
Desta forma, as questões a responder assentam na análise de facto e de direito sobre os seguintes pressupostos:
-
Existência de motivações de natureza fiscal e não-fiscal subjacentes à criação H... e ao modelo de alienação da participação social (quota) pelos Requerentes?
-
Se houve recurso a formas ou meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas?
-
Existência de negócio alternativo com efeito equivalente ou adequado a atingir o mesmo fim (resultado)?
V. MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal Arbitral, cumpre enunciar os factos relevantes que se julgam provados:
-
A sociedade por quotas D..., constituída em 12.04.1988, com o capital social de € 24.939,90, teve o Requerente como um dos sócios fundadores (quota representativa de 20% do capital social), juntamente com E... (quota representativa de 30% do capital social), J... (quota representativa de 30% do capital social), e I... (quota representativa de 20% do capital social) (cf. cópia da certidão permanente da sociedade em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
O óbito do sócio I... em 27.01.2012 determinou a transmissão da sua quota aos respetivos herdeiros (cf. cópia da certidão permanente da sociedade em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Nos anos de 2012 e 2013, a sociedade D... registou prejuízos decorrentes de perdas relacionadas com o colapso financeiro do então Banco Espírito Santo (BES) e com a redução nos fornecimentos relevantes na sua operação, tendo os sócios acordado quanto à necessidade de uma reestruturação da sociedade e que o controlo da gestão fosse assumido pelo Eng. C... (cf. depoimento das testemunhas E... e C...).
-
Por referência ao período em questão, emergiram incompatibilidades e problemas no relacionamento o sócio J... e os restantes sócios (incluindo o Requerente), o que dificultou processos de decisão, gestão e relacionamento com clientes
(cf. depoimento das testemunhas E... e C...).
-
A sociedade H... foi constituída em maio de 2016, com o capital social de € 2.500,00, tendo como sócios E... e C... (cf. cópia da certidão permanente em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em 02.11.2016, os Requerentes (quota representativa de 20% do capital social), E... (quota representativa de 30% do capital social) e os herdeiros de I... (quota representativa de 20% do capital social) cederam as respetivas quotas na sociedade D... à sociedade H... (cf. cópia do contrato de cessão de quotas e respetivo aditamento em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Com esta cessão de quotas, a participação financeira da H... na D... passou a corresponder a 70% do capital social desta última, constituindo a sua atividade principal:
(cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Nos termos do contrato de cessão de quotas, os Requerentes alienaram a sua quota, com o valor nominal de € 4.987.98, por € 1.000.000,00, tendo sido acordada a dilação do pagamento do preço pelo prazo mínimo de 13 meses e até ao termo do 21.º mês após 02.11.2016 (cf. cópia do contrato de cessão de quotas em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Ainda em 02.11.2016, foi celebrado um aditamento ao contrato de cessão de quotas em apreço mediante o qual as partes acordaram que o preço das quotas fixado no contrato, a pagar a cada cedente, seria acrescido de um determinado montante, caso se realizassem (até ao 24.º mês a contar da data da assinatura do aditamento) três operações pela sociedade D... representativas de um encaixe financeiro no montante de € 1.095.000,00:
(cf. cópia do aditamento ao contrato de cessão de quotas em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em 30.11.2016, o Eng. C... foi nomeado gerente (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
A rentabilidade financeira da D... evoluiu da seguinte forma:
(cf. quadro constante do RIT e correspondentes registos contabilísticos de suporte identificados como anexo n.º 12 do RIT – facto não controvertido).
-
Em 18.01.2018, os sócios da sociedade D... deliberam em assembleia geral a distribuição de lucros (resultados transitados) pelos sócios, no montante de € 4.200.000,00 (transferências realizadas em fevereiro) - cf. cópia da ata n.º 63 em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Posteriormente, foi realizada nova deliberação de distribuição de capitais próprios (reservas no montante de € 1.100.000,00, transferidas em junho) (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
A sociedade H... recebeu os lucros distribuídos pela D... sem retenção na fonte, nos termos do regime da “participation exemption” previsto no artigo 51.º do Código do IRC (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em fevereiro e junho de 2018, a sociedade H... pagou aos Requerentes o montante de € 1.219.000,00 pela cessão de quotas na sociedade D...:
(cf. cópia dos respetivos cheques e declarações de quitação identificados em anexo ao RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em 2018, os Requerentes (casados) optaram pela tributação conjunta dos rendimentos para efeitos de IRS, tendo declarado, no Anexo G1 da Modelo 3 do IRS, a mais-valia decorrente da alienação da quota na D..., no montante de € 1.214.012,02 (correspondendo à diferença entre € 1.219.000,00 e € 4.987,98), como não tributada porquanto a dita quota teria sido adquirida antes de 01.01.1989, ao abrigo do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em 21.10.2021, as quotas da H... foram transmitidas para a sociedade K..., S.A., sem residência em território português, gerida por dois indivíduos não residentes em Portugal (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em 2022, a sociedade H... adquiriu a quota da D... ao sócio J..., passando a deter 100% do capital desta sociedade (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Ainda em 2022, a sociedade H... foi fundida com a sociedade D... (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Na sequência da ordem de serviço O12022..., os Requerentes foram sujeitos a um procedimento de inspeção tributária interna de âmbito parcial, em sede de IRS, com referência ao período de tributação de 2018 (cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Em 12.10.2022, os Requerentes foram notificados do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, a fim de serem desenvolvidas as necessárias diligências tendentes ao sancionamento pela Senhora Diretora-Geral da AT da aplicação da CGAA prevista no artigo 38.º da LGT, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, tendo os Requerentes exercido o direito de audição (cf. documento constante do processo administrativo e RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Os Requerentes foram notificados do RIT, no qual se pode ler com referência à aplicação da CGAA:
(...)
