SUMÁRIO
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A Autoridade Tributária desconsiderou a virtualidade da operação de redução de capital, seguida de aumento de capital, considerando que tal realidade «configura objetivamente uma distribuição de lucros aos sócios».
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Impunha-se à Autoridade Tributária averiguar, nos termos do art.º 38.º, n.º 2, da LGT, se tais operações não se deviam considerar genuínas, visando antes uma vantagem fiscal ilícita, consubstanciada na evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de lucros aos sócios, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimento de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas.
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Assim, deveria a Autoridade Tributária ter aplicado o procedimento previsto no artigo 63.º, n.º 1, do CPPT (na data à redação dos factos), o qual estipulava que “[a] … liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio”, o que, todavia, não veio a suceder.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (árbitro-presidente), Dr. João Taborda da Gama e Dr. Francisco Melo (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., LDA., NIPC ..., com sede na ..., ..., ...-... ... (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de liquidação de retenções na fonte de IRS (RFIRS) nº 2022..., datada de 20/12/2022, relativa a rendimentos respeitantes ao ano de 2018, bem como na respetiva liquidação de juros compensatórios nº 2022..., em que foram apurados juros compensatórios no montante total de €8.290,45, liquidações essas que totalizaram o montante de €61.490,45.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 3 de Maio de 2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 23 de Junho de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 11 de Julho de 2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
5. Em 29 de Setembro de 2023, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo-se por impugnação e requerendo a sua absolvição de todos os pedidos.
6. Em 13 de Outubro de 2023, a Requerente veio, no exercício do direito ao contraditório, pronunciar-se quanto às questões suscitadas pela AT na sua resposta.
7. Por despacho de 19 de Outubro de 2023, foi agendada a reunião do Tribunal Arbitral, prevista no artigo 18.º, n.º 1 do RJAT, bem como a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, para o dia 18-12-2023, pelas 14h30.
8. Em 15 de Dezembro de 2023, a Requerente, alegando ter apenas sido notificada, nessa data, do agendamento da reunião do Tribunal Arbitral, prevista no artigo 18.º do RJAT, para o dia 18 de Dezembro de 2023, veio requerer o respetivo adiamento, dada a impossibilidade de, em tempo útil, a respetiva mandatária poder preparar a reunião, bem como de a Requerente contactar, com a necessária antecedência, as testemunhas arroladas, no sentido de estas comparecerem na referida reunião.
9. Por despacho de 18 de Dezembro de 2023, a reunião do Tribunal Arbitral prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, bem como a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, foi adiada de dia 18 de dezembro de 2023 para dia 6 de fevereiro de 2024, pelas 10h30. No mesmo despacho, foi notificada a Requerente para, no prazo de 10 dias, indicar sobre que factos incidiria a inquirição das testemunhas e ainda foi determinada a prorrogação do prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, por dois meses, com fundamento da necessidade de adiar a reunião do artigo 18.º do RJAT em resultado de atraso na notificação das Partes.
10. Em 29 de Dezembro de 2023, a Requerente veio indicar os concretos pontos da matéria de facto sobre os quais pretendia a produção da prova testemunhal, bem como requerer ao Tribunal a autorização para que a testemunha B... pudesse ser ouvida via WEBEX.
11. Por despacho de 25 de Janeiro de 2024, o Tribunal Arbitral acordou em deferir o requerimento da Requerente de 29 de Dezembro de 2023.
12. Em 2 de Fevereiro de 2024, a Requerente veio informar os autos de que prescindia da inquirição da testemunha J... .
13. Em 6 de Fevereiro de 2024, teve lugar na sede do CAAD a reunião do artigo 18.º do RJAT, na qual foi inquirida a testemunha arrolada pela Requerente, B... . Nessa reunião, o representante da Requerida requereu que fossem ouvidos os depoimentos do inspetor tributário C... e da Chefe de Equipa D..., com base nas afirmações efetuadas pela testemunha arrolada pela Requerente, designadamente, de que os inspetores teriam afirmado que não haveria razão para efetuar as liquidações ora impugnadas, caso não tivessem sido concretizados os movimentos financeiros, e que não havia razão material para as liquidações. O Tribunal Arbitral indeferiu tal pretensão, por considerar que os factos sobre os quais incidiria a inquirição dos inspetores tributários (nomeadamente, o que foi dito pelos mesmos nas reuniões em que esteve presente a testemunha arrolada pela Requerente) não constituíam factos materialmente relevantes para a boa decisão da causa. Ainda na reunião do artigo 18.º do RJAT, o Tribunal Arbitral (i) notificou a Requerente para, no prazo de 5 dias, juntar aos autos os emails ou comprovativos de que, no decorrer do processo de inspeção tributária, a Requerente teria dado conhecimento aos inspetores da Autoridade Tributária dos movimentos bancários dos sócios para a Requerente em dezembro de 2018; (ii) notificou as Partes para, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias; (iii) advertiu a Requerente que até ao termo do prazo para apresentação de alegações escritas deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.