(cf. RIT, junto ao PPA como Documento 2 e constante do processo administrativo – facto não controvertido).
-
Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS com o n.º 2022..., no montante de € 330.881,39, e das demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas conexas, emitidas na sequência do RIT referente ao IRS do ano de 2018, por determinação da ordem de serviço n.º 012022... (cf. Documento 1 junto ao PPA – facto não controvertido).
-
Em 24.01.2023, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação em apreço (cf. Documento 4 junto ao PPA – facto não controvertido), tendo-se formando a presunção do seu indeferimento em 24.05.2023, nos termos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da LGT.
-
Em 26.01.2023 os Requerentes pagaram o montante de € 338.551,69 (cf. Documento 1 junto ao PPA – facto não controvertido).
-
O PPA que deu origem aos presentes autos foi apresentado em 06.07.2023 (facto não controvertido).
FACTOS NÃO PROVADOS
Não há factos não provados que relevem para a decisão da causa.
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
No que se refere aos factos provados, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, no depoimento das testemunhas, cujas declarações foram realizadas de forma clara, objetiva e coerente, revelando conhecimento direto dos factos, não tendo emergido dos seus depoimentos qualquer elemento suscetível de colocar em causa a veracidade dos mesmos.
Para a formação da convicção do Tribunal Arbitral, foi fundamental, designadamente, compreender a dinâmica subjacente ao negócio da D..., incluindo elementos de natureza interna (gestão interna e relação entre os sócios) e externa (relações com clientes / parceiros comerciais), permitindo uma correta perceção dos objetivos subjacentes às operações analisadas. Da análise efetuada e da descrição clara efetuada pelas referidas testemunhas resultou a prevalência de objetivos económicos tendo em vista a recuperação do posicionamento da D... no mercado em que operava, e como tal, a respetiva viabilidade e valorização da sociedade. Foi igualmente identificada a relevância do Eng. C... na gestão do negócio da D..., sendo reconhecido pela sua larga experiência profissional (27 anos) e conhecimentos técnicos, adquirida enquanto diretor técnico da D... .
VI. MATÉRIA DE DIREITO
A Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA)
A CGAA acolhida no artigo 38.º da LGT configura um dispositivo legal cuja criação radica, a par de outras cláusulas especiais anti-abuso, no objetivo de eliminação ou atenuação de situações de evasão fiscal. Refira-se que a matéria em discussão já foi objeto de pronúncia por diferentes Tribunais Arbitrais, sem prejuízo do qual reportamo-nos ao quadro legal relevante.
A consagração de uma cláusula anti abuso operou-se através da introdução do artigo 32.º-A ao então CPT, pela Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro (artigo 51.º, n.º 7), tendo passado, por força da Lei n.º 100/99, de 26 de julho, a constituir o artigo 38.º, n.º 2 da LGT. A “importação” da cláusula geral anti abuso para a LGT seria meramente formal, tendo sido reproduzido o respetivo conteúdo.[1] A necessidade de adequação às complexas realidades a que se dirige, a fim de cumprir os objetivos a que se propôs, justificam as alterações posteriormente introduzidas na norma legal, em particular, a resultante da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, que transpôs para o ordenamento jurídico-tributário a Diretiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 16 de julho (Reforça o combate às práticas de elisão fiscal), conhecida como Diretiva ATAD.[2]
Sendo certo que o artigo 38.º, n.º 1, da LGT começa por consagrar o princípio de que a ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, quando esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes, assinala-se o disposto no respetivo n.º 2. Na sua versão à data dos factos em análise (2018), dispunha o artigo 38.º,
n.º 2, da LGT que, «São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».[3] [4]
Desta forma, e como bem se refere na Decisão do CAAD proferida no Processo
n.º 324/2017-T, «A criação da CGAA concentra, em si mesma, um conjunto de critérios ou princípios de decisão de origem essencialmente jurisprudencial invocados para justificar a desconsideração de atos jurídicos, em nome do combate à erosão das bases tributárias, do combate à elisão fiscal e do princípio da igualdade tributária, sob a forma de princípio da capacidade contributiva. É o caso do critério da prevalência da substância sobre a forma.»
A existência de um procedimento especial no tocante à aplicação da CGAA previsto no artigo 63.º do CPPT (“Aplicação de disposição antiabuso”), que aqui se entende ter sido cumprido, é considerada como critério de admissibilidade e adequação da própria norma e como uma forma de garantir a segurança jurídica dos contribuintes.[5] Neste contexto, como refere Saldanha Sanches, o procedimento previsto no referido normativo é aplicável no caso da CGAA “…como forma de garantir a segurança jurídica em caso de dúvidas sobre a possibilidade de reacção administrativa a contratos que correspondam a uma intenção empresarial legítima o legislador fiscal criou um procedimento especial de aplicação da cláusula geral anti abuso e um regime de deferimento tácito no caso de silêncio administrativo.”[6]
Note-se que recai sobre a AT o ónus da prova dos pressupostos de aplicação da CGAA, demonstrando e caracterizando os factos. Implica assim que a AT seja capaz de demonstrar que uma certa operação foi realizada essencial ou principalmente por razões de redução da carga fiscal, nada mais podendo justificá-la e constituindo um desvio em relação às operações que seriam feitas na ausência desse especial estímulo fiscal. Assim, em conformidade com o previsto no artigo 63.º, n.º 9, do CPPT, a fundamentação da AT deverá conter necessariamente:
a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;
b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais[7] [8].
Em suma, para estarmos perante um comportamento relevante para efeitos da aplicação desta cláusula, relevam os seguintes requisitos substantivos (neste sentido, Processo n.º 324/2017-T), considerando a sistematização desenvolvida por Gustavo Lopes Courinha:
-
Obtenção de uma vantagem fiscal paralelamente à obtenção de um negócio económico equivalente (elemento resultado);
-
Estruturação de negócio(s) em termos que se possa(m) reputar de abuso de formas (elemento meio);
-
Motivação do contribuinte (elemento intelectual);
-
Reprovação normativo-sistemática do resultado obtido pelo contribuinte (elemento normativo)[9].
Vejamos o que se vem entendendo a este propósito:
Elemento resultado
O elemento resultado assenta na demonstração de uma vantagem fiscal derivada da estrutura montada. Ou seja, «a obtenção de uma vantagem fiscal efetiva que se traduz na redução, eliminação ou diferimento temporal do imposto. Essa vantagem, decorrente dos esquemas ou montagens utilizados, conduz à obtenção de uma carga tributária mais favorável do que aquela que o contribuinte obteria se não tivesse recorrido àqueles meios»[10]. Por outras palavras, a demonstração da equivalência económica das duas situações: (i) a efetivamente implementada pelo contribuinte (e contestada pela CGAA) e (ii) a que deveria ser reconstruída pelos Serviços Inspetivos, em aplicação da CGAA.
Elemento meio
O requisito do abuso de formas jurídicas, a que se reconduz a previsão de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”, constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT[11], traduz-se no recurso a formas ou negócios jurídicos não habituais, atípicos ou artificiais (esquemas ou montagens), tendo em vista a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal. Estes atos assumem, em regra, um caráter unitário e antecipadamente planificado, exigindo a sua análise o recurso à doutrina da “step transaction”, que considera a sequência (em particular, temporal) dos atos ou negócios coordenados entre si e vistos na sua globalidade e não de forma independente.
Desta forma, entende-se que a configuração jurídica (estrutura) adotada seja “inoportuna, complicada, pesada, absurda ou supérflua, não correspondendo sob qualquer ponto de vista, para além do objectivo da vantagem fiscal, a um esquema razoável ou comum de atingir os fins a que se propõe à partida” e se demonstre uma “efectiva discrepância entre a causa típica do negócio, e os fins práticos visados pelas partes quando os celebraram. E isto porque a dita causa típica não é incompatível com a finalidade económica prática que as partes perseguem, pese embora seja distinta e instrumentalmente “pouco ortodoxa” para a alcançar. O negócio é intencionalmente desfuncionalizado, sendo desejado pelas partes não para realização da sua função, mas para obtenção de um outro resultado prático ou económico, o qual pode não ser admitido pelo Sistema Fiscal. Só neste último caso, os referidos negócios anómalos serão censuráveis em função do requisito da inusualidade.”[12]
Elemento intelectual
O elemento intelectual reconduz-se à motivação (intenção) do contribuinte, entendendo-se que as operações promovidas pelo contribuinte necessitam de ser animadas por um prevalecente propósito fiscal. A motivação deve socorrer-se das manifestações objetivas da intenção do contribuinte, com base num juízo de razoabilidade e normalidade. Ou seja, mesmo que exista também alguma finalidade económica no conjunto dos atos e contratos realizados, esta seria de natureza meramente acessória e não de natureza principal, não podendo ser considerada razão comercial legítima para efeitos tributários.