14. Em 12-02-2024, a Requerente veio informar aos autos que os documentos comprovativos das transferências bancárias efetuadas pelos sócios para a conta da Requerente, em 27-12-2018, juntos aos autos com o requerimento de 12-10-2023, foram facultados aos inspetores tributários durante a ação inspetiva a que a mesma fora submetida, credenciada pela OI2022..., e constituem os documentos de suporte aos respetivos lançamentos contabilísticos.
15. Em 21-02-2024, as Partes apresentaram as respetivas alegações escritas, nas quais reiteraram as suas posições iniciais.
16. Por despacho de 10-03-2024, o prazo para prolação de Decisão Arbitral foi prorrogado por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com fundamento na complexidade da matéria de direito.
II. SANEAMENTO
17. O Tribunal Arbitral colectivo é materialmente competente, foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos dos artigos 2.º, 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
18. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente foi constituída em 09/09/1996, tendo como sócios E... e F..., então casados entre si, tendo cada um uma participação de 50% no capital social da Requerente (factualidade aceite conforme Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), p. 8, junto como documento n.º 3, e art. 20.º da PI);
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Após o divórcio dos referidos E... e F..., a participação social desta última foi atribuída aos filhos de ambos, G... e H..., que ficaram, cada um deles, titulares de 25% do capital social da Requerente (factualidade aceite conforme RIT, p. 8 e art. 21.º da PI);
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Em 20/12/2018, a Requerente deliberou reduzir o seu capital social, que se cifrava, nessa data, em €200.000,00, para €10.000,00, com o objectivo de “libertação de capital” (factualidade aceite conforme RIT, pp. 20 e 21 e art. 22.º da PI);
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Em consequência, foram restituídas aos sócios, a título de reembolso do capital investido, as seguintes quantias (factualidade aceite conforme RIT, p. 21 e art. 25.º da PI):
a)E...– €95.000,00;
b)G...– €47.500,00;
c)H...– €47.500,00.
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Em 21/12/2018, a Requerente deliberou aumentar o seu capital social para €200.000,00, através da incorporação de resultados transitados no valor de €190.000,00 (factualidade aceite conforme RIT, p. 21 e art. 26.º da PI).
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Após esse aumento de capital, a quota do sócio E... ficou com o valor nominal de €100.000,00, e as quotas dos sócios G... e H... com o valor, cada uma, de €50.000,00 (factualidade aceite conforme RIT, p. 21 e art. 27.º da PI);
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Em 09/06/2022, a coberto da ordem de serviço 012022..., teve início procedimento inspetivo à empresa I..., LDA, NIPC..., de âmbito geral ao ano económico de 2018 (factualidade aceite conforme RIT, p. 7);
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Do procedimento inspetivo resultaram, numa primeira fase, correções em sede de IRC e RFIRS, que foram devidamente relatadas em projeto de relatório, notificado em 2022-11-21 e sobre o qual não houve qualquer contestação ou reação por parte do sujeito passivo, nomeadamente o exercício do direito de audição, mesmo depois de notificado para o efeito (factualidade aceite conforme RIT, p. 23);
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Decorrido o prazo concedido para o exercício do direito de audição, sem que o mesmo tenha ocorrido, prosseguiu o procedimento da ação inspetiva, com a elaboração do relatório final e emissão da nota de diligência, que põe fim aos atos inspetivos, emitidos em 2022-12-14, considerados notificados em 2022-12-19 (factualidade aceite conforme art. 13.º e 14.º da PI).
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Do relatório final resultou, em síntese, o seguinte (factualidade aceite conforme RIT, junto como documento n.º 3 e processo administrativo):
V.2. Em sede de IRS – Retenção na Fonte categoria E
A empresa no ano 2018, mas também no ano 2017, gerou resultados positivos relevantes que se traduziram num saldo de Resultados Transitados elevado, optando a empresa por compensar os seus sócios com distribuição de resultados.
Pela consulta à declaração anual/IES e confrontando com as declarações de retenção na fonte, retirámos os seguintes elementos:
Os lucros distribuídos aos sócios configuram um rendimento de categoria E, na esfera destes, tal como prescrito na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, estando sujeitos, no caso em analise, na data de colocação à disposição (subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7º do Código do IRS), a uma retenção na fonte a título definitivo, em sede de IRS, a uma taxa liberatória de 28%, conforme alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS.
Confrontando a informação extraída da IES com as declarações de retenção na fonte, verifica-se uma incoerência, já que, constando na IES de 2018, que a empresa distribuiu resultados em €440.000,00, esta operação devia resultar numa tributação em sede de retenção na fonte em IRS – categoria E, de € 123.200,00 (440.000,00 x 28%) e não de € 70.000,00, que pressupõe uma distribuição de apenas € 250.000,00 (250.000,00 x 28% = 70.000,00), faltando tributar € 190.000,00 (440.000,00 – 250.000,00).
Esta diferença no valor do imposto pago, Categoria E do Código do IRS, implicou a sua análise, resultando as correções que a seguir se demonstram:
Analisados os registos contabilísticos e documentos suporte referentes a esta distribuição de lucros da empresa no exercício de 2018, constatamos que esta, procedeu a uma redução de capital, procedida, quase em simultâneo, de um aumento de capital que repôs o capital reduzido, na prática, sem qualquer efeito em termos de Capital Social da empresa, nomeadamente nas funções que o capital social tem nas sociedades.
A empresa inicia o ano de 2018 com o montante de € 200.000,00 de capital social e termina o ano com o mesmo capital, tendo, em termos contabilísticos no dia 2018-12-31 uma variação de menos € 190.000,00 e de mais € 190.000,00, que resultaram do seguinte movimento:
Analisando os efeitos práticos destas movimentações, verifica-se que se em termos de Capital Social, os efeitos foram nulos, outra realidade em paralelo e diretamente ligado a estas operações ocorreram na empresa, nomeadamente nas contrapartidas que estas movimentações do Capital tiveram para os sócios.
Na operação de redução de capital, foram efetuados os seguintes registos contabilísticos:
Conforme se demonstra esta redução do Capital Social foi atribuída aos sócios, também evidenciado nos lançamentos contabilísticos e extrato bancário que comprovam o pagamento aos sócios desta redução do Capital:
Em suma, o montante de redução de capital foi atribuído e posteriormente entregue aos sócios por transferência bancária.
Quanto à operação do aumento do Capital Social, verifica-se que esta foi praticamente em simultâneo da sua redução, o que coloca desde logo das razões para a sua existência.
O aumento do Capital Social teve como suporte os seguintes movimentos e documentos:
Este movimento contabilístico e respetivo documento suporte, evidencia claramente que o aumento de capital foi realizado com recurso aos Resultados Transitados da empresa.
Assim, retirando o efeito nulo do débito e do crédito da variação do capital social (débito de € 190.000,00 e crédito de € 190.000,00, igual a zero) resulta que a empresa viu diminuída a sua conta de Resultados Transitados e as suas Disponibilidades (depósitos à ordem), sendo estas disponibilidades sido transferidas para as contas dos sócios, concluindo-se que, com estas operações, a empresa perdeu recursos – Lucros acumulados - que foram entregues aos sócios.
Esta realidade configura objetivamente uma distribuição de lucros aos sócios, sujeitos em IRS na esfera dos beneficiários, estando estes rendimentos, Rendimentos de Capital, categoria E do IRS nos termos da alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS, sujeitos a retenção na fonte à taxa de 28%, por parte da entidade pagadora, nos termos da conforme alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS.
Contabilisticamente, demonstra-se que com esta operação de diminuição do Capital Social e seu posterior aumento o que resultou efetivamente foi uma diminuição dos Resultados Transitados da empresa e a sua conta de Depósitos à Ordem, pelo pagamento destes valores aos sócios, existindo de facto uma distribuição de Lucros aos titulares do Capital Social.
A fim de contextualizar as operações realizados sobre os Capitais Sociais e a sua importância para a empresa, vejamos que o Capital Social, representa a cifra que corresponde à entrada dos sócios/participação na sociedade, com vista ao seu início de atividade e que se vai mantendo na sociedade ao longo do tempo, tendo variações que a legislação comercial, nomeadamente o Código das Sociedades Comerciais (CSC) regula.
Ao Capital Social é atribuída uma importância teórica primordial (é mesmo de menção obrigatória no contrato de sociedade, cfr. al. f) do n.º 1 do artigo 9.º do CSC, sob pena de nulidade insanável), merecendo rigor quer a sua integridade quer as suas variações.