Elemento normativo
O elemento normativo assenta na reprovação do resultado pelo próprio sistema fiscal. Sintetiza o STA no acórdão de 7.06.2023, prolatado no proc. 03285/11.3BEPRT que: «o elemento normativo, (…) tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal;». Desta forma, e acompanhando a decisão proferida no Processo n.º 324/2017-T do CAAD, este elemento «visa detetar se existe ou não um juízo de censura ético-jurídico da parte do legislador relativamente aos comportamentos dos sujeitos passivos, se o espírito e a razão de ser da ordem jurídica tributária (nomeadamente a aplicação do princípio da capacidade contributiva) ou concorrencial (em especial, a defesa do princípio da neutralidade fiscal) era o de impedir a obtenção de vantagens fiscais por meio de esquemas ou montagens que contornem a lei (abuso de formas jurídicas, fraude à lei) ou se tais vantagens são um resultado assumido pelo próprio legislador fiscal. A existência deste elemento não se verifica, pois, se este criou deliberadamente uma lacuna (lacuna consciente de tributação) ou promoveu uma opção fiscal de que o contribuinte se legitimamente se limitou a aproveitar».[13]
É condição para aplicação da CGAA a demonstração pela AT de que o resultado obtido pelo contribuinte contradiz as próprias premissas com que foi estabelecido uma determinada norma ou regime fiscal alegadamente defraudado.
A natureza artificiosa de um negócio jurídico traduz-se no abuso das formas jurídicas escolhidas com base numa intenção fiscal e demonstra a sua intenção fraudulenta pelo recurso às formas abusivas que lhe dão carácter artificioso[14]. Isto é, importará distinguir entre negócios que têm subjacentes objetivos económicos autónomos e negócios celebrados, apenas ou essencialmente (atualmente com um dos motivos principais), por razões de otimização fiscal.
Temos assim uma cláusula geral anti abuso que visa combater o fenómeno do planeamento abusivo, mas que é devidamente acompanhada de um conjunto de condições substantivas e procedimentais para a sua aplicação, todas elas necessitando, saliente-se, de ser cabalmente testadas e verificadas[15].
Como nota Saldanha Sanches, “… a segurança jurídica, na perspectiva específica da incorporação no ordenamento tributário de uma cláusula geral anti abuso que permite a anulação para efeitos fiscais dos efeitos dos negócios jurídicos praticados em frau legis, conduz-nos ao problema da segurança jurídica do planeamento fiscal no sentido de uma actividade destinada a reduzir o imposto a pagar sem que haja evitação abusiva.”[16]
Elemento sancionatório
Na decorrência do acima exposto, resta “o elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT). (nosso sublinhado) [cfr. Acórdão do STA de 07.06.2023, prolatado no proc. 03285/11.3BEPRT].
Da análise de decisão sobre a aplicação da CGAA ao caso concreto
A análise de decisão sobre a aplicação da CGAA ao caso concreto, implica, pelo que anteriormente se explica, a apreciação dos referidos elementos, a qual, sendo realizada de modo individualizado, implica igualmente uma observação conjunta e de modo dinâmico (visão holística).
Nestes termos, releva salientar que, o vetor decisivo na verificação da legitimidade da aplicação da CGAA "é sempre a apreciação casuística, em função dos valores e objetivos do ordenamento jurídico-tributário, das circunstâncias que estão presentes na situação fiscalmente relevante em julgamento"[17]. Desta forma, e considerado o exposto sobre o regime jurídico em questão, cabe aplicar a CGAA aos factos em questão, sendo certo que tal exercício implicará sempre juízos de racionalidade e razoabilidade, afastando (ou não) a natureza abusiva do planeamento fiscal em causa.
Elemento meio
Começando a competente análise pelo elemento meio, a que se reconduz a previsão de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”, defende a AT que a constituição da H..., sem qualquer atividade nem racionalidade económica, não teve outra motivação para além da aquisição das quotas da D... . Salienta a AT que a operação foi concretizada apesar de a sociedade não possuir recursos financeiros para adquirir as participações sociais (quotas) em questão. Assim sendo, entende que a venda das quotas à H... por parte de sócios da D..., aqui se incluindo os Requerentes, (mediante contrato de cessão de quotas com diferimento de pagamento), teve como consequência que, as importâncias monetárias com origem na D... tenham sido recebidas por aqueles sujeitos a título de quitação do preço contratual das referidas quotas, ao invés de o serem enquanto lucros e reservas distribuídos, a que os mesmos teriam direito caso tivessem continuado a ser sócios da D... .