A importância é reforçada, quando o código das sociedades comerciais é perentório, no caso da realização do capital, ou seja, na sua efetiva entrada na sociedade, não permitindo que as entradas de capital sejam apenas intencionais, mas sim que se concretizem, prevendo mesmo a nulidade da operação, caso a entrada de capital não seja realizada, por exemplo, no prazo de um ano (artigos 88.º e 89.º do CSC).
A operação em analise, põe em evidência a importância formal que o Capital Social tem, já que serviu de veículo para a operação real de distribuição de resultados.
A sua importância teórica, também tem outras implicações, para além da obrigatoriedade de ser realizado, o de impedir a distribuição de resultados aos sócios ou não atribuição de direito a voto, caso não o tenham feito.
A redução de capital, conforme descrito no lexionário do site do Diário da República Eletrónico em https://dre.pt/dre/lexionario/termo/reducao-capital-social, caracteriza-se por estar “regulada no Código das Sociedades Comerciais, nos artigos 94.º a 96.º. A redução de capital social é um mecanismo de grande relevância no âmbito de operações de reestruturação e reorganização empresarial e financeira, fundamentalmente, para o saneamento financeiro da sociedade ou para devolver aos sócios fundos considerados excessivos para a atividade da sociedade. A alínea a) do n.º 1 do artigo 94.º do Código das Sociedades Comerciais estabelece que a redução do capital social pode visar i) a cobertura de prejuízos, ii) a libertação de excesso de capital ou iii) uma finalidade especial. Deste modo, a deliberação de redução de capital social é uma deliberação, necessariamente vinculada a um fim específico que deve constar da convocatória da assembleia geral da sociedade e ser devidamente explicitada, isto é, fundamentada na ata da assembleia geral que aprove a redução do capital social (…)”
Com isto, é claro que as motivações para a redução estão devidamente enquadradas e nenhuma delas foi a base para a operação realizada pela empresa, senão vejamos: não teve como função a cobertura de prejuízos porque a empresa apresenta resultados positivos consideráveis; não teve como função a libertação de excesso de capital porque a empresa em simultâneo tornou a aumentar o capital, repondo-o, e; não se associa qualquer finalidade especial que não fosse o que de seguida aconteceu que foi entrega do mesmo aos sócios, compensado de imediato com um aumento através da incorporação de resultados transitados.
Vejamos os factos relevantes em termos de Pacto Social e Capital Social, ocorridos na empresa:
· Consultada a certidão permanente da sociedade, constamos que a mesma teve um capital inicial, na sua constituição de 3.000.000$, dividido em duas quotas iguais de E... e F...;
· em 2004, foi o capital social aumentado, pelos mesmos sócios em partes iguais para € 250.000,00, referindo a escritura, que subscrito na totalidade com entrada em dinheiro de ambos pela sua quota parte;
· em ata de assembleia geral da sociedade realizada em 2018-12-20, a sociedade decide reduzir o capital, referindo como motivo a libertação de excesso de capital;
· em ata de assembleia geral da sociedade realizada em 2018-12-21, a sociedade decide aumentar o capital por incorporação de resultados transitados
Ora, nas assembleias de sócios das sociedades comerciais, estando reunidas as entidades (sócios/acionistas) decisoras por excelência no que respeita às questões primordiais das empresas, como é o caso de alterações ao pacto social da empresa, o seu registo nas atas, que relatam os acontecimentos ocorridos nestas reuniões/assembleias, assumem a oficialização das decisões.
Relativamente a estas duas operações ocorridas no final do ano de 2018 – redução do capital e aumento do capital social – relativamente às justificações apresentadas para a sua ocorrência, verifica-se não serem compatíveis entre si. Se a redução de capital tinha como propósito a libertação de excesso de capital, a operação seguinte de aumento de capital contraria esta mesma razão. Em suma, a operação de aumento de capital, veio mostrar que, a empresa não tinha excesso de capital, serviu apenas para dissimular uma intenção de utilizar os resultados transitados, para a operação anterior, de atribuição aos sócios.
Questionada a empresa para esclarecer estas operações, foi referido:
Vem a empresa alegar que o aumento de capital ocorrido em 2004 (decorreram 14 anos entre 2004 e 2018) nunca foi realizado pelos sócios. Ora, desde logo esta informação contraria o referido na escritura já apresentada e vertida no registo na Conservatória do Registo Comercial, e, também como já referido, o Código das Sociedades Comerciais, obriga, sob pena de caducidade, a que o capital social seja efetivamente realizado.