Socorrendo-se da análise efetuada no contexto de decisões proferidas por diferentes Tribunais Arbitrais, e do probatório realizado, os Requerentes afastam a aplicação ao caso concreto do esquema de distribuição disfarçada de lucros, que tem vindo a levar a AT a sustentar a aplicação da CGAA. Sintetiza que o referido esquema consiste essencialmente num conjunto de operações realizadas no seio de um mesmo grupo económico, em que:
a) os sócios de sociedade comercial em boa situação económica e com capacidade para distribuir resultados (Soc. A) procedem à constituição de uma nova sociedade comercial (Soe. B), da qual são igualmente sócios;
b) num segundo momento os sócios daquela sociedade (Soc. A) transmitem as participações sociais que nela detêm para a sociedade recém-constituída (Soc. B), ficando esta a dever-lhes o preço correspondente;
c) a sociedade recém-constituída (Soc. B) faz aprovar a distribuição de lucros da sociedade primeiramente mencionada (Soc. A), beneficiando do regime de eliminação de dupla tributação económica dos lucros distribuídos e paga o preço devido aos seus sócios e vendedores das participações sociais desta.
Considerados os elementos probatórios apresentados, incluindo registos contabilísticos e prova testemunhal efetuada (testemunhas C... e E...), mostra-se prevalecente a existência de especiais motivações económicas que conduziram à decisão de introdução de alterações societárias, tendo como objetivo a estabilização do controlo do negócio da D..., para garantia da recuperação do desempenho económico da mesma, e consequente valorização das quotas dos sócios.
A evidência da degradação financeira da D..., firmada através dos registos contabilísticos apresentados no RIT, aqui relevando salientar o impacto do registo de prejuízos decorrentes de perdas (em particular nos anos de 2012 e 2013) relacionadas com o colapso financeiro do então Banco Espírito Santo (BES), bem como a perda de faturação pelo termino de fornecimentos relevantes na operação da D..., (cf. depoimento de testemunhas E... e D...), e a existência de manifestas divergências de gestão internas, decorrentes em particular da relação com o sócio J..., com impacto no desempenho da D..., corroboram a necessidade e decisão de intervenção pelos restantes sócios da D... (incluindo o aqui Requerente), na implementação de alterações ao nível da gestão da D... .
Da análise efetuada aos elementos probatórios apresentados, foi possível aferir por este Tribunal que a decisão de constituição da H... decorreu, primacialmente, da vontade da maioria dos sócios em implementar um modelo de gestão da D... em que o controlo era assegurado por C..., sendo este um aspeto essencial à necessária recuperação operacional e financeira da empresa. Tal opção deveu-se à experiência técnica (cerca de 27 anos) e ao reconhecimento profissional por parte de terceiros (clientes). Decisão que se entende ter sido, assim, impulsionada pelos próprios parceiros comerciais da D... como a L..., o qual era considerado fundamental para as operações da D... (cf. depoimento da testemunha C...), atendendo ao peso que representava na globalidade da atividade da D... . É salientada a existência de contratos diretos da L... com clientes internacionais no mercado português, sendo o serviço prestado pela D... .
As dificuldades decorrentes do relacionamento conflituoso entre os sócios (incluindo o Requerente) e o sócio J..., e as consequentes dificuldades de gestão, justificaram igualmente a posição afirmada por C... de que apenas colaboraria na gestão da D... se detivesse o respetivo controlo de gestão
(cf. depoimento das testemunhas E... e C...).
A posterior evolução positiva da rentabilidade financeira da D... - confirmada pela Requerida no RIT e que permitiu a valorização da participação social detida pelo Requerente – encontra evidência nos resultados contabilísticos juntos aos autos, demonstrando-se a evolução do respetivo resultado líquido do período, em especial, após 2016 (ou seja, após a operação de cessão de quotas à H..., sendo, nesta data, gerente da D..., C...), afastando-se dos resultados operacionais negativos anteriormente obtidos (entre 2012 e 2014).
Tendo sido afirmada a tentativa inicial de ceder as quotas a C...- opção que até foi então aceite pelo aqui Requerente (cf. depoimento da testemunha C...), tal não logrou ser exequível pela falta de consenso de todos os sócios, de onde decorreria a opção de criação da H... .
É, no entanto, de concluir que a criação da H... não alterou o efeito económico pretendido pelo Requerente: ceder as suas quotas da D..., não assumindo qualquer outra intervenção no conjunto das empresas em referência. Ou seja, não coube ao Requerente qualquer outra intervenção (enquanto sócio ou outra) no que respeita à H... (ou à D...), afastando-se assim, no entendimento feito pelo presente Tribunal Arbitral, do esquema de distribuição disfarçada de lucros descrito pela Requerida. Ao ceder a sua quota, o Requerente deixou de ser seu titular (com isso perdendo quaisquer benefícios futuros que aquela quota lhe pudesse vir a outorgar) e declarou a mais-valia não tributada que realizou.