Daí que duas situações ocorrem, ou o capital foi realizado, ou esta mesma operação caducou.
Igualmente se pode acrescentar que se o capital não foi efetivamente realizado, porquê restituir aos sócios esse mesmo capital, concluindo-se que esta entrega aos sócios deixa de ter caracter de restituição de capital e assume o de efetiva retirada de lucros.
Além disto, se os sócios tinham dividas perante a sociedade relativamente ao capital não realizado, estas dívidas poderiam ser saldadas através de encontro de contas, evitando-se a transferência de dinheiros.
Todos estes factos e incoerências permitem concluir que o enquadramento das operações ocorridas no final de 2018, que culminaram na entrega aos sócios do montante de € 190.000,00 são efetivas retiradas de lucros gerados na empresa, a favor dos sócios, o que configura uma operação sujeita a IRS previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, e estão sujeitos, na data de colocação à disposição (subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7º do Código do IRS), a uma retenção na fonte a titulo definitivo, em sede de IRS, a uma taxa liberatória de 28%, conforme alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS, no valor de € 53.200,00.
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Em 3 de Maio de 2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo (conforme informação do Sistema de Gestão Processual do CAAD).
§2 – Factos não provados
9. Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham consideram provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
10. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
12. Quando um contribuinte esgrime em tribunal uma série de fundamentos autónomos que conduzem, na sua opinião, cada um deles à anulação da liquidação impugnada – o tribunal não tem de se pronunciar sobre todos eles; deve iniciar por aqueles que conduzam à nulidade e depois à anulação da liquidação, e entre estes, começará por analisar os vícios cuja procedência determine a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos, mesmo que não estejam vertidos numa relação de subsidiariedade – cfr. art. 124.º, do CPPT (ex vi, 29.º do RJAT). Em obediência a esse ditame, iniciar-se-á pela análise do argumento da caducidade do direito à liquidação.
Questão Prévia - Da caducidade do direito à liquidação de RFIRS, bem como dos respectivos juros compensatórios
13. A Requerente invoca a caducidade do direito à liquidação de retenção na fonte em sede de IRS, alegando para o efeito, em síntese, o seguinte:
« Conforme resulta das disposições conjugadas dos nºs 1 e 4 do art. 45º da LGT, a AT dispunha do prazo de quatro anos, contados «a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto», para efectuar as liquidações objecto do presente PPA, bem como para notificar as mesmas à Requerente, levando-se sempre em consideração, na contagem desse prazo, suspensões dessa contagem que, ex vi da verificação de causas legalmente tipificadas, pudessem eventualmente ocorrer.
Assim, no caso dos autos, a Requerente dispunha desse prazo de quatro anos contado desde as 00:00 horas do dia 01/01/2019, o qual poderia ser suspenso desde que se verificasse alguma das causas de suspensão legalmente previstas.´
Ora, verifica-se que a liquidação de RFIRS nº 2022..., datada de 20/12/2022, bem como a respectiva liquidação de juros compensatórios nº 2022..., foram notificadas à Requerente em 05/01/2023 (por aplicação do disposto no art. 39º-10 do CPPT – cfr. documento nº 1).
(…) as liquidações aqui postas em crise, que foram registadas no Via CTT em 21/12/2022, se consideram-se legalmente efectuadas à Requerente em 05/01/2023.
Por outro lado, para além de não ter ocorrido nenhuma causa de interrupção do prazo de caducidade do direito à liquidação, também não se verificou nenhuma suspensão do aludido prazo de caducidade, porquanto o eventual efeito suspensivo desse prazo, decorrente da notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da acção de inspecção externa, cessou, isto é, deixou de ter aplicação, por ter a duração da acção inspectiva ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação do seu início, tendo, em consequência, de contarse o referido prazo de caducidade desde o seu início, sem considerar qualquer suspensão.
(…)
Por conseguinte, o RIT foi notificado à Requerente em 19/12/2022 (cfr. art. 43º5 do RCPITA), considerando-se nessa data, com a notificação desse relatório final, concluído o procedimento de inspecção tributária (cfr. parte final do nº 2 do art. 62º do RCPITA).
Ora, tendo o procedimento de inspecção tributária ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação do seu início, que ocorreu em 09/06/2022, o efeito suspensivo determinado pela notificação da ordem de serviço cessou, ex vi do disposto no art. 46º-1 da LGT, devendo o prazo de caducidade contar-se desde o seu início.
(…)
Verifica-se, pois, que, na data em que as liquidações de RFIRS e de juros compensatórios objecto do presente PPA foram notificadas à Requerente, já havia decorrido o respectivo prazo de caducidade de quatro anos (que começou a correr em 01/01/2019), caducidade essa que expressamente se invoca.»