Considerou ainda este Tribunal o afirmado em sede de inquirição testemunhal sobre a existência de um conhecimento externo sobre a degradação financeira do negócio nos anos invocados (2012-2014), em particular por parte de clientes da D..., tendo aqueles colaborado na identificação de potenciais interessados na compra da empresa. Aquando da respetiva inquirição testemunhal (C...) foram identificadas propostas de aquisição da D... (são referidas duas propostas de aquisição), as quais não foram aceites pelo valor baixo das mesmas. Foi ainda afirmada a vontade de alguns sócios em vender a empresa, o que estaria associado (também e não apenas) à idade dos sócios-gerentes (incluindo o aqui Requerente), bem como o desconhecimento do negócio por parte dos herdeiros do sócio I..., ficando sempre presente, de forma coerente e clara, o objetivo de introdução de medidas prévias de reorganização da D..., tendo em vista a tentativa de recuperação financeira e valorização da mesma. Situação que se entende no contexto de opção de venda posterior das quotas.
Relevará ainda referir que, a natureza das operações / atos jurídicos aqui questionada, para efeitos de aplicação da CGAA, compreende a perspetiva de análise com referência ao sentido e limites da própria liberdade de gestão fiscal. A este respeito, escreve Casalta Nabais que «(…) tanto os indivíduos como as empresas podem, designadamente, verter a sua ação económica em actos jurídicos e actos não jurídicos de acordo com a sua autonomia privada, guiando-se mesmo por critérios de elisão ou evitação dos impostos ou de aforro fiscal (tax avoidance), desde que, por uma tal via, não se violem as leis fiscais, incorrendo em fraude fiscal ou fuga aos impostos através de puras manobras ou disfarces jurídicos da realidade económica (tax evasion).»[18]
Neste sentido, pode ler-se no Ac. do STA de 07-06-2023, prolatado no proc. 03285/11.3BEPRT que: «Por outro lado, “Nenhum princípio do direito fiscal implica que as escolhas dos contribuintes se façam pela via mais tributada. O contribuinte pode perfeitamente erigir uma construção jurídica que desemboque numa tributação relativamente moderada. O abuso do direito não condena a habilidade fiscal, mesmo que esta conduza a construções jurídicas pouco ortodoxas” [Bergerès, apud, Nuno Sá Gomes, “Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal” (Lições), Editora Rei dos Livros, 2000, pg. 71].
Tendo sido expressamente assumido, em sede de inquirição testemunhal (C...), e confirmado pela Requerida, que a H... não tinha inicialmente capitais suficientes para fazer o pagamento da aquisição das quotas, salienta-se igualmente a convicção deste Tribunal de que o propósito de criação desta entidade foi tão-só o de gerir as participações na D..., tendo em vista a sua recuperação operacional e financeira.
Quando questionado sobre a atividade económica da H..., o sócio E... afirmou expressamente que não houve qualquer perspetiva de atividade económica para a H... para além da gestão das participações da D... . O que seria corroborado pela AT. A este respeito, segue este Tribunal o entendimento seguido no Processo n.º 499/2023-T do CAAD junto aos autos pelo Requerente (pela proximidade da matéria de facto e de direito), no qual se conclui que «O facto de a H... não exercer atividade operacional não significa, como concluí a AT, que não tivesse atividade, pois a detenção e gestão de participações noutras sociedades constitui uma forma indireta de exercício da atividade económica, caraterística das sociedades holding que a legislação comercial acolhe, não dependendo do contrato de sociedade nem de deliberação dos sócios, quando se trate de sociedades com objeto igual, como sucede neste caso (artigo 11.º, n.ºs 4 e 6 do Código das Sociedades Comerciais.)».
No que respeita à formação do preço de compra, foi referida, em sede testemunhal (C...), a realização de um processo de due dilligence pela consultora M... e duas avaliações externas (Dun & Bradstreet) e pela empresa de contabilidade (não identificada). É entendimento deste Tribunal Arbitral que a CGAA não constitui o instrumento legal adequado para proceder a este tipo de correções ficais.
Pelo que anteriormente se expõe, entende este Tribunal que não fica demonstrado e comprovado pela Requerida a verificação do abuso de formas jurídicas, a que se reconduz a previsão de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”, constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT. Não se afigura ter havido o recurso a quaisquer formas ou negócios jurídicos considerados não habituais, atípicos ou artificiais (esquemas ou montagens), dirigidas à obtenção de uma vantagem fiscal.
Resulta clara a prevalência de um objetivo claro e manifesto de alienação pelos Requerentes da sua quota (participação social) na D..., ainda que após um processo de alteração societária através da criação da H..., motivado por razões de gestão comercial e financeira para recuperação do negócio da D... .
Elemento resultado
Relativamente ao elemento resultado, o qual assenta na demonstração de uma vantagem fiscal derivada da estrutura montada, é convicção deste Tribunal que não há uma demonstração da equivalência económica das duas situações. Ou seja, (i) a situação efetivamente implementada pelo Requerente que se reconduz à alienação da quota (participação social) detida pelo Requerente na D..., e (ii) a situação que deveria ser reconstruída pela AT em aplicação da CGAA (fluxo financeiro de distribuição de lucros e reservas).
Efetivamente, estamos perante um conjunto de atos e negócios válidos, praticados por empresas relacionadas entre si, os quais, vistos de uma forma global, se encontram coordenados por comprovadas motivações de índole económica/societária. No que respeita ao aqui Requerente, é manifesto o recurso a uma forma jurídica de carater regular pelo qual o Requerente concretizou o objetivo de alienação da sua quota (participação social) na D..., pela qual negociou os termos do seu pagamento. Foi desde sempre esta a finalidade jurídica e económica do Requerente, sem que a configuração jurídica (estrutura) adotada seja “inoportuna, complicada, pesada, absurda ou supérflua, não correspondendo sob qualquer ponto de vista, para além do objectivo da vantagem fiscal, a um esquema razoável ou comum de atingir os fins a que se propõe à partida” e se demonstre uma “efectiva discrepância entre a causa típica do negócio, e os fins práticos visados pelas partes quando os celebraram.”[19]
Sendo opção dos Requerentes procederem à alienação da sua quota na D..., e por se tratar de uma participação adquirida em 1988 (ou seja, antes de 1989) importará salientar o enquadramento pelo qual a referida alienação já não estaria sujeita a imposto. Pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, estabelece-se um regime transitório da categoria G, que lhe garantia desde início uma vantagem fiscal:
“1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código. (Redacção do Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho).”
Elemento intelectual
Decorre do que se expõe, uma ausência de motivação dos Requerentes no sentido de considerar que as operações promovidas pelos Requerentes (são animadas por um prevalecente propósito fiscal. Sendo certo que a motivação deve socorrer-se das manifestações objetivas da intenção do contribuinte, com base num juízo de razoabilidade e normalidade, o que neste caso não se afigura existir, é convicção deste Tribunal Arbitral que se impôs, desde sempre, a finalidade económica de recuperação do negócio da D..., mediante a introdução de uma nova organização societária e consequente termino da condição de sócio do aqui Requerente.
Elemento normativo
Por último, em consequência, não se verifica uma situação de reprovação do resultado pelo próprio sistema fiscal (elemento normativo), ainda que, no limite, se possa considerar que, se tenha promovido «(…) uma opção fiscal de que o contribuinte se legitimamente se limitou a aproveitar».[20] Contudo, é condição para aplicação da CGAA a demonstração pela AT de que o resultado obtido pelo contribuinte contradiz as próprias premissas com que foi estabelecido uma determinada norma ou regime fiscal alegadamente defraudado. O que aqui não se verifica.
A este respeito, refere-se igualmente o entendimento seguido pelo Douto Tribunal no Processo n.º 499/2023-T junto aos autos, com o qual se concorda, quando conclui que: «(…) não se constata desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito das normas aplicadas (elemento normativo), pois a ordem jurídica não sinaliza a intenção de tributar de forma diferente a venda de participações sociais (quotas) detidas anteriormente a 1989 [cf. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro].
***
Da análise efetuada à matéria de facto e de direito apresentada, este Tribunal Arbitral concluiu pela ausência de suporte legal que permita a aplicação da CGAA, nos termos exigidos pelo artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
VII. JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Os Requerentes pedem ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios. Nos termos do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”. O pagamento de juros indemnizatórios é efetuado com base nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que os Requerentes pagaram indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, ambos da LGT).
Conhecendo a questão, a ilegalidade do ato em crise é imputável à Requerida, concluindo-se pela errada aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pelo que procede o pedido de restituição do montante indevidamente pago (€ 338.551,69), bem como o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, de acordo com o previsto no artigo 43.º da LGT, contados desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (cf. artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
VIII. DECISÃO
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequentemente:
-
Declarar ilegais e anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada, o ato de liquidação de IRS com o n.º 2022..., e as demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas conexas;
-
Condenar a Requerida na restituição do montante indevidamente pago pelos Requerentes (€ 338.551,69) e no pagamento de juros indemnizatórios sobre o mesmo, contados desde a data do pagamento até à data do processamento da nota de crédito;
-
Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais, em razão do decaimento.
IX. VALOR DO PROCESSO
Nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 338.551,69, correspondendo ao valor pago e a restituir aos Requerentes.