14. Em sede de Resposta, a Requerida pronunciou-se sobre esta matéria nos seguintes:
«Ora, o procedimento inspetivo que deu origem às liquidações ora impugnadas não teve uma duração superior a 6 meses.
Note-se que o procedimento inspetivo beneficiou da suspensão do prazo prevista no n.º 3 do art.º 57°-A da LGT, introduzido pela Lei n.º 7/2021 de 26/02.
Com efeito, o procedimento inspetivo decorreu em período que incluiu o mês de agosto de 2022, não tendo nesse período ocorrido qualquer uma das interações elencadas no n.º 2 do mesmo artigo.
Com esta suspensão de um mês prevista no n.º 3 do art.º 57°-A da LGT, o procedimento inspetivo e o seu prazo de suspensão da caducidade do direito à liquidação, passa de 6 meses para 7 meses, o que faz com que a duração que o procedimento inspetivo a coberto da OI2022... esteja enquadrado nos art. 36.º do RCPITA e no art. 46.º n.º 1 da LGT.
Razão por que, aplicando-se a suspensão do prazo de caducidade, verifica-se que a mesma não se tinha ainda verificado aquando da notificação das liquidações em causa.
Nestes termos, deverá improceder a invocação pelos Requerente de caducidade do direito à liquidação.»
Cumpre apreciar e decidir.
15. O artigo 36.º, n.º 2 do RCPITA estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 36.º
Início e prazo do procedimento de inspeção
1 – (…)
2 - O procedimento de inspeção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início.
(…)
16. Esta disposição deve ser articulada com o previsto no n.º 3 do artigo 57.º-A da LGT, segundo o qual «São suspensos os prazos relativos ao procedimento de inspeção tributária durante o mês de agosto, para efeitos do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira.»
(…)
17. Conforme resulta da factualidade assente, a ordem de serviço nº OI2022... foi assinada pelo gerente da Requerente em 09/06/2022, o que determinou o início do procedimento externo de inspecção e, consequentemente, do prazo de seis meses para a respetiva conclusão.
18. Ora, considerando a suspensão havida no mês de agosto de 2022, tal significa que o procedimento deveria estar concluído, no limite, em 09/01/2023.
19. Tendo o RIT sido notificado à Requerente em 19/12/2022, decorre que a conclusão do procedimento de inspeção ocorreu dentro do prazo legal, pelo que a suspensão do prazo de caducidade se mantinha válida naquela data.
20. Termos em que improcede a invocação pelos Requerente de caducidade do direito à liquidação.
O mérito do pedido ou questão de fundo
21. No presente processo discute-se, essencialmente, a questão de saber se a Requerente, com a operação de redução de capital realizada em 20/12/2018, procedeu, efetivamente, a uma redução de capital tout court, como entende a Requerente, ou, antes, a operação real praticada pela Requerente consistiu numa distribuição de lucros aos sócios, portanto, sujeitos a tributação, como defende a Requerida.
22. A Requerente suporta o seu entendimento, sinteticamente, na seguinte linha de argumentação:
«No fundo, os lucros correspondem aos ganhos resultantes da prossecução da actividade económica pela empresa.
Deste modo, para se poderem qualificar as verbas distribuídas aos sócios da Requerente como “lucros”, as mesmas tinham de ter tido origem em fundos próprios da Requerente gerados em resultados (cfr., v.g., o decidido no douto Acórdão do TCA Norte, proferido em 11/03/2021, no Proc. nº 01619/10.7BEBRG).
Não se incluem, portanto, na noção de “lucros”, as verbas correspondentes às entradas dos sócios (reflectidas no capital social).
Ora, no caso sub judice, é manifesto que não ocorreu qualquer transferência, da sociedade Requerente para os seus sócios, de fundos próprios da Requerente, gerados em resultados da sua actividade.
O que foi distribuído aos sócios da Requerente foi o valor das suas próprias entradas, que lhes foi restituído, em consequência da redução do valor nominal das respectivas quotas.
Aliás, conforme resulta do RIT, os resultados transitados não foram sequer distribuídos aos sócios, tendo permanecido na sociedade Requerente, através da sua incorporação no capital social.
(…)
Por outro lado, não se verificou, na esfera dos sócios da Requerente, qualquer incremento ou ganho susceptível de ser tributado em IRS, mas apenas e tão-só a restituição do capital por eles inicialmente investido.
Ora, como não poderá deixar de ser do conhecimento da AT, foi sancionado por despacho da Subdirectora-Geral do IR, de 30/12/2019, proferido no Proc. de Informação Vinculativa nº 4341/2017, o entendimento segundo o qual, «numa operação de redução do capital social, o montante entregue aos sócios constituirá, à partida, a devolução do capital investido, só se registando um ganho ou acréscimo patrimonial se os sócios/acionistas vierem a receber um valor superior à proporção que a sua participação representa no montante do capital reduzido.» (o sublinhado é nosso) (cfr. fotocópia da Informação Vinculativa prestada no referido Proc. nº 4341/2017, que se junta enquanto documento nº 5).
(…)
Assim, nos termos do entendimento veiculado pela própria AT na referida Informação Vinculativa, tendo os sócios da Requerente recebido apenas a quantia correspondente à redução do valor nominal das suas quotas, as verbas por eles percebidas configuraram um mero “reembolso do capital investido”, não constituindo, por esse motivo, um rendimento tributável em sede de IRS.»
(…)
23. Sem conceder, acrescenta ainda a Requerente que:
«O pressuposto da liquidação de RFIRS impugnada assenta no entendimento da AT de que a operação de redução do capital social da Requerente seguida do aumento desse capital social «serviu de veiculo para a operação real de distribuição de resultados»; para “dissimular uma intenção de utilizar os resultados transitados” para os atribuir aos sócios, tendo tributado os valores transferidos para os sócios como se de lucros se tratassem.
Nesse pressuposto, a AT desconsiderou então as referidas operações, e ficcionou uma distribuição de lucros aos sócios da Requerente, sobre os quais liquidou (ilegalmente) IRS.
Todavia, apenas no âmbito do art. 38º-2 da LGT podia a AT ter desconsiderado a operação de redução do capital social com restituição aos sócios e subsequente aumento de capital através de resultados transitados (invocando a ocorrência de “construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável”), e efectuado “a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica” (ou seja, como se de uma distribuição de lucros se tivesse tratado).
É que, para, ao abrigo da norma do art. 5º-2/h do CIRS invocada no RIT, poder tributar as quantias atribuídas aos sócios da Requerente como se de lucros se tratasse, a AT teve de agir como se a operação de redução de capital social através da redução do valor nominal das quotas, seguida do aumento de capital através de incorporação de reservas, não tivesse ocorrido, desconsiderando as referidas - 16 - operações, bem como a proveniência das quantias entregues aos sócios, e considerou apenas o facto de, após essas operações, as contas de “Resultados Transitados” e de “Disponibilidades (depósitos à ordem)” da Requerente terem diminuído.
(…)
Assim, as liquidações de tributos com base na disposição anti-abuso constante no art. 38º-2 da LGT têm de seguir, sob pena de ilegalidade das mesmas, o procedimento constante no art. 63º do CPPT (cfr. art. 63º-1) – o que, no caso, não sucedeu.
Com efeito, embora a AT, em termos substantivos, só tenha podido efectuar a liquidação de IRS objecto de PPA com efectivo recurso ao que preceituam as normas anti-abuso, a verdade é que, na fundamentação de tal liquidação, não invocou tais normas, nem seguiu o procedimento legal por elas pressuposto.
(…)
Não tendo sido respeitadas essa validade e essa eficácia – antes tendo a AT praticado os actos tributários definitivos sem que tivesse, primeiro, observado o procedimento anti-abuso para a demonstração dos factos que alegava – foi frontalmente violada, v.g., a norma do nº 1 do art. 63º do CPPT, que faz depender aqueles actos do procedimento previsto nesse mesmo art. 63º.
Foram, dessa forma, preteridas formalidades essenciais, e violados também, pelo menos, os princípios da legalidade, da justiça e do respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários, consagrados especialmente quanto ao procedimento tributário no art. 55º da LGT, e que são expressão e concretização das normas e princípios consagrados no art. 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e nos arts. 3º, 4º e 8º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).»
(…)
24. A Requerida apoia a defesa da sua posição no relatório de inspeção, concluindo da seguinte forma:
«Todos estes factos e incoerências permitem concluir que o enquadramento das operações ocorridas no final de 2018, que culminaram na entrega aos sócios do montante de € 190.000,00 são efetivas retiradas de lucros gerados na empresa, a favor dos sócios, o que configura uma operação sujeita a IRS previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, e estão sujeitos, na data de colocação à disposição (subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7º do Código do IRS), a uma retenção na fonte a titulo definitivo, em sede de IRS, a uma taxa liberatória de 28%, conforme alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS, no valor de € 53.200,00.