X. CUSTAS ARBITRAIS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 5.814,00, a cargo da Requerida em razão do decaimento.
Notifique-se.
CAAD, 12 de julho de 2024
A Árbitro Presidente
(Rita Correia da Cunha)
O Árbitro adjunto
(Marcolino Pisão Pedreiro)
A Árbitro adjunta - Relatora
(Ana Rita do Livramento Chacim)
[1] 7 - É aditado ao Código de Processo Tributário, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, o artigo 32.º-A, com a seguinte redacção:
«Artigo 32.º-A Actos ineficazes
São ineficazes os actos ou negócios jurídicos quando se demonstre que foram realizados com o único ou principal objectivo de redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude de actos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, caso em que a tributação recai sobre estes últimos.»
[2] Sobre esta matéria, Diogo Feio, “Cláusula geral anti abuso: antes e depois. Conceitos em construção”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 29, 2020, Tomás Cantista Tavares, “Nova redação e novo contencioso da Cláusula Geral Antibuso no Direito Fiscal: art. 38.º da LGT e art. 63º do CPPT”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 29, 2020.
[3] Sobre a jurisprudência relativa à cláusula anti abuso, Pedro Amorim, “Anotação à primeira decisão de um tribunal superior sobre a aplicação da cláusula geral anti abuso – Acórdão do TCAS, de 15 de março de 2011 (Proc. nº 04255/10)”, e Nuno Oliveira Garcia e José Almeida Fernandes – “Cláusula Geral anti abuso – Opus I, Comentário ao Acórdão nº 04255/10 do Tribunal Central Administrativo Sul (2ª Secção) de 15 de fevereiro de 2011 (Rel. José Correia)”, RFPDF, Ano IV, nº 2.
[4] A transposição da Diretiva ATAD, com a redação que lhe foi conferida pela Diretiva (UE) 2017/952, do Conselho, de 29 de maio de 2017, veio alterar o regime e o procedimento de aplicação da CGAA. Os objetivos subjacentes às alterações introduzidas visaram, nomeadamente, facilitar a aplicação da norma, bem como proporcionar maior proteção contra “esquemas” abusivos de planeamento e elisão fiscal.
Neste contexto, a CGAA passa a ser aplicável a: (i) “construções ou séries de construções” realizadas, (ii) tendo como uma das finalidades principais obter uma vantagem fiscal, (iii) com abuso das formas jurídicas ou que não sejam consideradas genuínas. Enquanto que, a anterior redação da norma se referia a “actos ou negócios jurídicos”, a CGAA passa a ser aplicável a “construções ou séries de construções”.
[5] Saldanha Sanches, J.L., Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2002, pp. 122 e 123 e Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, p.222.
[6] Saldanha Sanches, J.L., “Abuso de Direito em Matéria Fiscal: Natureza, alcance e limites”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 398, abril-junho, pp. 35 e ss.
[7] Quanto às alterações introduzidas no artigo 63.º do CPPT no contexto de transposição da Diretiva ATAD, temos especiais deveres de fundamentação do projeto, prescrevendo-se que:
“3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente:
a) A descrição da construção ou série de construções que foram realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;
b) A demonstração de que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável;
c) A identificação dos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;
d) A demonstração de que o sujeito passivo sobre o qual recairia a obrigação de efetuar a retenção na fonte, ou de reter um montante de imposto superior, tinha ou deveria ter conhecimento da construção ou série de construções, quando aplicável.”
[8] Sobre a aplicação do artigo 63.º às medidas anti abuso, vide João Filipe Pacheco de Carvalho, “O procedimento de aplicação das normas anti abuso”, Fiscalidade n.º 23, julho-setembro 2005.
[9] Cfr. Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito tributário – Contributos para a sua Compreensão, Almedina, Coimbra, 2009.
[10] Vide Processo n.º 324/2017 T do CAAD.
[11] Saldanha Sanches, Os Limites do planeamento fiscal, Substância e forma no Direito Fiscal português, comunitário e internacional, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 171-173 e Gustavo Lopes Courinha, op. cit., pp. 152 e ss. e 166-171.
[12] Gustavo Lopes Courinha, op. cit., pp. 152-153.
[13] Vide Processo n.º 324/2017 T do CAAD.
[14] Veja-se, neste contexto, Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula…, op. cit., pp. 163 e ss.
[15] Neste sentido e sobre este procedimento, vd. Saldanha Sanches, J.L. Os Limites do planeamento fiscal, Substância e forma no Direito Fiscal português, comunitário e internacional, op. cit., pp. 193-194.
[18] José Casalta Nabais, Introdução ao Direito Fiscal das Empresas, Almedina, 2013, pp. 44 e 45.
[19] Gustavo Lopes Courinha, op. cit., pp. 152-153.
[20] Vide Processo n.º 324/2017 T do CAAD.