Finalmente, sobre o argumento de que a AT deveria ter acionado a Cláusula Geral Antiabuso (CGAA) para efetivar as correções ora impugnadas, para além do que já se deixou dito em sede de Resposta, resulta do exposto nestas alegações de que não existe qualquer dúvida de que houve uma transferência de resultados para sócios, em 2018, que não foi tributada e que, portanto, a fundamentação das liquidações não configurou uma qualquer desconsideração da operação de redução de capital, mas tão-só a constatação contabilística de que houve uma distribuição de resultados não tributada, porquanto as transferências que foram feitas para os sócios, embora contabilizadas como resultando da redução de capital, não equivaleram efetivamente à devolução de entradas de capital, que não existiu, mas a transferência de resultados da empresa – trata-se, por isso, sem qualquer margem para dúvidas, de uma correção meramente aritmética.
E assim é que, não tendo a forma jurídica utilizada (redução de capital), no caso em apreço, a virtualidade de alcançar qualquer vantagem fiscal (porque o capital não havia sido realizado previamente pelos sócios), nunca haveria lugar à aplicação da CGAA.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
25. Perpassa no Relatório de Inspeção a convicção, por parte da AT, de que a operação de redução de capital social seguida de aumento do capital, teve uma finalidade puramente financeira de distribuição de lucros, conforme se retira dos seguintes excertos ilustrativos do RIT:
«Contabilisticamente, demonstra-se que com esta operação de diminuição do Capital Social e seu posterior aumento o que resultou efetivamente foi uma diminuição dos Resultados Transitados da empresa e a sua conta de Depósitos à Ordem, pelo pagamento destes valores aos sócios, existindo de facto uma distribuição de Lucros aos titulares do Capital Social.
(…)
A operação em analise [redução de capital], põe em evidência a importância formal que o Capital Social tem, já que serviu de veículo para a operação real de distribuição de resultados.
(…)
Todos estes factos e incoerências permitem concluir que o enquadramento das operações ocorridas no final de 2018, que culminaram na entrega aos sócios do montante de € 190.000,00 são efetivas retiradas de lucros gerados na empresa, a favor dos sócios, o que configura uma operação sujeita a IRS previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS (….)»
26. É aqui manifesto que as circunstâncias do caso se reconduzem à aplicação pela Requerida da cláusula geral anti-abuso, na medida em que desconsidera a virtualidade da operação de redução de capital, seguida de aumento de capital, considerando que tal realidade «configura objetivamente uma distribuição de lucros aos sócios».
27. O artigo 38.º, n.º 2 da LGT, estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 38.º
Ineficácia de actos e negócios jurídicos
1 – (…)
2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.
(…)
28. Como se refere na decisão arbitral proferida no processo 47/2019-T, de 31 de julho de 2019, «O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único ou principal objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.»
29. Ora, impunha-se à Requerida averiguar, nos termos do art.º 38.º n.º 2 da LGT se tais operações não se deviam considerar genuínas, visando antes uma vantagem fiscal ilícita, consubstanciada na evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de lucros aos sócios, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas.
30. Assim, deveria desta forma ter sido aplicado pela Requerida o procedimento previsto no ex-artigo 63.º n.º 1 do CPPT, o qual estipulava que “[a] … liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio”, o que, todavia, não veio a suceder.
31. Donde, os atos tributários controvertidos afiguram-se inquinados do vício de violação de lei, devendo nessa medida ser anulados.
32. Da ilegalidade dos actos de liquidação de retenções na fonte de IRS, resulta para a AT a obrigação de restabelecer a situação que existiria se os actos não tivessem sidos praticados. De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo‑lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
33. Por conseguinte, por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação dos actos de liquidação, há assim lugar ao reembolso do IRS indevidamente pago acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre as quantias indevidamente pagas pela Requerente, à taxa legal supletiva, desde a data do pagamento indevido, isto é, 3 de Fevereiro de 2023, até integral e efectivo reembolso, nos termos conjugados do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4 e 35.º, n.º 10 e 100.º da LGT e do artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e anular os actos de liquidação de retenções na fonte de IRS que dele foram objecto;
-
Condenar a Requerida no reembolso à Requerente do montante de imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido até à data do processamento da respectiva nota de crédito;
-
Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 61.490,45.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.448,00, a cargo da Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
CAAD, 11 de Julho de 2024
Os Árbitros,
Rita Correia da Cunha
(Presidente)
João Taborda da Gama
Francisco Melo
(relator)